Open-access No sertão e na capital, salve Aparecida: peregrinações em Sergipe no tempo presente

In the “sertão” and in the capital, hail Aparecida: pilgrimages in Sergipe at present

Resumo

As peregrinações constituem uma das principais facetas do catolicismo no mundo ocidental. Elas estão presentes na cultura judaico-cristã e em pleno século XXI ainda exercem um papel relevante no processo de congregação de devotos. Este artigo se debruça sobre duas peregrinações devotadas a Nossa Senhora Aparecida em Sergipe, ambas instituídas no primeiro decênio do século XXI. A primeira, designada em 2004, ocorre no sertão sergipano, no município de Nossa Senhora Aparecida. A segunda, criada no mesmo ano, ocorre na periferia da capital sergipana, no Conjunto Bugio, onde há um santuário mariano. Com esse exame, pretendemos entender a constituição, pautada no uso de diferentes linguagens da cultura religiosa, de novos santuários em torno de devoções tradicionais em Sergipe no tempo presente.

Palavras-chave cultura religiosa; tempo presente; fontes audiovisuais

Abstract

Pilgrimages are a major facet of Catholicism in the Western world. They are present in the Judeo-Christian culture and in the XXI century still play an important role in the process of assembly of devotees. This article focuses on two pilgrimages devoted to Our Lady of Aparecida in Sergipe, both established in the first decade of the XXI century. The first one, created in 2004, occurs in the interior of Sergipe, in the town of Nossa Senhora Aparecida. The second one, created in the same year, occurs on the outskirts of the capital of Sergipe, the Conjunto Bugio, where there is a Marian shrine. With this analysis, we intend to understand the formation of new sanctuaries around traditional devotions in Sergipe at present time, based on the use of different languages of religious culture.

Keywords religious culture; present time; audiovisual sources

Résumé

Les pèlerinages sont l’un des principaux aspects du catholicisme dans le monde occidental. Ils sont présents dans la culture judéo-chrétienne et encore au XXIème siècle ils continuent à jouer un rôle important dans la congrégation de dévots. Cet article se concentre sur deux pèlerinages consacrés à Notre-Dame d›Aparecida à l´etat de Sergipe, tous deux établis dans la première décennie du XXIe siècle. Le premier, créé en 2004, a lieu au hinterland de Sergipe, dans le village de Notre-Dame d›Aparecida. Le second, créé à la même année, a lieu dans la périphérie de la capitale de Sergipe, à Bugio, où il existe un sanctuaire. En les étudiant, nous voulons comprendre la formation à Sergipe, à l›heure actuelle, basée sur l›utilisation des différents langages de la culture religieuse de nouveaux sanctuaires autour de dévotions traditionnelles.

Mots-clés culture religieuse; temps présent; sources audiovisuelles

Introdução

A virada do milênio no campo acadêmico das ciências humanas foi marcada pela discussão a respeito do processo de secularização. Antônio Flávio Pierucci (2005: 37), por exemplo, foi um dos intelectuais que teceram problematizações acerca do processo de racionalização do mundo. Por essa ótica, o sagrado paulatinamente estaria sendo banido e substituído por uma racionalidade, ou seja, as expressões de religiosidade estariam passando por uma crise. De acordo com Franz Bruseke, isso se daria pelo fato de a sociedade não apresentar mais a capacidade de hierarquizar o espaço e o tempo, o que faria com que o sagrado perdesse seu caráter místico, extraordinário. Para o antropólogo:

Pensando nos dias de hoje temos que admitir que estamos num caminho sem volta. A racionalidade técnica destruiu a aura que envolveu o templum, o espaço do sagrado, e dissolveu, também, o tempo sagrado. Com isso enfraqueceu nossa capacidade de contemplar (colocar nas circunstancias do sanctu) aquilo que é extraordinário, i.e., fora da ordem das coisas comuns encontrava-se, contemplada, a ordem sagrada, a hierarquia. Somente essa conseguiu dar sentido aos lugares, dividindo-se com sua autoridade os tempos de sua contemplação. Perdemos a ordem sagrada dos lugares, como esquecemos o significado dos tempos (Bruseke, 2009: 87).

As palavras de Bruseke sobre o processo de dessacralização do mundo são taxativas e aparentemente evidenciam como a sociedade passou a trilhar um percurso que a levou ao distanciamento do universo religioso, pelo menos da esfera mítica da cosmovisão religiosa. Todavia, esse discurso oriundo dos últimos decênios do século XX não é uníssono entre os investigadores das ciências sociais no Brasil e, ao ser posto em confronto com a realidade social, apresenta importantes lacunas. Pesquisadores como Marcelo Ayres Camurça questionam esse posicionamento em relação à dessacralização, ao afirmar:

No alvorecer deste novo milênio, no mundo e no Brasil, a eclosão dos chamados novos movimentos religiosos, dos movimentos místicos, dos neo-esoterismos e da new age, além da revivescência de tradições e fundamentalismos, no seio das religiões institucionalizadas, parece levantar desafios interpretativos e classificatórios aos estudiosos da religião e da realidade sociocultural contemporânea (Camurça, 2004: 55).

Portanto, se o mundo se tornou racional, o que significam as práticas de sacrifícios e de penitências diante de imagens sacras? Se o espaço e o tempo sagrados foram dissolvidos, como podemos entender as romarias e peregrinações em busca de santuários populares no Brasil e demais países latino-americanos? Se perdemos a ordem sagrada dos lugares e nossa capacidade de hierarquizar o tempo e o espaço, como apreender a emergência de novos santuários e romarias, sendo muitas delas virtuais? As respostas para tais questionamentos podem ser encontradas em parte na assertiva categórica de Peter Berger, ao afirmar “ser falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado. O mundo de hoje, com algumas exceções que logo mencionarei, é tão ferozmente religioso quanto antes, e até mais em certos lugares” (Berger, 2000: 10).

