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A liquidez em três signos: sangue, leite e lucro na Amazônia com base no corpo indígena feminino

Liquidity in three signs: blood, milk, and profit in the Amazon from the female indigenous body

La liquidez en tres signos: sangre, leche y ganancia en la Amazonía a partir del cuerpo indígena femenino

Resumo

O olhar para o feminino tem sido tema constante nos estudos literários. Os objetivos deste trabalho são analisar uma narrativa do ciclo da borracha com base na forma como o corpo da mulher é retratado ao longo do texto e, ainda, verificar a carga simbólica que esse corpo assume na tecitura narrativa. Para isso, ancoramos nossa leitura no processo de construção de sentido que se elabora no conto, no qual o narrador descreve a personagem de modo simbólico e, diante da incapacidade de lidar com um referente tão inesperado, investe na metonímia como meio mais eficiente de dizer uma realidade específica das entranhas da Amazônia. A base metodológica, portanto, é a metonímia entendida no âmbito da linguística cognitiva. A narrativa “Maibi”, situada na Amazônia brasileira no segundo ciclo da borracha, expõe um corpo de mulher indígena construído numa estrutura metonímica em que ela vai, aos poucos, passando de mulher a espetáculo inaudito. Maibi, desse modo, é símbolo mudo da seringueira e da Amazônia, representadas pelos signos do sangue, do leite e do lucro.

Palavras-chave:
metonímia; narrativa; seringueira; sacrifício

Abstract

The look at the feminine has been a constant theme in literary studies. The objective of this studies is to analyze a narrative of the rubber boom based on how the woman’s body is portrayed throughout this text. Furthermore, it aims to verify the symbolic load that this body assumes within the narrative texture. For this, we anchor our reading in the process of constructing meaning that is elaborated in the story, wherein the narrator describes the character in a symbolic way and, faced with the inability to deal with such an unexpected referent, makes use of metonymy as a more efficient means of saying a specific reality of the entrails of the Amazon. The methodological basis, therefore, is metonymy understood in the context of cognitive linguistics. The “Maibi” narrative, located in the Brazilian Amazon during the second rubber boom, exposes an indigenous woman’s body constructed in a metonymic structure in which she gradually changes from woman to unprecedented spectacle. Maibi, in this way, is a silent symbol of the rubber tree and the Amazon, represented by the signs of blood, milk, and profit.

Keywords:
metonymy; narrative; rubber tree; sacrifice

Resumen

La mirada sobre lo femenino ha sido un tema constante en los estudios literarios. El objetivo de este trabajo es analizar una narrativa del ciclo del caucho desde de la forma en que se retrata el cuerpo de la mujer a lo largo de este texto. Además, se busca comprobar la carga simbólica que asume este cuerpo en el contexto de la narrativa. Para ello, anclamos nuestra lectura en el proceso de construcción de sentido que se elabora en el cuento, en el cual el narrador describe al personaje de manera simbólica y, ante la imposibilidad de confrontación con un referente tan inesperado, hace uso de la metonimia como el medio más eficiente para expresar una realidad concreta desde las entrañas de la Amazonía. La base metodológica, por lo tanto, es la metonimia entendida en el contexto de la lingüística cognitiva. La narrativa “Maibi”, ubicada en la Amazonía brasileña durante el segundo auge del caucho, expone el cuerpo de una mujer indígena construido sobre una estructura metonímica en la que va, poco a poco, de mujer a espectáculo admirable. Maibi, de esta forma, es un símbolo mudo del árbol del caucho y de la Amazonía, representada por los signos de la sangre, la leche y la ganancia.

Palabras-clave:
metonimia; narrativa; caucho; sacrificio

Os discursos produtores da Amazônia foram, ao longo do século XX, consolidando-se mediante dispositivos simbólicos que, no dizer de Ana Pizarro (2012)PIZARRO, Ana (2012). Amazônia: as vozes do rio: imaginário e modernização. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora da UFMG., se constituíram em três momentos distintos. O dispositivo simbólico inicial aconteceu no primeiro encontro de culturas, no século XVI. O segundo deu-se quando se passaram a forjar os imaginários de um projeto nacional para cada uma das Amazônias1 1 A Amazônia, dita no singular, é uma área cultural, natural, hídrica e mineral formada por oito países (Brasil, Bolívia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela). Todas essas Amazônias compartilham o rio e a selva como referências de suas formas de pensar, sentir e agir. — o momento das chamadas independências políticas em períodos distintos de cada país. O terceiro corresponde ao começo do século 20 e tem relação com a modernização e seus efeitos sobre as linguagens simbólicas.

De acordo com PizarroPIZARRO, Ana (2012). Amazônia: as vozes do rio: imaginário e modernização. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora da UFMG. (2012PIZARRO, Ana (2012). Amazônia: as vozes do rio: imaginário e modernização. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 35), a imagem que manejamos da Amazônia tem a ver com a construção desses discursos e com a forma como estes expressam a relação do homem com a natureza e com o meio ambiente. Eles realçam, ao mesmo tempo, a dualidade paraíso e inferno, que de alguma maneira está presente em toda a discursividade.

