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Aira como autor de si-próprio?

Aira as author of himself?

Resumo

O ensaio pretende discutir a relação entre a constituição de uma obra e a elaboração de uma figura autoral, tematizando o processo de construção da fatura literária e o esboço da trajetória de formação de um nome de autor, a fim de relativizar a simplicidade da associação direta entre vida e obra. Por meio do comentário de alguns procedimentos encontrados nas narrativas do argentino César Aira, pretende-se pensar na maneira como um escritor inscreve-se autor no campo literário.

Palavras-chave:
autoria; assinatura; César Aira

Abstract

The essay intends to discuss the relationship between the constitution of a work and the development of an authoral figure, discussing the relationship between the process of elaboration of the literary workings, available to be read by inspecting the work, and the outline of a trajectory of formation of an author’s name, what is done in order to relativize the simplicity of a direct association between work and life. Through the commentary of some procedures found in the narratives of Aira, we intend to think about how a writer inscribes him/himself as author in the literary field.

Key words:
authorship; signature; César Aira

Me gustaría escribir como Balzac, sí. Pero, bueno, me sale como Aira.

Em um dos capítulos de O livro agreste, que reúne ensaios produzidos a partir de suas aulas de Literatura Brasileira, Abel B. Baptista está interessado em analisar a figuração da autoria a partir da análise dos capítulos iniciais de São Bernardo, de Graciliano Ramos.

A determinação de Paulo Honório em “pôr o nome na capa” do livro que pretende escrever, valendo-se da divisão do trabalho, tem rentabilidade para a investigação do estatuto da condição moderna da autoria. Que significa colocar o “nome na capa”?, pergunta-se o crítico.

Embora reconheçamos a imensa curva desviante que a citação ao autor brasileiro representa no contexto de um ensaio que pretende comentar o argentino César Aira, acreditamos que a instigante pergunta pode servir de mote para o início de nossa reflexão. Insistindo no pressuposto de que a divisão do trabalho proposta por Paulo Honório para a escrita do livro e o fracasso precoce dessa empreitada torna explícita a impossibilidade de “autor e livro se disporem numa mesma linha de continuidade” (Baptista, 2005BAPTISTA, A. B. (2005). “Excurso a figuração do autor: os dois primeiros capítulos de S. Bernardo”. In: O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira. Campinas: Editora da Unicamp., p. 135), já que a suposta autobiografia de Paulo Honório, os fatos que tem a contar, uma vez contados por outros, fraudariam “a autenticidade da assinatura do próprio livro” (id, ibid.), Abel B. Baptista enfatiza a dissociação entre livro e vida, a desconstrução da ideia de obra como “demonstração demorada e suficiente da autenticidade da assinatura” (id, ibid.) realçando o paradoxo inevitável: “o lugar da assinatura não chega a ter lugar” (id, ibid.).

O comentário adicional de Abel B. Baptista sobre o fato de que a decisão de Paulo Honório de assinar-se com um pseudônimo faz da assinatura um não-lugar ou uma não-assinatura é instigante para pensar algumas estratégias contemporâneas. Acredito ser possível desencavar na cena contemporânea inúmeros exemplos capazes de ratificar uma dissociação entre assinatura e obra, entre estratégias de autofiguração autoral e construção de um “estilo”, um projeto literário. Penso nos coletivos de criação, na apocrifia que ronda a web e seus “trotes de autoria” (Rónai, 2006RONAI, Cora (Org.) (2006). Caiu na rede: os textos falsos da internet que se tornaram clássicos. Rio de Janeiro: Agir.), na estratégia de reapropriação dos clássicos “mortos-vivos” (Jane Austen e Zumbis), e na operação de travestismo ou ventriloquismo, mais comum em textos de André Sant’Anna e Marcelo Mirisola que simulam vozes politicamente incorretas em suas narrativas, em todo um aparato que parece fazer vacilar a estabilidade ratificadora da assinatura (a discussão sobre o copyleft, os creatives commons, por exemplo).

