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DIREITOS HUMANOS E RESPONSABILIDADE EMPRESARIAL: AVANÇOS NO DEBATE

HUMAN RIGHTS AND CORPORATE RESPONSIBILITY: ADVANCES IN THE DEBATE

DERECHOS HUMANOS Y RESPONSABILIDAD EMPRESARIAL: AVANCES EN EL DEBATE

RESUMO

O objetivo deste texto é contribuir para uma síntese do tema dos direitos humanos no âmbito das relações capitalistas de produção, conhecido como “responsabilidade empresarial”, que implica graves violações de direitos humanos, sobretudo na ditadura. A pesquisa parte de trabalho empírico, mas propõe aqui uma síntese bibliográfica, articulando literatura e mesclando textos da história e do direito, tanto bibliográficos como documentos de entidades que fazem esse debate. Defendemos que a história da ditadura será modificada a partir do resultado das pesquisas recentes realizadas no âmbito do projeto Responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura, coordenada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp). A violação de direitos humanos se dá de modo cruzado: deslocamentos forçados, racismo, sexismo, ataque aos direitos trabalhistas, cessação do direito de mobilidade, trabalho similar à escravidão e acompanhamento sistemático por sistemas de repressão são algumas das violações diagnosticadas no conjunto das pesquisas. Buscamos trazer alguns dos instrumentos de intervenção política disponíveis para esse debate.

PALAVRAS-CHAVE:
Direitos humanos e empresas; Responsabilidade empresarial; Justiça de transição e empresas

ABSTRACT

This study aims is to contribute to a synthesis of the topic of human rights within the scope of capitalist production relations, a topic known as “corporate responsibility,” which implies serious violations of human rights, especially during the Brazilian dictatorship. This research starts from empirical work but proposes a bibliographical synthesis that articulates literature by mixing texts from history and law with bibliographical documents from entities that carry out this debate. We argue that the current history of the dictatorship will change based on the results of recent research coordinated by CAAF/UNIFESP that sought to hold companies that breached rights violations during the dictatorship accountable. Such studies include the violation of human rights occurs in a cross-sectional manner: forced displacement, racism, sexism, attack on labor rights, cessation of the right of mobility, work conditions analogue to slavery, and systematic monitoring by systems of repression as some of the evaluated violations. We seek to bring some of the political intervention instruments available to this debate.

KEYWORDS:
Human rights and companies; Corporate responsibility; Transitional justice

RESUMEN

El objetivo de este estudio es aportar con una síntesis del tema de los derechos humanos en el ámbito de las relaciones capitalistas de producción, conocido como “responsabilidad empresarial”, que impacta en graves violaciones a los derechos humanos, especialmente durante la dictadura. La investigación se basa en trabajos empíricos y propone realizar una síntesis bibliográfica, articulando literatura y mezclando textos de Historia y Derecho tanto bibliográficos como documentos de organizaciones involucradas en este debate. Argumenta que la historia de la dictadura sufrirá cambios a partir de los resultados de los estudios recientes realizados en el marco del proyecto Responsabilidad de las empresas por violaciones de los derechos durante la dictadura, coordinados por el Centro de Antropología y Arqueología Forense de la Universidad Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp). Las violaciones de los derechos humanos ocurren de forma transversal; el desplazamiento forzado, racismo, sexismo, ataques a los derechos laborales, cese del derecho a la movilidad, trabajo similar a la esclavitud y seguimiento sistemático por parte de los sistemas de represión son algunas de las violaciones encontradas en las investigaciones. Se pretende aportar a este debate con algunas de las herramientas de intervención política disponibles.

PALABRAS CLAVE:
Derechos humanos y empresas; Responsabilidad empresarial; Justicia transicional y empresas

A pesquisa Responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura, coordenada pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp, 2023CAAF/UNIFESP. CENTRO DE ARQUEOLOGIA E ANTROPOLOGIA FORENSE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Informe Público. Projeto A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura. São Paulo, Unifesp, p. 63-69, 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/projetos/empresas-e-ditadura . Acesso em: 6 jun. 2024.
https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/pro...
), foi iniciada em dezembro de 2021. Inicialmente, foram dez empresas investigadas, a partir de levantamento inicial realizado pelo Ministério Público Federal, atendendo a um Termo de Ajuste de Conduta da Volkswagen do Brasil e do Ministério Público Federal (para uma crítica a esse termo, ver o apanhado realizado por Bohoslavsky e Goñi, 2021BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; GOÑI, Cruz. Negociando la rendición de cuentas por violaciones de los derechos humanos: el caso del acuerdo Volkswagen do Brasil. Homa Publica - Revista Internacional de Derechos Humanos y Empresas, Juiz de Fora, v. 5, n. 1, 2021.). Foram investigadas: Aracruz Celulose, Cobrasma, CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), Companhia Docas (Porto de Santos), Fiat, Folha de S. Paulo, Itaipu Binacional, Josapar e Petrobras. Na sequência, seriam incorporadas a Belgo Mineira, a Embraer e a Mannesmann. O que nos importa ressaltar neste momento é que do acordo surgiu a possibilidade efetiva de novas pesquisas, ainda que com muitos limites em cada caso, tais como o acesso a documentos, pouco tempo em relação à quantidade de materiais, falta de acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF), entre outros.

A possibilidade de pesquisar a responsabilização empresarial colocou desafios enormes aos envolvidos nas equipes, já que a pesquisa precisaria articular uma série de elementos teóricos e metodológicos que no seu conjunto eram novos: realizar a pesquisa histórica e sociológica, fazer análises jurídicas, tratar das reparações, atuar ativamente pela causa “memória, verdade, justiça e reparação”. Conhecer todo esse arcabouço aplicado à história de violação de empresas foi um desafio que ainda está em avanço, considerando a necessidade de cruzar dados e informações de distintas empresas. Os aparatos repressores estiveram presentes de forma mais ou menos articulada de sul a norte do país. É sintomático que haja pesquisa saindo do sul do país (Rio Grande do Sul) ao norte da Amazônia e no Pará.

Embora todos já fossem pesquisadores da temática, esse projeto foi o que possibilitou a junção de várias acepções teóricas e metodológicas com uma finalidade afim. Entretanto, a urgência do tempo, dos prazos e dos compromissos daquela pesquisa impediram que o aprofundamento teórico e metodológico ocorresse, o que em alguma medida segue como desafio historiográfico. A história da ditadura será modificada a partir do resultado dessas pesquisas. Entender a ação das empresas a partir de recursos usualmente utilizados para outros tipos de pesquisa permitiu olhar para o passado que intervém no presente. Assim, foi possível perceber que a violação de direitos humanos se dá de modo cruzado: racismo, sexismo, ataque aos direitos trabalhistas, cessação do direito de mobilidade, trabalho similar à escravidão, e acompanhamento sistemático por sistemas de repressão são algumas das violações diagnosticadas.

A natureza das pesquisas sobre responsabilidade empresarial é multidisciplinar, formada por conhecimentos das áreas das Ciências Sociais e do Direito. Tudo isso é um desafio a mais para o trabalho sobre responsabilidade empresarial. Cada área tem acúmulos de problemas que precisam ser conhecidas pelas demais.

Além disso, há uma tênue relação entre sociedade, academia e Estado brasileiro no processo. As pesquisas são realizadas majoritariamente por pesquisadores acadêmicos, que em alguma medida representam grupos sociais atingidos - grupos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores, entre outros. Por sua vez, o Estado aparece como o MPF, indicando exigências para as pesquisas, que deveriam ser acompanhadas por procuradores designados. Não se trata de uma pesquisa meramente acadêmica.

