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O amor lésbico e o silêncio na poesia de Mar Becker

Lesbian love and silence in Mar Becker’s poetry

Amor lésbico y silencio en la poesía de Mar Becker

Resumo

Este estudo propôs uma investigação de dois poemas que compõem a seção “Lesbos”, da obra A mulher submersa (2020), de Mar Becker. Com base em uma análise do plano de expressão, do plano de conteúdo e de suas intersecções, buscamos observar os efeitos de sentido desses textos a fim de refletir sobre o protagonismo lésbico na literatura brasileira contemporânea de autoria feminina. Para trazer o amor lésbico para o centro dos estudos literários, objetivamos valorizar produções que trabalhem na literatura brasileira o protagonismo da mulher lésbica e uma representação livre de censuras, tabus ou estereótipos. Enfatizamos especialmente a ressignificação do silêncio: ainda que, historicamente, mulheres tenham amado umas às outras em silêncio por coerções sociais, Becker trabalha esse silêncio como aquele que só se faz possível no conforto entre duas iguais que se reconhecem; enquanto um amor que não precisa de estatuto, de jurisdição nem do amparo do discurso dominante para legitimá-lo; que sobrevive mesmo que o tentem empurrar para os rodapés da história; que se faz compreender sem precisar explicá-lo. Conforme a autora (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau.), “depende de tantas palavras o amor de um homem/por uma mulher/mas uma mulher ama a outra em silêncio”.

Palavras-chave:
protagonismo lésbico; literatura brasileira contemporânea; Mar Becker

Abstract

This paper proposes an investigation of two poems that make up the section “Lesbos”, from the work A mulher submersa (2020), by Mar Becker. From an analysis of the expression plane, content plane and their intersections, the effects of meaning of these texts are observed, to reflect on lesbian protagonism in contemporary Brazilian literature of female authorship. To bring the lesbian love to the center of literary studies, this study aimed to value productions that focus on the role of lesbian women in Brazilian literature and a representation free of censorship, taboos or stereotypes. The re-signification of silence, in particular, is emphasized: even though, historically, women have loved each other in silence due to social coercion, Becker works this silence as one that is only possible in the comfort between two equals who recognize each other; as a love that does not need status, jurisdiction or the support of the dominant discourse to legitimize it; that survives even if they try to push it to the footnotes of history; that can be understood without the need for explanations. According to the author (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau., translated by the author), “the love of a man/for a woman depends on so many words/but a woman loves another in silence”.

Keywords:
lesbian protagonism; contemporary Brazilian literature; Mar Becker

Resumen

Este estudio propone una investigación de dos poemas que componen la sección “Lesbos”, de la obra A mulher submersa (2020), de Mar Becker. A partir del análisis del plano de expresión, del plano de contenido y de sus intersecciones, buscamos observar los efectos de sentido de estos textos, para reflexionar sobre el protagonismo lésbico en la literatura brasileña contemporánea de autoría femenina. Para llevar el amor lésbico al centro de los estudios literarios, pretendemos valorar las producciones que trabajan el protagonismo de la mujer lesbiana en la literatura brasileña y una representación libre de censura, tabúes o estereotipos. Destacamos, en particular, la resignificación del silencio: si bien, históricamente, las mujeres se han amado en silencio debido a la coacción social, Becker trabaja este silencio como uno que sólo es posible en la comodidad entre dos iguales que se reconocen; como un amor que no necesita estatus, jurisdicción o el apoyo del discurso dominante para legitimarse; que sobrevive aunque intenten empujarlo a las notas a pie de página de la historia; que se hace entender sin necesidad de explicarlo. Según el autor (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau.), “depende de tantas palabras el amor de un hombre/por una mujer/pero una mujer ama a otra en silencio”.

