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O que critica a ecocrítica?: o humano, o não-humano e o sujeito ambiental

What does ecocriticism criticize?: the human, the non-human, and the environmental subject

¿Qué critica la ecocrítica?: lol humano, lo no-humano y el sujeto ambiental

Resumo

Despertando um crescente interesse no campo dos estudos literários, sobretudo na última década, a ecocrítica se insere em um complexo campo de debates filosóficos, psicanalíticos e antropológicos. Tendo-se isso em mente, o presente estudo tem por objetivo evidenciar os pressupostos teóricos da ecocrítica, com destaque para o tema do sujeito e da figura humana na Modernidade. Nessa perspectiva, inicialmente, procura-se demonstrar como a filosofia da metafísica moderna atuou na produção do rosto humano, por meio de um processo de alterização da natureza, visto que deveria ser considerada como objeto passível de dominação. Por isso mesmo, a ecocrítica estabelece um contraponto ao modo como diferentes discursividades teriam atuado na conformação do rosto humano, o que envolve desde as ciências humanas até a própria literatura. Para desempenhar essa tarefa, os estudos ecocríticos têm mobilizado um instrumental conceitual que está em diálogo, com aproximações e distanciamentos, com os postulados desenvolvidos pela crítica do sujeito no século XX. Destarte, este artigo parte da ideia de que tais estudos, em conjunto com a própria produção ficcional, têm procurado pensar em possibilidades alternativas de subjetivação. A perspectiva de um sujeito ambiental, portanto, parte do questionamento dos abismos ontológicos entre o humano e o não-humano, para conceber uma integração entre animal, vegetal e mineral.

Palavras-chave:
sujeito; humano; não-humano; agenciamento

Abstract

Ecocriticism is part of a complex field of philosophical, psychoanalytic, and anthropological debates, arousing a growing interest in the field of literary studies, especially in the last decade. Bearing this in mind, the present study aim to highlight the theoretical assumptions of ecocriticism, with emphasis on the theme of the subject and the human figure in modern times. From this perspective, we initially sought to demonstrate how the philosophy of modern metaphysics has contributed to the production of the human face, through a process of otherization of nature, which should be considered as an object subject to domination. For this reason, ecocriticism establishes a counterpoint to the way in which different discursivities would have acted in the shaping of the human face, which involves everything from the human sciences to literature itself. To carry out this response, ecocritical studies have mobilized a conceptual instrument that dialogue with approximations and distances, the postulates developed by the critique of the subject in the 20th century. Thus, this article starts from the idea that such studies, together with fictional production itself, have sought to think about alternative possibilities of subjectivation. The perspective of an environmental subject, therefore, starts from questioning the ontological abysses between the human and the non-human, to conceive an integration among the animal, vegetable, and mineral realms.

Keywords:
subject; human; non-human; agency

Resumen

Despertando un interés creciente en el campo de los estudios literarios, especialmente en la última década, la ecocrítica forma parte de un complejo campo de debates filosóficos, psicoanalíticos y antropológicos. Teniendo esto en cuenta, el presente estudio tiene como objetivo resaltar los presupuestos teóricos de la ecocrítica, con énfasis en el tema del sujeto y de la figura humana en la Modernidad. Desde esta perspectiva, inicialmente se busca demostrar cómo la filosofía de la metafísica moderna actuó en la producción del rostro humano, a través de un proceso de alterización de la naturaleza, que debería ser considerada como un objeto pasible de dominación. Por ello, la ecocrítica establece un contrapunto al modo en que diferentes discursividades habrían actuado en la conformación del rostro humano, lo que involucra desde las ciencias humanas hasta la propia literatura. Para llevar a cabo esta respuesta, los estudios ecocríticos han movilizado un instrumento conceptual que dialoga, con aproximaciones y distanciamientos, con los postulados desarrollados por la crítica del sujeto en el siglo XX. Así, este artículo parte de la idea de que dichos estudios, junto con la propia producción ficcional, han buscado pensar en posibilidades alternativas de subjetivación. La perspectiva de un sujeto ambiental, por tanto, parte del cuestionamiento de los abismos ontológicos entre lo humano y lo no-humano, para concebir una integración entre animal, vegetal y mineral.