Há um acúmulo do tema da violação dos direitos humanos por parte das empresas, e normalmente isso implica em relações de poder político e econômico com o Estado. Uma correlação e uma representação cruzada de interesses no Parlamento, uma ação muitas vezes articulada com o aparato repressivo. Não é à toa que nos primeiros meses do governo de Fernando Henrique Cardoso o Exército foi colocado para ocupar refinarias de petróleo, ou que os leilões de privatizações ocorridos ao longo dos anos 1990 sempre foram acompanhados de repressão a manifestantes. São inúmeros os exemplos de empresas sendo protegidas pelas forças repressoras, hábito que ultrapassa a ditadura. Que as frações burguesas tinham se organizado para apoiar o golpe de 1964 já era sabido desde as teses de René Dreifuss (1981DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.). No que as novas pesquisas avançam significativamente é em mostrar que elas estiveram associadas de distintas formas ao aparato repressivo na ditadura. Diversas empresas assumiram papel de repressão em nome do Estado, e o Estado reprimiu a serviço de empresas. Os dois elementos estão presentes nos relatórios de pesquisa apresentados sobre distintas empresas. Os empresários se articularam em distintos aparelhos privados de hegemonia para estabelecer consenso sobre suas ações e produzir memória sobre o papel das empresas na história brasileira, sempre associadas a modernização e progresso, e, mais recentemente, a “responsabilidade social”. Diante desse quadro, tanto no âmbito da luta internacional como da nacional, é um desafio distinguir a luta dos atingidos daquelas dos aparelhos privados não governamentais, pois os mesmos têm interesses nem sempre transparentes. A estudiosa de organizações empresariais, Denise Gros (2005GROS, Denise. Desafios da responsabilidade. As atualizações entre práticas e discursos. In: GROS, Denise et al. (org.) Empresas e grupos empresariais: atores sociais em transformação. Juiz de Fora: EdUFJF, 2005.: 45), indica que ocorreu, nos últimos anos,

Um processo de renovação nas organizações de representação corporativas, que se profissionalizaram, passando a prestar serviços diferenciados, que incluem a orientação jurídica e a atuação em forma de lobby junto ao Congresso Nacional. A partir dos anos 80, em especial durante o período da Assembleia Nacional Constituinte, surgiram também organizações empresariais, ou entidades mantidas por empresários ou empresas, para defender interesses políticos, com matizes bastante conservadoras [...].

Percebe-se que política é uma relação social em que os interesses econômicos são discutidos e encaminhados. Diante disso, propomos elencar alguns dos elementos que nos permitiram chegar até aqui. Inicialmente, apresentando dados sobre o Brasil para, em seguida, trazer dados de experiências latino-americanas de apuração de responsabilidade empresarial, algumas das quais contribuíram diretamente para esta pesquisa. Elas permitem visualizar elementos teóricos e metodológicos sobre o tema. O objetivo de fundo é contribuir para a compreensão dos direitos humanos e da reparação na experiência brasileira.

CONSOLIDANDO OS DIREITOS HUMANOS, EM PROCESSOS DE TRANSIÇÃO

É necessário apontar brevemente o panorama histórico sobre os direitos humanos no Brasil a partir de meados do século XX. Buscamos o papel histórico que essa temática assume na justiça de transição, nos processos de superação das ditaduras latino-americanas, para ver quais inflexões se dão no Brasil contemporâneo. O debate a partir da Comissão Nacional da Verdade (CNV) nos leva a ampliar a temática também para a responsabilidade empresarial como parte do processo de ataques aos direitos humanos. Mais especificamente, buscamos tratar do tema relacionando-o à responsabilidade empresarial. Sempre consideraremos que as empresas são a face produtiva do capitalismo, e, portanto, estão imbricadas em relações sociais.

Um importante estudo que detalha historicamente os processos de justiça de transição foi realizado por Renan Quinalha (2013QUINALHA, Renan. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões, 2013.). Ele mostra que é relativamente recente - mais precisamente do início dos anos 1990 - que esse termo passou a ser usado. Esse período coincide com a retomada dos parâmetros liberais (pós-Guerra Fria) e de “globalização”. Nesse âmbito, a justiça de transição é indelevelmente amarrada em um contexto internacional. São experiências de extrema violência ou conflito, e em muitos casos de terrorismo de Estado, que em tese acabaram, mas as permanências nos mostram que são necessárias mudanças que rompam com suas continuidades, práticas e instituições. O aparato repressivo, judicial e de organização do Estado permite a continuidade de práticas de terrorismo de Estado e, em alguns casos, de genocídio como no caso dos Yanomamis em 2023 (Portal G1 RR, 2023PORTAL G1 RR. Mais de mil indígenas Yanomami em estado grave foram resgatados nos últimos dias, diz secretário. G1, Boa Vista, 24 jan. 2024. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/01/24/mais-de-mil-indigenas-yanomami-em-estado-grave-foram-resgatados-nos-ultimos-dias-diz-secretario.ghtml . Acesso em: 10 jun. 2024.
https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/...
), em que mais de mil indígenas da etnia foram resgatados em estado grave de subnutrição e doenças facilmente preveníveis.

Os direitos humanos precisam ser problematizados no âmbito internacional para evitar a repetição de violações. Em que pese as várias mudanças e avanços no termo, podemos ressaltar alguns aspectos, a partir da síntese de Quinalha (2013QUINALHA, Renan. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões, 2013.), à qual nos remetemos de modo resumido: i) o direito à reparação, em sentido amplo dos danos sofridos; ii) o direito à memória, constituída de políticas públicas e outras medidas, que recuperem a história dos perseguidos, assim como o papel da resistência de setores da sociedade civil; iii) o direito à verdade, que demanda acesso a informação, arquivos e divulgação de dados oficiais; iv) a justiça, sobretudo no aspecto penal. Esse é de longe o aspecto mais difícil dos processos reparativos. Ressalta-se aqui a importância da necessidade de “fortalecimento das instituições democráticas, tendo por finalidade a garantia de não repetição” (Quinalha, 2013QUINALHA, Renan. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões, 2013.: 149).

Diante disso, entendemos por que o tema dos direitos humanos tende a ser visto de modo fragmentado, posto que remete a frações da sociedade que de alguma forma se organizam na defesa de seus interesses específicos. No marco da justiça de transição, os direitos humanos remetem a relações internacionais, ainda que de realidades muito desiguais entre si. É um tema marcado em grande medida pela problematização estabelecida a partir dos Estados Unidos da América, onde se notabilizaram lutas pelos “direitos civis” antirracistas em meados do século XX. E, mais recentemente, pelas lutas no campo da memória histórica na recuperação e reparação contra os efeitos das ditaduras, sobretudo na América do Sul. Mas a referência mais de fundo vem da tematização do problema na Declaração dos Direitos Humanos após a consciência crítica sobre o nazismo e o Holocausto. Os Estados Unidos, ao passo que apoia os organismos internacionais, cuida de, no contexto da Guerra Fria, implementar Ditaduras de Segurança Nacional América do Sul, sobretudo no Cone Sul (Padrós, 2023). Essa doutrina permitirá um giro teórico que imputa aos regimes comunistas o ataque aos direitos humanos como princípio. No contexto mais recente, a chamada Guerra Cultural reestabelece o ataque sistemático aos direitos humanos, sejam eles de viés político, seja de raça ou questões de gênero. Também há vínculos entre o ataque aos direitos humanos e as consequências da violência e da desigualdade social.

