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Resenhas

Oliveira, Godofredo de. Neto. A ficcionista. ,Rio de Janeiro: Imã, 2013

Godofredo de Oliveira Neto é conhecido do público por ser um romancista extremamente atento à arte de contar histórias. A ficcionista (2013OLIVEIRA NETO, Godofredo de (2013). A ficcionista. Rio de Janeiro: Imã.), lançado também em formato e-book, confirma essa sua característica, apresentando um texto elegante e acessível, que traz o encontro marcante de dois personagens. Um é o escritor que vai em busca de assunto para um novo livro e contrata a personagem Nikki para contar a vida dela em dez sessões remuneradas de gravação. Leitora voraz de romances e uma espécie de filósofa-guru, com uma vida rocambolesca, ela é a ficcionista do título, tendo inclusive publicado nos Estados Unidos sob pseudônimo.

Nikki foi recomendada ao escritor por um preso, em função de ter tido uma experiência de vida "tipo romance", que envolveu desde drogas e prostituição até uma atuação como líder de um grupo que distribuía à população bens obtidos em assaltos. Sua atuação incluiu, entre outras coisas, episódios em que desempenhou papéis messiânicos, incorporando traços clássicos dos personagens do gênero, como visões e curas. A narrativa é dividida pelas dez sessões de gravação, e apresentada por meio de diálogos, em que Nikki conta sua história e discute com o escritor. Quando ele declara que vai melhorar trechos da história e até mudar paisagens e cenários, ela pergunta: "Vai inventar trechos da minha própria vida?" E o escritor responde: "Se precisar, sim, eu sou o escritor."

Assim, o livro se desenvolve em dois planos. No primeiro, acompanhamos as peripécias da personagem: nascimento e juventude em família normal de Santa Catarina; perda precoce dos pais, com alteração radical da vida regular de estudante; relação com marginal e caminhoneiro; prostituição; moradia em favela, da qual fugiu por causa de dívida com traficante de drogas; visões e uso de drogas; profetismo e liderança de grupo armado, "expropriando" bens distribuídos à população carente; e radicalização do messianismo.

No segundo plano, encontramos as indagações sobre o que significa produzir uma narrativa. Ou seja, não se trata somente das ações da personagem ou das circunstâncias de seu encontro com o narrador-personagem, mas também da maneira como se elaboram em forma de narrativa essas ações e esse encontro.

O resultado final é um romance sintético, sem adjetivos e lantejoulas verbais, leve, bem escrito, que prende a atenção do leitor não somente pela história de seus personagens mas também pela reflexão desenvolvida sobre o que significa contar essa história.

Interessante assinalar, ainda, que esse romance dialoga com outros dois anteriores do mesmo autor: O bruxo do Contestado e Amores exilados. Como? Na configuração de Nikki, há traços de um certo messianismo que poderíamos chamar de religioso, num sentido lato, que também aparece no Bruxo do Contestado.

Na América do Sul, o messianismo religioso vem sendo tematizado com grande sucesso pelo menos desde Os sertões, de Euclides da Cunha. De fato, quando Mário Vargas Llosa retomou esse clássico euclidiano, em sua Guerra do fim do mundo (1980), chamou a atenção para isso, mas acrescentou aquilo que vinha junto: entre outras coisas, o estado de carência extrema (econômica, educacional etc.) que abrangia tanto Antonio Conselheiro quanto seus seguidores. O que todos e cada um têm em comum nesses grupos messiânicos é uma espécie de igualdade da falta. E o que o líder tem de diferente dos membros do rebanho é a sua capacidade de controlar os outros a partir de uma manipulação discursiva em que se misturam crenças ancestrais enraizadas localmente, temores e precariedade compartilhados, e uma espécie de comunitarismo da carência.