Tais questões descortinam uma série de inquietações que aludem ao universo da religiosidade no alvorecer do novo milênio e do século XXI.As práticas devocionais que muitos intelectuais do século XX decretaram que estariam em processo de desaparecimento permanecem com uma vitalidade surpreendente, incluindo o surgimento de novos santuários, romarias e formas de expressar a fé. Os tempos mudaram e práticas devocionais acompanharam essas mudanças. Assim, pode-se inferir que o homo religiosus não desapareceu, mas simplesmente se redefiniu, reestruturou-se, reinventou-se. No entender de Pierre Sanchis, ao falar sobre as romarias portuguesas, “a festa destrói-se e renasce das cinzas” (Sanchis, 1983: 34).

As festividades religiosas estão impregnadas no universo cultural do mundo ocidental e de forma muito especial nos países de tradição católica. De acordo com María Teresa Arcila, “as festas têm sido concebidas como práticas ordenadoras do tempo, pois elas oferecem uma dimensão do transcorrer do tempo que se expressa na possibilidade de medir o lapso entre dois sucessos festivos” (Arcila, 2009: 14). Assim, pode-se inferir que a construção do calendário festivo, sob a ótica da antropóloga colombiana, aproxima-se da perspectiva defendida por Mircea Eliade, na qual as festividades são responsáveis pela delineação entre o tempo sagrado e o profano (Eliade, 2001).

Apesar de sua reconhecida relevância social e da expressiva longevidade no mundo cristão, as peregrinações podem ser consideradas um objeto emergente entre os pesquisadores das ciências humanas. As pesquisas sistemáticas galgaram maior espaço somente a partir da segunda metade do século XX. Para Simon Coleman, os antropólogos ignoraram as peregrinações em decorrência das dificuldades em definir o método do trabalho de campo convencional, pelo fato de se tratar de um “fenômeno cultural que é constituído por movimentos de indivíduos e grupos a partir de pontos ilimitados de partida” (Coleman, 2002: 358).

As peregrinações estariam associadas à noção de viagem sagrada, ou seja, seriam as “práticas de deslocamento não incidental, mas, na verdade, constituídas de significados culturais em um mundo que está em constante ‘rota’, composta não de autonomias socioculturais, mas complexa, de interação de conjunturas” (Coleman, Eade, 2004: 5). Carlos Alberto Steil apresenta outra característica relevante na distinção das peregrinações, pois “os locais de peregrinação não só estão geralmente sob o controle da instituição católica, mas muitos deles foram criados e incentivados pelo próprio clero” (Steil, 2003: 34). Nesse caso, a presença do clero na organização das caminhadas devocionais pode ser um importante recurso na distinção entre as peregrinações e as romarias.

A peregrinação apresenta uma forte conotação clerical e geralmente emerge como uma ação voltada para os interesses evangelizadores, de reafirmação do espaço católico. Partindo da realidade social brasileira, as festas religiosas e, especialmente, as romarias e peregrinações são importantes elementos no processo de construção das identidades regionais. Tais celebrações extrapolam o universo privativo da devoção e perpassam a ocupação do espaço público, com a construção de relações de poder. Elas também constituem uma interface da polissemia da devoção do país, na qual “são os muitos modos de fazer o cerimonial da devoção” (Brandão, 2010: 211). No emergir do século XXI, as peregrinações permanecem como uma possibilidade de compreender as múltiplas faces da realidade social do país.

Partindo dessa ótica, torna-se abstruso afirmar que as solenidades religiosas estariam em processo de dessacralização, perdendo o seu aparato místico, de ritualização e reatualização do devoto no tempo mítico. Diante disso, podemos inverter a discussão, passando a apreender o processo de reinvenção das devoções, expresso por exemplo na permanência em Sergipe de celebrações católicas de caráter popular, como as famosas romarias do Senhor dos Passos em São Cristóvão e de Bom Jesus dos Navegantes em Propriá, e a peregrinação da Divina Pastora, criada pelo padre Luciano Duarte em 1958 (Santos, 2015). Ao lado dessas celebrações de maior longevidade temporal emergem outras,1 portadoras de um discurso mais flexível, mas imbuídas da concepção de hierarquização do mundo, de recriação de santuários com invocações tradicionais, de busca pelo umbigo do mundo, ou seja, de busca pelo espaço sagrado.

São essas novas peregrinações que aguçam o olhar do historiador para um campo duplamente pouco convencional. Trata-se, primeiramente, de discutir as expressões de religiosidade no tempo presente, ou, melhor dizendo, atinentes ao passado recente. Geralmente os discípulos de Clio não se sentem muito confortáveis para analisar as questões do seu tempo, provavelmente por ainda prevalecer a premissa de busca por uma produção do conhecimento que se paute no cientificismo, no distanciamento entre o investigador e o objeto. Para o historiador Carlos Fico, uma das peculiaridades da história do tempo presente é a “pressão dos contemporâneos ou a coação pela verdade, isto é, a possibilidade desse conhecimento histórico ser confrontado pelo testemunho dos que viveram os fenômenos que busca narrar e/ou explicar” (Fico, 2012: 44). Essa dificuldade de crítica documental das novas fontes históricas posiciona o historiador diante de um novo desafio, decorrente da circunstância de estarmos, sujeito e objeto, mergulhados em uma mesma temporalidade, que, por assim dizer, “não terminou” (Fico, 2012: 45). Talvez por esse motivo os episódios do passado recente tenham ficado pouco afeitos ao olhar dos historiadores.

