RESUMO
São discutidos os principais avanços na terapia cirúrgica do feto, tendo como objetivo informar profissionais da área da saúde sobre qual o estado atual da arte e quais seus desafios futuros. São debatidos os passos que foram necessários para a evolução da técnica inicial, quando a cirurgia fetal era realizada a céu aberto, até o desenvolvimento de técnicas minimamente invasivas, de cirurgia endoscópica fetal (fetoscopia).
Feto/cirurgia; Fetoscopia/métodos; Procedimentos cirúrgicos minimamente invasivos; Meningomielocele; Disrafismo espinal
ABSTRACT
This paper discusses the main advances in fetal surgical therapy aiming to inform health care professionals about the state-of-the-art techniques and future challenges in this field. We discuss the necessary steps of technical evolution from the initial open fetal surgery approach until the development of minimally invasive techniques of fetal endoscopic surgery (fetoscopy).
Fetus/surgery; Fetoscopy/methods; Minimally invasive surgical procedures; Meningomyelocele; Spinal dysraphism
INTRODUÇÃO
Atualmente, várias malformações fetais podem ser tratadas por cirurgia fetal, a saber: complicações da gestação gemelar monocoriônica (transfusão feto-fetal, gêmeo acárdico, crescimento intrauterino retardado isolado etc.), hérnia diafragmática fetal (por meio de broncoscopia fetal e colocação de balão intratraqueal), brida amniótica constritiva, obstruções urinárias baixas11. Quintero RA. Diagnostic and operative fetoscopy. Boca Raton: Parthenon Pub Group; 2002. e, mais recentemente, a meningomielocele.
O tratamento cirúrgico do feto, iniciado na década de 1980, por meio da via a céu aberto (laparotomia materna, seguida de histerotomia e exposição fetal direta), vem sendo gradativamente substituído por uma técnica menos invasiva, na qual através da ultrassonografia se insere uma câmera dentro do útero, denominada fetoscopia. Inicialmente a fetoscopia era realizada apenas em meio líquido (líquido amniótico), utilizando-se um único orifício de entrada para acessar a cavidade uterina, por onde se insere uma ótica com canal de trabalho, para passagem de fibra de laser para coagulação de vasos, micro cateteres para passagem de balão e pequenas pinças bipolares.22. Senat MV, Deprest J, Boulvain M, Paupe A, Winer N, Ville Y. Endoscopic laser surgery versus serial amnioreduction for severe twin-to-twin transfusion syndrome. N Engl J Med. 2004;351(2):136-44.,33. Deprest J, Nicolaides K, Done’ E, Lewi P, Barki G, Largen E, et al. Technical aspects of fetal endoscopic tracheal occlusion for congenital diaphragmatic hernia. J Pediatr Surg. 2011;46(1):22-32.
No entanto, o meio líquido apresenta limitações para a realização de cirurgias mais complexas, que exigem dissecção e sutura. A imagem obtida em meio líquido tem qualidade inferior ao meio aéreo e, caso ocorra sangramento, o líquido hemorrágico não permite uma visualização adequada, podendo impedir a conclusão do procedimento. Outra limitação é a “flutuação” do feto, que sai da posição ideal. Dessa forma, realizar a fetoscopia no meio aéreo tornou-se imperativo para o avanço da cirurgia fetal.
Estudos em modelo animal, realizados no final da década de 1990, demonstraram a ocorrência de acidose fetal consequente à insuflação de gás carbônico na cavidade uterina44. Saiki Y, Litwin DE, Bigras JL, Waddell J, Konig A, Baik S, et al. Reducing the deleterious effects of intrauterine CO2 during fetoscopic surgery. J Surg Res. 1997;69(1):51-4. e, durante alguns anos, seu emprego foi limitado. Foi apenas em 2010 que Kohl et al.55. Kohl T, Ziemann M, Weinbach J, Tchatcheva K, Gembruch U, Hasselblatt M. Partial amniotic carbon dioxide insufflation during minimally invasive fetoscopic interventions seems safe for the fetal brain in sheep. J Laparoendosc Adv Surg Tech A. 2010;20(7):651-3. demonstraram ausência de alterações do desenvolvimento neurológico ou anatômicas do sistema nervoso central, consequentes à exposição ao gás carbônico em fetos de ovelha submetidos a fetoscopia. Neste estudo, foram utilizadas baixa pressão do gás e insuflação parcial da cavidade amniótica, deixando alguma quantidade de líquido amniótico no útero. Os procedimentos foram inteiramente percutâneos, sem a retirada do útero de dentro da cavidade abdominal, que constitui diferença importante em relação aos estudos anteriores. Acredita-se que a exteriorização do útero, per se, possa comprometer sua irrigação (compressão do pedículo vascular), além da possibilidade de ocorrer hiperinsuflação do útero muito fino da ovelha − nos dois casos potencialmente prejudicando a circulação útero-placentária.