A narrativa construída em torno da exploração da borracha no interior da Amazônia brasileira não se diferencia em nada disso. Pizarro (2012)PIZARRO, Ana (2012). Amazônia: as vozes do rio: imaginário e modernização. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora da UFMG., quando reflete a respeito da questão, vislumbra pelo menos três vozes passíveis de serem acessadas nesse universo:

  • a dos barões do caucho ou coronéis da borracha: vozes do poder que procuravam agir e encontrar um sentido para sua ação;

  • a dos intelectuais: vozes que elaboram as experiências em textos de diferentes registros como o documentalismo, o ensaio e a ficção romanesca;

  • a dos seringueiros, aviados e indígenas: vozes que narram os mesmos acontecimentos de outro lugar.

Alberto Rangel é uma dessas vozes intelectuais que compõem o universo discursivo amazônico. Como engenheiro a serviço do governo brasileiro, ele desenvolveu atividades em projetos de engenharia no Maranhão e no Pará e exerceu a função de diretor-geral de Terras e Colonização no estado do Amazonas. Esse período que passou na região serviu, portanto, de momento propício para acumular as experiências que marcaram sua forma de vê-la. Foi assim que, no início do século XX, ele escreveu e publicou a coletânea de contos Inferno verde (2008)2 2 A primeira edição do livro Inferno verde, de Alberto Rangel, é do ano de 1908. Neste texto as referências são da sexta edição, publicada pela Valer, editora de Manaus, de 2008. .

Aqui, pretendemos apresentar uma leitura de um dos contos que integram esse livro com base na identificação do processo de produção de sentido que o elaborou e no efeito de sentido por ele articulado.

Inferno verde (2008) é formado por 11 contos, que podem ser lidos também como um romance de 11 capítulos. Entre eles, a nona narrativa tem o título de “Maibi”. Outros estudos já foram feitos em busca da compreensão da obra de Alberto Rangel e do conto “Maibi”, objeto deste trabalho. Inferno verde foi lido e comentado por seus contemporâneos Euclides da Cunha e Péricles Moraes3 3 Allison Leão (2011) faz importante reflexão a respeito dos estudos contemporâneos acerca da obra Inferno verde no livro Amazonas: natureza e ficção. e, posteriormente, revisitado por pesquisadores como Leandro (2011)LEÃO, Allison (2011). Amazonas: natureza e ficção. São Paulo: Annablume. e Paiva (2011)PAIVA, Marco Aurélio C. (2011). O sertão amazônico: o inferno de Alberto Rangel. Revista Interface. Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 26, p. 332-362.. Detemo-nos um pouco nos dois últimos, cuja perspectiva crítica contribuiu para o amadurecimento de nossa leitura.

Rafael Voigt Leandro (2011)LEANDRO, Rafael V. (2011). Alberto Rangel e seu projeto literário para a Amazônia. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Brasília. no lúcido texto Alberto Rangel e seu projeto literário para a Amazônia analisa Inferno Verde (2008) e Sombras n’agua (1913). Segundo o autor, essas obras tratam de uma Amazônia de fonte inesgotável caracterizando-se como recheada de enigmas e de muitas faces a serem exploradas pelo escritor, que se aventura em decifrá-la. Para Leandro (2011)LEANDRO, Rafael V. (2011). Alberto Rangel e seu projeto literário para a Amazônia. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Brasília., ao escrever as obras, Alberto Rangel mostra singularidades e especificidades que ora se distanciam, ora se aproximam. No primeiro conto a Amazônia é apresentada como um ambiente hostil e mais crítico. Já o segundo aponta novos horizontes para o período amazônico no pós-ciclo da borracha.

Marco Aurélio Coelho de Paiva (2011)PAIVA, Marco Aurélio C. (2011). O sertão amazônico: o inferno de Alberto Rangel. Revista Interface. Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 26, p. 332-362., no artigo “O sertão amazônico: o inferno de Alberto Rangel”, observa que o autor procura evidenciar contrastes ao mostrar a Amazônia como se fosse um sertão, estilizada conforme a ótica de Euclides da Cunha, em Os sertões, porém essa mesma Amazônia ganha forma e representação de lugar desconhecido e que se impõe diante dos seus intrusos. Desse modo, mostra-se imponente e reage no silêncio dos seus algozes ao mesmo tempo que oferece abrigo quando é requerida, constituindo-se como fonte de inspiração inesgotável de contos e lendas.

O conto sobre a cabocla Maibi retrata a mulher como moeda de troca entre seringueiros e seringalistas, uma realidade muito comum nos ciclos da borracha4 4 Os ciclos da borracha ocorreram na floresta amazônica em dois momentos, 1879–1912 e 1942–1945, e correspondem aos períodos da história brasileira em que a extração e a comercialização de látex para a produção da borracha foram atividades basilares da economia. na Amazônia brasileira. Esse escambo tinha como principal finalidade incentivar o trabalhador a produzir maiores quantidades de borracha, de maneira que não ficasse por devedor. Dessa forma, Rangel (2008)RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer. procura mostrar que, para alguns, a natureza amazônica pode apresentar-se como um local hostil e para outros como um verdadeiro paraíso em que se oferecem as condições ideais de hospitalidade.