O paradoxo da “verdade autoevidente” sobre direitos humanos é apresentado por Lynn Hunt quando ela lembra que o tema surgiu na Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776. Segundo essa ideia, o tema seria delimitado como aquilo que “todos sabem”. Mas a expressão de que se trata de direitos “evidentes”, ou seja, “naturais”, esbarra na complementação sobre aquilo que se exclui, ou seja, pessoas escravizadas, mulheres, imigrantes etc., dependendo do contexto e temporalidade. Por isso, a autora foge da expressão do “direito natural”, própria do século XVIII, para a colocação do princípio de que os direitos humanos carregam um viés político. Ele se expressa pela participação ativa de determinados grupos. Segundo ela,

Os direitos humanos só se tornam significativos quando ganham conteúdo político. Não são os direitos de humanos num estado de natureza: são os direitos humanos em sociedade [...] são direitos garantidos no mundo político secular (mesmo que sejam chamados de “sagrados”) e são direitos que requerem uma participação ativa daqueles que os detêm (Hunt, 2012HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Curitiba: A Página, 2012.: 19).

Observe-se que a garantia jurídica pode implicar no acionamento da ordem judicial para que haja cumprimento da responsabilidade, e isso não vai ser processado sem conflitos. Portanto, Estado e sociedade andam sempre juntos e muitas vezes em conflito nessa temática.

No Brasil, o tema dos direitos humanos surge com maior visibilidade no contexto pós-Constituição Federal de 1988. Dessa forma, apenas em 1992 o Brasil reconheceria a Convenção Americana de Direitos Humanos. Os países do Cone Sul que viveram as ditaduras de Segurança Nacional foram tardios nesse aspecto, sendo que apenas em 1998 o Brasil “reconhece a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos” (Piovesan, 2009PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.: 47). Assim, a observância e a proteção de direitos humanos nos preceitos internacionais é algo bastante tardio no país. Como indicou Edson Teles (2010: 297), “o fim das ditaduras militares foi o momento originário da política democrática. A marca do novo regime político é a promessa de desfazer a injustiça do passado”. Das categorias analisadas na corte, se destacam (Piovesan, 2009PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.: 50):

  1. detenção arbitrária, tortura e assassinatos cometidos durante o regime autoritário militar;

  2. violação dos direitos dos povos indígenas;

  3. violência rural;

  4. violência policial;

  5. violação dos direitos de crianças e adolescentes;

  6. violência contra a mulher;

  7. discriminação racial; e

  8. violência contra defensores de direitos humanos.

Ou seja, os casos envolvendo responsabilidade empresarial podem ser enquadrados em todos os itens categorizados pela Comissão Interamericana, sem ser um item específico. Esses assuntos envolvem casos que vão exigir respostas por parte do Estado brasileiro. Como explica Piovesan (2009PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.: 53),

A corte tem jurisdição para examinar casos que envolvam a denúncia de que um Estado-parte violou direito protegido pela Convenção. Se reconhecer que efetivamente ocorreu a violação à Convenção, determinará a adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito então violado. A Corte pode ainda condenar o Estado a pagar uma justa compensação à vítima. Note-se que a decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento.

Isso impõe a necessidade de medidas pelo Estado brasileiro relacionadas ao amplo leque de temas dos direitos humanos. Na Constituição Federal de 1988, encontramos uma série de medidas importantes do ponto de vista dos direitos sociais: o capítulo “Da ordem social” garante direitos avançados para a época (fruto de lutas, como indica Fontes [2010]FONTES, Virginia. O Brasil e o capital imperialismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. entre outros) e que logo no final da promulgação fez com que os liberais se adiantassem em declarar que ela tornaria o país “ingovernável”. Entre os “direitos fundamentais” estão: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e infância, assistência aos desamparados (art. 6), e daí decorrem as “leis sociais”. São elementos que depois foram parcial ou totalmente abatidos pelas “contrarreformas” dos anos 1990 e 2000. Os direitos que se mantêm seriam alvo de constantes ataques nos anos 2010-20, incluindo o direito à memória e verdade. Nos anos 2000, passamos pelos conflitos e embates, o problema das regulamentações complementárias, as tentativas diretas de reforma da constituição etc. Todo o contexto de complexificação das entidades da sociedade civil, e do Estado ampliado, as “políticas sociais” e as políticas públicas são reduzidas.

No âmbito das políticas relacionadas à temática “memória, verdade e justiça”, alguns marcos foram historicamente construídos, como a Lei da Anistia (Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Em 1983, temos a renovação da Lei de Segurança Nacional, estabelecendo padrões que mantêm a segurança de Estado como facilitador de sua violência. A Constituição Federal de 1988 estabelece garantias individuais sob o parâmetro da “dignidade humana”.

As leis obedecem a movimentos da sociedade, e não deixam de ser uma forma de organização da violência legítima do Estado. “A lei é o código da violência pública e organizada” (Poulantzas, 2000a: 75). Portanto, as leis precisam andar com medidas sociais e políticas concretas para serem aplicadas, e por isso devemos lembrar que o tema da Ditadura foi encarado como “página virada”, algo a ser superado na memória, de modo a evitar que “os militares” se incomodassem. De alguma maneira, isso reforça que a ditadura se consolida como uma obra militar, e aos poucos vemos totalmente reincorporados no quadro democrático figuras que sustentaram esse regime, apoiaram a tortura e lucraram com os beneficiamentos econômicos. Apenas em 1995 surgiu a Lei dos Desaparecidos (Lei n. 9.140, de 4 de dezembro de 1995), e em 2002 foi instituída Comissão da Anistia (Lei n. 10.559, de 13 de novembro de 2002), que iria colocar novos parâmetros às políticas de reparação, dessa vez tendo como parâmetro as reparações pecuniárias (indenizações). Todos esses elementos mobilizam a sociedade e seus desdobramentos se consolidam em algumas medidas que permitiram, posteriormente, a responsabilização empresarial em seus distintos níveis. Mas os entraves das permanências da ditadura são notáveis.

Chegamos em 2009 com um debate público sobre o PNDH-3 (Plano Nacional de Direitos Humanos), principalmente sobre o tema da anistia, a partir da qual a impunibilidade dos repressores tem sido posta em prática. É possível pensar que a partir dali vai se consolidando um discurso articulador de ataques aos direitos (autoanistia dos torturadores, crimes de lesa humanidade, anistia para crimes imprescritíveis, ataque aos defensores de direitos como “defensores de bandidos” etc.). Ao mesmo tempo, é um momento em que se expandem visões “empreendedoras” e se consolidam práticas da chamada “responsabilidade social empresarial”, em que o tema dos direitos humanos vai entrar na pauta de modo controlado pelas empresas. Tudo isso tem impacto nos elementos internacionais de tipificação dos direitos humanos e empresas. O PNDH-3 traz uma orientação geral no campo da memória histórica. As expressões aparecem como elementos necessários à implementação dos direitos humanos. Aqui destacamos especialmente o tema da memória histórica (2009, p. 169):

Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade

Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado

Objetivo Estratégico I: Promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

Diretriz 24: Preservação da memória histórica e a construção pública da verdade.

Objetivo Estratégico I: Incentivar iniciativas de preservação da memória histórica e de construção pública da verdade sobre períodos autoritários.

Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com a promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia.

Objetivo Estratégico I: Suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos.

Não há referência nesses princípios relativamente à justiça, nem sequer à reparação. Está subentendida a necessidade de cumprimento dos parâmetros internacionais, e sabemos que isso se dá sob a pressão à qual o Brasil já estava sendo submetido na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e que levaria à criação da CNV. As orientações não postulam nada sobre justiça e reparação. Pelo contrário, apontam a posição da “reconciliação”.

A EXPERIÊNCIA LATINO-AMERICANA: COMO O TEMA DA RESPONSABILIDADE EMPRESARIAL PODE FAZER A TEMÁTICA AVANÇAR

Estudos latino-americanos indicam a necessidade de ampliar a noção de cumplicidade, trazendo o problema da responsabilidade. Dizer que os empresários foram cúmplices de violações não é suficiente. É preciso trazer elementos que comprovem a responsabilidade, e dessa forma pode ocorrer o momento de judicialização nos termos da justiça de transição.