E se pode soar abusivo separar apenas por vírgulas exemplos tão destoantes entre si, talvez seja possível apostar em uma chave teórica comum para pensá-los, investindo nas “ambiguidades da instituição autor” (Baptista, 2005BAPTISTA, A. B. (2005). “Excurso a figuração do autor: os dois primeiros capítulos de S. Bernardo”. In: O livro agreste: ensaio de curso de literatura brasileira. Campinas: Editora da Unicamp., p. 136) para tentar compreender melhor como funciona a “ficção camuflada inerente à assinatura de um livro” (id., p. 139).

Pois se é verdade que a assinatura funciona como uma “suposição de autor” (id., ibid.) e é garantia de uma “instância unificada de enunciação” (id., ibid.), configurando, portanto, uma estabilidade, também é verdade que essa certeza aponta para uma vacilação, pois toda assinatura está calcada numa performance ambígua.

Com base nesses pressupostos, gostaríamos de comentar alguns procedimentos encontrados nas narrativas de César Aira a fim de discutir a relação entre a constituição de uma obra e a elaboração de uma figura autoral, na tentativa de relativizar a simplicidade da associação entre vida e obra.

Assinatura-arquivo ou assinatura-travesti

Como si entonces no hubiera existido y ahora me estuviera inventando

Aira, 2005AIRA, César (2005). Cómo me reí. Rosario: Beatriz Viterbo Editora., p. 38

César Aira é um autor muito singular no panorama das letras argentinas e recentemente tem despertado a atenção da crítica. Em Las vueltas, de César Aira, Sandra Contreras em instigante ensaio sobre a obra desse argentino, natural de Pringles, defende a tese de que Aira se exercita numa volta a um realismo singular, caracterizado pela valorização e proliferação frenética das histórias. Tentando subverter a realidade, capturandolhe os disparates do cotidiano, a literatura de Aira investiu sempre em escamotear um olhar direto sobre o real, traduzindo-o pelo nonsense. Seja na perambulação noturna do protagonista de La villa seguindo catadores de lixo ou na insólita rotina de um frequentador de academias de ginástica em La guerra de los gimnasios.

Uma assinatura de Aira parece inscrever-se na leveza, no descompromisso, no puro desfrute da frivolidade e da provocação. Na sua tática, quase programática, de publicar tudo o que escreve, sem fazer distinção entre grandes ou pequenas editoras, o humor e o cinismo atuam como componentes disparadores da capacidade inventiva exacerbada, apostando na improvisação e no inverossímil.

Se Aira sempre deixou clara sua estratégia de apagar os rastros de escritura - “Considero que minha escritura não seja baseada na memória” - seja pelo “Siga em frente”, imagem cara ao escritor e a seu estilo, seja pelo ritmo veloz que precipita finais inesperados ou das longas e interpoladas digressões que destecem o encadeamento narrativo, também é verdade que podemos ler em muitos títulos a desnaturalização de sua própria “marca”.

Ao invés de considerar a assinatura como uma espécie de arquivo morto, Derrida a entende como um gesto performático que renova a relação entre o autor e a obra. O estatuto ambivalente da assinatura não faz nada mais do que demonstrar a iterabilidade e o diferimento que implicam a fundação de um nome de autor e a constituição de sua obra. Dessa forma, a assinatura é um entrelugar, espaço híbrido, encenação móvel que joga ora com a condição de “consciência estruturante estável”, apontando sempre na direção de uma “personalidade criadora de um estilo próprio” (Derrida, 1984, p. 253), ora com a possibilidade de reinvenção, de travestimento.

Nossa leitura da assinatura-Aira aposta, portanto, na hipótese da instabilidade do próprio gesto signatário, em seu caráter performativo, ao mesmo tempo que o entende indissociável do gesto instaurador de uma marca autoral, da configuração de um estilo, de uma obra: “o texto assinado separa o nome próprio do portador, perturba-lhe a referência, de modo que a marca de presença do autor é, ao mesmo tempo, a força que o torna ausente.” (Baptista, 2003_____ (2003). A formação do nome. Campinas: Editora da Unicamp., p. 147)

No ensaio sobre a poeta Alejandra Pizarnik, no que parece ser uma reclamação contra um procedimento crítico comum, Aira nos dá a chave do que gostaríamos de entender como uma resistência à museificação da assinatura.