Palabras-clave:
sujeto; humano; no-humano; agenciamiento

O HUMANO COMO PROBLEMA

Na ampla gama de debates possibilitados pela ecocrítica, ao investigar as relações entre a literatura e a natureza, a constituição das imagens do humano e do sujeito na Modernidade desponta como um tema basilar. Como ponto de partida, é significativo evocar as considerações de Anatol Rosenfeld (1974)ROSENFELD, Anatol (1974). Literatura e personagem. In: ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva. p. 9-51. no conhecido volume A personagem de ficção. No ensaio intitulado “Literatura e personagem”, esse crítico teatral e literário define o personagem enquanto o elemento que possibilita o desenvolvimento da ação, tornando-se, por isso, o motor da narrativa. Para ele, essa potência do personagem estaria indissociavelmente ligada a seu traço humano:

A narração — mesmo a não-fictícia — , para não se tornar em mera descrição ou em relato, exige, portanto, que não haja ausências demasiado prolongadas do elemento humano (este, naturalmente, pode ser substituído por outros seres, quando antropomorfizados) porque o homem é o único ente que não se situa somente “no” tempo, mas que “é” essencialmente tempo
(Rosenfeld, 1974ROSENFELD, Anatol (1974). Literatura e personagem. In: ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva. p. 9-51., p. 28).

Em nota, o autor parece se mostrar atento aos possíveis contra-argumentos. Ele, então, sustenta sua posição a partir da ideia de que há na literatura “contos sobre baratas”, mas isso não excluiria o seu caráter humano. Afinal, em tais casos trataria sempre de uma “baratinha”, qualificativo no diminutivo que as aproximaria do humano. Por esse caminho, Rosenfeld (1974ROSENFELD, Anatol (1974). Literatura e personagem. In: ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva. p. 9-51., p. 28) defende que “o mais terrível na Metamorfose de Kafka é a lenta ‘desumanização’ do inseto. As fábulas e os desenhos cinematográficos baseiam-se nesta humanização. O homem, afinal, só pelo homem se interessa e só com ele pode identificar-se realmente”. Repito: o homem só se interessa pelo homem e só com ele pode se identificar. Impossível não notar a força dessa afirmação, segundo a qual o humano enxerga apenas a si próprio e, portanto, se isola da natureza. Ora, nessas reflexões não seria difícil identificar um pensamento de base humanista que pode remontar, até mesmo, à teoria aristotélica da ação como centro da narrativa ficcional. Nesse ponto, torna-se possível sublinhar a pergunta título deste ensaio: o que critica a ecocrítica? A que pressupostos teórico-conceituais a ecocrítica responde e com quais ela dialoga? A afirmação taxativa de Rosenfeld demonstra a validade de evidenciar o campo de debates em que a ecocrítica está inserida, ao levar em consideração o modo como a literatura tensiona as fronteiras entre o humano, o animal, o vegetal e o mineral.

É com esse objetivo que o presente trabalho procura demonstrar como a ecocrítica responde a todo um sistema de pensamento humanista que, envolvendo produções como as da filosofia, das ciências humanas e mesmo da literatura, atuou na produção do rosto humano e do sujeito na Modernidade. Para tal, em um primeiro momento são abordadas as colocações filosóficas de Heidegger (2002)HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138., Foucault e Peter Sloterdijk (2016)SLOTERDIJK, Peter (2016). Esferas I: bolhas. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade., os quais, problematizando o contexto da Modernidade, lançam um olhar sobre o humano enquanto categoria construída historicamente. Em seguida, procurou-se argumentar que a ecocrítica desenvolve um íntimo diálogo com a perspectiva da crítica do sujeito que ganhou força no século XX, empreendendo o projeto de um desmanche do homem. Para tanto, são confrontados textos filosóficos, psicanalíticos e da literatura brasileira, uma vez que as duas esferas não se constituem como conhecimentos isolados, o que seria contrário à própria noção de ambiente tão cara à ecocrítica. Posto isto, e, levando-se em consideração que a literatura atuou conjuntamente a outras instituições na conformação do humano, este texto procurará evidenciar um dos problemas-base da ecocrítica: quais são as possibilidades éticas da literatura ao atuar na produção de sujeitos de conhecimento que se constituam a partir da integração com o ambiente que envolve o animal, vegetal e o mineral?

A PRODUÇÃO DO HUMANO NA MODERNIDADE

Na esteira de uma oposição entre natureza e civilização, há uma longa tradição filosófica que, já a partir do século XVII, se dedicou a pensar o estatuto ontológico do humano. Passando por nomes como o de Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx, Georg Lukács e Claude Lévi-Strauss, entre vários outros, é de se esperar que essas abordagens tenham adquirido diferentes matizes e chegado a conclusões diversas e, até mesmo, contraditórias. Não obstante, todas essas perspectivas partem de um problema comum na discussão sobre a entrada do ser humano na cultura, que distingue o traço social humano de seu estado selvagem, ou o estado de natureza. Sob essa perspectiva, mais do que a delimitação histórica desse estado de cultura, pode-se afirmar que os desdobramentos dessa filosofia antropológica foram decisivos para a produção do rosto humano na Modernidade.