A partir do conceito de “ação-investigação”, pesquisadores da rede colombiana Dejusticia conceituaram a “Alavanca de Arquimedes” para pontuar o tema da reparação, somando a isso a consigna de Não Repetição. Para tratar da reparação de contas e “reduzir a brecha da impunidade”, é necessário levar em conta: o contexto político; o poder de veto da empresa; a sociedade civil; e a pressão internacional (Payne et al, 2021PAYNE, Leigh; PEREIRA, Gabriel; BERNAL-BERMÚDEZ, Laura. Justicia transicional y la rendición de cuentas de actores económicos, desde abajo: desplegando la palanca de Arquímedes. Bogotá: Dejusticia, 2021.: 26). A ONU estabelece direitos e deveres relacionados a justiça, verdade, reparações e garantias de não repetição de violações. Os autores definem como cumplicidade empresarial “a assistência ou participação de atores econômicos em graves violações dos direitos humanos perpetrados por atores estatais ou para estatais, em situações de regimes autoritários ou conflitos civis” (Payne et al., 2012: 27). Eles alertam que é necessário verificar “a participação direta ou indireta dos atores econômicos em graves violações os direitos humanos” (Payne et al., 2012: 27). Entre essas, encontramos: genocídio, tortura, sequestro, deslocamento e/ou desaparecimento forçado, detenção ilegal, agressão sexual, trabalho escravo e outros crimes de lesa humanidade. Assim, o tema vai além dos direitos dos indivíduos, inserindo neles as violações econômicas, que podem abranger também sujeitos coletivos.

Segundo a investigação, “as empresas podem estar envolvidas como cúmplices diretas na violência criminal”, ou também “financiar a repressão” e diversos crimes envolvidos. Por fim, indicam que “a cumplicidade corporativa se refere àquelas empresas ou pessoas envolvidas em atividades ilegais”, que sabem que outros (para quem agenciam trabalhos) promovem violência, perpetuando-a (Payne et al., 2012: 28). Além disso, os responsáveis podem ser também atores econômicos individuais que fazem parte da empresa ou “comunidade empresarial”, como ruralistas, que mesmo nos casos em que não são proprietários, sustentam associações de classe que financiam a repressão, atuando como intelectuais das ações. Não importa, sob essa lógica, que se trate de empresas “terceirizadas”; no espaço da produção, elas podem ser igualmente responsabilizadas. No contexto da ampliação seletiva do estado e da organização de aparelhos privados de hegemonia, olhar para essas formas organizativas empresariais/de classe se faz necessário. E não se pode esquecer que muitas das violações permanecem no tempo, para além das ditaduras, uma vez que falamos de crimes de lesa humanidade imprescritíveis. Os autores insistem que a cumplicidade dos atores econômicos individuais faz parte de uma “estrutura violenta com que se produzem violações de direitos humanos em regimes autoritários e conflitos armados. Estão direta ou indiretamente envolvidos nas violações, não como cidadãos individuais, mas como atores econômicos” (Payne et al., 2012: 29). Trata-se, portanto, de um poder a ser tipificado, levando a incluir a responsabilidade desses sujeitos, que não podem alegar obediência devida. Não se trata apenas de justiça penal, mas de pensar formas de justiça restaurativa e reparadora. Vai além da justiça ordinária:

Quando a violência estatal ou terrorismo de Estado, ou o alcance dessa violência, não haveria sido possível sem o patrocínio ou apoio empresarial, quando as empresas proporcionaram legitimidade à violência e à capacidade para levá-la a cabo, e quando contribuíram com consciência de dita violência, direta ou indiretamente, se moveram além de formas de “negócios sujos” ou imorais, o fizeram mediante o incumprimento de direitos humanos, assim como os de leis nacionais. Portanto, a responsabilidade empresarial pelas violações dos direitos humanos cometidos no passado deve cumprir critérios específicos para a aplicação dos mecanismos da justiça de transição. (Payne, et al, 2021PAYNE, Leigh; PEREIRA, Gabriel; BERNAL-BERMÚDEZ, Laura. Justicia transicional y la rendición de cuentas de actores económicos, desde abajo: desplegando la palanca de Arquímedes. Bogotá: Dejusticia, 2021.: 41)

Um elemento que os autores apontam e que nos parece essencial é a inclusão da integridade econômica e social, para além da integridade física. De acordo com os quatro fatores a se levar em conta, há uma ampliação dos sujeitos envolvidos, ou seja, envolvem-se não apenas a empresa, mas a comunidade empresarial; isso implica todos aqueles cujo trabalho/ação violam os direitos humanos. A historiadora argentina Victoria Basualdo (2020BASUALDO, Victoria. Empresas, crímenes de lesa humanidad y justicia transicional en Argentina. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2020.: 83) sintetiza desta forma esse acúmulo: “a existência de pressão internacional, a liderança judicial em nível nacional; as demandas da sociedade civil e um poder de veto débil (de ponto de partida, ou debilitado por diversos fatores) por parte dos atores do poder [...]”. O poder de veto é um elemento de tensão: seria o ponto das empresas realizando pressão para não serem punidas e não assumirem responsabilidade. Coloca-se também em que medida os agentes do Estado, sofrendo essa pressão, já antecipam um acordo recuado (os casos dos Termos de Ajuste de Conduta1 1 Os TACS, juntamente com as Ações Civis Públicas (ACP) são medidas de remediação das violações surgidas nos anos 1990 como “remédio não judicial” para empresas assumirem parcialmente reparações. [TACs], por exemplo). Mas também pode-se questionar em que medida um acordo que obrigue a pautar pelo menos o aspecto da memória e verdade já é um avanço histórico.

Em documento do Centro de Direitos Humanos e Empresas da Fundação Getúlio Vargas (CDHEE) são sintetizadas algumas críticas à prática de TACs. Esse documento atende à Diretriz 5 do PNDH-3, que, por sua vez, atende aos Princípios Orientadores da Organização das Nações Unidas (ONU), indicando elementos de responsabilidade empresarial e colocando travas ao poder público no sentido de contratação de empresas que não respeitam os direitos humanos. Trata-se apenas de um “Termo de conduta”, sendo em todos os casos uma orientação genérica. O elemento forte é a “erradicação do trabalho escravo”, acompanhado dos direitos da criança e do adolescente, ou abuso sexual no trabalho. Nesse sentido, o documento aclara que “em teoria, o TAC não implica o encerramento dos Inquérito Civil, pois, caso não seja comprovado o cumprimento de todas as obrigações pactuadas, o Inquérito deve ser retomado” (CDHEE, 2017CDHEE. CENTRO DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS DA FGV. Implementando os Princípios Orientadores sobre empresas e Direitos Humanos da ONU: o dever do Estado de proteger e a obrigação das empresas de respeitar os direitos humanos. Brasilia, DF: Artecor, 2017.: 50). Sendo um “remédio” não jurídico, entretanto, a capacidade de ser cumprido e os critérios de estabelecimento de cláusulas é bastante limitado, pois o TAC “não obriga a empresa a reconhecer sua responsabilidade em face da violação”. É como se a assinatura do TAC já encerrasse o caso. Por isso, estas são as críticas sistematizadas:

A ausência de fiscalização do cumprimento dos compromissos assumidos; a inexistência de previsão expressa quanto aos instrumentos adequados em caso de descumprimento e a falta de assessoria técnica na formulação do acordo, o que vem gerando TACs inefetivos (CDHEE, 2017CDHEE. CENTRO DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS DA FGV. Implementando os Princípios Orientadores sobre empresas e Direitos Humanos da ONU: o dever do Estado de proteger e a obrigação das empresas de respeitar os direitos humanos. Brasilia, DF: Artecor, 2017.: 54).