Reduzir um poeta a uma espécie de bibelot decorativo nas prateleiras de literatura, fechando o processo poético, resultado muito comum do trabalho de críticos que, apesar das melhores intenções, parecem tender a converter a literatura em objetos. (Aira, 2004_____ (2004) [1998]. Alejandra Pizarnik. Rosario. Beatriz Viterbo Editora, p. 9) (tradução minha)

Se o apelo ao disparate e ao absurdo, que tem marcado os comentários críticos sobre a obra de César Aira, podem ser entendidos como estratégias do autor para driblar a fixidez própria ao funcionamento da assinatura, o próprio Aira parece reconhecer a ineficiência do procedimento, já que mesmo a performance da idiotia pode se congelar em outra forma, dessacralizadora-sacralizante de criação de um mito de autor: “O absurdo não pode durar muito tempo na mesma história: ele cria um mundo, como cria tudo” (Aira, 2003_____ (2003) [1991]. Copi. Rosario: Beatriz Viterbo Editora., p. 24) (tradução minha).

Mas se podemos apostar na ambivalência da assinatura que se instaura paradoxalmente na sua condição de marca estilístico-autoral e ao mesmo tempo abre-se para a errância do nome que se assina, talvez fosse possível investigar um certo “efeito Aira”.

Se aprendemos com Foucault que a autoria exerce a autoridade potencial de um princípio de economia que limita a proliferação dos sentidos, por meio, por exemplo, da imbricação entre obra e autor, poderíamos concluir que a relação que se estabelece entre o nome próprio na capa e o próprio livro prevê a corroboração de um pelo outro, nunca a traição, a fim de honrar a assinatura e evitar o engano dos leitores. Assim, o nome do autor garantiria a unidade e o domínio sobre a obra que por sua vez respalda e configura o nome do autor. O exemplo mais claro dessa relação é a lista de obras assinaladas nas páginas iniciais de muitos livros encabeçada pela inscrição “do mesmo autor”.

Mas o exemplo pode perder sua funcionalidade se pensamos no regime de produção de Aira. Pois será possível garantir essa continuidade quando deparamos com Las curas milagrosas del dr. Aira, Las conversaciones e El tilo? Não seria mais apropriado apostar em estratégias capazes de se desviarem da assinatura-arquivo, na mobilidade de várias assinaturas que se inscrevem sistematicamente no equívoco de uma escrita ambígua? Pois se é verdade que encontramos o disparate na incrível trajetória do Dr. Aira, em Las conversaciones a reflexão quase filosófica sobre a construção da verossimilhança narrativa exige uma outra atenção de leitura.

Tal instabilidade da marca Aira pode ser identificada como uma ruptura do pretenso caráter natural da relação entre o nome próprio de um autor e o texto que escreve (afinal, o que esperar do próximo livro de Aira?). Por outro lado, se consideramos ainda a incidência no contemporâneo das narrativas que exploram a mescla entre autobiografia e ficção, também é possível apostar na dissociação entre o nome próprio e o nome de autor como uma estratégia performática que nega o isomorfomismo do nome: “reintepreto-o e o dirijo, isso apenas com meu ofício de escritor” (Aira, 2005_____ (2002). La liebre. Barcelona: Emece., p. 35).

Por isso acompanhando o ritmo incessante de publicação dos livros que trazem na capa a assinatura César Aira, podemos acompanhar também as assinaturas em movimento.

Sem pretender dividir a extensa obra de Aira em fases, Sandra Contreras, arguta comentadora do autor argentino, chama a atenção para o fato de que La liebre (1991) inaugura outro ciclo na obra do escritor, responsável pela construção de uma imagem autoral que se consolidou em uma assinatura distinta da assinatura de autor estreante. Herói sem atributos, para usar a expressão de Julio Premat, Aira lança-se à temática obsedante para a literatura argentina da oposição entre bárbaros e civilizados. Mas logo muda de rota, ou de assinatura. La liebre compõe uma outra figura de autor que coloca o nome César Aira em posição de “beligerância estratégica”, para usar a expressão de Graciela Speranza, em relação ao campo literário argentino.