Palabras clave:
protagonismo lésbico; literatura brasileña contemporánea; Mar Becker

PRELIMINARES

De acordo com Ferreira-Pinto (1999)FERREIRA-PINTO, Cristina (1999). O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana, Pitesburgo, v. 65, n. 187, p. 405-421. https://doi.org/10.5195/reviberoamer.1999.6082
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, na história da literatura latino-americana, a lésbica aparece muitas vezes como um não ser, como algo que não se nomeia. Essa invisibilidade literária é reflexo de uma marginalização social, uma vez que a mulher lésbica rejeita os valores institucionalizados de feminilidade, não se orienta pelo desejo masculino, tampouco pela reprodução biológica e, assim, coloca em risco valores econômicos e ideológicos perpetuados e impostos às mulheres há centenas de anos. Segundo a autora, ainda que apareça em narrativas literárias brasileiras, o desejo lesbiano muitas vezes só é percebido por um leitor que tenha “uma abertura ideológica que permita ler nas entrelinhas” (Ferreira-Pinto, 1999FERREIRA-PINTO, Cristina (1999). O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana, Pitesburgo, v. 65, n. 187, p. 405-421. https://doi.org/10.5195/reviberoamer.1999.6082
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, p. 405).

Importante destacar que empregamos feminilidade não estritamente no sentido de performance estética, mas enquanto conjunto de características físicas, sociais e psíquicas historicamente atribuídas a meninas e mulheres que corroboram a hierarquia de sexo e os padrões de gênero. De acordo com Graham, Rawlings e Rigsby (2021)GRAHAM, Dee L. R.; RAWLINGS, Edna I.; RIGSBY, Roberta K. (2021). Amar para sobreviver: mulheres e síndrome de Estocolmo social. Tradução de Mariana Coimbra. São Paulo: Cassandra., diferentemente de outros grupos oprimidos, a opressão da mulher tem caráter sexual, o que confere à noção de feminilidade, sob a ótica da cultura masculina, conotações também sexuais, de submissão e fragilidade, que podem ser até mesmo uma estratégia de sobrevivência no mundo patriarcal.

Em contrapartida, conforme aponta Rich (2010RICH, Adrienne (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, v. 4, n. 5, p. 17-44. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309. Acesso em: 29 out. 2023.
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, p. 36):

A existência lésbica inclui tanto a ruptura de um tabu quanto a rejeição de um modo compulsório de vida. É também um ataque direto e indireto ao direito masculino de ter acesso às mulheres. Mas é muito mais do que isso, de fato, embora possamos começar a percebê-la como uma forma de exprimir uma recusa ao patriarcado, um ato de resistência.

Esse amor resistente, a paixão entre mulheres, a “escolha das mulheres por outras como suas aliadas, companheiras de vida e de comunidade” (Rich, 2010RICH, Adrienne (2010). Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, v. 4, n. 5, p. 17-44. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309. Acesso em: 29 out. 2023.
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, p. 40) politiza, liberta e é capaz de subverter as relações de poder entre os sexos. Essa subversão, incômoda ao sistema patriarcal estabelecido, pode explicar o apagamento e a marginalização da literatura lésbica denunciados por Ferreira-Pinto (1999)FERREIRA-PINTO, Cristina (1999). O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana, Pitesburgo, v. 65, n. 187, p. 405-421. https://doi.org/10.5195/reviberoamer.1999.6082
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.

Segundo Jeffreys (2018)JEFFREYS, Sheila (2018). The Lesbian Revolution: Lesbian Feminism in the UK 1970 – 1990. Abingdon: Routledge., um dos propósitos da ficção lésbica é encorajar as leitoras a se aceitarem, possibilitar que se sintam bem consigo mesmas, inspirá-las e apresentar modelos de comportamento distintos dos padrões heterossexuais, compulsoriamente transmitidos pelas artes, pelo cinema e pelo fazer literário.

Destacamos, ainda, que a literatura lésbica não pode ser estudada de maneira reducionista, uma vez que há aspectos de autoria e representação que não necessariamente são consonantes. Conforme Polesso (2018POLESSO, Natalia Borges (2018). Geografias lésbicas: literatura e gênero. Revista Criação & Crítica, n. 20, p. 3-19. https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i20p3-19
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, p. 7), a fim de extinguir os efeitos redutores de um silenciamento histórico-social, é necessário enxergar “o lugar da lesbianidade na literatura um lugar múltiplo: teórico, político, crítico, estético e poético”.