Dentro da lógica e do vocabulário atual, a “governança” (accountability) é um discurso que mobiliza, numa relação desigual entre países centrais e periféricos, o tema dos direitos humanos e as corporações. Segundo o Instituto Brasileiro de Direitos Humanos e Empresariais (Homa),2 2 O Homa, criado em 2012, é uma organização da sociedade civil que presta assessoria acadêmica e jurídica na área dos direitos humanos, especialmente no campo da responsabilidade empresarial.

Se faz extremamente necessária uma análise crítica de alguns instrumentos específicos amplamente utilizados no território e na jurisdição brasileira e que, por convergirem em consequências diretas para a efetivação de garantias fundamentais, merecem devido destaque. Nesse rol, possuem presença marcante problematizações acerca das vantagens e limitações da ação civil pública no acesso à justiça; dos Termos de Ajuste de Conduta; e da utilização do instrumento legal da “Suspensão de Segurança” (Homa, 2016HOMA. CENTRO DE DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS (org.) Direitos Humanos e empresas: o estado da arte do direito brasileiro. Juiz de Fora: Editar, 2016.: 18).

Ações como essas podem servir para colocar limites para apurar e reparar crimes do passado. Quando os responsáveis pelas empresas bem-sucedidas hoje (Itaipu, Petrobras ou Fiat e Volkswagen, por exemplo) preferem “apagar o passado”, buscando acordos pontuais, ou apenas mitigação midiática, esses riscos ficam ainda mais sérios.

Historicamente, na América Latina temos alguns parâmetros internacionais da justiça de transição. Humberto Cantú Rivera, diretor da Academia Latino-Americana de Direitos Humanos e Empresas, indica que inicialmente o tema estaria restrito à violação dos direitos humanos praticados pelo Estado, mas abrem-se possibilidades de que seja utilizado também em “relações entre particulares” (Cantú Rivera, 2020CANTÚ RIVERA, Humberto. La represión em el ámbito de derechos humanos y empresas em América Latina: reflexiones sobre el estado de la cuestión. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, 2020.: 63). Segundo o autor, o princípio do “drittwirkung alcançou de certa maneira a discussão entre direitos humanos e empresas em âmbito internacional”, interferindo nos princípios orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos, reconhecendo “de forma explícita que os Estados devem garantir os direitos humanos afetados pelas atividades empresariais por meio do acesso aos mecanismos de reparação, sejam de natureza judicial, extrajudicial ou mesmo não estatais” (Cantú rivera, 2020CANTÚ RIVERA, Humberto. La represión em el ámbito de derechos humanos y empresas em América Latina: reflexiones sobre el estado de la cuestión. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, 2020.: 64).

O autor mostra que os Princípios Orientadores da ONU, adotados pelo Conselho de Direitos Humanos em 2011 - quando foi publicado o Guiding Principles on Business and Human Rights - trazem a problemática da reparação “dos impactos negativos causados pelas atividades empresariais” (Cantú Rivera, 2020CANTÚ RIVERA, Humberto. La represión em el ámbito de derechos humanos y empresas em América Latina: reflexiones sobre el estado de la cuestión. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, 2020.: 64). Chama a atenção que não são indicadas necessariamente as vias judiciais, “pelo contrário, se limitam a assinalar a importância de abordar os obstáculos jurídicos e práticos que possam existir e que impeçam as vítimas a um acesso efetivo à justiça”. No âmbito das empresas transnacionais, mesmo a justiça nacional poderia “determinar em conformidade com seu direito civil a responsabilidade de uma empresa por faltar a um dever geral de prevenção, que gere uma afetação de direitos de terceiros” (Cantú Rivera, 2020CANTÚ RIVERA, Humberto. La represión em el ámbito de derechos humanos y empresas em América Latina: reflexiones sobre el estado de la cuestión. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, 2020.: 65). O autor sustenta que o uso “fomentado amplamente do compliance” como conduta de delito, abre possibilidade de “imputar responsabilidade penal a pessoas físicas que ocupem um posto em uma empresa, quando se determine a existência tanto de um ato lesivo como de uma vontade criminal para o levar a cabo” (Cantú Rivera, 2020CANTÚ RIVERA, Humberto. La represión em el ámbito de derechos humanos y empresas em América Latina: reflexiones sobre el estado de la cuestión. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, 2020.: 66). Com base no que chamam de “abordagem de riscos potenciais” serão calculados os riscos de realizar um TAC para dar satisfação à opinião pública ou aguardar vinte ou mais anos em um processo judicial em países de justiça lenta, como o Brasil.

Reforçando a lógica de “comunidade empresarial”, o uso da “obediência devida”, ou de que estaria apenas “prestando serviços” não permite a uma terceirizada fechar os olhos diante da violação de direitos. Além disso, o tema da reparação obriga a ações que previnam agravação de dano, sendo mecanismos que “sublinham a interrelação entre a atividade empresarial e o dever de proteção do Estado, e a necessidade de um cumprimento efetivo das obrigações internacionais em matéria de direitos humanos” (Cantú Rivera, 2020CANTÚ RIVERA, Humberto. La represión em el ámbito de derechos humanos y empresas em América Latina: reflexiones sobre el estado de la cuestión. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, 2020.: 66).

É necessário garantir o direito ao acesso à justiça e ao processo, mas é preciso atentar para essa relação entre mecanismos judiciais internos e transnacionais. É claro que o debate se instala sobre a “legalidade” de um tratado que busque reparação de abusos empresariais, constituindo-se um debate que pode se perder na formalidade. Desde 2014, há um Grupo de Trabalho Intergovernamental (GTI) para “elaborar um instrumento internacional juridicamente vinculante nessa matéria” (Cantú Rivera, 2020CANTÚ RIVERA, Humberto. La represión em el ámbito de derechos humanos y empresas em América Latina: reflexiones sobre el estado de la cuestión. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, 2020.: 67). Vai se construindo uma prática de mecanismos preventivos, mas e as políticas de reparação? O que fica implícito é que esses tratados e a pressão de agentes como a Comissão Europeia (hoje em dia, muitas vezes centrada em questões ambientais, por exemplo) colocam elementos na relação de empresas e Estado, e pode ser uma brecha para que os direitos se voltem para o passado sempre que os crimes cometidos sejam imprescritíveis? Em que medida se abrem espaços para agentes não estatais, as Organizações Não Governamentais e aparelhos privados de hegemonia? São questões que ajudam a pensar essa relação entre Estado e sociedade. Uma notícia recente diz que

Representantes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) integraram a delegação brasileira que participou da 9ª sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta sobre Empresas Transnacionais e outros Negócios, com relação aos Direitos Humanos, no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, na Suíça, de 23 a 27 de outubro [de 2023]. No evento, o Brasil reafirmou o compromisso com a pauta e com um processo ativo de negociação do Tratado Internacional sobre Direitos Humanos e Empresas, além do desejo de trabalhar de forma construtiva com outras delegações estatais ao longo dos próximos anos (Brasil..., 2023BRASIL reafirma compromisso direitos humanos e empresas no Conselho de Direitos Humano da ONU. Agência Gov, 30 out. 2023. Disponível em: Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202310/brasil-reafirma-compromisso-com-a-pauta-dos-direitos-humanos-e-empresas-no-conselho-dos-direitos-humanos-da-onu . Acesso em: 10 jun. 2024.
https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/2...
).

Esse seria então o quadro geral da questão, sendo ainda necessário percebermos como isso se processa nos casos abordados nas pesquisas. O fato é que existem violações do passado que seguem sendo praticadas, e as formas de impedir que pessoas atingidas pelas violações reconheçam seus direitos é uma das mais presentes. Para lidar com os percalços e permitir o avanço, é instrutivo nos debruçarmos sobre a experiência argentina.