É esse o ciclo que chancela uma assinatura até hoje procurada na obra pelos críticos do autor: a que ratifica a fama do escritor prolífico, cultivador da idiotia, do disparatado, daquele que recupera e valoriza o procedimento vanguardista.

E embora não seja possível negar que tais marcas sejam cultivadas com zelo pelo próprio nome de autor, também é fácil identificar personagens, muitos homônimos ao autor, que autoficcionalizam e (dis)simulam a propriedade do nome César Aira e, portanto, autenticam a falsidade que o nome de escritor César Aira performa, pois trata-se de um movimento ambíguo: por um lado a afirmação de um eu autoral, a partir da perspectiva de uma galeria de reflexos distorcidos. Por outro lado, a exclusão dessa presença ... a perda de intensidade semântica do nome. (Premat, 2007PREMAT, Julio (2007). Entre ficción y reflexión: Saer y Piglia. México: El Colegio de México, Centro de Estudios Lingüísticos y Literarios., p. 38) (tradução minha)

O que chamamos de assinatura-travesti tem a ver com essa verdadeira máquina de fabricação de si que parece vir à tona cada vez que o nome César Aira aparece na capa de uma nova publicação. Nosso premissa é que a teatralização da própria biografia, que coloca em jogo o nome próprio, o nome do autor César Aira, provoca a desestabilização da assinatura como instância unificadora entre vida e obra. Assim podemos acompanhar um nome se construindo, um itinerário de assinatura sendo firmado e, ao mesmo tempo, o modo como esse itinerário cria um mito de autor, já que não se pode separar Dr. Aira ou la niña monja Aira da assinatura autoral César Aira, uma vez que o nome de autor se alimenta das personas que atuam nas novelinhas que por sua vez repetem e performam a assinatura Aira. São elas mesmas mecanismos de reafirmação e desestabilização, a um só tempo, da figura de autor. As performances do personagem Aira são uma interface mediadora para a reconfiguração incessante (sempre a mesma e ao mesmo tempo outra) da assinatura autoral.

Talvez o exemplo mais eloquente para ilustrar essa estratégia seja Como me reí. O livro pode ser lido como contrafação da sua assinatura, do seu mito de autor: “Lamento os leitores que vêm me dizer que ‘riram’ com meus livros. Reclamo muito deles, pois estes comentários têm envenenado a minha vida como escritor” (Aira, 2005AIRA, César (2005). Cómo me reí. Rosario: Beatriz Viterbo Editora., p. 7) (tradução minha).

Como levar a sério uma bronca tão grande aplicada aos leitores se é a própria obra, a própria assinatura por trás dela que abertamente cultiva o riso como elemento constitutivo de sua marca autoral? Mas, ao mesmo tempo, como devemos ler essa figura de autor que nega sua responsabilidade atribuindo tão somente à recepção um efeito de leitura equivocado, responsável, portanto, por uma figuração autoral que é repudiada veementemente?

Por que fazer vacilar a certeza, insistindo na contrafação de uma marca, já que é inegável que há livros e episódios a mão cheia que fazem rir e, muitas vezes, como a crítica não deixou passar despercebido, são apenas isso? Por que borrar uma assinatura ratificada pela obra? Aira põe à prova o leitor, expondo-lhe à idiotia, mas também sua própria assinatura, descartada facilmente: “sempre podia tentar novamente” (Aira, 1998_____ (2003). El tilo. Rosário: Beatriz Viterbo Editora., p. 24). Aqui, a assinatura-Aira parece resistir a qualquer oferta de crédito aberto em nome da posteridade: “Levou muitos anos para perceber que os outros nunca vão entender nada. Eles entendem outras coisas” (Aira, 2005, p. 35) (tradução minha).

A decepção pela inscrição à revelia de uma assinatura assume ares melancólicos “Um homem pode manter todas as qualidades” (id., p. 55), mas ao mesmo tempo é como uma autorização: “se a que escolhemos não for satisfatória, buscamos outra” (id., p. 76) (tradução minha).