Como se sabe, a própria possibilidade das crises do homem, tantas vezes repetidas no século XX, teve como base a proposição de que o homem e o sujeito a ele correlato são categorias históricas, compreendidas como invenções modernas. Dessa forma, se a morte de Deus e do homem já eram atestadas por Nietzsche, foi com Heidegger (2002)HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138. que o projeto de historicização da figura humana ganhou forma, em seu conhecido ensaio “O tempo da imagem do mundo”. O grande mérito do filósofo alemão nesse trabalho consistiu em conceber a semântica do homem e do sujeito na filosofia da metafísica a partir de Descartes em contraposição ao modo como essas categorias eram concebidas no mundo grego. Acontece que na Antiguidade vigoraria a noção de ὑποκείμενον (Hypokeimenon), que posteriormente teria sido traduzida para o latim como subjectum. Esta não teria qualquer ligação direta ou exclusiva com o homem, uma vez que sinaliza o substrato segundo o qual tudo aquilo que for predicado poderia ser caracterizado como “sujeito”. Como é possível notar, não haveria aí qualquer designação do Hypokeimenon como agente do pensamento, razão por que o elemento humano, assim como qualquer outro passível de predicação, não se separa do mundo. Teria sido apenas na Modernidade, a partir da filosofia cartesiana, que nasceria o Sujeito, com a conjunção entre o homem, o sujeito e o agente do pensamento. Ou seja, agora o sujeito era designado enquanto origem ou como fonte de seus conhecimentos e de suas representações, o que se diferenciaria da Antiguidade, em que o homem estaria inscrito na natureza, de forma que seria apenas ocasião do pensamento que emanaria da esfera divina. Assim, a possibilidade moderna de o homem se afirmar como origem do conhecimento se deve à hipostasiação do Sujeito, dotando-o de estatuto ontológico diferenciado.

Mais do que a coincidência entre o humano e o Sujeito, marcada pela centralidade do subjetivismo, o argumento histórico heideggeriano sinaliza, também, o processo de separação entre o homem e o mundo: “Pode-se ver a essência da modernidade em o homem se libertar dos vínculos medievais, na medida em que se liberta para si mesmo” (Heidegger, 2002HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138., p. 110). Note-se que, nas palavras de Heidegger, não se trata apenas de se libertar de algo a que se encontrava preso, mas de se libertar para si mesmo, colocando-se em cena e como cena. E não são poucas as consequências disso. Esse colocar-se em cena é operado exatamente pela possibilidade de o homem assumir o lugar daquele que é capaz de criar representações em relação ao mundo representado: “Que o mundo se torne imagem e que o homem, dentro do ente, se torne subjectum, é um e o mesmo processo” (Heidegger, 2002HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138., p. 115). É desse modo que se constitui a oposição, tão conhecida da filosofia moderna, entre o sujeito de conhecimento e o objeto-mundo cognoscível. Se o mundo passa a ocupar esse lugar passivo, nada mais natural que o agente-homem possa agir sobre ele e conquistá-lo:

Quanto mais abrangente e inexoravelmente o mundo estiver à disposição como conquistado, quanto mais objectivamente aparecer o objecto, tanto mais subjectivamente, isto é, tanto mais manifestamente se erguerá o subjectum, tanto mais irresistivelmente a consideração do mundo e a doutrina do mundo se transformará numa doutrina acerca do homem, em antropologia. Não é de admirar que só onde o mundo se torna imagem surja o humanismo
(Heidegger, 2002HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138., p. 116).

Logo, o advento da Modernidade ocorre simultaneamente à conjunção entre o homem, o sujeito e o agente do pensamento, que tem como consequência a possibilidade (e, por que não, a missão) de conquistar o mundo para si. Dessas palavras de Heidegger (2002)HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138., hoje seria possível sublinhar o estabelecimento de uma identidade humana como o mesmo de si, em que tudo aquilo que for visto como alteridade está sujeito a ser dominado. A lógica exploratória do colonizador, a conversão da natureza para o vocabulário de recurso natural: quantos desdobramentos não terão nascido disso? Se visto sob uma perspectiva contemporânea, que conta com os significativos avanços dos debates sobre as subjetividades femininas nas últimas décadas, não parece mero descuido o emprego do vocábulo “homem” como equivalente a “humano”. Conforme argumenta Derrida (1991)DERRIDA, Jacques (1991). “Eating Well,” or the Calculation of the Subject: An Interview with Jacques Derrida. In: DERRIDA, Jacques. Who comes after the subject? Nova York; Londres: Routledge. p. 96-119., em entrevista concedida a JeanLuc Nancy, o esquema do sujeito moderno privilegiaria o elemento masculino, sendo que há uma produção de zonas de exclusão que alteriza simultaneamente o feminino e a natureza:

Autoridade e autonomia (pois mesmo que a autonomia se submeta à lei, esse assujeitamento é liberdade) são, através desse esquema, atribuídos ao homem (homo e vir) antes que à mulher, e antes à mulher do que ao animal. E, obviamente, ao adulto antes que à criança. A força viril do adulto macho, o pai, marido, ou irmão [...] pertence ao esquema que domina o conceito de sujeito. O sujeito não pretende simplesmente dominar e possuir a natureza ativamente. Em nossas culturas, ele aceita o sacrifício e come a carne
(Derrida, 1991DERRIDA, Jacques (1991). “Eating Well,” or the Calculation of the Subject: An Interview with Jacques Derrida. In: DERRIDA, Jacques. Who comes after the subject? Nova York; Londres: Routledge. p. 96-119., p. 114, tradução livre).