A fim de trazer o amor lésbico para o centro dos estudos acadêmicos e para outros espaços de circulação literária, este trabalho objetiva valorizar produções que resistem a essas tentativas de apagamento e que, na contracorrente do discurso dominante, trabalham na literatura brasileira o protagonismo da mulher lésbica sem censuras ou estereótipos, bem como livre de eufemismos. Buscamos reivindicar o direito à representação literária explícita, em que o amor entre duas mulheres não apareça envergonhado nas entrelinhas, mas dito e, como característica intrínseca do fazer literário, trabalhado esteticamente.

Assim, podemos pensar no fazer e no consumo literário como possibilidade de instrução e inclusão social e, ainda, no protagonismo lésbico na literatura enquanto meio para criar condições para a integração dessas mulheres na sociedade, a desconstrução de preconceitos e estigmas, bem como para a valorização do amor entre duas iguais.

Para tanto, este artigo divide-se em duas seções, além desta introdução e das considerações finais que o encerram: a primeira, em que se realiza uma breve análise de dois poemas de Becker (2020)BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau.; e a segunda, em que propomos um diálogo entre a obra estudada e algumas outras de autoria feminina contemporânea brasileira que trabalham a mesma temática.

OS POEMAS

Dois poemas compõem a seção de “Lesbos”, em A mulher submersa, de Mar Becker (2020)BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau.. São poemas de amor. Investigaremos ambos, em uma análise de seus planos de expressão, planos de conteúdo e as intersecções entre eles — os planos e os poemas — que atuam na construção de sentido.

Logo o título escolhido para nomeá-los propõe um dialogismo com a mitologia grega e que remete à etimologia da palavra “lésbica”. Desde o início da seção, portanto, Becker apresenta a proposta de ruptura com o não dito e com os eufemismos. A referência é à Ilha de Lesbos, na Grécia, onde viveu a poetisa Safo, ainda no século VII a.C., cujo discurso poético-amoroso era dirigido a outras mulheres (Silva e Vilela, 2011SILVA, Fabio Mario da; VILELA, Ana Luísa (2011). Homo(lesbo)erotismo e literatura, no Ocidente e em Portugal: Safo e Judith Teixeira. Navegações, v. 4, n. 1, p. 69-76. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/iberoamericana/N%C3%83%C6%92O%20https:/www.scimagojr.com/index.php/navegacoes/article/view/9442. Acesso em: 25 nov. 2022.
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). Conforme os autores, ainda que de sua produção tenham restado apenas fragmentos, dada a censura da sociedade medieval que queimou a maior parte de suas obras, a autora simboliza pioneirismo na representação poética lesboerótica. Tamanha a relevância histórico-cultural de sua obra para a cultura ocidental, que a ilha em que Safos nasceu é a origem da palavra em língua portuguesa que define a mulher que tem atração sexual por outra. É com esse resgate ao clássico que Becker inicia a seção, demonstrando que o amor lésbico registrado na literatura não é exclusivamente contemporâneo, mas milenar. Tampouco são recentes as tentativas de apagamento dessas mulheres, que resistem ao longo dos séculos aos estigmas e ao silenciamento.