A teoria literária ao longo do século XX não cansou de reforçar a inocuidade da intenção autoral para a interpretação da obra, no entanto não é raro depararmos com comentários que assinalam a onisciência de Aira em relação à sua produção. “Foi ele o responsável por colocar as coisas de forma a dar força à ideia.” Ou: “Aira projetou cuidadosamente sua estratégia de marketing” (Hopenhayn, 1998HOPENHAYN, Silvia (1998). “Una novela fuera del canon y sin compromisos con la época: casi todo está permitido.”. La Nación Line. 13 de maio.) (tradução minha).

César Aira parece aproveitar-se do tão falado retorno do autor para jogar com o controle da recepção, enganá-la, confundi-la. Não se trata simplesmente, então, de apenas negar a todo custo a autoria como instância doadora de sentido, mas trata-se de apoiar-se nessa força para fazer explodir o sentido. Assim, a estratégia-Aira de construção de sua assinatura autoral também é uma burla ao autor celebridade, ao retorno autoral como figura espetacular, contrariando, portanto, a febre do fetichismo referencial.

Analisando o gesto biofilosófico audacioso de Nietzsche ao escrever Ecce homo, Derrida comenta que o filósofo alemão falsifica a moeda de seu crédito uma vez que o eu (vida e obra) que se conta não pode assegurar o que se tornará, já que a dívida só poderá ser quitada pelas inúmeras interpretações da obra assinada. A conclusão da leitura derridiana é que toda assinatura é apócrifa já que corre sempre o risco de ser fraudada pelos leitores, pelos comentadores da obra, responsáveis por performarem o nome do autor, escrevendo-lhes outras assinaturas: “O autor é ao mesmo tempo a fonte do texto e seu produto, é uma origem paradoxal definida a posteriori” (Premat, 2007PREMAT, Julio (2007). Entre ficción y reflexión: Saer y Piglia. México: El Colegio de México, Centro de Estudios Lingüísticos y Literarios., p. 26) (tradução minha).

Mas Aira atua em todos os interstícios comentando em sua ficção seu próprio estilo, negando-o, caricaturando-se por meio de inúmeras paródias de suas próprias assinaturas. É como se pela própria obra se tornasse possível mapear a assinatura desenhada a partir do nome César Aira pelos leitores, pelos críticos, a fim de parasitar a figuração de si. Não se trata de manter domínio absoluto sobre os efeitos provocados pela própria obra para julgá-los adequados ou não a uma suposta intenção de origem, mas de apropriar-se deles para comentá-los, transformá-los em material da própria ficção, do próximo livro que trará mais uma assinatura César Aira na capa. Essa estratégia leva ao paroxismo a mobilidade do itinerário de construção de sua assinatura de autor, visando driblar a museificação da assinatura arquivo. Nesse sentido, a assinatura-Aira reinventa-se por meio de marcas contraditórias e dispersas, refazendo-se a cada novo livro. E o crédito aberto aos leitores é controlado ferozmente: eu me construo como obra, mas obra enciclopédica, múltipla, hiperlinkada, impossível de ser consumida por inteiro, só tornando possível a assinatura como simulacro.

O nome na capa que aparece em cada nova publicação é uma espécie de recall das marcas de autoria que recebe criticamente. Lendo a fortuna crítica de Aira, que só faz crescer ultimamente, é possível perceber uma confirmação de uma mitomania autoral construída laboriosamente ao longo da obra. Basta ver como sua assinatura comentada pelos críticos é praticamente a mesma assinalada ficcionalmente em suas obras ou reforçada pelo autor César Aira em entrevistas. O conceito de “literatura mala”, o estilo “hacia adelante”, a idiotia pessoal e estilística, recorrentes na ficção de Aira ou comentados abertamente em entrevistas concedidas pelo autor, transformam-se em conceitos analíticos, facilmente encontráveis na fortuna crítica do autor.

Sandra Contreras (2002CONTRERAS, Sandra (2002). Las vueltas de César Aira. Rosario: Beatriz Viterbo Editora.) chama a atenção para o fato de que os romances publicados na primeira metade da década de 1990 são considerados bons e recebem elogios, mas ao anunciarem uma nova assinatura descambando para o humor e o disparatado, a atribuição de valor reverte-se e a crítica vacila na aposta feita à assinatura do escritor: intensifica o efeito da fecundidade exacerbada que o trabalho de Aira tende a produzir. Esta abundância desenvolveu a admiração incondicional tanto como uma visão crítica menos complacente. (Kohan, 1992KOHAN, Martín (1992). “Repetición y diferencia”. Suplemento el cronista cultural.)