Sob esse prisma, buscaremos pautar a discussão sobre o universo da religiosidade em Sergipe no século XXI, munidos da assertiva de que toda “história é história contemporânea” (Croce, 2006), pois um ponto fundamental na pesquisa em história é o lugar social do investigador, direcionando o olhar, abrindo novas possibilidades de reflexão. Para Roger Chartier, a história do tempo presente desperta um mau sentimento, “a inveja de uma pesquisa que não é uma busca desesperada de almas mortas, mas um encontro com seres de carne e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra a vida” (Chartier, 1996: 215). Ao se optar por problematizar o último decênio, revela-se a construção do conhecimento histórico em diálogo com os personagens que ainda estão em ação, inseridos no campo social.

Outro ponto pouco convencional em relação à pesquisa sobre o século XXI consiste no uso das fontes. Muitos dos registros documentais produzidos pelas paróquias e pela Arquidiocese de Aracaju ainda não estão disponíveis aos pesquisadores, dificultando a reflexão acerca de temáticas recentes. Mesmo assim, a emergência do novo milênio trouxe à tona um renovado leque documental, principalmente virtual. Todavia, como o historiador pode utilizar esses recursos como fonte histórica, tendo em vista que muitos desses registros são marcados pelo caráter de efemeridade? Qual é o papel dos acervos virtuais na compreensão da sociedade do século XXI? Essas são algumas das questões que iremos debater neste artigo, que privilegia o corpus documental virtual na constituição de identidades, na redefinição de culturas religiosas e políticas.

Este artigo se concentra em duas peregrinações estabelecidas no século XXI no estado de Sergipe, tendo como foco devocional Nossa Senhora Aparecida. Trata-se dos santuários do Conjunto Bugio, em Aracaju, e da cidade homônima da santa padroeira do Brasil. Essas peregrinações se consolidaram como importantes celebrações católicas do estado, atraindo um elevado contingente de devotos e apresentando outras facetas da religiosidade, transitando entre a ortodoxia e o popular. Nesse sentido, propomos discutir a constituição de diferentes culturas religiosas em Sergipe no século XXI por meio dessas peregrinações, que trazem elementos engendrados entre a modernidade e a tradição, ou seja, reconfiguram espaços de expressão das camadas populares.

Os caminhantes do Sertão

O ano de 2004 foi de grande importância para uma pequena cidade do semiárido sergipano. Até aquele ano, Nossa Senhora Aparecida era uma cidade marcada pela seca e a pobreza da população, sendo mais conhecida por estar entre dois importantes polos comerciais do estado: Itabaiana e Nossa Senhora da Glória. Todavia, naquele ano, o pároco da cidade, padre Jadilson, resolveu incrementar a festa da padroeira, criando uma peregrinação com o propósito de aumentar a participação popular e de tentar constituir um foco de peregrinação no semiárido sergipano.

A criação de uma nova peregrinação em pleno século XXI evidencia a vitalidade de uma cultura religiosa católica em Sergipe, assim como as preocupações do clero local em disseminar a normatização devocional, ou seja, utilizar as devoções populares, de grande apelo entre as camadas populares, para propagar o modelo de conduta devocional. Nesse sentido, ao lidar com as questões atinentes à criação de uma peregrinação, devemos entendê-la dentro de um universo permeado pela interação entre a cultura clerical e a cultura religiosa das camadas populares.

A proposta defendida pelo padre Jadilson foi acatada pela Arquidiocese de Aracaju, e ainda em 2004 a cidade de Nossa Senhora Aparecida passou a ser a segunda cidade sergipana a receber uma peregrinação oficial da Igreja Católica.2 A organização do evento religioso teve como principal interlocutor o pároco idealizador, que formou inúmeras comissões para receber os peregrinos, estruturar a cidade e promover a caminhada religiosa pela rodovia. Além disso, o pároco buscou apoio do Estado na esfera municipal, pois a peregrinação tenderia a ser tornar uma importante atração para religiosos da região, e a Paróquia precisaria de apoio na concretização do projeto.

A aliança entre a Paróquia e a Prefeitura foi fundamental para se criar a estrutura adequada para as celebrações. É importante lembrar que as viagens de cunho religioso no Brasil constituem um dos principais focos do turismo no país. Como salienta Edin Abumanssur, “o turista moderno é uma espécie de peregrino que busca experiências de autenticidade em épocas e lugares que não os seus” (Abumanssur, 2003: 57). Certamente havia entre as autoridades locais a esperança de que Nossa Senhora Aparecida se tornasse um importante centro de aglomeração de turistas religiosos em Sergipe, possibilitando o incremento da economia municipal. Para muitos, a cidade seguiria o modelo de Aparecida de São Paulo, como santuário mariano aglutinador de peregrinos.

A inspiração do padre Jadilson foi a peregrinação de Divina Pastora, que anualmente realiza uma caminhada entre as cidades de Riachuelo e Divina Pastora (em Sergipe) no terceiro domingo de outubro. Aparentemente, a proposta demonstrava ser um despautério, pois no semiárido sergipano não havia nenhuma celebração que atraísse um elevado número de romeiros, assim como a festa da padroeira da cidade geralmente passava despercebida pelos moradores das cidades vizinhas. Além disso, a peregrinação deveria ocorrer no dia 12 de outubro, apenas oito dias antes da festa de Divina Pastora, que atraía o maior número de peregrinos em Sergipe. Nesse caso, a proposta do padre Jadilson poderia estar criando uma concorrência devocional dentro do próprio catolicismo.