Nos anos 1960, o projeto arqueológico de Foucault operou um desdobramento do olhar histórico heideggeriano, sustentando a tese de que não haveria uma natureza humana em si mesma, mas a produção do homem na Modernidade a partir de reconfigurações epistemológicas e de pressões institucionais que permitiriam o delineamento de seus traços. Analisando o humano como uma invenção moderna, seu objetivo não é mostrar quem ele é, mas aquilo que o constitui. Ao estabelecer uma divisão de diferentes epistémê, designadas como a Era da Semelhança, Era da Representação e Era da História, o filósofo demonstra como as concepções do humano variam historicamente, sendo que nos momentos anteriores à Modernidade este estaria integrado à natureza. Em As palavras e as coisas, ele descreve como na Era da Semelhança “vê-se crescer limos nos dorsos das conchas, plantas nos galhos dos cervos, espécies de ervas no rosto dos homens; e o estranho zoófito justapõe, misturando-as, as propriedades que o tornam semelhante tanto à planta quanto ao animal” (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel (1999). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes., p. 24). Nesse trecho, o rosto do homem se inscreve no mesmo espaço dos signos da natureza, sem de destacar dela. Apresentando ressonâncias com os argumentos heideggerianos, teria sido na Modernidade, em decorrência de um demorado processo eivado de nuances, que seu rosto se destacou e assumiu contornos ontológicos singularizados.

Nessa arqueologia, o livro História da loucura na idade clássica, abordando o tema que lhe dá título, apresenta argumentos significativos para se enxergar a cisão entre o humano e a natureza. Descrevendo a passagem do mundo antigo para o Classicismo, Foucault (1978)FOUCAULT, Michel (1978). História da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva. aponta as transformações na relação entre o humano, o louco e o animal:

O animal no homem não funciona mais como um indício do além; ele se tornou sua loucura, que não mantém relação alguma a não ser consigo mesma: sua loucura em estado natural. A animalidade que assola a loucura despoja o homem do que nele pode haver de humano; mas não para entregá-lo a outros poderes, apenas para estabelecê-lo no grau zero de sua própria natureza. A loucura, em suas formas últimas, é, para o Classicismo, o homem em relacionamento imediato com sua animalidade, sem outra referência qualquer, sem nenhum recurso
(Foucault, 1978FOUCAULT, Michel (1978). História da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva., p. 168).

De imediato, esse trecho mostra como o projeto arqueológico não admite o estabelecimento de marcos iniciais bem definidos, visto que no Classicismo — portanto anteriormente ao século XVIII — já eram dados passos decisivos em direção à cesura entre o humano e o animal. Ali, a loucura se mostra aterradora justamente porque marca um estado de indeterminação entre as duas esferas, mas revela que a natureza continua habitando o homem com uma violência que o desaloja de si mesmo. Conforme destaca o filósofo nas últimas linhas, trata-se de uma força contra a qual não há recurso e que, portanto, escapa à domesticação.

É no cerne dessa possibilidade de domesticação que a Modernidade, erigida após o século XVIII, se diferenciará do processo de cisão já observável no Classicismo. Centenas de páginas depois, Foucault volta a analisar a violência do louco-animal no Classicismo, demarcando as novas possibilidades advindas da psiquiatria e das técnicas de cura após o século XVIII:

A era clássica, pelo menos em alguns de seus mitos, havia assimilado a loucura às formas mais agressivas da animalidade: o que aparentava o demente ao animal era a predação. Surge agora [no século XVIII] o tema segundo o qual pode haver, no louco, uma animalidade suave, que não destrói, pela violência, sua verdade humana, mas que deixa vir à luz do dia um segredo da natureza, um fundo esquecido e no entanto sempre familiar, que aproxima o insensato do animal doméstico e da criança
(Foucault, 1978FOUCAULT, Michel (1978). História da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva., p. 476).