ARGENTINA: SITUAÇÕES DE TRABALHO COMO PRAÇAS DE TORTURA

Os marcos internacionais de defesa dos direitos humanos do caso argentino são muitos, tanto do acúmulo judicial e penal, como também do acúmulo político da consigna “nunca mais”, que sintetiza as lutas ao longo de décadas. O país se notabiliza por fortes mobilizações sociais, de ocupação das ruas em nome da memória, sintetizadas no feriado do Dia da Memória, que faz com que a cada 24 de março haja uma imensa mobilização no país, em que pessoas vão às ruas para as ruas exigir saber onde estão seus desaparecidos.

Victoria Basualdo (2020BASUALDO, Victoria. Empresas, crímenes de lesa humanidad y justicia transicional en Argentina. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2020.) recupera parte desse processo: em 2008, a Comissão Internacional de Juristas publica o informe sobre cumplicidade empresarial e responsabilidade legal em violações aos direitos humanos (Basualdo, 2020BASUALDO, Victoria. Empresas, crímenes de lesa humanidad y justicia transicional en Argentina. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2020.: 84); em 2011, forma-se o Grupo de Trabalho (GT) sobre Responsabilidade Corporativa no Conselho de Direitos Humanos, com o estabelecimento de “diretrizes, linhas estratégicas e princípios em diversos âmbitos e regiões desde então” (Basualdo, 2020BASUALDO, Victoria. Empresas, crímenes de lesa humanidad y justicia transicional en Argentina. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2020.: 84). Essas ações se somam a medidas na Organização para a Colaboração e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e. Daqui se coloca uma questão metodológica: tratar do tema das violações dos direitos humanos no passado obriga a pensar sobre violações atuais, que podem ter caráter intermitente, sobretudo quando se fala das formas de organização das relações de trabalho e do aparato repressivo.

Esses avanços são acompanhados dos avanços de lutas dos movimentos sociais da memória. Eles pressionam o Estado pela aprovação de leis que garantam a impunibilidade e a reparação. Entretanto, ainda com Basualdo (2020BASUALDO, Victoria. Empresas, crímenes de lesa humanidad y justicia transicional en Argentina. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2020.), é fundamental olharmos para o fato de que esse processo, mesmo na Argentina, não é linear, e não foi uma onda de fácil convencimento, foi sempre fruto de lutas e teve momentos de refluxo. A autora divide esse processo em três momentos. O primeiro deles ocorreu de 1983 a 1989, considerado o período inicial do processo de justiça de transição. Nele situamos a criação da Comissão Nacional sobre as Desaparições de Pessoas (Conadep) e o informe “Nunca más”. Levantamentos iniciais seriam essenciais para toda a busca, investigação e julgamentos que seriam levados adiante. O segundo momento é uma inflexão, de 1989 a 2003/2005, de “interrupção do julgamento penal dos delitos de lesa humanidade e dos processos de luta contra a impunidade” (Basualdo, 2020BASUALDO, Victoria. Empresas, crímenes de lesa humanidad y justicia transicional en Argentina. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2020.: 85). A autora faz um apanhado geral do andamento das investigações sobre as grandes empresas e ditaduras para situar a questão (Basualdo, 2016BASUALDO, Victoria. Grandes empresas y dictaduras en América Latina durante la Guerra Fría: nuevas contribuciones. In: CORRÊA, Larissa, SILVA, Marcelo, MARTINS, Richard (org.). Repressão aos trabalhadores e responsabilidade empresarial nas ditaduras do Cone Sul. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2022. p. 37-56.).

A Lei de Obediência Devida e o Ponto Final seriam novas configurações dos imbricados no sistema repressivo para impedir punição e fornecer uma autoanistia. Uma das saídas dos movimentos foi levar os casos para julgamento em âmbito internacional, demandando a Mercedes-Benz fosse julgada diretamente na Alemanha. Finalmente, a partir de 2003, os processos de justiça são reativados, a partir de quando teremos imensos avanços em todos os processos exemplares, tais como a “causa Ford”. Nesse caso, que gerou vários julgamentos, caminha-se para a responsabilidade militar e dos chefes de segurança, que eram civis. Devemos sublinhar esse aspecto, pois é uma forma de cumplicidade observada nas pesquisas brasileiras no âmbito CAAF/Unifesp e do MPF.

Muitas vezes, para levar à punição, recorreu-se a violações de direitos trabalhistas. Trabalhadores sequestrados na saída do trabalho foram enquadrados como caso de “acidente de trabalho” (caso Oscar Orlando Bordisso e Enrique Roberto Ingenieros). As disputas se dariam entre justiça e Corte Suprema, mas desde 2020 há a “declaração de imprescritibilidade do ressarcimento dos delitos de lesa humanidade” (Basualdo, 2020BASUALDO, Victoria. Empresas, crímenes de lesa humanidad y justicia transicional en Argentina. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2020.: 88). Desde 2015, criou-se um Grupo de Estudos na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e no Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), atuando com o Programa Verdade e Justiça da Secretaria de Direitos Humanos. Ressalte-se que o estudo específico da advogada Paula Barral detalha cada possibilidade de reparação de ativos para reparações e restituições no marco da justiça penal nas investigações dos crimes de lesa humanidade na Argentina (Barral, 2022BARRAL, Paula. Mallimaci. Las posibilidades de recupero de activos para reparaciones y restituciones em el marco de la justicia penal en las investigaciones de los crímens de lesa humanidade. Revista Pensamiento Penal, [S. l.], n. 422, 2022.: 2). Ao se preocupar com os motivos econômicos da repressão, nos abre uma perspectiva essencial para seguir o estudo. Por ora, observa-se que as empresas que colaboraram seguem lucrando. E por assim dizer, os atingidos “seguem perdendo”, e há dispositivos legais para calcular essas perdas de modo pecuniário. Ao mesmo tempo em que “cessaram ganhos e lucros”, há um histórico de ganhos dessas empresas em distintos âmbitos. Quando se fala de apropriação de bens que foram feitos na Argentina, esses dados são gritantes, como apropriações imobiliárias que foram “lavadas” pelos repressores que se tornaram seus novos donos, limpando os botins de guerra. O fato de terem adquirido as propriedades não alivia a situação, pois “o direito de propriedade só existe na medida em que a propriedade seja adquirida através dos meios que o direito permite” (Barral, 2022BARRAL, Paula. Mallimaci. Las posibilidades de recupero de activos para reparaciones y restituciones em el marco de la justicia penal en las investigaciones de los crímens de lesa humanidade. Revista Pensamiento Penal, [S. l.], n. 422, 2022.: 34).

Aqui chegamos na contribuição da pesquisadora María Alejandra Esponda (2016ESPONDA, María Alejandra. Empresariado y represion em la última dictadura argentina: aspectos para pensar sus vínculos a partir de algunos caso paradigmáticos. In: CORRÊA, Larissa, SILVA, Marcelo, MARTINS, Richard (org.) Repressão aos trabalhadores e responsabilidade empresarial nas ditaduras do Cone Sul. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2022. p. 57-74.), que nos ajuda a pensar o caráter do projeto das ditaduras, que tem um projeto econômico em curso com implicações sociais, em que a aparente elisão da política nas ditaduras são caminho para a política econômica da “miséria planejada”, como diz Esponda, citando Rodolfo Walsh (Esponda, 2016ESPONDA, María Alejandra. Empresariado y represion em la última dictadura argentina: aspectos para pensar sus vínculos a partir de algunos caso paradigmáticos. In: CORRÊA, Larissa, SILVA, Marcelo, MARTINS, Richard (org.) Repressão aos trabalhadores e responsabilidade empresarial nas ditaduras do Cone Sul. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2022. p. 57-74.: 57). Há uma vinculação direta com um projeto político e é preciso verificar quais foram os “setores beneficiados e fortemente prejudicados. As consequências da reestruturação se expressam na análise da concentração do capital”. E, por outro lado,

“os vínculos entre empresariado e repressão têm que ver com a profundidade das transformações nas relações de trabalho, as mudanças no setor de direito trabalhista e sindical diante das normas repressivas e regressivas, a repressão a atividades sindicais e advogados trabalhistas” (Esponda, 2016ESPONDA, María Alejandra. Empresariado y represion em la última dictadura argentina: aspectos para pensar sus vínculos a partir de algunos caso paradigmáticos. In: CORRÊA, Larissa, SILVA, Marcelo, MARTINS, Richard (org.) Repressão aos trabalhadores e responsabilidade empresarial nas ditaduras do Cone Sul. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2022. p. 57-74.: 63).