Trata-se de driblar a inscrição e a estabilidade de uma marca autoral pela derrisão da própria marca estilística: “Como muitos, fiz da necessidade uma virtude, e dessa falta de estilo, meu estilo. Como o tempo, o conceito de estilo é um continuo que cobre tudo, mesmo as próprias negações. Desta forma, tornei-me um escritor conhecido e celebrado” (Aira, 2006_____ (2006) [2001]. Cumpleaños. Barcelona: Del Bolsillo., p. 32) (tradução minha).

O autoengendramento contínuo do nome de autor que incorpora como uma máquina devoradora a própria crítica trabalhando a contrapelo da própria assinatura que se firma parece favorecer a apocrifia. Afinal, o que esperar de cada novo livro de César Aira, muitas vezes lançamentos múltiplos por editoras diversas?

O regime de construção de assinatura de Aira funciona para sabotar a noção de obra ao menos no sentido de um conjunto uniforme que estabelece um continuum com seu autor, já que o que aparece como marcas fortes de um estilo aireano é desapropriado em nome desse mesmo estilo, desautorizando, portanto, a relação de autoridade intrínseca que se estabelece entre o autor e a obra e o reconhecimento do seu lugar como marca da autenticidade.

A cada nova assinatura menos repetição e mais diferença, uma contraassinatura que se inscreve como apropriação retrospectiva. É claro que o elogio dessa ambivalência, pois não se trata de uma escolha entre a idiotia e a elegância ou da “má literatura” em detrimento da “boa literatura”, é apenas mais uma faceta da própria assinatura, máquina insaciável a que nenhum movimento escapa. No entanto, o gesto de Aira ao “pôr o nome na capa” parece querer burlar essa faceta e apostar no travestimento de seu nome: “A escritura é fluida e nunca se fixa (...) salvo como simulação” (id, p. 47) (tradução minha).

A assinatura como simulacro se caracteriza por uma obstinada contrafação do nome do autor (por uma contínua desapropiação de si), que permite que a instância de autoridade/autorização do texto, o nome César Aira que aparece em muitas de suas histórias, se constitua não a partir de uma propriedade, de uma unidade de sentido fundacional, mas a partir do simulacro, do efeito de si, da desarticulação do autobiográfico, ou seja, como impropriedade. Assinatura ao mesmo tempo como lugar vazio que acolhe a pletora de todos os estilos, todos os nomes (Las curas del dr. Aira, El mago, Como me hice monja).

Para retomar o mote analítico de Contreras, a partir dos anos 00, justamente no momento em que se interrompe a leitura da crítica argentina, Aira parece dar outra volta à sua produção. Se é verdade que algo desse “outro” Aira já estava previsto em suas outras voltas também é possível apostar que a construção de um estilo ancorado na construção de uma figura de autor, o investimento no caráter autoficcional tornam-se dominantes. Suas ficções de autor ou seus avatares ficcionais não jogam apenas com o biográfico. Essa volta caracteriza-se como o ciclo de produções que investe na representação-construção de si como nome de autor, pensando a formação de uma identidade autoral ancorada a uma performance autobiográfica.

Se a operação de “pôr o nome na capa” em Aira tem a ver com experimentar o paradoxo de um nome de autor que é, simultaneamente, construído e desautorizado pelas obras, pelas “novelitas” (nome próprio que é desapropriado), a relação entrecruzada entre assinatura e autobiografia é mais um reforço dessa operação. Pois o referente biográfico é usado de forma paradoxal já que se desvia do próprio biográfico personalizante para criar uma biografia da obra, uma assinatura de autor que, em mais uma volta, arrisca-se à contrafação fazendo vacilar a figura autoral construída pelas publicações anteriores, o juízo crítico sobre essa produção.