Nada mais distante da leitura de Foucault que uma interpretação dessa animalidade suave enquanto forma de pacificação entre a Modernidade e a loucura. Acontece que, se no Classicismo não havia recursos contra esse animal que habita o humano, agora as possibilidades da técnica desenvolvida pela medicina permitem domesticá-lo. Por isso, ele aponta a relação entre o Mesmo e o outro na Modernidade: “mais profundamente, o pensamento moderno avança naquela direção em que o outro do homem deve tornar-se o Mesmo que ele” (Foucault, 1978FOUCAULT, Michel (1978). História da loucura na idade clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva., p. 452). Não seria mero acaso a proximidade entre as palavras do filósofo e as empregadas por Anatol Rosenfeld (1974)ROSENFELD, Anatol (1974). Literatura e personagem. In: ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva. p. 9-51., quando afirma que o homem só com ele pode se identificar realmente: ele apenas se identificará com o animal a partir do momento em que este se humanizar. Assim como em Heidegger (2002)HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138., é a τέχνη (techné — técnica) que permite ao homem subjugar a natureza vista como alteridade, inclusive a natureza presente em si mesmo. É esse o fundamento da ideia de civilização que preconiza a repressão dos seus impulsos considerados animalescos em nome de sua faculdade superior, ou seja, a razão. Assim, as ciências humanas, a medicina, a biologia, teriam constituído discursividades que, delimitando a finitude do homem, atuou na produção do seu rosto. Isso significa que o humano teve suas fronteiras definidas a partir do momento em que se delimitaram os contornos que lhe são exteriores: o louco, o monstruoso, a natureza. A identidade humana foi produzida em paralelo com suas alteridades. Afinal, o homem se definiu em contraste com aquilo que ele não é.

Se as ciências humanas tiveram um papel decisivo nesse processo, o que as considerações de Rosenfeld (1974)ROSENFELD, Anatol (1974). Literatura e personagem. In: ROSENFELD, Anatol. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva. p. 9-51. nos sugerem se não que a literatura e mesmo a teoria atuaram na produção do rosto humano na Modernidade conjuntamente a outras instituições? A autocriação rumo à perfectibilidade humana conforme concebida pelo Primeiro Romantismo Alemão, o gênero tão propalado do romance de formação, o foco narrativo que se volta para a interiorização das subjetividades nos grandes centros urbanos: Foucault demonstra exaustivamente que, assim como o ser humano é capaz de produzir e de transformar o mundo, a filosofia e a arte modernas1 1 Conferir Friedrich Schlegel (1997) e Friedrich Schiller (2002). estão pautadas na possibilidade de o homem criar a si mesmo indefinidamente. Nesse mesmo caminho, Peter Sloterdijk (2016)SLOTERDIJK, Peter (2016). Esferas I: bolhas. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade. se soma ao debate quando propõe a discussão das técnicas por meio das quais se realiza a antropogênese. Evocando o vocabulário da techné comum a Heidegger (2002)HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138. e a Foucault, ele emprega o conceito de esfera — enquanto espaço de co-habitação dos sujeitos em que a vida ganha forma material e simbólica — para designar os diversos processos por meio dos quais o ser humano produz a si mesmo. Em seu livro Esferas I: bolhas (Sloterdijk, 2016SLOTERDIJK, Peter (2016). Esferas I: bolhas. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade.), ele dedica o capítulo “Entre rostos: sobre o surgimento da esfera interfacial humana” a uma história da facialidade, sendo que um de seus principais intentos é apontar como a arte foi decisiva na constituição do rosto humano. Traçando um percurso que desembocará na configuração das esferas modernas, o filósofo chama a atenção para a multiplicação de retratos dos indivíduos na Renascença, o que concorreu para a protração do rosto humano. Isso significa que, se anteriormente a arte da pintura não se dedicava especificamente à distinção das faces humanas e animais, agora eles se coengendram na arte do retrato pela técnica do contraste. Ou seja, analogamente ao que Foucault afirmava sobre o estabelecimento das fronteiras humanas pelo estabelecimento de zonas de exterioridade não-humanas, agora Sloterdijk (2016)SLOTERDIJK, Peter (2016). Esferas I: bolhas. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade. observa como o retrato possibilitou essa protração do rosto. Ele afirma:

A arte do retrato, como procedimento de protração, que destaca ou extrai a individualidade, faz parte de um extenso movimento de produção de rostos que, para além de quaisquer manifestações da história da arte e da imagem, possui uma dimensão que remete à história da espécie. A possibilidade da facialidade está ligada ao próprio processo da antropogênese. A separação das faces humanas dos focinhos dos mamíferos revela um drama facial e interfacial cujos inícios remontam ao começo da história da espécie
(Sloterdijk, 2016SLOTERDIJK, Peter (2016). Esferas I: bolhas. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade., p. 148-149).