Apesar de não causar muito entusiasmo, o pároco da cidade insistiu em sua ideia e a defendeu para a Arquidiocese. Seu argumento passou pelo decreto papal que determinava indulgências plenárias para as peregrinações aos templos de devoção a Nossa Senhora Aparecida.3 Assim, no dia 12 de outubro de 2004 foi realizada a primeira peregrinação da cidade de Nossa Senhora Aparecida, com a caminhada que saía do povoado Queimadas, em Ribeirópolis, deslocando-se quase sete quilômetros até a Igreja Matriz Nossa Senhora Aparecida. Mas por que realizar uma nova peregrinação em Sergipe? As motivações são variadas e polissêmicas, pois refletiam os interesses da Arquidiocese de Aracaju, da Paróquia Nossa Senhora Aparecida e da Prefeitura Municipal.

O Arcebispado sergipano apresentava uma forte preocupação com o crescimento de novas instituições religiosas em Sergipe, principalmente as igrejas neopentecostais, que, usando novas linguagens e músicas que transitavam entre as melodias profanas e as letras sacras, acabavam atraindo o público jovem. O catolicismo apresentava-se ainda como portador de uma linguagem lúgubre, com romarias de cunho penitencial e pouco atrativas aos jovens sergipanos. Desse modo, no início do novo milênio, a Arquidiocese de Aracaju passou a promover inúmeras celebrações imbuídas de uma linguagem mais próxima dos adolescentes. Prova dessa preocupação do clero sergipano foi a organização da Jornada da Juventude no ano 2000, em que foi realizada uma caminhada entre Aracaju e a cidade de São Cristóvão, reunindo cerca de cem mil jovens na Praça São Francisco para celebrar o jubileu.

É importante ressaltar que o clero sergipano tentou reagir diante do crescimento das igrejas pentecostais por meio do fortalecimento da devoção mariana. Ainda no ano 2000 o arcebispo de Aracaju, Dom Palmeira Lessa, decretou que Nossa Senhora Divina Pastora seria a padroeira oficial de Sergipe, como forma de homenagear a Virgem que no terceiro domingo de outubro chega a receber mais de cem mil peregrinos. Outra ação da Arquidiocese foi a constituição de novos santuários arquidiocesanos, todos eles marianos, perfazendo um total de seis.4 Visando a atrair a participação dos jovens, ocorreu também a disseminação de celebrações inspiradas no movimento da Renovação Carismática Católica, entre as quais destacaram-se as missas de cura e libertação, com cânticos, instrumentos musicais e coreografias.

Essa abertura da Igreja Católica em Sergipe influenciou a peregrinação de Nossa Senhora Aparecida, que nasceu sob a égide de uma caminhada devocional voltada para a celebração de Maria. Nesse sentido, ao longo da peregrinação ecoam diferentes sons, que revelam a polissemia da festa. De um lado, os devotos promesseiros, vestidos com túnicas azuis e acompanhados de crianças vestidas de anjo, entoando o hino à padroeira do Brasil.

Por esse ângulo, a peregrinação de Nossa Senhora Aparecida no sertão sergipano seguia uma linha devocional atinente aos principais centros de romaria do Brasil, com cânticos elencados no catolicismo tradicional e práticas de promesseiros. Além disso, assim como outras expressões religiosas difundidas em Sergipe entre o final do século XX e início do XXI, a peregrinação apresentava uma preocupação em propiciar uma releitura das manifestações devocionais das camadas populares. Contudo, essa aproximação de modelos festivos apresenta ressalvas. É perceptível um evidente distanciamento entre a peregrinação de Nossa Senhora Aparecida e a Romaria da Terra, organizada pela Diocese de Propriá, na região ribeirinha do São Francisco em Sergipe. Enquanto a peregrinação buscava costurar os elementos da tradição a novas formas de devoção, a romaria elucidava uma profusão entre a fé católica e a política progressista, de conotação impregnada pela Teologia da Libertação (Frech, 2007: 443).

A peregrinação seria mais um espaço apresentado para o devoto como santuário, como o umbigo do mundo em cuja direção se torna necessário, vez por outra, deslocar-se. Todavia, a presença de pagadores de promessa em uma peregrinação criada em 2004 revela uma fresta do catolicismo, especialmente da religiosidade popular. Os devotos que carregam ex-votos não estão apenas repetindo o que viram seus pais fazerem em determinados santuários, mas sim recriando um legado, ressignificando uma práxis na constituição de um novo espaço sagrado. Nesse sentido, o espaço enquanto lúmen da ordem cósmica é novo, mas as práticas que nele se realizam são herdadas do que esses novos peregrinos aprenderam de seus ancestrais. Desse modo, esse novo espaço sagrado passa a ter “um valor existencial para o homem religioso” (Eliade, 2001: 26). Como salienta Brandão, ao fazer um voto, a promessa a Nossa Senhora Aparecida, e senti-lo válido, o devoto viaja ao santuário e pratica entre “seus espaços de culto os pequenos gestos que os padres ensinaram ao povo ou a gente pobre da roça criou por sua própria conta” (Brandão, 2010: 209).

