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Resenhas

Tennina, Lucía; Medeiros, Mário; Peçanha, Érica; Hapke, Ingrid. Polifonias marginais. ,Rio de Janeiro: Aeroplano, 2016

É comum que extensas pesquisas produzam muito material excedente, que acaba não sendo integralmente aproveitado em teses, livros ou relatórios. Também é comum que entrevistas, levantamentos de bibliografia, dados não utilizados desapareçam no fundo empoeirado das gavetas ou nos arquivos atravancados dos computadores. Em suma, conhecimento produzido e descartado, quando poderia ser reaproveitado por outros pesquisadores. Até por isso, chama atenção o lançamento do livro Polifonias marginais, de Lucía Tennina, Mário Medeiros, Érica Peçanha e Ingrid Hapke. Trata-se de uma coletânea de entrevistas feitas pelos autores com escritores/as negros/as e de periferia, rappers, organizadores de saraus e de coletivos, donos de bares onde acontecem recitais literários, entre outros. Um material riquíssimo que foi coletado durante suas pesquisas de mestrado e doutorado e que é agora disponibilizado para os especialistas da área ou mesmo para leitores interessados na produção contemporânea.

Em um artigo de 2013, intitulado "Os acervos, o meio digital, o intelectual das letras", Alckmar Luiz dos Santos colocava em pauta, entre outras coisas, a necessidade de discutirmos certa fetichização do trabalho intelectual, que começa, justamente, com a criação de empecilhos para o acesso de outros estudiosos ao acervo construído em meio às nossas pesquisas. Com isso, o foco do trabalho sai do objeto de estudo e recai sobre os próprios pesquisadores, proprietários e guardiões de um saber que deveriam compartilhar livremente. Polifonias marginais, nesse sentido, já é um passo adiante, seja pela disponibilização do material coletado individualmente, seja pela experiência do trabalho coletivo, também pouco habitual entre os estudiosos de literatura. Cabe lembrar que, embora sejam todos jovens pesquisadores, Érica Peçanha é antropóloga e Mário Medeiros é sociólogo, ambos com livros publicados sobre seus temas (Nascimento, 2009NASCIMENTO, Érica Peçanha do (2009). Vozes marginais na literatura. São Paulo: Aeroplano; Fapesp.; Silva, 2013SILVA, Mário Augusto Medeiros da (2013). A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil 1960-2000. São Paulo: Aeroplano.). Já Ingrid Hapke é tradutora e professora de literatura na Alemanha; e Lucía Tennina - além de tradutora e organizadora de uma importante coletânea de autores da periferia de São Paulo, com tese defendida recentemente sobre o assunto (Tennina, 2014; 2015) - é, também, professora de literatura na Argentina.

Assim, o título do livro busca dar conta dos variados discursos que o compõem, a começar pelos de seus próprios organizadores, de áreas de conhecimento, países, línguas e enquadramentos teóricos distintos. As entrevistas aparecem dispostas por temas, distribuídos ao longo de quatro capítulos: "Sistema literário, ativismo político-cultural negro e periférico", com apresentação de Mário Medeiros; "Trajetórias, atuação e produção cultural", preparado por Érica Peçanha; "Das teorias periféricas", introduzido por Ingrid Hapke; e "Saraus: poesia, gestão e território", estruturado e apresentado por Lucía Tennina. Alguns dos entrevistados, como não poderia deixar de ser, repetem-se nos capítulos, mas, encaixados em outras discussões, tratam de assuntos diferentes.

Estão ali, com seus sotaques e dicção própria, compondo narrativas que falam de raça, gênero, criação poética, influências, militância, reconhecimento e direito à cidade, Allan da Rosa, Alessandro Buzo, Alison da Paz, Augusto Cerqueira, Binho, Carlita, Carlos Canu, Cláudio Santista, Drix Solinas, Dugheto Shabazz, Edite Marques da Silva, Elizandra Souza, Esmeralda Ribeiro, Fernando Ferrari, Ferréz, Galo, Luan Luando, Lu Sousa, Márcio Barbosa, Márcio Batista, Michel Yakini, Miró da Muribeca, Nelson Maca, Oswaldo de Camargo, Paulo Lins, Raquel Almeida, Rodrigo Ciríaco, Rose Dorea, Sacolinha, Sérgio Vaz, Sonia Regina Bischain, Vagner Souza, Zé Batidão e Zinho Trindade. Alguns são nomes conhecidos de um público mais amplo, outros transitam com regularidade entre especialistas, mas há também os que têm maior impacto em sua própria comunidade e que, justamente por estarem mais distantes do alcance dos estudiosos de literatura, trazem uma contribuição nova ao cenário acadêmico. Seus discursos, que se complementam e às vezes se contradizem, revelam muito da dinâmica atual da cena literária da periferia no Brasil.