Vistas no contexto da discussão já desenvolvida por Heidegger (2002)HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138. e por Foucault, as palavras de Sloterdijk (2016)SLOTERDIJK, Peter (2016). Esferas I: bolhas. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade. permitem observar o processo por meio do qual o homem, o sujeito e a própria arte e literatura modernas se conformaram conjuntamente. Não caberia, por conseguinte, estabelecer uma relação de anterioridade do Sujeito que teria sido o responsável pelo posterior advento da instituição literária como a conhecemos. Pelo caminho percorrido até então, seria mais profícuo afirmar que eles se constituem mutuamente de forma processual. Por conseguinte, poderíamos assinalar a esse respeito implicações para o próprio pensamento burguês que viria a se consolidar alguns séculos após o Renascimento. Com o retrato, a antropogênese está ligada não apenas ao sujeito de conhecimento, mas também ao indivíduo. Em sua essência singular, é este que se assume como fonte do pensamento, que é dotado de agenciamento para conquistar a natureza-como-alteridade, que tem a missão de conduzir o outro-colonizado desprovido de cultura. É este que se afirma como motor da História. É, portanto, o homem que se autoriza a subjugar tudo o que se alteriza.

UM SUJEITO AMBIENTAL É POSSÍVEL?

Frente às conclusões que chegamos até o momento, as seguintes questões parecem se impor: seria possível uma noção de sujeito — e mesmo de humano — que se opere sem a cesura em relação à natureza? Recorrer a ela não significaria manter a legitimidade do esquema moderno com todos os privilégios do humano como colonizador do outro-objeto? Seria possível manter o vocabulário do sujeito e ainda assim contornar a semântica do indivíduo humano como fonte do pensamento, de maneira a conceber uma forma de conhecimento ambiental?

Do último século para cá, foram muitas as respostas a esse tipo de questionamento. De um lado, houve os que proclamaram a liquidação do sujeito, de outro, os que viam nisso um projeto desde sempre fracassado2 2 Conferir, a esse respeito, Ermarth (2001) e Sarlo (2007). . Essa querela se justifica na medida em que destituir o sujeito do lugar que lhe foi atribuído não é uma operação simples, afinal, a semântica moderna envolve possibilidades de agenciamento, imputabilidade jurídica, predicação de direitos positivados. De maneira mais específica, a questão da ecocrítica, que hoje se pontua, está inserida também na possibilidade de se pensar a natureza enquanto um sujeito de direitos e, por isso mesmo, como agente de conhecimento. Isto é, esse conjunto de problemas se erige sobre aporias que não admitem soluções fáceis sustentadas por modelos dicotômicos. Se quisermos fugir a esse risco, talvez interesse mais reconhecer nas reflexões de Foucault não o simples combate ao sujeito ou ao homem, mas a busca por formas de subjetivação outras3 3 Mais recentemente Etienne Balibar (2005) afirma que mesmo a doxa da crítica do sujeito francesa — nomeadamente a estruturalista — não valorizou menos a questão do sujeito, procurando pensá-lo não como constituinte, mas enquanto efeito de múltiplos processos. . No projeto filosófico levado a cabo nos quatro volumes da História da sexualidade (Foucault, 2017FOUCAULT, Michel (2017). História da sexualidade: o cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal. v. 3.; 2020aFOUCAULT, Michel (2020a). História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal.; 2020bFOUCAULT, Michel (2020b). História da sexualidade: as confissões da carne. Tradução de Heliana de Barros Conde Rodrigues. Rio de Janeiro: Paz e Terra. v. 4.; 2020cFOUCAULT, Michel (2020c). História da sexualidade: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal. v. 2.), ele empreende um longo recuo ao mundo grego, sem o objetivo de estabelecer os costumes helênicos em sua positividade histórica. Em lugar disso, esse retorno lhe possibilitou reconhecer um ponto onde as exigências do sujeito de desejo ainda não se impunham, de maneira que a noção de ἐπιμέλεια ἑαυτοῦ (epiméleia heautoû — cuidado de si) forneceu condições filosóficas para pensar em formas alternativas de subjetivação. Consequentemente, levando-se em consideração o método arqueogenealógico desenvolvido por Foucault e após ele, até que ponto a noção de sujeito enquanto suporte de predicados não necessariamente relacionados à agência humana pode oferecer um instrumental para a noção de sujeito ambiental que agora aventamos?