Por outro lado, a peregrinação também se constituiu em espaço de inserção dos jovens devotos. Isso se deu com a presença de bandas católicas que usavam dos ritmos do rock e do axé adaptados a letras católicas para animar os peregrinos. A caminhada em alguns setores assemelha-se a um bloco de micareta, um verdadeiro carnaval fora de época sob o som de músicas cristãs. Tudo isso no intuito de atrair os jovens para a Igreja, assim como a intenção do pároco local de constituir em sua cidade um foco de peregrinação.

Podemos afirmar tais motivações para a realização da caminhada devocional tendo por base as preocupações da Arquidiocese sergipana em relação ao crescimento das igrejas protestantes em diferentes cidades (Bonfim, 2008). Por conta disso, o clero arquidiocesano resolveu investir na organização de festas que tivessem maior apelo popular e que conseguisse atrair a atenção do público jovem. Pode-se dizer que havia o interesse em difundir uma cultura religiosa renovada, pautada no diálogo entre a tradição e a modernidade.

A peregrinação no sertão sergipano conseguia agregar tais elementos, pois criava as condicionantes de uma prática devocional importante na trajetória da Igreja Católica, com a caminhada em direção a um santuário mariano. Além disso, a peregrinação apresentava outro elemento de forte apelo popular, que era o fato de ser uma celebração religiosa em torno de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, que tinha grande apelo entre as camadas mais populares da população sergipana. Nesse sentido, a proposta do padre Jadilson abria aos mais pobres a possibilidade de visitar o santuário devotado a Nossa Senhora Aparecida sem sair de Sergipe, sem arcar com elevados custos. Além disso, em 2004 o Papa João Paulo II havia decretado indulgência plenária a todos os santuários e romarias devotadas a Nossa Senhora Aparecida. Com isso, o discurso do pároco local nos induz a pensar que tudo foi fruto de uma conjuntura favorável, na qual ele buscou renovar sua paróquia por meio de circunstâncias oriundas de um contexto macro.

Por outro lado, a caminhada foi pensada de forma que refletisse a pluralidade das expressões de religiosidade do povo sergipano, transitando entre as práticas tidas como mais conservadoras, com terços e cânticos tradicionais devotados a Nossa Senhora, e a presença de trios elétricos com músicas religiosas em ritmo de axé, no intuito de atrair a presença dos jovens. Observando por essa ótica, pode-se inferir que a peregrinação já nasceu portadora de um discurso plural e pautada na presença de diferentes públicos. Em 2010, o principal site da cidade veiculou algumas notícias que informavam sobre a preparação de sua principal solenidade religiosa:

A primeira peregrinação na cidade de Nossa Senhora Aparecida-SE foi criada e organizada pelo Pe. Jadilson em 12 de outubro de 2004 com o Tema: “Mãe Aparecida nos leve a ver Jesus!”, e desde aí a festa vem crescendo cada vez mais no decorrer dos anos. Nesse ano de 2010 são esperadas mais de 25.000 (vinte e cinco mil) peregrinos (romeiros) que irão vir para a cidade exaltando a sua fé a Nossa Senhora Aparecida (Lima, 2010: 1).

A notícia a respeito da peregrinação evidencia uma clara preocupação em demonstrar certa longevidade e fortalecimento da celebração, talvez como uma forma de consolidar a ideia de que se tratava de um evento que tinha dado certo. A preeminência do êxito da solenidade estaria no fato do crescimento do número de peregrinos, fazendo com que os cerca de 5 mil devotos que participaram da primeira caminhada, em 2004, se multiplicassem para 25 mil seis anos depois.

Outro ponto importante destacado pelo “blogueiro” foi a construção da ideia de que a cidade se tornava um centro de fé. A pequena cidade sertaneja passou a ser vista como um ponto referencial da devoção dos sergipanos, foco de uma importante peregrinação. Pode-se inferir que, a partir da peregrinação, a construção da identidade local voltou-se para o campo da religiosidade, tornando sua festividade o ponto de efusão do orgulho da cidade.

Além de evidenciar a preocupação em construir uma identidade local sob os auspícios da religiosidade católica, mais precisamente peregrina, a assertiva de Cleberton Lima também revela uma estratégia do clero no processo de difusão do modelo devocional. Trata-se do tema da primeira peregrinação, realizada em 2004 sob a batuta do padre Jadilson. Naquele ano o tema foi “Mãe Aparecida nos leve a ver Jesus”. Essa temática é importante, pois revela

o quanto a peregrinação estava coerente com o discurso da Igreja Católica no raiar do novo milênio, que preconizava a devoção mariana como o caminho que conduzia os fiéis para a Igreja. Assim, a ortodoxia católica passava a difundir a ideia de que, “ao aproximar-se de Maria, o peregrino deve sentir-se chamado a viver aquela dimensão pascal que gradualmente transforma a sua vida através do acolhimento da Palavra, da celebração, dos sacramentos e do empenho a favor dos irmãos” (Hamao, 1999: 53).

Nossa Senhora Aparecida é apresentada como a mulher que leva os romeiros ou peregrinos ao cristianismo católico, o caminho de conversão, de aproximação do sagrado. Percebe-se que existe uma tentativa de conciliar diferentes discursos em uma mesma narrativa, em um enredo festivo, tornando a peregrinação um fenômeno plural, aglutinador de diferentes públicos. Observemos a descrição da peregrinação de 2010.