Em 2011, foi publicado um estudo prospectivo e randomizado,66. Adzick NS, Thom EA, Spong CY, Brock JW 3rd, Burrows PK, Johnson MP, Howell LJ, Farrell JA, Dabrowiak ME, Sutton LN, Gupta N, Tulipan NB, D’Alton ME, Farmer DL; MOMS Investigators. A randomized trial of prenatal versus postnatal repair of myelomeningocele. N Engl J Med. 2011; 364(11):993-1004. comparando a correção pré-natal da mielomeningocele com a correção após o nascimento, no qual foi demonstrado que os fetos submetidos à correção antenatal tinham 50% menos necessidade de derivação ventrículo-peritoneal para tratar a hidrocefalia, além do dobro da possibilidade de deambular sem qualquer auxílio. Este estudo, denominadoManagement of Myelomeningocele Study (MOMS) utilizou a via a céu aberto para correção fetal, ficando bem demonstrados os riscos maternos associados à utilização dessa via, a saber: edema agudo de pulmão após a cirurgia, necessidade de transfusão de sangue no parto e cicatrização uterina desfavorável (deiscência ou cicatriz muito fina) no local da cirurgia em, aproximadamente 35% dos casos.
Na cirurgia a céu aberto, a laparotomia é ampla, normalmente seccionando a musculatura abdominal materna, pois o útero precisa ser luxado para fora da cavidade abdominal. Diferente da cesárea, a histerotomia que é realizada para a cirurgia fetal não respeita a região do segmento uterino, onde as fibras musculares têm orientação mais paralela, potencialmente poupando o miométrio. Na cirurgia a céu aberto, a histerotomia é realizada no segundo trimestre, quando o segmento uterino ainda não está bem definido, e na melhor área para acessar a coluna do feto, evitando a inserção placentária. Isso normalmente se encontra na região corporal ou fúndica, onde as fibras musculares têm distribuição helicoidal (para permitir o “tríplice gradiente” fisiológico da contração uterina). Desse modo, por menor que esta histerotomia seja, é gerada uma zona de fragilidade que contraindica o trabalho de parto, tanto na gestação em curso, quanto em futuras gestações. Existem relatos de rotura uterina, após cirurgia fetal a céu aberto, que ocorreram no segundo trimestre, mesmo fora do trabalho de parto, apenas pela distensão do útero numa gestação subsequente, o que coloca mãe e feto em risco. Na cesárea, a histerorrafia pode cicatrizar sem tensão, já que o parto é realizado, enquanto na cirurgia a céu aberto, o feto permanece e continua crescendo − portanto, a histerorrafia fica sob constante e progressiva tensão.
Apesar desses riscos, a cirurgia fetal tornou-se o padrão-ouro para o tratamento da mielomeningocele, e a busca por técnicas minimamente invasivas para aumentar a segurança materna tornou-se o desafio atual na terapia cirúrgica fetal.
Atualmente, apenas dois grupos realizam a cirurgia fetal endoscópica inteiramente percutânea, para tratamento da meningomielocele. Na Alemanha, o grupo de Kohl et al.77. Kohl T, Tchatcheva K, Merz W, Wartenberg HC, Heep A, Müller A, et al. Percutaneous fetoscopic patch closure of human spina bifida aperta: advances in fetal surgical techniques may obviate the need for early postnatal neurosurgical intervention. Surg Endosc. 2009;23(4):890-5. e, no Brasil, o grupo de Pedreira et al.,88. Pedreira DA, Zanon N, de Sá RA, Acacio GL, Ogeda E, Belem TM, et al. Fetoscopic single-layer repair of open spina bifida using a cellulose patch: preliminary clinical experience. J Matern Fetal Neonatal Med. 2014;27(16):1613-9.ambos utilizando a fetoscopia com insuflação parcial de gás carbônico (PCI -partial carbono dioxide insuflation). Os grupos usam técnicas diferentes para a correção do defeito propriamente dito. Pois, como ocorreu na transição entre a cirurgia realizada por laparotomia e a cirurgia laparoscópica, foi necessário desenvolver novas técnicas cirúrgicas, instrumentos, trocaters de acesso, dispositivos de fechamento, etc.