No poema que abre a seção, lê-se (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau., p. 85-86):

pelo tanto de água no chão, o rastro indo do banheiro até o

quarto, uma mulher sabe da outra – se lavou ou não

o cabelo

pelo desfiado da costura, percebe que aquela é a calcinha

que ela mais usa

pela semente de maracujá que ficou retida na base das costas

quase entre as nádegas

vê que ela prefere sabonetes desses naturais

ao tocar o seio, reconhece o sutiã que se ajusta

ou se ela costuma andar sem

pelo gosto do sexo na língua, descobre o sangue vindo

nos próximos dias

nada precisa ser dito

tudo se sabe

se adivinha

depende de tantas palavras o amor de um homem

por uma mulher

mas uma mulher ama a outra em silêncio

Ao contrário das tendências literárias eufemizantes apontadas por Ferreira-Pinto (1999)FERREIRA-PINTO, Cristina (1999). O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana, Pitesburgo, v. 65, n. 187, p. 405-421. https://doi.org/10.5195/reviberoamer.1999.6082
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, o texto não exige o decifrar de ambiguidades, um olhar atento ou abertura ideológica. Aqui o amor lésbico se faz presente sem meias palavras ou constrangimentos. A temática do sexo e da intimidade está posta. Além disso, a obra apresenta detalhes do cotidiano que, sem que precisem ser ditos, fazem-se entender na relação entre mulheres: “uma mulher sabe da outra”. O silêncio, tantas vezes representação de um grupo oprimido, faz-se presente com conotação eufórica porque, entre elas, nada precisa ser dito para que se entendam.

Essa quietude do conforto e do entendimento aparece representada pela figura do rastro de água no chão, da calcinha com desfio, da semente de maracujá alocada na base das costas, do seio modelado ou não pelo sutiã, pelo gosto do sexo na língua. As figuras aparecem em gradação até que se confirme o amor romântico trabalhado no poema: o rastro de água poderia ser percebido por mulheres que vivem juntas, não necessariamente enquanto companheiras. O desfiado da calcinha, por sua vez, já começa a sugerir a relação amorosa. A semente do sabonete, na base das costas, “quase entre as nádegas”, revela a proximidade física entre elas. O toque no seio e o gosto do sexo, por fim, confirmam o envolvimento romântico. Os exemplos culminam nos versos da sexta estrofe, cujos versos valorizam o silêncio entre elas: nada precisa ser dito porque tudo se adivinha, se entende, tudo se sabe.

Ainda que, historicamente, mulheres tenham amado umas às outras em silêncio por imposição social, Becker trabalha esse silêncio como aquele que só se faz possível no conforto entre duas iguais que se reconhecem; enquanto um amor que não precisa de estatuto, jurisdição ou do amparo do discurso dominante do Estado e da igreja para legitimá-lo; que sobrevive mesmo que tentem o empurrar para os rodapés da história; que se faz compreender sem precisar explicá-lo.

Conforme a autora expõe nos últimos versos, separados por um ponto final, “depende de tantas palavras o amor de um homem/por uma mulher/mas uma mulher ama a outra em silêncio” (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau., p. 86). O deslocamento desse trecho permite que seja lido quase como um poema à parte. É a síntese do que foi mostrado ao longo das estrofes que o antecederam. Enquanto o amor de um homem por uma mulher depende das palavras, o silêncio faz-se suficiente para o amor entre duas iguais que, justamente por sua semelhança, compreendem-se sem precisar dizer.

Já no segundo poema, por sua vez, lê-se (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau., p. 87):

sinto tua boca

tua língua de mulher subindo pelo meu sacro

vindo pela linha da coluna

às vezes te deténs, dizendo que seria possível ler o futuro aí, nas

três pintas das minhas costas

tu, que não te curvas a ninguém,

curvada agora sobre meu corpo indecoroso. chamando-me

dizendo-me no ouvido que em outros tempos em minhas costas um

adivinho teria previsto a queda de um rei

o fim de um império

Novamente aparece a temática do sexo lésbico, agora sob uma perspectiva mais metafísica. A “língua de mulher” que sobe pelo sagrado da narradora é a mesma língua que diz ser possível ler o futuro nas pintas de suas costas. A língua é de mulher pelo toque e pelo que diz. Ainda que não apareça a temática do silêncio, a personagem lhe diz “no ouvido” e, mais uma vez, não por censura, mas por carinho.