Cerca de 30 mil fiéis, segundo dados da polícia militar, estavam na peregrinação que saiu do Povoado Queimadas até a cidade que leva o nome da Santa. Muitos de pés descalços, outros todos de branco, pagando promessas, manifestando sua fé em homenagem à santa Padroeira do Brasil. Na peregrinação houve três divisões: aqueles que gostam de rezar o terço vinham acompanhando o primeiro trio, a maioria dos jovens acompanhou o segundo trio onde a banda Só Em Deus de Itabaiana-SE trouxe animação, e os mais tradicionais acompanharam o terceiro trio com Nivaldo e Juarina. Ao chegar à Nossa Senhora Aparecida os Peregrinos (Romeiros) ainda tinham disposição para assistir à missa presidida pelo Bispo Dom José Palmeira Lessa, onde a maioria das pessoas nem pôde entrar, já que a igreja estava lotada. Durante a tarde, na procissão de encerramento, tivemos a presença do Padre Araújo, do Bispo Auxiliar Dom Henrique, do Padre Kleberton (pároco local), acólitos, diáconos, toda a equipe de procissão, a população em geral e os visitantes (Costa, 2010: 1).

A notícia veiculada pela imprensa local reforça a ideia de pluralidade das linguagens presentes na peregrinação do sertão sergipano. Primeiramente, registram-se os elementos de um catolicismo tradicional, popular, com os devotos pagando promessas, vestindo-se de forma semelhante à imagem da Virgem. Mais uma vez se recorre às práticas de um catolicismo popular no intuito de legitimar a solenidade religiosa. Todavia, o que nos chama a atenção é o fato de haver na mesma peregrinação setores que discriminam os peregrinos, ou seja, o mesmo enredo que aglutina um público plural acaba por setorizar de acordo com as práticas devocionais. Nesse sentido, a caminhada era seguida por três trios elétricos que apresentavam ao público devoto espetáculos distintos: terço, músicas para jovens e cânticos tradicionais.

Esses trios elétricos voltados para públicos distintos revelam uma Igreja preocupada em se expandir, ou ao menos amenizar a perda de espaço diante do avanço das igrejas neopentencostais. Ao atender às necessidades de um público amplo e variado, a peregrinação do sertão sergipano possiblitava o crescimento do número de devotos, chegando a cerca de 30 mil em 2010. Nesse sentido, o propósito do padre Jadilson nos idos de 2004 se confirmava, pois havia condições de transformar sua paróquia em santuário de peregrinações. Um sinal que fortalece essa perspectiva foi a entrega do centro de romaria aos padres redentoristas em 2011. Em poucos anos, a rodovia que liga o povoado Queimadas a Nossa Senhora Aparecida transformava-se no dia 12 de outubro, com um verdadeiro mar de gente protegida por sombrinhas no forte calor do semiárido. Observemos a figura I.

Figura I
Peregrinação de Nossa Senhora Aparecida em 2011

O uso de imagens é uma das principais prerrogativas da imprensa local na difusão da peregrinação a Nossa Senhora Aparecida, quase sempre tentando evidenciar uma solenidade marcada pela forte presença popular, pelas estradas e ruas lotadas de fiéis, pelos pagadores de promessas cercando a estátua da Virgem na entrada da cidade, pela matriz superlotada de peregrinos. Os sites e blogues sobre a cidade são ricos em imagens da peregrinação, elucidando que as narrativas do tempo presente são acima de tudo narrativas visuais. Na fotografia de Aparecido Santana, por exemplo, percebemos um forte apelo às cores, a preocupação em definir a profundidade em que a policromia nos leva ao horizonte distante. As peregrinações do tempo presente não são apresentadas como meros eventos religiosos, como a expressão de uma cultura religiosa, mas sim como um elo identitário, um ícone do poder simbólico da cidade.

O arrastão da periferia

Em 2004, a Arquidiocese de Aracaju instituiu duas peregrinações sob a mesma invocação, no intuito de celebrar a padroeira nacional. Além da peregrinação à cidade homônima, o Santuário Nossa Senhora Aparecida do bairro do Bugio, na periferia de Aracaju, criou uma peregrinação com um perfil um tanto diferenciado, pois se tratava de uma caminhada urbana.

A presença dessa expressão de religiosidade na capital sergipana nos leva a persistir no questionamento da premissa da suposta dessacralização do mundo, pois a peregrinação do Bugio nos revela que as práticas religiosas tradicionais, pautadas na hierarquização do mundo e na busca do sagrado, são marcas perspicazes do tempo presente, até mesmo em uma cidade considerada moderna como Aracaju. A fé, ao contrário do que foi propagado no cerrar do século XX, não desapareceu, mas sim renovou-se e assumiu uma nova roupagem.

A Paróquia Nossa Senhora Aparecida do Bugio foi fundada em 1983, tendo como primeiro pároco o frei franciscano Augusto de Santana. Isso ocorreu na mesma época em que foi inaugurado o Conjunto Assis Chateaubriand. Em 1984 o arcebispo de Aracaju, Dom Luciano Cabral Duarte, elevou o templo à categoria de Santuário Arquidiocesano, e o padre Carlos Augusto se tornou o primeiro Reitor do Santuário com provisão canônica. Percebe-se que o processo de reconhecimento do santuário pela Arquidiocese de Aracaju foi acelerado, pois em menos de um ano a pequena capela já era apresentada como santuário arquidiocesano.

A festa da padroeira do bairro desde os anos 1980 foi concorrida, tornando-se uma das principais solenidades religiosas da capital. Todavia, foi a partir de 2004, com a peregrinação ao Santuário da Virgem Aparecida, que as festividades se constituíram como uma das mais relevantes solenidades religiosas da capital sergipana, chegando a superar procissões que no passado atraíam um elevado contingente de devotos, como a procissão de Bom Jesus dos Navegantes (Santos; Santiago, 2006), e até mesmo a festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Conceição (Nunes, 2005).