O procedimento autobiográfico reforça os efeitos paradoxais da assinatura não apenas porque problematiza a relação vida e obra “uma coisa sou eu e meus escritos são outra”, mas porque, simultaneamente, evoca sistematicamente uma espécie de “memória” de seu mito de autor construída sobre “esquecimentos”, “só conseguiu produzir um branco, um buraco” (Aira, 2006_____ (2006) [2001]. Cumpleaños. Barcelona: Del Bolsillo., p. 12-3), em vários sentidos: não podemos ler todos os livros (afinal, são mais de 50 os títulos já publicados!), não podemos confiar em uma só assinatura, já que todos os estilos são chancelados, conto, não conto minha vida.

A encenação reiterada de personagens, identificados pelo nome próprio Aira, desequilibra a estabilidade da assinatura. A autoficção joga com a multiplicidade das identidades autorais, os mitos do autor, e está calcada ao mesmo tempo em uma referencialidade pragmática, exterior ao texto. Assim, a estratégia básica da autoficção é o equilíbrio precário de um hibridismo entre o ficcional e o autorreferencial: “Não é um exercício de identificação mimética ou narcisistas (para Aira, por outro lado, é completamente desconcertante), mas um exercício simultâneo de identificação e distância” (Link, 2005LINK, Daniel (2005). Cuadernos hispanoamericanos. Disponível em: <Disponível em: http://www.linkillo.blogspot.com >. Acesso em: 02 de maio de 2010.
http://www.linkillo.blogspot.com...
).

E se podemos encontrar também no uso não-biográfico do biográfico uma estratégia semelhante à da composição do estilo “Já que dei um exemplo não exemplar, posso me permitir uma digressão que não seja digressiva”(Aira, 1997_____ (1997). La serpiente. Rosario: Beatriz Viterbo Editora., p. 9), a autoficção não só lida ambiguamente com as escassas informações de que dispomos da figura pública do escritor, mas principalmente com a denegação autobiográfica espalhada pela própria obra. Por isso não é raro sermos confrontados com informações desencontradas sobre o personagem Aira que provocam verdadeiros “curto-circuitos textuais”. Afinal, qual o verdadeiro Aira? O de Cómo me reí - “Tive uma infância feliz, com irmãos e irmãs (...) não conheci meu pai, que morreu poucos meses depois do meu nascimento” (Aira, 2005, p. 64) ou o filho único, de infância solitária e convivência com a figura enigmático-idiotizada do pai que lemos em El tilo? - “Meu pai estava em uma posição instável: uma família em ascensão social, com um filho único estudando e bem vestido e uma esposa, filha de imigrantes europeus (...) mas era negro” (Aira, 2003, p. 28) (tradução minha). Como reconstruir um retrato desse Aira que teima em desdizer-se? “Deixei Pringles (nunca mais voltei)” (Aira, 2005, p. 91), mas em Cumpleaños: “Aqui em Pringles faz um frio que espanta” (Aira, 2006, p. 37) (tradução minha).

As evocações às marcas pessoais, biográficas parecem surtir efeito contrário e tornam-se imprestáveis para preencher os buracos de um “Eu entediado”, “invasão constante de um ’autor’que quebra o enunciado, que muda a orientação das afirmações ou da narração” (Premat, 2007PREMAT, Julio (2007). Entre ficción y reflexión: Saer y Piglia. México: El Colegio de México, Centro de Estudios Lingüísticos y Literarios., p. 40) (tradução minha).

O investimento na assinatura-travesti mina a intenção autoral, inscreve uma autobiografia não-autobiográfica, desarticula a noção de obra, aproveitando-se da própria ambiguidade do estatuto da ficção, afinal o nome que aparece na capa autentica a autoria (seus direitos e responsabilidade pelo escrito) e ao mesmo tempo abre-se à apocrifia: “esta é minha opinião, e a do doutor, pois como diria Flaubert, o doutor Aira sou eu”. (Aira, 1998_____ (1998). Las curas milagrosas del doctor Aira. Buenos Aires: Ediciones Simurg., p. 11) (tradução minha).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2011

Histórico

  • Recebido
    Maio 2011
  • Aceito
    Jul 2011
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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