O "monge" José Maria é apresentado em O bruxo do Contestado como habilidoso na dominação de seu grupo, segundo o personagem Victor: "Com ele, os fanáticos tinham coisas imediatas como comida, lugar para dormir, justiça." Se há semelhança na caracterização dos líderes do Contestado e de Canudos, nas obras de Godofredo de Oliveira Neto e Mário Vargas Llosa, também existem diferenças marcantes nas atribuições de sentido feitas às comunidades lideradas por Antonio Conselheiro e José Maria. Entre outras coisas, Conselheiro e seus adeptos são acusados de contestar a República recém-instalada no Brasil, enquanto José Maria e os seus são acusados de estar introduzindo o que mais tarde se denominaria de "ideologias alienígenas", no período da ditadura militar brasileira, entre as décadas de 1960 e 1980: "Mas falam que veio gente dos sindicatos da Inglaterra e da Rússia pra ensinar a jagunçada a tomar o poder. Não sei se é verdade, mas dizem que sim." Se em Canudos se ressaltou o aspecto regional e nacional do conflito, no Contestado se destacou a inserção do conflito em um quadro maior, em que os interesses do capitalismo internacional estavam em jogo.

Em contraste com Antonio Conselheiro e José Maria, a liderança de Nikki não representa uma ameaça do mesmo nível de qualquer um dos dois anteriores, porque não ganha a escala social que os outros ganharam, nem a repercussão mais ampla que suas ações tiveram. Além disso, em Nikki o messianismo contempla apenas um aspecto de suas ações e não tem a centralidade que possui em relação aos personagens mencionados de O bruxo do Contestado e A guerra do fim do mundo.

Se, por um lado, na obra de Godofredo de Oliveira Neto, poderíamos dizer que Nikki apresenta traços que remetem a José Maria, por outro lado, podemos também chamar a atenção do leitor para outros aspectos. Por exemplo, em Nikki também existem traços de uma liberdade sexual, de algum modo derivada dos anos 1960, que está presente em Amores exilados, livro no qual personagens militantes de esquerda se confrontam com uma moral sexual restritiva, professada por outros colegas militantes com os quais convivem, gerando conflitos na comunidade brasileira de exilados de esquerda na França.

O profetismo em Nikki se soma à liderança de grupo armado, e sabemos que a ideia de "expropriação" de bens para serem distribuídos à população carente era bem conhecida pelas chamadas "vanguardas" de esquerda dos anos 1960 até meados da década de 1970.

A diferença básica em relação a essas "vanguardas" é que o grupo armado de Nikki não age a partir de convicções derivadas de ideias políticas previamente elaboradas. Analogamente, não há nenhuma fundamentação teórica articulada para justificar as ações da personagem quanto à sexualidade; ou seja, ela não evoca nenhuma das teses referentes ao amor livre ou à liberação feminista que proliferaram durante os anos 1960 e 1970. Trata-se de ações, portanto, que aspiram a uma espécie de espontaneísmo, como se surgissem de decisões momentâneas de Nikki, sem fundamentação mais elaborada e sem raízes profundas. Em outras palavras: ações que supostamente são resultado de impulsos pessoais, sem maior preocupação analítica ou crítica da personagem em refletir previamente sobre elas.

No entanto, na contramão desse suposto espontaneísmo, poderíamos também apontar uma relação entre essas ações não alegadamente motivadas por razões prévias de Nikki e um certo stimmung, um certo clima de época em que predomina um sentimento de descontentamento com uma série de questões e problemas herdados de tempos anteriores. Problemas estes que geraram e geram sentimentos de impaciência e frustração pela sua continuidade e pela ausência de soluções à vista.

Nikki não procura novas respostas para antigas perguntas, porque, de fato, não incorporou conscientemente nem as antigas perguntas, nem a necessidade de novas respostas. Mas talvez possamos dizer que ela expressa esse mal-estar difuso com o status quo que esteve presente também em movimentos como o "Occupy Wall Street" ou as manifestações de 2013 no Brasil, que começaram com a agenda definida do Movimento Passe Livre e depois viraram outra coisa, de contornos mais indefinidos. A nova forma de organização desses movimentos (através de redes digitais) ou a ausência de uma lista clara de reivindicações (entre outras coisas) pode ser vista como uma diferença marcante em relação a tempos anteriores, em que se organizavam movimentos de massa a partir de pautas claramente articuladas, que frequentemente podiam ser enunciadas em slogans como o famoso "Diretas já!"