Essa ascensão meteórica do Santuário de Nossa Senhora Aparecida no Bugio desperta algumas questões com relação ao campo da religiosidade em Aracaju. O que de fato estaria ocorrendo na cidade nesse limiar de tempo que levou a Arquidiocese a elevar uma capela da periferia a santuário e posteriormente instituir uma peregrinação urbana? Essa questão infelizmente não aparece na documentação oficial, nem mesmo nos depoimentos a respeito do assunto. Devemos considerar que grande parte da documentação clerical ainda não está disponível aos pesquisadores, revelando as desvantagens de investigar o tempo presente.

Todavia, a própria localização do santuário explicita algumas dessas questões. A construção de um santuário na periferia da cidade revela uma luta simbólica do catolicismo na tentativa de diluir o avanço ostensivo das igrejas neopentecostais nos bairros suburbanos da capital sergipana, assim como vem ocorrendo nas principais metrópoles do país (Mesquita, 2009). Desse modo, a reação católica em Aracaju se deu no próprio campo onde as denominações pentecostais estavam ganhando espaço, aumentando o número de fiéis e criando novas instituições religiosas. Pode-se inferir que o público alvo estava nos arredores de Aracaju.

Foi a partir da instituição da peregrinação que o Santuário de Nossa Senhora Aparecida do Bugio se tornou referência no âmbito local. Um sinal disso é o envolvimento da Prefeitura Municipal de Aracaju e do Governo do Estado em seus preparativos. O reitor administrativo do santuário, padre Cássio Santos de Souza, nos meses anteriores à celebração dirigia reuniões no intuito de formar as comissões para “atender melhor os paroquianos, visitantes, devotos e romeiros. Equipes que passam pela limpeza até a procissão, não esquecendo da liturgia, ornamentação, gastronomia” (Souza, 2011: 1).

Imediatamente a peregrinação de Nossa Senhora Aparecida do Bugio se tornou uma das mais importantes celebrações da capital e, por conta disso, passou a contar a cada edição com forte presença de lideranças políticas, expondo depoimentos que evidenciavam a devoção a Maria e o carinho pelos peregrinos e suas práticas devocionais de humildade. O reitor do santuário também estabeleceu uma relação de proximidade com os administradores municipais e estaduais, sempre se preocupando em demonstrar o apoio incondicional dos dirigentes públicos na realização da festa popular. Sobre o prefeito, o reitor anunciava na imprensa em 2011: “Nossos agradecimentos em oração e prece ao Prefeito Edvaldo Nogueira pelo apoio e incentivo desta Festa Religiosa e Cultural! Deus o abençoe nos projetos equitativos no governo do nosso município!” (Souza, 2011: 2).

O reitor do santuário preocupou-se em propagar as políticas culturais do Estado frente às necessidades da paróquia, do bairro e da cidade como um todo. Trata-se de um discurso que evidencia as ações do governo municipal presentes na periferia da cidade, diante das camadas populares, dos homens e mulheres e pobres. No entender de Ângela de Castro Gomes, as políticas culturais são relevantes expressões dos interesses de determinados grupos políticos, “construindo leituras comuns do passado e projetos comuns do futuro” (Gomes, 2007: 49).

A presença da elite política de Sergipe na solenidade religiosa certamente é um forte indício de sua importância simbólica na seara das festas religiosas do Estado. A participação popular elevada fez com que as ruas do Bugio fossem transformadas em palco alternativo da propaganda política, no qual todos os políticos se apresentam como católicos, devotos fervorosos de Nossa Senhora e seguidores da peregrinação de longa data. Observemos o depoimento sobre a participação do governador Marcelo Déda Chagas:

O governador de Sergipe, Marcelo Déda, prestigiou na noite desta sexta-feira, 12, a procissão de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, no Conjunto Bugio, em Aracaju. A romaria em homenagem à santa é o ponto alto da Peregrinação e Festa de Nossa Senhora Aparecida, um dos maiores e mais tradicionais eventos religiosos do Estado. Organizada todos os anos pela Paróquia local, com o apoio da comunidade, a procissão reuniu aproximadamente 20 mil fiéis. Eles percorreram grande parte das ruas do conjunto, entoando orações e cânticos. Para o governador, que costuma estar presente todos os anos ao evento, esse foi um momento especial. “É uma das mais belas tradições católicas dessa capital. No dia em que se comemora a padroeira do Brasil, temos aqui uma romaria para o Santuário de Aparecida. Compareço sempre e dessa vez, graças a Deus, venho na condição de governador, para trazer nosso abraço ao povo do Bugio e para reverenciar a fé religiosa do povo de Aracaju”, afirmou Marcelo Déda (Henrique, 2011: 1).

Na fala acima ficam evidentes alguns pontos que soam estranhos. A peregrinação é apresentada como uma das mais importantes manifestações do catolicismo de Sergipe, e o governador afirma que comparecia sempre, até mesmo no momento anterior à sua posse. Essa ideia de “sempre”, que denota certa longevidade, como já vimos não corresponde ao evento, pois a peregrinação foi criada apenas em 2004. O discurso, ao contrário das práticas, tenta convencer que tanto a solenidade religiosa como a devoção do político são legados de um passado relativamente distante. Marcelo Déda deixa evidente que visava “reverenciar a fé religiosa do povo de Aracaju”. Desse modo, a participação popular é transformada em espetáculo e dialoga com a política cultural do seu governo, voltada para os segmentos excluídos.