Nesse conjunto de valores esculpidos, observa-se uma visão imprecisa do autor ao legitimar apenas valores que expunham a Amazônia de maneira sinótica, enfatizando na sua essência aspectos que trazem uma representação mais afinada com seus anseios literários e que, igualmente, se aliam aos vínculos com os quais têm afinidades.

Nossa proposta de leitura se orienta no sentido de observar com um olhar mais atencioso o processo de construção de sentido que se elabora no conto. Neste o narrador descreve a personagem de modo simbólico e, diante da incapacidade de lidar com um referente tão inesperado, emprega a metonímia como meio mais eficiente de dizer uma realidade específica das entranhas da Amazônia. Nessa direção, as reflexões mais recentes em torno da metonímia, enquanto base metodológica tal como entendida no âmbito da linguística cognitiva, como modelo de organização do pensamento, e aplicada aqui como recurso de construção/organização da narrativa, servirão de base para a reflexão desenvolvida ao longo do texto. A metodologia não é inédita, uma vez que já foi experimentada por outros ensaístas como Boechat (1018). Na obra de Rangel (2008)RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., entretanto, é um exercício primeiro dessa perspectiva metodológica.

Importa, para os limites deste trabalho, o entendimento da metonímia como um fenômeno conceitual e cognitivo cuja função é propiciar entendimento, esboçar uma forma de expressão que consiga dizer minimamente um universo assombrosamente desconhecido. Assim, o processo metonímico, para além de ser um recurso estilístico ou uma figura de linguagem — tal como preconiza a tradição aristotélica —, consiste em um elemento de constituição da linguagem. Liga-se, dessa forma, aos aspectos da tessitura textual, garantindo coesão à determinada maneira de elaboração discursiva. Interessa-nos, portanto, compreender a metonímia como operação mental que desemboca num jeito específico de narrar.

Em Lakoff e Johnson (2002)LAKOFF, George; JOHNSON, Mark (2002). Metáforas da vida cotidiana. Tradução de Maria Sofia Zanotto. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Educ., as figuras de linguagem metáfora e metonímia apresentam-se como processos cognitivos. A metonímia, enquanto produção de sentido, deve ser pensada não apenas como elemento substitutivo, uma entidade que substitui outra, mas como entidades inter-relacionadas constituindo significado por intermédio de processos complexos. Assim, os autores dizem ser a metonímia não um mero recurso referencial; ela também possui a função de propiciadora do entendimento. Dessa maneira, é muito mais do que um processo de deslocamento de referência.

Esse é um aspecto importante para a nossa discussão, uma vez que a narrativa analisada se situa em um espaço/tempo marcado por idiossincrasias que instigam um olhar mais cuidadoso. Logo, a compreensão da narrativa depende, em muito, do contexto que a forjou. Esse contexto configura-se como a vida nos seringais da Amazônia (espaço) do segundo ciclo da borracha (tempo). Não há como ler as narrativas sem considerar essa localidade influenciadora da vida e da linguagem que se elabora com base nela. Ainda que o texto seja o centro da reflexão proposta aqui, esse contexto de modo nenhum pode ser desconsiderado. Nesse sentido, a linguagem do conto analisado constitui os sujeitos narrados, molda-os numa existência em pedaços que só são compreensíveis por meio da relação que se estabelece entre eles.

O exercício analítico que se mostra a seguir, por conseguinte, se faz mediante a leitura dos procedimentos estruturantes da narrativa, por meio da compreensão do uso da metonímia como processo de construção do sentido no conto “Maibi”, de Alberto Rangel (2008)RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer.. O intuito da análise é experienciar uma incursão na literatura que considere o texto literário centro de toda a reflexão que se elabora com base nele e em seu entorno, considerando, como dito, o contexto amazônico como elemento influenciador de sua construção.

“Maibi” é a nona narrativa no elenco de contos da obra Inferno verde, de Alberto Rangel (2008)RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer.. É uma narrativa sobre a mulher, porém esta sequer participa do conto como personagem. Não realiza nenhuma ação, não tem voz. É um ser passivo preparado para o sacrifício, ainda que seu nome dê título à história. Inicia-se o conto com o narrador observando a conversa no balcão do armazém de Sabino, seringueiro, e Tenente Marciano, o dono do seringal Soledade. Nessa conversa, desenrolam-se o drama de Sabino, que tem a mulher arrancada de si como pagamento de sua dívida com o patrão, e também o drama mudo de Maibi, que vira moeda de troca, passando de mão em mão até ser assassinada. No conto, encontramos o cenário amazônico na época da produção da obra: o ciclo da borracha. Nele, é mostrada a relação entre os viventes da região e o cenário explorador causado pela intensa retirada do látex e pela exploração do próprio homem.