Assim como no poema anterior, a figura das costas faz-se presente. Ainda, apresenta-se a temática da liberdade em uma reconfiguração semântica do aspecto figurativo da mulher que se curva: se, normalmente, uma mulher curvada parece oprimida, no texto, aquela que não se curva a ninguém, está curvada para amar outra mulher.

Na quarta estrofe, ao dizer que, em tempos passados, um adivinho teria previsto em suas costas a queda de um rei, entende-se que hoje o rei já está posto. Essa monarquia finda, derrubada pelo amor entre duas mulheres, parece ser a da heterossexualidade compulsória, do patriarcalismo, do discurso dominante masculino. O verso que encerra a seção, “o fim de um império” (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau., p. 86), reitera essa ruptura. Conforme Ferreira-Pinto (1999FERREIRA-PINTO, Cristina (1999). O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana, Pitesburgo, v. 65, n. 187, p. 405-421. https://doi.org/10.5195/reviberoamer.1999.6082
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, p. 407):

Se a expressão da experiência erótica feminina chega a ser tão problemática, a representação da sexualidade lesbiana o é ainda mais, pois rompe com as relações dominantes de gênero, ao excluir a figura do homem e colocar a mulher em uma posição de sujeito atuante, em vez do papel tradicional de objeto do desejo masculino. Assim, o desejo lesbiano na obra de escritoras brasileiras não só representa uma dimensão importante da sexualidade feminina como também serve para expor e questionar o controle social sobre a sexualidade e o corpo femininos. O lesbianismo abre um espaço para a realização pessoal e sexual da mulher, no qual a identificação com outro ser seu igual torna possível a autointegração do sujeito feminino.

Nos dois textos investigados a mulher é sujeito atuante, não sendo definida pelo desejo masculino. Becker rompe com essa supremacia e dá espaço literário para a autointegração desse sujeito feminino. A expressão da experiencia erótica entre mulheres na literatura derruba reis e finda impérios, talvez por isso seja tão problemática aos olhos do discurso dominante.

Em ambos os poemas, elementos que poderiam ser considerados disfóricos, como o silêncio e a figura da mulher curvada, aparecem elencados positivamente, em uma inversão semântica que se relaciona com a contrariedade do que é considerado socialmente normativo. Longe de ser um tratado sociológico ou simplesmente ativismo, os escritos ora investigados atuam com acuidade estética, fazendo parte de uma literatura que tem força para ressignificar o cânone.

DIÁLOGOS SILENTES

Mar Becker não atua sozinha ao trazer explicitude literária para os relacionamentos lésbicos no cenário contemporâneo brasileiro. Tampouco é a única a trabalhar o silêncio e a força do amor entre duas mulheres. Esses diálogos, porém, acontecem muitas vezes de maneira silente, uma vez que o amor lésbico ainda parece pouco trabalhado pela academia e mesmo pela crítica literária. Cabe refletir, portanto, sobre o dialogismo da obra de Becker com outras de autoras contemporâneas que trabalham a mesma temática — a das relações lésbicas, especialmente no que tange ao corpo e ao silêncio.

Destacamos Angélica Freitas que, em Canções de atormentar (2020FREITAS, Angélica (2020). Canções de atormentar. São Paulo: Companhia das Letras.), alguns dos poemas que compõem a seção “a sônia” que, conforme a autora, foram elaborados com base em um ensaio fotográfico de Claudia Andujar, dialogam com os textos de Becker ora investigados:

nada de errado

esses peitos

esses braços

se alguém quiser saber

barriga, costelas, umbigo

quisemos

tudo (Freitas, 2020FREITAS, Angélica (2020). Canções de atormentar. São Paulo: Companhia das Letras., p. 69)

E:

diante de ti

reclinada assim

nua

um homem saberia

exatamente o que fazer

e por isso mesmo

erraria

eles erraram (Freitas, 2020FREITAS, Angélica (2020). Canções de atormentar. São Paulo: Companhia das Letras., p. 86)

Alguns elementos em comum fazem-se mais relevantes para esta análise dialógica entre os poemas das duas autoras: no primeiro poema de Freitas que destacamos para este estudo, conversa em harmonia com os textos de Becker a explicitude com que é trabalhado o amor lésbico, sem que seja necessária a leitura nas entrelinhas. Os corpos femininos nus e expostos, sem cerceamento.