Seja como for, levar adiante essa discussão implica não esquecer que, após o século XX, os arranjos conceituais modernos foram decisivamente deslocados. Com a teoria da cultura encampada pela psicanálise freudiana, a possibilidade de domesticação do animal que nos habita pela civilização foi, se não demolida, pelo menos expressivamente relativizada. No basilar “Totem e tabu” (Freud, 2012FREUD, Sigmund (2012). Totem e tabu. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 11.), o assassinato e a devoração do pai representam o gesto fundador da cultura, pois é com ele que se institui a lei totêmica, com a renúncia da violência física. Trata-se, então, do ingresso no simbólico, que possibilitou a passagem de um sistema verticalizado, cujo poder estaria concentrado no pai, para uma organização horizontalizada baseada na troca entre os irmãos. Todavia, mesmo que a teoria freudiana continue a demarcar o advento da civilização, esta não é garantia de uma natureza dócil, até mesmo porque a barbárie não lhe é exterior, mas é o gesto fundador da cultura. Enquanto tal, a instituição do sistema simbólico não abole a autoridade paterna, uma vez que esta se instalará de maneira ainda mais violenta no núcleo da subjetividade sob a forma de superego. E a lei totêmica que lhe é correlata traz o imperativo do recalcamento dos desejos, mas é também por meio do simbólico, que estes irrompem pelas frestas do sujeito. Reside aí o traço conflituoso da civilização que Freud (2010)FREUD, Sigmund (2010). O mal-estar na civilização. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 18. p. 13-123. abordará anos depois no ensaio “O mal-estar na civilização”, pois a constituição do aparelho psíquico se faz pela conjunção de forças conflitantes que dilaceram o eu. Diferentemente da animalidade suave que apontava Foucault ao tratar das técnicas de cura médicas, o que a teoria psicanalítica faz questão de sublinhar é essa natureza indomesticável: “Se lembrarmos como fracassamos justamente nessa parte da prevenção do sofrimento, nasce a suspeita de que aí se esconderia um quê da natureza indomável, desta vez da nossa própria constituição psíquica” (Freud, 2010FREUD, Sigmund (2010). O mal-estar na civilização. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 18. p. 13-123., p. 27). Em síntese, não obstante o intento de situar a natureza na fronteira exterior ao humano, esta se encontra irremediavelmente instalada em seu núcleo. A subjetividade humana já nasce fraturada, sendo habitada por alteridades em conflito que colocam em xeque a possibilidade de uma identidade que se identifique consigo mesma.

Rasurado um possível conforto ontológico humano, essas considerações parecem apontar como o ambiente é indissociável ao sujeito, com seus mecanismos de simbolização e de produção de representações. Em diálogo direto ou não com as teorias psicanalíticas, antropológicas ou filosóficas, a literatura brasileira a partir do século XX tem se dedicado extensamente à reflexão sobre as subjetividades possíveis, problematizando as formas do humano4 4 Isso não significa em absoluto que literaturas do século XIX ou anteriores não problematizassem desde sempre os estatutos do Sujeito e do humano. A perspectivação histórica que aqui se realiza não busca cisões históricas bem demarcadas. Antes, sinaliza os termos de um debate em que se insere a ecocrítica. Ou seja, enquanto uma resposta situada historicamente, é pela via da crítica do sujeito que a ecocrítica confronta as diferentes feições do humano produzidas em distintas agendas sociais e políticas. . Nesse contexto, todo o conjunto da obra de Autran Dourado coloca em cena personagens que entrecruzam as máscaras do humano e do não-humano, misturando elementos ctônicos, animais e vegetais. Quando, em Ópera dos mortos (Dourado, 1977DOURADO, Autran (1977). Ópera dos mortos. Rio de Janeiro: Difel.), as goelas de terra das voçorocas ameaçam engolir a cidade — em uma das imagens mais pulsantes de toda a sua obra — é a força da natureza não domesticada que se impõe sobre a sociedade de Duas Pontes. Nos aforismos filosófico-ficcionais do mestre imaginário Erasmo Rangel, a face monstruosa que se situa no próprio prédio da civilização aparece novamente:

§ Quando o homem mata em si o Minotauro, o que nele resta é apenas a razão. Um ser esvaziado de sentido, cadáver do mito. § Teseu, o herói solar; Minotauro, o ser noturno. § Tanto o sacrifício dos jovens ao Minotauro quanto a morte do monstro são sacrifícios inúteis e cruéis: a imolação da inocência. § Para que o homem afirme a sua solaridade tem que iluminar (matar) em si as trevas. Após a morte do monstro, o que resta é o puro labirinto, um refluir de culpas e tristezas, novas trevas
(Dourado, 2005DOURADO, Autran (2005). O meu mestre imaginário. Rio de Janeiro: Rocco., p. 72).