Nikki age em um momento no qual existe um desafio aos modos como a estrutura política tem-se organizado, beneficiando grupos de interesse que têm excluído partes relevantes da população. Como resultado mais visível há pouco, os insatisfeitos foram às ruas, mesmo quando não enunciavam claramente as razões de ir ou quando não sabiam claramente por que o faziam.

Sabemos que ainda hoje há uma série de questões latentes, criando uma atmosfera de crescente impaciência e frustração com a escassez de soluções à vista e, no caso brasileiro, recentemente assistimos em 2013 a uma série de manifestações que agregavam pessoas com agendas diferentes ou mesmo sem agenda clara, avolumando-se nas ruas. Se, em tempos anteriores, estava mais consolidada a prática de tentar explicitar claramente para os participantes de manifestações as razões pelas quais eles iriam manifestar-se, inclusive através de slogans resumidores das reivindicações em jogo (como o já mencionado "Diretas já!"), hoje nos deparamos com manifestações que não são mais organizadas a partir de uma pauta unificada. Como consequência, às vezes não se sabe exatamente a favor do que ou contra o que os participantes se posicionam; ou, alternativamente, os próprios manifestantes, embora ocupem um espaço unificado nas ruas, alegam razões diferentes para estarem lá a ocupá-lo.

Não admira, portanto, que, nas manifestações originadas pelo Movimento Passe Livre não tenha surgido um corpo significativo de ideias especificamente formuladas a partir dos manifestantes sobre o ambiente político em geral (em 2013, quando alguns políticos de esquerda quiseram pautar uma reforma política, um conhecido deputado do Rio de Janeiro declarou que, nas manifestações, havia visto até um cartaz para venda de um Dodge Dart usado, mas nenhum cartaz pedindo reforma política).

Talvez a maior parte dos manifestantes não fosse capaz de verbalizar aquilo que dos anos anteriores permaneceu latente e emergiu nas manifestações, embora muitos também portassem cartazes que poderiam ser enquadrados como reivindicações (contra a corrupção; contra Cabral, então governador do estado do Rio de Janeiro etc.). No entanto, as reivindicações mais focadas apareceram em um ambiente em que se misturavam um número muito grande de outras reivindicações diferentes e às vezes mutuamente exclusivas.

E o que isso tudo tem a ver com a personagem Nikki? Bem, trata-se de uma personagem que não possui nem um controle nem uma compreensão desenvolvidos sobre os atos que pratica ou sobre as razões de praticá-los, mas os pratica assim mesmo. As circunstâncias em que ela se move dentro do sistema social em que está inserida podem não ser entendidas de forma reflexiva por ela, mas certamente estão presentes, como pano de fundo latente, interferindo inclusive naquilo que ela imagina ser o núcleo mais pessoal de sua subjetividade.

Assim, se à primeira vista Nikki pode ser interpretada como uma personagem radicalmente imersa em uma orientação subjetiva e narcisista de viver, com uma espontaneidade que refletiria apenas os desejos circunstanciais que marcaram os diversos momentos de sua trajetória existencial, também pode ser considerada de outra maneira. Afinal, a suposta subjetividade de Nikki não pode ser dissociada de certo momento do sistema capitalista no qual socialmente se inscreve uma noção de sujeito singular, único e autorreferencial, noção esta que não é subjetiva, por assim dizer, mas histórica e social. Desse modo, talvez seja mais produtivo, em vez de apenas considerar Nikki um caso único e irrepetível, pensar nas conexões de seu caminho de vida com o contexto em que ela deu seus passos. Mesmo porque toda a obra anterior de Godofredo de Oliveira Neto está longe de ser um tributo ao suposto subjetivismo personalizado de seus personagens, consistindo, em vez disso, em um esforço elaborado para colocar em cena o quadro mais geral em que se movem todos.

Referências

  • CUNHA, Euclides da (1979). Os sertões. São Paulo: Abril Cultural.
  • OLIVEIRA NETO, Godofredo de (2013). A ficcionista. Rio de Janeiro: Imã.
  • OLIVEIRA NETO, Godofredo de (2011). Amores exiladosRio de Janeiro: Record.
  • OLIVEIRA NETO, Godofredo de (1996). O bruxo do Contestado2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • VARGAS LLOSA, Mario (2008). A guerra do fim do mundo Rio de Janeiro: Alfaguara.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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