A narrativa situa-se naquilo que os estudos da literatura de temática amazônica5 5 Neide Gondim (1994), João Carlos de Carvalho (2005) e Ana Pizarro (2012) pensam essas narrativas de forma mais ampla no panorama da expressão amazônica, e a questão é tratada de modo mais pontual nos textos de Lima (2009) e Leandro (2014). convencionaram denominar de narrativas do ciclo da borracha. As narrativas desse ciclo apresentam, pelo menos, cinco aspectos estruturadores dos enredos: a dicotomia explorador/explorado; a escassez e a ausência do ser feminino no seringal; o confronto do seringueiro com a natureza selvagem; a solidão do seringueiro na selva; e a relação inamistosa do seringueiro com os povos originários (Lima, 2009LIMA, Lucilene G. (2009). Ficções do ciclo da borracha: A selva, Beiradão e O amante das amazonas. Manaus: Edua.). Pelo menos quatro desses aspectos se fazem visíveis na trama discursiva do conto “Maibi”. Passaremos à observação de cada um deles.

O primeiro é a relação dicotômica entre explorador e explorado, perceptível logo no início da narrativa, mais precisamente no primeiro parágrafo, na descrição das duas personagens que começam a história: “Figura alentada e bruta, com a bocaça mascarada pela franja da bigodeira ruça” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 121), para referir-se ao “Senhor”, Tenente Marciano, o dono do seringal Soledade. A “outra personagem, chupada, esfanicada de sezões e mau passadio, com uns ralos pelos duros nos cantos dos lábios e no queixo prógnato” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 121), é o “escanzelado” Sabino da Maibi, seringueiro e freguês no seringal Soledade. Dois réprobos, banidos da sociedade “civilizada” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer.), que apesar do papel diferenciado que desempenham estão “presos num calabouço” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer.) — a própria selva amazônica.

O segundo aspecto estruturador é a escassez e a ausência do ser feminino no seringal, tão comum à época (Lima, 2009LIMA, Lucilene G. (2009). Ficções do ciclo da borracha: A selva, Beiradão e O amante das amazonas. Manaus: Edua.). Essa escassez era justificada pelas regiões espacial-geográficas em que os seringais estavam localizados e também pelos interesses que levavam as pessoas para essas regiões — para a lide do látex, muito pertinente ao sexo masculino dada a sua condição mais acentuada para o trabalho braçal; ou ainda pelas condições de vida que o ambiente propiciava aos seus habitantes, influenciando a consolidação e a manutenção de um relacionamento via matrimônio quando, na maioria das vezes, sequer se conseguia manter a própria subsistência. Desse modo, o ser feminino, além de limitado quantitativamente no ambiente amazônico, quando existia, era submisso à vontade tanto do seu esposo como do dono do seringal, tratada como mercadoria ou moeda de troca.

Assim eram mantidas as relações nos seringais, a tal ponto que as dívidas infundadas, ou seja, geradas pela caneta do dono do seringal, ganhavam liquidez, quando possível, pela troca de mulheres, quando houvesse alguma disponível naquele seringal. O ser feminino, submisso e manipulado como moeda de troca, sujeito à vontade do patrão, não tinha saída a não ser a exploração em duplo nível — pelo esposo e pelo patrão.

O confronto do seringueiro com a natureza selvagem é o terceiro aspecto estruturador (Lima, 2009LIMA, Lucilene G. (2009). Ficções do ciclo da borracha: A selva, Beiradão e O amante das amazonas. Manaus: Edua.). No cenário dos ciclos da borracha, os novos habitantes, advindos geralmente do sertão nordestino, eram lançados em meio à natureza desconhecida para desbravar o novo hábitat por intermédio da colheita do látex da seringueira. No conto “Maibi” esse confronto fica bem evidente com a labuta das personagens Sabino e Sérgio diante da extração e das dívidas com o patrão, bem como diante da solidão em meio à selva — quarto aspecto estruturador das narrativas do ciclo da borracha.

O último aspecto é a relação inamistosa do seringueiro com os habitantes natos da região, os indígenas.

As temáticas descritas alimentaram as obras literárias durante todo o século XX. Especialmente, romancistas e contistas recriaram a realidade amazônica utilizando esses temas haja vista suas configurações ficcionais e estilísticas. É o caso dos contemporâneos de Alberto Rangel Ferreira de Castro, com o livro A selva, de 1930, e Álvaro Maia, em seu Beiradão, publicado em 1958. “Maibi” é um exemplo da exploração desses temas na obra Inferno verde.