Já no segundo texto destacado da seção “a sônia”, a figura da mulher que ora aparece curvada, no poema de Becker, apresenta-se reclinada. Em ambos os casos, não em submissão, mas para satisfazer seus desejos e os de sua semelhante.

Também nas duas autorias se faz presente a comparação entre a relação lésbica e a heterossexual — enquanto esta é legitimada pelo discurso dominante e “depende de tantas palavras” (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau., p. 86), aquela se faz compreender em silêncio. Enquanto a relação hétero é composta do homem que sabe exatamente o que fazer e por isso mesmo erra, o amor entre mulheres é assertivo, com “nada de errado” (Freitas, 2020FREITAS, Angélica (2020). Canções de atormentar. São Paulo: Companhia das Letras.).

Além de encontros na poesia, fazem-se possíveis diálogos com obras em prosa. Destacamos a temática do silêncio em Natalia Borges Polesso que, em um trecho de “Marília acorda”, conto que constitui a coletânea Amora (Polesso, 2015POLESSO, Natalia Borges (2015). “Marília acorda”. In: POLESSO, Natalia Borges. Amora. Porto Alegre: Não Editora, p. 132-136., p. 135), lê-se: “Nos olhamos por um longo tempo antes de ir para a cama. Nos olhamos para tentar entender como foi que chegamos ali. Nunca entendemos. Sempre entendemos. Somos muito quietas, sempre fomos do silêncio”. O trecho compõe uma narrativa que aborda o relacionamento de décadas entre a narradora — não nomeada — e Marília. O excerto em muito conversa com o primeiro poema de “Lesbos” (Becker, 2020BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau.), especialmente nos versos “nada precisa ser dito/tudo se sabe/se adivinha”.

Na obra de Polesso (2015)POLESSO, Natalia Borges (2015). “Marília acorda”. In: POLESSO, Natalia Borges. Amora. Porto Alegre: Não Editora, p. 132-136., a conexão longínqua da narradora com sua amada é sempre constituída pelo silêncio e pela quietude. Essa característica não se faz valer pela opressão, mas pela intimidade e pelo entendimento. Assim como no poema de Becker (2020)BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau., em que o “nada precisa ser dito”.

No conto “Beijo na face” (Evaristo, 2014EVARISTO, Conceição (2014). “Beijo na face”. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, p. 55-62.), por sua vez, o silêncio também aparece na relação entre as duas personagens que se relacionam romanticamente. Durante parte da narrativa, essa obra exige a abertura ideológica que Ferreira-Pinto (1999)FERREIRA-PINTO, Cristina (1999). O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana, Pitesburgo, v. 65, n. 187, p. 405-421. https://doi.org/10.5195/reviberoamer.1999.6082
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aponta ser necessária para que o amor lésbico seja revelado. É também por meio dessa menção ao amor silente que o leitor entende, ainda nas entrelinhas, que se trata do relacionamento entre duas mulheres:

No princípio, a aprendizagem lhe custara muito. Acostumada ao amor em que tudo ou quase tudo pode ser gritado, exibido aos quatro ventos, Salinda perdeu o chão. Habituada ao amor que pede e permite testemunhas, inclusive nas horas do desamor, viver silente tamanha emoção era como deglutir a própria boca, repleta de fala, desejosa de contar as glórias amorosas. E por que não gritar, não pichar pelos muros, não expor em outdoor a grandeza do sentimento? Não, não era a ostentação que aquele amor pedia. O amor pedia o direito de amar, somente (Evaristo, 2014EVARISTO, Conceição (2014). “Beijo na face”. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, p. 55-62., p. 56).

