RESENHAS
Práticas patrimonializantes e objetos patrimonializados
Patrimonializing practices and patrimonialized objects
Andréa Daher
Os arquitetos da memória.
Sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940).
Márcia Chuva. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
É certo que se pode falar, hoje, de "patrimônio" como uma área de estudos ou como um tipo de administração voltada para a promoção de tradições, memórias e lugares, e mobilizada tanto para a produção de saberes quanto para as comemorações cívicas e o comércio de produtos, como os turísticos. Em todas essas práticas inscreve- se a necessidade de preservação, inegavelmente ligada à busca de uma autenticidade de uma herança coletiva.
Ao deixar de ser definido como uma coleção de obras canônicas, "patrimônio", nesta acepção contemporânea, remete à diversidade cultural das práticas sociais. No entanto, essa concepção, por mais que constatável em escala ocidental, não pode responder às indagações sobre as próprias representações que a noção veicula, sobretudo nos discursos voltados para a preservação, nem tampouco das práticas que as ensejaram. Daí a necessidade de uma perspectiva que dê conta da lógica específica de práticas e discursos em torno de "patrimônio", no interior de diferentes regimes de representação em que foram operados, evidenciando o seu caráter tanto imaginário quanto institucional e, assim, os seus diversos sentidos históricos.
São esses os pressupostos legíveis no livro Os arquitetos da memória, de Márcia Chuva, que pensa a constituição de um patrimônio cultural no Brasil, não naturalmente nacional, mas como escolha localizável e historicamente explicável das instituições autorizadas, no consenso sociocultural e sociopolítico dos anos 1930-1940.
A inteligência do livro de Chuva está, antes de mais nada, na sua afirmação de que "patrimônio" é um locus em que convergem práticas e representações correspondentes aos mais variados programas políticos estatais. As lutas de representação, em diversos âmbitos, que marcaram a história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, desde os seus primórdios, tiveram como frutos, no mínimo, a invenção dos seus próprios objetos, das suas ferramentas e, até mesmo, da sua competência.
Nesse sentido, a tese de Chuva foi construída a partir de duas diferenças melhor dizendo, indiferenças fundamentais. Em primeiro lugar, ao conceber "patrimônio" como um locus de lutas de representação, define as práticas patrimoniais, a despeito da insistência generalizada do uso da categoria facilitadora de "lugar de memória", quase automaticamente colada à de "patrimônio" no conjunto dos estudos culturais. Em segundo lugar, recusa, por assim dizer, todo o caráter comemorativo e pedagogizante assumido, nas últimas décadas, em discursos produzidos e consumidos dentro e fora da universidade em torno de "patrimônio", inclusive da instituição patrimonial em suas implicações mercadológicas.
Sem dúvida, as práticas comemorativas dos patrimônios nacionais foram fundamentais para o triunfo do Museu e do Patrimônio, nas últimas décadas, em escala mundial. A consolidação de uma noção de patrimônio ao lado da fixação de uma concepção unívoca de memória como consciência patrimonial fez com que se multiplicassem os empreendimentos editoriais, das teses doutorais aos guias de turismo. É assim que, das festas comemorativas aos textos, se estende uma variedade de práticas e de objetos como manifestações irrecusáveis de uma "razão patrimonial". 1 Mas, como mostra Chuva, o fenômeno é resultado de um verdadeiro esforço de agentes do Estado, atuantes no bojo de políticas culturais patrimonializantes e da invenção de objetos patrimonializáveis.
A escolha da perspectiva sociogenética que torna visível tais emergências é totalmente justificável, como se pode perceber, nessas duas diferenças instauradas pelo trabalho de Chuva. Longe, em suma, de toda trivialidade conceitual e das evidências de uma pedagogia do genuinamente "nosso", o exercício desnaturalizante de Chuva se concentra acertadamente na definição do "serviço" do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
A perspectiva antropológica surge, de saída, na atenção voltada, no livro, para os gestos constituintes da rotinização do serviço. Segundo Chuva, a rotinização das práticas de preservação, no Brasil, resultou na institucionalização da profissão de arquiteto como responsável pela temática do patrimônio histórico e artístico nacional. A centralidade quase exclusiva da profissão de arquiteto nas práticas de preservação pode ser explicada, em grande parte, pelas relações existentes entre esses profissionais que se estabeleceram na diretoria e em cargos centrais do IPHAN. A importância da figura do arquiteto acabou por privilegiar a preservação de bens materiais que remetessem às supostas origens da profissão de arquiteto no Brasil, como prática genuinamente brasileira.
A patrimonialização massiva através da prática do tombamento de bens materiais, apoiada na atribuição de valor estético-arquitetônico mais até do que histórico , é a evidência histórica do papel exercido, desde sempre, pelos arquitetos como agentes por excelência dos serviços de tombamento e preservação, não exclusivo ao caso brasileiro.
Muito além da pesquisa notável e do recurso a fontes significativas para a reflexão sociogenética, é evidente, no trabalho de Chuva, a veia taxonômica ou inventarial necessária a uma arqueologia dos objetos historicamente eleitos em meio às lutas de representação em torno do patrimônio nacional. Pensados relacionalmente, esses inventários de bens imóveis, de categorias, de lugares, de agentes revelam racionalidades inauditas, configuradas na história do Estado brasileiro dos anos 1930-1940. Assim, a riqueza de informações dos cinco anexos que traz o livro não equivale somente à confirmação do trabalho obsessivo de coleta feito pela historiadora, mas, antes, da eficácia das ações ensejadas no SPHAN (depois IPHAN), em um momento crucial de sua história que foi o Estado Novo.
Chuva foi, ela mesma, funcionária, anos a fio, do IPHAN. Porém, não há neste livro qualquer traço de endogenia, senão o uso do pertencimento para a compreensão do valor heurístico do jogo de relações intra-institucional. Assim, o pertencimento, ao contrário, favoreceu a análise, fazendo com que a autora usufruísse do privilégio do ponto de vista, tido como vista a partir de um ponto, como sugere uma (boa) sociologia das práticas culturais em que ela se mostra treinada.
Já se pode supor que a tarefa dessa tese tardiamente tornada livro será, provavelmente, a de reconfigurar o campo dos estudos de patrimônio, e em mais larga escala da história das práticas culturais, ou mesmo da historiografia, ainda mergulhadas na reificação de aporias em torno da nacionalidade brasileira.
O exercício crítico feito aqui como resenha deve ser lido em parelelo à apresentação do livro aliás, excelente de Antônio Carlos de Souza Lima, com que tem total adesão, e, não menos, em paralelo com os usos proporcionados, desde 1998, pelo trabalho de Chuva. Deles são testemunhos teses, dissertações e artigos, os mais diversos. O livro já nasce assim com tributo prestado, firmando a certeza de que, segundo uma imagem cara a Chuva, o caminho será longo e crivado de atalhos.
NOTAS
Resenha recebida em 24 de março de 2010 e aprovada para publicação em 8 de abril de 2010.
Andréia Daher é professora de Teoria e Metodologia da História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil (andreadaher@gmail.com).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Ago 2010 -
Data do Fascículo
Jun 2010