O nono conto do livro chama a atenção do leitor pelo título. “Maibi” é o nome e a história de uma mulher, provavelmente de origem indígena. Ao referir-se à personagem, o narrador do conto caracteriza-a como “linda cunhã” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 123). Essa descrição relaciona o termo Maibi a traços das línguas indígenas. Em Tibiriçá (1985)TIBIRIÇÁ, Luiz Caldas (1985). Dicionário de topônimos brasileiros de origem Tupi. Santos: Traço., a expressão Cûnha Porã, de origem guarani, significa mulher bonita, e em Chiaradia (2008)CHIARADIA, Clóvis (2008). Dicionário e Palavras Brasileiras de Origem Indígena. São Paulo: Limiar. o termo cunhantã, do tupi-guarani, ou cunhã-antã, significa mulher resistente, menina, garota.

Outro termo utilizado pelo narrador do conto para dizer quem é Maibi é “cabocla”, que aparece quatro vezes na narrativa: “Aquela cabocla” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 123), “tinha saudade da ‘danada’ da cabocla” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 123), “cabocla desaparecera” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 128) e “o corpo acanelado da cabocla adornava” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 130).

Os caboclos não podem ser considerados exclusivamente populações tribais, indígenas ou colonos que vieram para a região amazônica nos dois ciclos da borracha. O termo tem na cultura brasileira uma conotação muito ampla e aponta para a mistura de raças, tão característica do Brasil, pejorativamente, como um signo colonizador a diminuir a consciência de ser6 6 A noção de sujeito ausente na discussão de Santos e Meneses (2018) a respeito de uma sociologia das ausências dialoga com o que Frantz Fanon denominou “não existência” (2003) e “sentimento de inexistência” (1967), numa discussão ontológica sobre a colonialidade do ser. O processo colonizador vivido pelas mulheres na Amazônia dos ciclos da borracha tem em sua essência essa sociologia das ausências. de grande parte da população que habita a Amazônia. Maibi, portanto, é elemento simbólico no texto. Ela representa todas as mulheres que viveram a Amazônia dos ciclos da borracha. Indígenas, negras, brancas, caboclas, todas foram submetidas a condições inumanas de vida ou de morte, mudas perante a tessitura colonizadora de suas narrativas.

O conto foi escrito em 21 páginas, das quais cinco são ocupadas por meras descrições e seis guardam fragmentos descritivos. A história da personagem Maibi só se inicia na sétima página da narrativa. Essa estratégia de construção mostra um Alberto Rangel muito preocupado em explicar o modo de vida dos seringais da Amazônia possivelmente para um leitor que está fora dela e, portanto, não a conhece. O grande investimento feito na descrição da colocação, da vida do seringueiro, da economia da seringa, da chegada e da partida do gaiola enfraquece a estrutura narrativa e subestima o leitor com excesso de didatismo, prática comum nos autores da expressão amazônica da primeira metade do século XX.

O narrador do conto posiciona-se de fora, numa postura paternalista em relação ao leitor e ao universo espaçotemporal no qual se desenrola a história. As personagens são percebidas como vítimas do espaço amazônico, o que dá à narrativa forte cunho naturalista, pois essas personagens não conseguem libertar-se das influências do meio nem encontrar alternativas a não ser sucumbir diante das imposições da floresta.

Allison Leão (2008)LEÃO, Allison (2008). Representações da natureza na ficção amazonense. Tese (Doutorado em Letras/Literatura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ECAP-7K7GS4/1/tese_allison.pdf. Acesso em: 8 maio 2024.
https://repositorio.ufmg.br/bitstream/18...
discute a intenção do autor de “enquadrar a realidade amazônica ao pensamento positivista...” (Leão, 2008LEÃO, Allison (2008). Representações da natureza na ficção amazonense. Tese (Doutorado em Letras/Literatura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ECAP-7K7GS4/1/tese_allison.pdf. Acesso em: 8 maio 2024.
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, p. 9). “Aliado a isso [o desequilibrado verbalismo de Euclides da Cunha de que fala Neide Gondim], ainda havia o determinismo naturalista, que falseava a idealização ou mesmo a realidade, também prodigamente utilizado” (Leão, 2008LEÃO, Allison (2008). Representações da natureza na ficção amazonense. Tese (Doutorado em Letras/Literatura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/ECAP-7K7GS4/1/tese_allison.pdf. Acesso em: 8 maio 2024.
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, p. 23). Essa propensão era comum nas práticas regionalistas da época, especialmente na expressão amazônica, cujo espaço/tempo apresenta desafios constantes ao homem que o habita ou se insere nele como estrangeiro. Todos são réprobos entre as barras de um calabouço. O olhar para a Amazônia, fundamentado no conto de Rangel, acentua a ideia exposta no título do livro: é infernal.

Quanto à linguagem, o conto constrói-se com base no uso de muitos adjetivos, num jeito de dizer hiperbólico e enviesado. A história é apresentada por um narrador que não faz parte da vida do seringal, está ali de passagem e, por isso, luta com a língua para organizar melhor seu jeito de narrar essa situação específica da vivência do seringal. Assim como Sabino e Sérgio, o próprio narrador/autor também é um réprobo, condenado aos entraves de uma linguagem incapaz de traduzir o referente. Preso ao deslumbramento ante a natureza amazônica, ele se vê na impossibilidade de libertar-se do banquete de adjetivos e passar a recursos discursivos mais eficientes. Logo, o resultado é uma visão panorâmica das relações patrão/seringueiro, seringueiro/seringueiro, seringueiro/esposa, homem/Amazônia, que não consegue problematizar essas vivências, apenas apresentá-las.