No trecho, elaborado com maestria em prosa-poética por Evaristo (2014)EVARISTO, Conceição (2014). “Beijo na face”. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, p. 55-62., contrapõem-se novamente heterossexualidade e homossexualidade. Enquanto a primeira é acostumada ao grito, a segunda vive em silêncio. A passagem opõe os relacionamentos que são institucionalizados pelo Estado, pela igreja, pela família e pela mídia, que constituem o discurso normativo, e aqueles que muitas vezes se realizam nas margens, silenciosos. O leitor sabe que se trata de uma relação homoafetiva porque, caso contrário, não seria necessário pedir o direito de amar.

Conforme trabalhamos brevemente nesta seção, há sentidos muito diferentes para o silêncio no amor entre mulheres e que são trabalhados por autoras contemporâneas. Existe a quietude de conforto e intimidade, em que o amor não depende de palavras, pois duas mulheres se entendem em sua semelhança. Por outro lado, existe o silêncio opressivo que faz com que muitas vezes duas iguais sejam obrigadas a deglutir a própria boca, a amar aos sussurros, discretamente, para que não sejam vítimas de violência.

Há, ainda, o silenciamento desses discursos homoafetivos, seja por meio de eufemismos com que essa literatura é muitas vezes desenvolvida, conforme denuncia Ferreira-Pinto (1999)BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau., seja pelas tentativas de apagamento histórico, como demonstra o caso de Safos, cujas obras foram queimadas e poucos trechos sobreviveram hoje enquanto referência. Mesmo que as ferramentas da contemporaneidade não sejam as mesmas da época medieval, o silêncio cerceador ainda atua sobre esses fazeres literários, como demonstra a escassez de publicações e a carência dessas obras nos espaços acadêmicos e mesmo na crítica literária.

Autoras como Becker, Freitas, Polesso e Evaristo, entre muitas outras que não foram publicadas ou que fogem de nosso conhecimento, colaboram para a construção de um novo cânone literário que, para além da acuidade estética, revolucione a maneira de enxergar o amor entre mulheres, constantemente marginalizado, dentro e fora do fazer literário.

Assim, fazer literatura de temática lésbica sem estigmas ou eufemismos é romper o silêncio secular imposto, tornando-se um ato político. A literatura é também um espaço para a resistência.

Conforme vimos, tal resistir se faz presente nos diferentes efeitos de sentido do silêncio, no diálogo entre as autoras contemporâneas, na confirmação do amor entre mulheres, na negação da heteronormatividade e na denúncia das imposições sociais. Trazer essas reflexões para a literatura e seus estudos é desvelar preconceitos, pô-los na mesa e enfrentá-los.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há ainda um longo caminho a ser percorrido para trazer o amor lésbico para o centro de estudos literários. No entanto, como demonstram Becker e as demais autoras apresentadas neste artigo, trabalhar a temática lésbica sem censura parece ser uma tendência crescente da literatura de autoria feminina contemporânea e que vem ocupando espaços. A publicação dessas obras, bem como sua investigação científica em ambientes acadêmicos, fomenta a legitimação desses escritos, bem como a quebra de estigmas que há séculos cerceiam a sexualidade feminina, especialmente quando esta deixa de fora a hegemonia da masculinidade.

  • Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Código de Financiamento 001.

REFERÊNCIAS

  • BECKER, Mar (2020). A mulher submersa. Bragança Paulista: Urutau.
  • EVARISTO, Conceição (2014). “Beijo na face”. In: EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, p. 55-62.
  • FERREIRA-PINTO, Cristina (1999). O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas. Revista Iberoamericana, Pitesburgo, v. 65, n. 187, p. 405-421. https://doi.org/10.5195/reviberoamer.1999.6082
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  • FREITAS, Angélica (2020). Canções de atormentar. São Paulo: Companhia das Letras.
  • GRAHAM, Dee L. R.; RAWLINGS, Edna I.; RIGSBY, Roberta K. (2021). Amar para sobreviver: mulheres e síndrome de Estocolmo social. Tradução de Mariana Coimbra. São Paulo: Cassandra.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2022
  • Aceito
    27 Out 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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