Resultados recentes têm demonstrado que a técnica Alemã99. Kohl T. Percutaneous minimally invasive fetoscopic surgery for spina bifida aperta. Part I: surgical technique and perioperative outcome. Ultrasound Obstet Gynecol. 2014;44(5):515-24. alcança resultados neurológicos bastante semelhantes ao do estudo MOMS, com mínima morbidade materna. A técnica brasileira, denominada (SAFER - Skin-over-biocellulose for Antenatal FEtoscopic Repair), tem obtido resultados neurológicos, ainda que preliminares (23 casos operados até o momento), superiores aos do estudo MOMS. No entanto, por necessitar de três orifícios para acesso da cavidade uterina, a idade gestacional média do parto ainda tem sido inferior, e a rotura prematura de membranas, superior, quando comparadas a este estudo. Acreditamos que, com um maior desenvolvimento técnico, em um futuro breve, essa nova técnica possa se demonstrar não apenas mais segura para a mãe, mas ainda melhor para o feto. Ventos que sopram do nosso país... para moldar a técnica que será empregada no futuro em todo o mundo.
REFERENCES
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1Quintero RA. Diagnostic and operative fetoscopy. Boca Raton: Parthenon Pub Group; 2002.
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2Senat MV, Deprest J, Boulvain M, Paupe A, Winer N, Ville Y. Endoscopic laser surgery versus serial amnioreduction for severe twin-to-twin transfusion syndrome. N Engl J Med. 2004;351(2):136-44.
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3Deprest J, Nicolaides K, Done’ E, Lewi P, Barki G, Largen E, et al. Technical aspects of fetal endoscopic tracheal occlusion for congenital diaphragmatic hernia. J Pediatr Surg. 2011;46(1):22-32.
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4Saiki Y, Litwin DE, Bigras JL, Waddell J, Konig A, Baik S, et al. Reducing the deleterious effects of intrauterine CO2 during fetoscopic surgery. J Surg Res. 1997;69(1):51-4.
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5Kohl T, Ziemann M, Weinbach J, Tchatcheva K, Gembruch U, Hasselblatt M. Partial amniotic carbon dioxide insufflation during minimally invasive fetoscopic interventions seems safe for the fetal brain in sheep. J Laparoendosc Adv Surg Tech A. 2010;20(7):651-3.
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6Adzick NS, Thom EA, Spong CY, Brock JW 3rd, Burrows PK, Johnson MP, Howell LJ, Farrell JA, Dabrowiak ME, Sutton LN, Gupta N, Tulipan NB, D’Alton ME, Farmer DL; MOMS Investigators. A randomized trial of prenatal versus postnatal repair of myelomeningocele. N Engl J Med. 2011; 364(11):993-1004.
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7Kohl T, Tchatcheva K, Merz W, Wartenberg HC, Heep A, Müller A, et al. Percutaneous fetoscopic patch closure of human spina bifida aperta: advances in fetal surgical techniques may obviate the need for early postnatal neurosurgical intervention. Surg Endosc. 2009;23(4):890-5.
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8Pedreira DA, Zanon N, de Sá RA, Acacio GL, Ogeda E, Belem TM, et al. Fetoscopic single-layer repair of open spina bifida using a cellulose patch: preliminary clinical experience. J Matern Fetal Neonatal Med. 2014;27(16):1613-9.
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9Kohl T. Percutaneous minimally invasive fetoscopic surgery for spina bifida aperta. Part I: surgical technique and perioperative outcome. Ultrasound Obstet Gynecol. 2014;44(5):515-24.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2016
Histórico
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Recebido
6 Ago 2015 -
Aceito
18 Out 2015