E, poderíamos acrescentar, a repressão aos ativistas de direitos humanos que denunciam essas situações, sobretudo quando se fala de expropriações no âmbito agrário. A autora traz ainda o peso de associações de classe no estabelecimento de vínculo entre empresários e Estado, sobretudo no campo agrário em suas distintas associações. Mas o ramo industrial também se organizou na medida em que reagiam a conquistas trabalhistas, especialmente provindas do movimento sindical organizado. As grandes corporações atuariam diretamente nos processos repressivos para diminuir os direitos trabalhistas, inclusive produzindo materiais e buscando consenso em torno das ideias de “caos” que o país viveria antes do golpe. A autora explora o caso Ford, Fiat e Acindar, com documentos “em nome da ordem”.

Além disso, Esponda (2016ESPONDA, María Alejandra. Empresariado y represion em la última dictadura argentina: aspectos para pensar sus vínculos a partir de algunos caso paradigmáticos. In: CORRÊA, Larissa, SILVA, Marcelo, MARTINS, Richard (org.) Repressão aos trabalhadores e responsabilidade empresarial nas ditaduras do Cone Sul. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2022. p. 57-74.) traz um elemento muito relevante, que é a abertura para a financeirização da economia a partir dessas corporações, que terão imensos benefícios no caso da manutenção de dados de taxa cambial. Ela mostra como os grandes nomes das corporações vão assumindo postos nos governos de cariz neoliberal, implementado pela ditadura. Ficam aqui pontos de contato com o processo brasileiro, a organização intelectual do golpe, a manutenção do controle e repressão da classe trabalhadora e a criação do que entendemos como aparelhos privados de hegemonia burguesa que vão se intercambiando entre corporações e Estado.

DIREITOS HUMANOS QUE TRANSCENDEM

A partir da compreensão de que os direitos humanos são aplicáveis à responsabilidade empresarial, é preciso realizar essa ligação. Do ponto de vista do Estado brasileiro, no âmbito da Comissão da Anistia, diversos projetos foram desenvolvidos e incentivados, tais como as Clínicas de Testemunho, Marcas da Memória e outros desdobramentos. No contexto da CNV, o Memórias Reveladas e outras iniciativas públicas e privadas contribuem para a disseminação da temática, guarda de acervo, tomada de depoimentos, incentivo a lugares de memória, entre outros. Ao mesmo tempo, é indispensável lembrar do trabalho das associações dos familiares e atingidos, do Grupo Tortura Nunca Mais, de centros de memória ou iniciativas individuais e privadas, como o portal Documentos Revelados. Há um acúmulo de lutas e de materiais disponíveis a ser conhecido e difundido. Entretanto, a última década foi marcada também por respostas dos setores conservadores a esses pequenos avanços.

No âmbito da intervenção social, um marco fundamental nessa temática nos parece ser o texto Civis que colaboraram com a Ditadura, fruto do trabalho do Grupo de Trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Posteriormente, um estudo sobre o caso Volkswagen levou à possibilidade de que novas pesquisas fossem realizadas, por meio de auxílio a investigações sobre dez empresas. Os instrumentos de ação precisam ser aprimorados, sabendo que para a empresa vai aparecer como “riscos corporativos”. As pesquisas brasileiras mostram que o rol de vitimados das empresas vai muito além dos trabalhadores fabris, se estende a comunidades inteiras, seja de indígenas ou seja de camponeses vítimas de deslocamentos forçados. Nesse sentido, é preciso colocar o debate no âmbito dos direitos coletivos. Como apontou Carlos Marés Souza Filho: “a modernidade europeia, para construir a sociedade civil, negou e desconstruiu os direitos coletivos, estabelecendo a exclusividade dos direitos individuais” (Souza Filho, 2018SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Marco temporal e direitos coletivos. In: CUNHA, M. e BARBOSA, S. (org.) Direitos dos povos indígenas em disputa. São Paulo: Edunesp, 2018. p. 75-100.: 77). As pesquisas ampliam o problema para as comunidades indígenas e quilombolas, sendo direitos que “nascem quando nascem as comunidades”, que tem “direito de existir”, de “ser povo”, sem necessidade de integração forçada (Souza Filho, 2018SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Marco temporal e direitos coletivos. In: CUNHA, M. e BARBOSA, S. (org.) Direitos dos povos indígenas em disputa. São Paulo: Edunesp, 2018. p. 75-100.: 89), ao que se soma o direito ao território.

A atuação no âmbito internacional dos grandes conglomerados leva à junção de interesses e ações cidadãs no sentido de ocupar espaços em vista do “Estado de direito”. Equipes de trabalho são constituídas para atuar e muitas vezes mitigar danos e buscar reparações. Faz parte do formato do Estado na fase atual do capitalismo promover espaços para essas ações que podemos entender como intermediárias entre a ação do Estado e da sociedade, em relação com as corporações e empresas. O pressuposto de que as empresas podem ser sujeitas do Estado e de legislação que ajuste seus comportamentos faz parte dessa lógica.

Portanto, pautar as reparações na época da ditadura nos obriga a perceber como questões semelhantes ocorrem na democracia no sentido da violação dos direitos humanos. A indicação da perspectiva “desde baixo” nos leva a privilegiar “as vítimas”. Esse é um nó central da problemática a ser levada em conta nos “acertos de conta” para que não prevaleça a voz das corporações. Como alerta Quinalha (2013QUINALHA, Renan. Justiça de transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões, 2013.: 150), a expressão “acerto de contas” não deve nos induzir a achar que se trata apenas de indenização pecuniária. O uso dessa tática vai depender dos próprios atingidos.

No âmbito das lutas das organizações sociais, é preciso destacar as atividades do Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP):

O foco de atenção do IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas) é o estudo e a análise da realidade vivenciada pela grande maioria dos trabalhadores brasileiros. É seu objetivo contribuir com subsídios na construção, com a participação da sociedade, de políticas públicas de educação e de trabalho. Visa, também, subsidiar propostas e ações desenvolvidas por entidades do movimento popular e sindical (O que..., 20--O QUE é o IIEP? Projeto investigação operária, [S. l.], 20--. Disponível em: Disponível em: https://iiepmemoriaoperaria.wordpress.com/o-que-e-o-iiep/ . Acesso em: 9 dez. 2023.
https://iiepmemoriaoperaria.wordpress.co...
).

Diretamente ligado aos interesses da classe trabalhadora, foi um dos articuladores do GT Trabalhadores da Comissão Nacional da Verdade. Tem acompanhado os trabalhos das distintas pesquisa sobre as empresas, buscando fazer a ponte entre os achados das investigações e as políticas de reparação pensada a partir das demandas dos vitimados. O IIEP é responsável pela articulação do Fórum Verdade, Justiça e Reparação. O Fórum

Encara o desafio de agregar diversos setores da sociedade que foram identificados e [...] representam a complexidade da realidade brasileira indígenas, camponeses, quilombolas, ribeirinhos, sindicalistas, moradores das periferias, posseiros, operários, jornalistas, foram todos atingidos pela atividade criminosa da aliança empresarial-militar (IIEP, 2023).3 3 Reparar já!. Panfleto do IIEP, São Paulo, novembro de 2023.