Essas observações mais estruturais do conto nos ajudam a enxergar melhor a composição formal que nos interessa na narrativa. O autor utiliza a metonímia como recurso de construção do sentido. O ser feminino, como já dito, dá título à narrativa. Maibi é esposa de Sabino, trabalhador do látex no seringal Soledade. Diante da incapacidade de Sabino de saldar a dívida com o patrão, dono do seringal, a solução é entregar a mulher. Sérgio é o seringueiro que consegue tirar saldo e, portanto, fica com a mulher. Após o fechamento do negócio por meio da solução encontrada pelo patrão, Sabino silencia-se. Dias depois, revela-se a razão do silêncio: Sabino maquinava e executava o assassinato de Maibi, sacrificando-a em uma seringueira.

Mas, que negócio fora afinal firmado? O Sabino devia ao patrão sete contos e duzentos, que a tanto montava a adição das parcelas de dívidas de quatro anos atrás, e cedia a mulher a um outro freguês do seringal, o Sérgio, que por sua vez assumia a responsabilidade de saldar essa dívida. O mais comum dos arranjos comerciais, essa transferência de débito, com o assentimento do credor, por saldo de contas (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 121).

O conto é o resultado desse arranjo comercial de que fala o narrador. Um convite a entrar na obra e sentir essa linguagem. É interessante observar na narrativa como o narrador vai aos poucos descrevendo a circunstância em que ocorreu o assassinato de Maibi. Após longas descrições a respeito da vida no Soledade (explicação do arranjo comercial, da importância do saldo como signo de liberdade e da vida da comunidade na sede do seringal — escravidão branca) e da comparação dessa vida com a dos outros ciclos da economia/literatura brasileira, como o do café, o narrador, só na 16ª página da narrativa, começa a contar sobre o assassinato da mulher.

Principiemos por observar as referências feitas a Maibi ao longo da narrativa. Ela é caracterizada inicialmente como “mulher” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 121), “esposa” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 122), “aquela cabocla... linda cunhã” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 123), “os olhos dela, tingidos no sumo do pajurá; o andar miúdo e ligeiro de um maçarico; ah! Os seus cabelos do negror da poupa de mutum fava; o vulto roliço” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 123). A forma como o narrador se refere a Maibi acentua características de sua função na relação com o marido, de sua beleza e de sua agilidade. A imagem que se faz dela com base nessas expressões é uma imagem humana, de mulher comum com toda vitalidade.

No entanto, aos poucos, essa descrição vai ganhando outros contornos, e a personagem passa de humana para “objeto que atrapalha a vida” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 123). É o que podemos perceber com as expressões: “enguiço núbil, tentação” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 123), “atropelo... danada cabocla... carregosa canga” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 124). No regime da indústria seringueira, tudo o que não contribuía para melhorar a extração do látex e, consequentemente, dar lucro era considerado sem valor. A mulher, que, no início da relação com o seringueiro, era considerada como companheira, na lide com o dia a dia da escravidão branca, progressivamente passava a transtornar o andamento do cotidiano extrativo.

É por essa razão que Sabino não consegue carregar a mulher. Os custos do sustento do seringueiro avultam em dívida grande com o patrão. Os custos com o sustento da esposa dobram essa dívida, e o seringueiro, ainda que muito trabalhador, não tem condições de mantê-los. O arranjo comercial mandava, desse modo, transferir o débito. Assim, Sabino entrega Maibi em troca da quitação da dívida, mas a entrega não se faz por inteiro. Sabino é acometido de uma espécie de transe/loucura e planeja o assassinato da mulher.

No afã de desvelar essa cena ao leitor, o narrador luta com a linguagem. Maibi deixa de ser descrita como humana ou enguiço e passa a ser caracterizada como elemento fantástico: “espetáculo imprevisto e singular” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 217); “moldura lustrosa” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 217); “realidade terrível” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 217); “extravagante orquídea” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 217); “espetáculo de flagicídio inaudito” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 218); “símbolo pagão” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 218); “holocausto cruento” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 218). Essas são expressões que o narrador utiliza para falar da apreensão de Zé Magro, o capataz responsável por encontrar Maibi após a descoberta de seu sumiço por Sérgio, que dá conhecimento do caso ao patrão.

Nas expressões, observa-se o esforço do narrador em traduzir a cena do sacrifício da mulher na seringueira. A comparação e a metáfora são os recursos a que recorre primeiramente, bem como a linguagem afetada, que busca a todo custo o melhor modo de dizer a realidade. Outro recurso utilizado são os adjetivos, que, com o léxico cuidadosamente escolhido, cria imagens metafóricas extravagantes que colocam o leitor diante do espetáculo imprevisto.