"Periferia" se refere a uma posição geográfica - o cinturão em que vivem os mais pobres, em torno das grandes cidades brasileiras - e, sobretudo, social. A periferia é o espaço dos excluídos, daqueles que dificilmente têm acesso às posições sociais mais privilegiadas, seja no Estado, no mercado, na academia ou na mídia. Mas "periferia" também indica a posição desses escritores e escritoras no campo literário (e aqui poderíamos incluir a situação de autores/as negros/as). Um campo, seguindo a definição de Pierre (Bourdieu, 1987BOURDIEU, Pierre (1987). L'institutionalisation de l'anomie. Les Cahiers du Musée National d'Art Moderne, Paris, n. 19-20, p. 6-19.; 1992), é um espaço social hierarquizado e conflitivo, organizado segundo regras próprias de atribuição de valor. Os agentes do campo lutam por chegar às posições centrais, que são aquelas nas quais possuem o mais alto índice de reconhecimento pelos seus pares (os outros integrantes do campo).

O campo literário, assim, é composto por escritores, editores, jornalistas, acadêmicos, que conferem uns aos outros reconhecimento e prestígio. É disso, do reconhecimento dos pares, que depende a "glória" literária, não de lançar best-sellers, ganhar condecorações ou obter uma cadeira na combalida Academia Brasileira de Letras (que o diga Paulo Coelho). Por motivos diferentes daqueles que afetam o autor de O alquimista, os escritores e escritoras negros/as e da periferia também permanecem nas margens do campo literário.

Mas o "campo" não é um dado da realidade, e sim uma forma de organizá-la para entendê-la; portanto, podemos ajustar o foco conforme seja necessário. Assim, dentro do campo literário brasileiro em geral, os autores e autoras da periferia estão condenados a uma posição absolutamente marginal - poucos, como Paulo Lins, conseguem romper este cerco e, ainda assim, carregam um ônus perene. Porém, é possível ver em formação um "campo literário periférico", com suas próprias hierarquias e formas de consagração, que são influenciadas pelo campo literário dominante, mas nem sempre coincidem de forma plena com as dele. Daí termos, por exemplo, escritores que publicam com recursos próprios, comercializam seus livros nos saraus ou pela internet e vendem mais do que alguns nomes das grandes editoras. É desta posição que falam as entrevistas incluídas em Polifonias marginais.

Há, obviamente, muito mais escritores/as negros/as e de periferia produzindo literatura, em seus mais diversos formatos e possibilidades, por esse Brasil afora. O conjunto apresentado no livro, com umas poucas exceções (o carioca Paulo Lins, o pernambucano Miró da Muribeca e o "paranaense-baiano" Nelson Maca), é de pessoas que vivem em São Paulo. Em suma, está se falando de uma realidade específica e, por que não dizer, privilegiada em relação a outras, como Porto Alegre ou o Distrito Federal, só para citar dois exemplos. O recorte, é claro, está vinculado às pesquisas dos quatro autores e o livro não pretende ser representativo do conjunto da produção nacional, mas não deixa de ser revelador sobre para onde se olha quando se está falando de literatura hoje. Serve também de alerta para a necessidade de novos levantamentos como os propostos nesse livro, de novos estudos, com outras abrangências, que nos permitam ter uma visão de conjunto da produção literária e cultural negra e das periferias.

Referências

  • BOURDIEU, Pierre (1987). L'institutionalisation de l'anomie. Les Cahiers du Musée National d'Art Moderne, Paris, n. 19-20, p. 6-19.
  • BOURDIEU, Pierre (1992). Les règles de l'art: genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil.
  • NASCIMENTO, Érica Peçanha do (2009). Vozes marginais na literatura. São Paulo: Aeroplano; Fapesp.
  • SANTOS, Alckmar Luiz dos (2013). Os acervos, o meio digital, o intelectual das Letras. Manuscrítica: Revista de Crítica Genética, São Paulo, n. 24, p. 129-36.
  • SILVA, Mário Augusto Medeiros da (2013). A descoberta do insólito: literatura negra e literatura periférica no Brasil 1960-2000. São Paulo: Aeroplano.
  • TENNINA, Lucía et al. (2016). Polifonias marginaisRio de Janeiro: Aeroplano.
  • TENNINA, Lucía (2015). Literaturas del margen/literaturas al margen: luchas y legitimaciones en el campo literario brasileño a partir de un estudio de las manifestaciones literarias de la periferia de São Paulo desde fines de los años noventa hasta la actualidad. Tese (Doutorado em Literatura) - Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires.
  • TENNINA, Lucía (2014). (Org.) Saraus: movimiento/literatura/periferia/São Paulo. Buenos Aires: Tinta Limón.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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