As relações e violações entre empresas e Estado ficam comprovadas de modo irrefutável com o conjunto dessas pesquisas, conforme se aponta no Informe Público (CAAF/Unifesp, 2003). A luta por reparação ainda encontra muitas dificuldades na esteira da impunibilidade.

Seguimos os passos de historiadores preocupados em teorizar o fenômeno mais amplo, e por isso se recoloca o desafio de entendermos o que foi a própria ditadura. Não é demais lembrar que empresariado é o eufemismo para capitalista, para aqueles que levam adiante a engrenagem do capital em suas relações sociais. A concepção teórica e metodológica com a qual estamos trabalhando nos leva a ver intrínsecas relações entre a sociedade civil organizada e o Estado e seus agentes. A autocracia burguesa instalada em 1964, num processo de revolução passiva, leva à disseminação de práticas da Doutrina de Segurança Nacional, usando métodos de Terrorismo de Estado. Desse cabedal, algumas questões seguem incômodas: as violações da ditadura que se mantém na democracia; o controle do modelo produtivo, impedindo a qualquer custo a organização da classe trabalhadora.

Na democracia, o exército na fábrica (ou nas favelas) deixa de ser a regra, mas é usável em soluções limites, seja na entrada da fábrica ou contra a organização de indígenas que resistem a garimpeiros, os exemplos são variados. Da mesma forma, se o desmantelamento do movimento sindical foi um projeto da ditadura, foi um dos eixos das reformas neoliberais a partir de Margareth Tatcher, irradiada no “mundo globalizado”. Ao mesmo tempo, as organizações empresariais seguem se colocando como neutras e desinteressadas.

No caso do estudo sobre a usina hidrelétrica Itaipu Binacional, ela logrou passar praticamente incólume pela justiça de transição. Os 106 casos de mortes reconhecidos (Borges, 2023BORGES, André. Itaipu na ditadura: mais de 100 operários mortos e 43 mil accidentes na construção. Agência Pública, São Paulo, 19 jun. 2023. Disponível em: Disponível em: https://apublica.org/2023/06/itaipu-na-ditadura-mais-de-100-operarios-mortos-e-43-mil-acidentes-na-construcao/#_ . Acesso em: 7 dez. 2023.
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) pela empresa são considerados “danos esperados”, e não há dados públicos disponíveis sobre eles. Indenizações, pensões e outras reparações não são divulgadas, sendo todas as medidas remetidas a práticas de “responsabilidade social”, em acordo com a vontade estrita da própria empresa. O tema da responsabilidade nesse caso se complica pelo fato de que tratamos de um acordo internacional, que envolve consórcios de inúmeras empresas (direta ou indiretamente).

Em todo caso, está comprovado de forma contundente que as empresas envolvidas se “misturam” com o aparato repressivo público durante a ditadura. Agentes de segurança privada tinham autorização para reprimir, tanto no canteiro de obras quanto nos bairros operários. A repressão que esteve presente na construção ficou protegida, nunca foi denunciada. Abusos nos barracões e revoltas por alimentação adequada e moradia eram elementos presentes nas demandas dos trabalhadores (Sessi, 2015SESSI, Valdir. O povo do abismo: trabalhadores e o aparato repressivo durante a construção da Hidrelétrica de Itaipu (1974-1987). 2015. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon, 2015.). Perseguições políticas redundaram em demissões por motivações políticas, e seguem desconhecidas até hoje. A disparidade entre Brasil e Paraguai foi uma marca desde sempre, gerando questionamentos do povo paraguaio, com denúncias imensas de corrupção nesse país, sendo hoje palco de fortes movimentos em defesa da revisão do Anexo C4 4 O Anexo C é uma parte do Tratado de Acordo Internacional que rege a empresa. Nele estão previstas as questões financeiras, tais como preços e forma de prestação de serviços. Um dos elementos críticos é a imposição da exclusividade de venda da energia do Paraguai para o Brasil, que acaba sendo o definidor do preço pago. . No caso dessa relação, são concedidos direitos desiguais entre categorias idênticas.

No caso das expropriações, a forma como foi tratado o lado brasileiro e paraguaio também foram desiguais. Os Avá-guarani foram desalojados, sofreram deslocamento forçado e lutam até hoje pela demarcação de seu território e pelo direito de serem tratados como povo guarani dos dois lados do rio Paraná (Alcantara, 2019ALCÂNTARA, Gustavo Kenner et al. (org.) Avá-guarani: a construção de Itaipu e os direitos territoriais. Brasilia, DF: ESMPU, 2019., Fundação Rosa Luxemburgo, 2021FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO. Deuda histórica de Itaipu Binacional lado paraguayo, com el pueblo Ava Guarani Paranaense. 2. ed. São Paulo, 2021.). Todos esses elementos nos levam a concluir indicando a relevância de estudar os vínculos entre violações de direitos humanos e ação empresarial vinculada às ações estatais.

REFERÊNCIAS

  • ALCÂNTARA, Gustavo Kenner et al. (org.) Avá-guarani: a construção de Itaipu e os direitos territoriais. Brasilia, DF: ESMPU, 2019.
  • BARRAL, Paula. Mallimaci. Las posibilidades de recupero de activos para reparaciones y restituciones em el marco de la justicia penal en las investigaciones de los crímens de lesa humanidade. Revista Pensamiento Penal, [S. l.], n. 422, 2022.
  • BASUALDO, Victoria. Grandes empresas y dictaduras en América Latina durante la Guerra Fría: nuevas contribuciones. In: CORRÊA, Larissa, SILVA, Marcelo, MARTINS, Richard (org.). Repressão aos trabalhadores e responsabilidade empresarial nas ditaduras do Cone Sul. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2022. p. 37-56.
  • BASUALDO, Victoria. Empresas, crímenes de lesa humanidad y justicia transicional en Argentina. Revista Electrónica del Consejo de Derechos Humanos (REC), Buenos Aires, v. 1, n. 1, p. 83-93, 2020.
  • BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; GOÑI, Cruz. Negociando la rendición de cuentas por violaciones de los derechos humanos: el caso del acuerdo Volkswagen do Brasil. Homa Publica - Revista Internacional de Derechos Humanos y Empresas, Juiz de Fora, v. 5, n. 1, 2021.
  • BORGES, André. Itaipu na ditadura: mais de 100 operários mortos e 43 mil accidentes na construção. Agência Pública, São Paulo, 19 jun. 2023. Disponível em: Disponível em: https://apublica.org/2023/06/itaipu-na-ditadura-mais-de-100-operarios-mortos-e-43-mil-acidentes-na-construcao/#_ Acesso em: 7 dez. 2023.
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  • 1
    Os TACS, juntamente com as Ações Civis Públicas (ACP) são medidas de remediação das violações surgidas nos anos 1990 como “remédio não judicial” para empresas assumirem parcialmente reparações.
  • 2
    O Homa, criado em 2012, é uma organização da sociedade civil que presta assessoria acadêmica e jurídica na área dos direitos humanos, especialmente no campo da responsabilidade empresarial.
  • 3
    Reparar já!. Panfleto do IIEP, São Paulo, novembro de 2023.
  • 4
    O Anexo C é uma parte do Tratado de Acordo Internacional que rege a empresa. Nele estão previstas as questões financeiras, tais como preços e forma de prestação de serviços. Um dos elementos críticos é a imposição da exclusividade de venda da energia do Paraguai para o Brasil, que acaba sendo o definidor do preço pago.
  • Fonte de financiamento:

    Ministério Público Federal. Fundação Araucária.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2023
  • Aceito
    19 Maio 2024
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