Esses recursos, no entanto, não são suficientes para a compreensão da paisagem horrenda. O narrador, nesse ponto da narrativa, vale-se do recurso metonímico. A mulher imolada passa a ser dita pelas partes: “cabelos fartos” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 130); “seios túrgidos... ventre arqueado... pernas rijas... carne modelada em argila baça... sangue que rega” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 130-131). A metonímia é a saída encontrada pelo narrador para completar a visão do sacrifício. Ele organiza a cena de acordo com os pedaços do corpo feminino e, assim, consegue dar uma visão mais clara daquilo que até ali só havia sido apreendido enquanto comparação metafórica.

O próprio conto, aliás, é organizado em pedaços. São partes de descrição mescladas a partes de narração, grandes fragmentos ensaísticos de caráter pedagógico mesclados a fragmentos narrativos, que paulatinamente, ao longo das 21 páginas que compõem a narrativa, mostram ao leitor a indústria seringueira e as relações trágicas que se efetuavam nela, num olhar negativo para a região amazônica, limitando-a à economia extrativa e às suas consequências.

Alberto Rangel acrescenta ao conjunto da literatura local exatamente o fato de transladar, para a construção linguística, o nervosismo que se manifesta no indivíduo quando este penetra a fundo à selva, ou seja, ele tece, através da espetacularização verborrágica, a submissão à natureza em seu afã de realidade terrível (Costa, 2013COSTA, Maria José da Silva M. (2013). Trajetória de uma expressão amazônica: o encanto do desencanto em Florentina Esteves. São Paulo: All Print., p. 48).

Adicionaríamos aos recursos apontados por Costa (2013)COSTA, Maria José da Silva M. (2013). Trajetória de uma expressão amazônica: o encanto do desencanto em Florentina Esteves. São Paulo: All Print., na sua análise da construção linguística, a utilização da metonímia como artifício de construção do sentido. No caso do conto “Maibi”, esse recurso fica muito evidente na elaboração discursiva do corpo sacrificado da mulher. Na cadeia de exploração da Amazônia existe alguém em condição inferior à condição do seringueiro: a mulher, que pertence ao seringueiro e ao patrão. É mercadoria e, como tal, passa de mão em mão. Maibi passa de mulher — a coisa que atrapalha — a elemento fantástico. No momento em que o narrador depara com essa visão sobrenatural e com a impossibilidade de dizê-la por inteiro, a saída é a metonimização. A descrição em partes é o que vai constituir o todo.

Após essa descrição por partes do corpo da mulher, o narrador consolida o martírio de Maibi como símbolo: “É que, imolada na árvore, essa mulher representava a terra” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 131). Com essa comparação, o narrador associa a personagem a “terra... martírio do Amazonas... ambição coletiva” (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 131). A narrativa retorna ao seu caráter ensaístico e pedagógico e finaliza como uma espécie de lição de moral, à moda das fábulas. Não é apenas a história de uma mulher assassinada pelo marido. É o relato de uma mulher assassinada pelo marido no interior do sistema extrativo gomífero. Portanto, ganha ares de realidade maior.

O martírio de Maibi, com a sua vida a escoar-se nas tijelinhas do seringueiro, seria ainda assim bem menor que o do Amazonas, oferecendo-se em pasto de uma indústria que o esgota. A vingança do seringueiro, com intenção diversa, esculpira a imagem imponente e flagrante de sua sacrificadora exploração. Havia uma auréola de oblação nesse cadáver, que se diria representar, em miniatura um crime maior, não cometido pelo Amor, em coração desvairado, mas pela Ambição coletiva de milhares d’almas endoidecidas na cobiça universal (Rangel, 2008RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer., p. 131).

Maibi é símbolo da seringueira do Amazonas e, por extensão, da Amazônia. A seringueira protagonizou a história da Amazônia brasileira por muito tempo, no entanto sempre foi objeto de manipulação de outros. Tudo se fez em nome da seringa. Alberto Rangel (2008)RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer. revela por meio de sua narrativa a impossibilidade de dizer o inferno verde de modo pleno, inteiro. Essa apreensão é impossível. A saída, portanto, é o simbólico. Como dito, na cadeia de exploração da Amazônia existe alguém em condição inferior à condição do seringueiro: a mulher, pertencente ao seringueiro e ao patrão. O conto “Maibi” reproduz essa cadeia, uma vez que todas as outras personagens desenvolvem alguma ação no enredo, menos Maibi, a personagem feminina, ainda que ela dê título à história.

Na cadeia de exploração da Amazônia, o que não contribui para o lucro gomífero é transformado em monstro, em louco. Tanto Sabino (que deve) quanto Maibi se tornam monstros, loucos, elementos fantásticos na pena do narrador, que se vê incapaz de reverter o determinismo da trama. A narrativa constrói-se, desse modo, por encaixe de imagens.