A presença da cultura popular como sempre não é somente alvo de observação e curiosidade, mas é também objeto de tensões, conflitos, disputas. Um ponto central nas discussões envolvendo o santuário e a prefeitura era a organização dos feirantes, dos camelôs que se alojavam nas proximidades do templo nos dias de festa. O reitor Cássio Santos de Souza reclamava:

Continuamos com os preparativos para a Peregrinação e Festa de Nossa Senhora Aparecida no bairro Bugio. Destaque que acontece desde 2006 é a organização dos ambulantes nos dias intensos da nossa festa. Procuramos lembrar que a Festa é religiosa. E isso nos basta! Os ambulantes fazem a sua inscrição na Secretaria da paróquia. Depois, são organizados pela EMSURB, empresa da prefeitura de Aracaju responsável pelos espaços públicos. Somando forças e com a força do Divino Salvador pela intercessão da Mãe Aparecida, trabalhamos para que tudo aconteça conforme a vontade de Deus! (Souza, 2011: 3).

Segundo o depoimento do reitor do santuário, os problemas decorrentes da presença ostensiva dos camelôs tiveram origem em 2006, por conta da realização da peregrinação, que atraiu inúmeros romeiros e comerciantes.A preocupação do reitor do santuário era justamente a de controlar os comerciantes, evitar que a presença das barracas ocultasse a grandiosidade devocional, como foi tão comum nas festas barrocas do Brasil imperial (Abreu, 1999).

Isso não era uma preocupação peculiar dos organizadores da peregrinação de Nossa Senhora Aparecida do Bugio. Em praticamente todas as expressões da cultura popular essa ação reformadora das classes dominantes se faz presente, pois “o povo sempre é alvo de reformas” (Hall, 2003: 234).

Provocações finais

Nesse sentido, percebemos que, apesar de ser uma expressão religiosa recente no calendário festivo de Aracaju, a peregrinação do Bugio se constituiu como uma solenidade plural, portadora de um discurso polissêmico (Bakhtin, 1999), sagaz e conflituoso. Na caminhada, o propósito aparenta ser unívoco, pois revela uma religiosidade renovada, com shows artísticos que tentam atrair devotos propensos a seguir seitas pentecostais. A narrativa da festa envereda pela espetacularização da fé, especialmente da devoção das camadas populares. Como salienta José Rogério Lopes acerca do Círio de Nazaré, a mídia “estabelece sempre recortes da realidade, definidos segundo a tecnologia utilizada, as concepções de enquadramento e exibição das imagens e o timing que imprime aos fluxos de imagens” (Lopes, 2011: 163). As peregrinações do Sergipe contemporâneo revelam frestas da cultura popular, a vitalidade de uma cultura religiosa que não cessa, mas se renova a cada instante, e homens e mulheres que não perdem a fé, mas reinventam os modos de expressar a hierarquização do mundo (Sanchis, 1983).

De acordo com a classificação estabelecida por Victor Turner e Edith Turner, as duas celebrações se enquadram no quarto tipo de peregrinação, voltadas para santuários marianos e dentro dos parâmetros de luta contra a secularização e a expansão do protestantismo (Turner e Turner, 2011: 18). Apesar de terem sido criadas no mesmo ano, as duas novas peregrinações de Sergipe apresentam discursos distintos. Enquanto a peregrinação do interior sergipano tenta mesclar elementos do catolicismo tradicional com as novas expressões de religiosidade, a caminhada da capital revela um enredo totalmente inserido nos novos moldes da Renovação Católica Carismática, com bandas e trios embalando os devotos.

Todavia, ao que tudo indica, a peregrinação do Bugio se consolidou como espaço de divulgação das principais lideranças políticas, em que se aplicavam as políticas culturais e difundiam as culturas políticas do início do século XXI. Consoante a esse processo, as peregrinações do tempo presente evidenciam que a devoção e a cultura religiosa permanecem imbricadas na sociedade sergipana, até mesmo quando se referem ao universo urbano da capital.

Notas

  • 1
    Destacam-se, por ordem cronológica, as seguintes peregrinações: Nossa Senhora Aparecida, na cidade homônima, criada em 2004; Nossa Senhora Aparecida, no bairro Bugio de Aracaju, criada em 2004; Santa Luzia, na Diocese de Estância (Santuário de Santa Luzia do Itanhy), criada em 2011.
  • 2
    Em 1958, o então padre Luciano Duarte criou a peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora Divina Pastora (Santos, 2015).
  • 3
    De acordo com o decreto: “No Santuário Mariano de Aparecida e em todas as igrejas ou oratórios sob o título de Virgem Aparecida situados dentro dos limites do Brasil: Concede-se Indulgência Plenária aos fiéis dentro das condições costumeiras (confissão sacramental, comunhão eucarística e oração na intenção do Sumo Pontífice) e com a mente livre de afeto por qualquer pecado”.
  • 4
    São estes os santuários marianos da Arquidiocese de Aracaju, por ordem de criação: Nossa Senhora Menina, em Aracaju; Nossa Senhora Divina Pastora, em Divina Pastora; Nossa Senhora Aparecida, em Aracaju. Na Diocese de Estância, Nossa Senhora da Piedade, em Lagarto; Nossa Senhora do Rosário, em Estância, e Santa Luzia, em Santa Luzia do Itanhy. Além disso, destacam-se as igrejas denominadas santuários, mas sem a aprovação arquidiocesana. São os templos de Nossa Senhora de Fátima, em Aracaju, e Nossa Senhora do Carmo, em São Cristóvão (Santos, 2008: 37).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    02 Jan 2013
  • Aceito
    07 Abr 2015
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