Nesse processo uma é miniatura da outra, uma é parte da outra, numa relação metonímica de apreensão de sentido: Maibi–seringueira–Amazônia. As três representam, cada uma em seu contexto, imagens do sujeito do crime, do objeto do crime e do resultado do crime. Sabino é o sujeito da imolação de Maibi, cometendo um crime do coração, cujo resultado é a vida da mulher a escoar-se nas tigelinhas da seringueira — o sangue. O Tenente Marciano, dono do seringal, é o sujeito do crime contra a seringueira, delito da extração, cujo resultado é o derramamento do leite da seringa. Por fim, a Ambição coletiva é o sujeito do crime da colonização, cujo objeto é a Amazônia, e o resultado, a sede de lucro que comandou os rumos da região durante os dois ciclos da borracha. Os três sujeitos — Sabino, Tenente Marciano e a Ambição coletiva — são justificados na narrativa de Alberto Rangel (2008)RANGEL, Alberto (2008). Inferno verde: cenas e cenários do Amazonas. 6. ed. Manaus: Valer. por estarem no universo amazônico. São, assim, impossibilitados de ultrapassar as amarras deterministas.

A forma de que Alberto Rangel (2008)TIBIRIÇÁ, Luiz Caldas (1985). Dicionário de topônimos brasileiros de origem Tupi. Santos: Traço. se vale para traduzir, expressar, dizer esse crime múltiplo e complexo, tal como a própria região amazônica onde ele ocorre, é a construção metonímica do discurso. Impossibilitado de dizer o todo, ele constitui a narrativa em partes de uma história (descrição e narração), em pedaços de personagens (Maibi), em retalhos da situação (Sabino, seringalista, Ambição coletiva). Na junção dessas partes o leitor, aos poucos, desvenda a crueldade da empresa seringueira e preserva o esquecimento desses dramas que nos ajudam a compreender melhor a Amazônia de nossos dias.

Notas

  • 1
    A Amazônia, dita no singular, é uma área cultural, natural, hídrica e mineral formada por oito países (Brasil, Bolívia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela). Todas essas Amazônias compartilham o rio e a selva como referências de suas formas de pensar, sentir e agir.
  • 2
    A primeira edição do livro Inferno verde, de Alberto Rangel, é do ano de 1908. Neste texto as referências são da sexta edição, publicada pela Valer, editora de Manaus, de 2008.
  • 3
    Allison Leão (2011)LEÃO, Allison (2011). Amazonas: natureza e ficção. São Paulo: Annablume. faz importante reflexão a respeito dos estudos contemporâneos acerca da obra Inferno verde no livro Amazonas: natureza e ficção.
  • 4
    Os ciclos da borracha ocorreram na floresta amazônica em dois momentos, 1879–1912 e 1942–1945, e correspondem aos períodos da história brasileira em que a extração e a comercialização de látex para a produção da borracha foram atividades basilares da economia.
  • 5
    Neide Gondim (1994)GONDIM, Neide (1994). A Invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero., João Carlos de Carvalho (2005)CARVALHO, João C. (2005). Amazônia revisitada: de Carvajal a Márcio Souza. Rio Branco: Edufac. e Ana Pizarro (2012)PIZARRO, Ana (2012). Amazônia: as vozes do rio: imaginário e modernização. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora da UFMG. pensam essas narrativas de forma mais ampla no panorama da expressão amazônica, e a questão é tratada de modo mais pontual nos textos de Lima (2009)LIMA, Lucilene G. (2009). Ficções do ciclo da borracha: A selva, Beiradão e O amante das amazonas. Manaus: Edua. e Leandro (2014)LEANDRO, Rafael V. (2014). Os ciclos ficcionais da borracha e a formação de um memorial literário da Amazônia. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: https://www.academia.edu/10038993/Os_ciclos_ficcionais_da_borracha_e_a_forma%C3%A7%C3%A3o_de_um_memorial_liter%C3%A1rio_da_Amaz%C3%B4nia_Tese_de_Doutorado_Rafael_Voigt_Leandro_UnB_2014_. Acesso em: 8 maio 2024.
    https://www.academia.edu/10038993/Os_cic...
    .
  • 6
    A noção de sujeito ausente na discussão de Santos e Meneses (2018)SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (2018). Epistemologias do Sul. 2. ed. Coimbra: Edições Almedina. a respeito de uma sociologia das ausências dialoga com o que Frantz Fanon denominou “não existência” (2003)FANON, Frantz (2003). Los condenados de la tierra. 3. ed. México: Fondo de Cultura Económica. e “sentimento de inexistência” (1967)FANON, Frantz (1967). Black skin, white masks. Nova York: Grove., numa discussão ontológica sobre a colonialidade do ser. O processo colonizador vivido pelas mulheres na Amazônia dos ciclos da borracha tem em sua essência essa sociologia das ausências.

REFERÊNCIAS

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Editores:

Paulo César Thomaz e Rejane Pivetta

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2023
  • Aceito
    24 Maio 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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