Nessa passagem, a imagem do Minotauro não é gratuita, pois, como um amalgama de humano e de animal, ele desestabiliza as fronteiras ontológicas, de maneira que a face monstruosa não é exterior ao rosto desse homem, mas a habita. Por isso, no embate entre Teseu e o Minotauro, está em jogo a tentativa civilizatória de recalcar o animal como uma alteridade que deve ser excluída das regiões de visibilidade e que, para tanto, deve ser eliminada. A obra arquitetônica do labirinto e a obra literária são então colocadas lado a lado como edifícios da cultura, erigidos com o fim de aprisionar o monstro: “§ Labirinto, pura racionalidade destinada a conter o perigo. Sem o perigo (Minotauro, monstro andrógino, duplo e ambíguo), o labirinto seria o sublime ideal, poesia pura, construção sem destino” (Dourado, 2005DOURADO, Autran (2005). O meu mestre imaginário. Rio de Janeiro: Rocco., p. 63). Mas não é sem a ambiguidade típica a Autran Dourado que esses monumentos da cultura são erguidos. Afinal, o labirinto-obra literária é o que aprisiona o Minotauro, mas ao mesmo tempo é a sua arma: “Labirinto, pura geometria que protege e ao mesmo tempo aprisiona, avisa e esconde o Minotauro. Contraditoriamente, é a arma que deram ao monstro contra as suas vítimas” (Dourado, 2005DOURADO, Autran (2005). O meu mestre imaginário. Rio de Janeiro: Rocco., p. 62). Pouco antes, Erasmo Rangel emprega a imagem labiríntica exatamente para se referir ao perigo representado pelos vários eus: “Tenho medo de me perder nos caminhos labirínticos por onde vou andando, até que súbito a realidade me desperta dos meus diversos eus devoradores, e eu sou eu, Erasmo, de novo” (Dourado, 2005DOURADO, Autran (2005). O meu mestre imaginário. Rio de Janeiro: Rocco., p. 60). De maneira análoga ao modo como Erasmo Rangel é um alter ego de Autran Dourado, que se presentifica em sua produção filosófico-ficcional, os múltiplos eus-outros devoradores estão sempre em vias de devorar por dentro esse rosto humano — então, sempre em vias de devorar a si próprios. Ainda que o Minotauro seja conduzido a esse domus, os corredores desse labirinto-literatura não se destinam a domesticar o animal, mas são a arma por meio da qual ele pode devorar as identidades de autor e de leitor.

É como uma promessa pulsante de ameaça que a literatura parece buscar novas subjetividades na relação com a alteridade recalcada. É significativo, a esse respeito, como a obra de Clarice Lispector (2020)LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco. ressoa o conjunto de imagens presentes na produção de Autran Dourado. Em seu monstruoso romance — a expressão é utilizada propositalmente em todos os sentidos que possa adquirir — A paixão segundo G. H., a problematização dos limites do humano é anunciada quando a narradora afirma: “Perdi durante horas e horas a minha montagem humana. [...] Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida” (Lispector, 2020LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 11;12). Ao apontar a perda dessa montagem, que será repetida insistentemente ao longo do livro, a mulher parece evidenciar o modo como a forma humana é uma construção historicamente definida. Obviamente, caso se tratasse de uma essência e não de um predicado, esta não poderia ser perdida. Por essa razão, ela não se constitui como uma entidade abstrata flutuante, uma vez que se trata de uma mulher culta, economicamente privilegiada e com relações sociais definidas. Assim se entrecruzam sua montagem e a cultura na qual se insere:

O que os outros recebem de mim reflete-se então de volta para mim, e forma a atmosfera do que se chama: eu. [...] Eu não me impunha um papel, mas me organizara para ser compreendida por mim, não suportaria não me encontrar no catálogo. Minha pergunta, se havia, não era: “que sou”, mas “entre quais eu sou”
(Lispector, 2020LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 25-26).

Reconhecer esse processo de construção do seu ser-entre-outros acarreta também a possibilidade do seu desmanche. Constituído historicamente e, em condições sociais determinadas, os contornos humanos ganham forma no horizonte simbólico da civilização. Dessa maneira, em confluência com a imagem da obra-labirinto presente em Autran Dourado, o prédio em que se situa o apartamento da narradora é também uma metonímia da cultura, cujos andares sucessivos representam, ironicamente, as etapas da evolução rumo ao progresso. Em Clarice, essa designação faz coincidirem a perda da forma humana e o desabamento do pesado edifício da civilização: “No desmoronamento, toneladas caíram sobre toneladas [...] depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico” (Lispector, 2020LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 67). Isso se segue a tal ponto que, de uma maneira expressivamente próxima às voçorocas que, em Autran Dourado, ameaçam devorar a cidade, os escombros da civilização são consumidos pelas areias movediças:

No desmoronamento, toneladas caíram sobre toneladas. E quando eu, G.H. até nas valises, eu, uma das pessoas, abri os olhos, estava — não sobre escombros pois até os escombros já haviam sido deglutidos pelas areias — estava numa planície tranquila, quilômetros e quilômetros abaixo do que fora uma grande cidade. As coisas haviam voltado a ser o que eram. O mundo havia reivindicado a sua própria realidade, e, como depois de uma catástrofe, a minha civilização acabara: eu era apenas um dado histórico
(Lispector, 2020LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 67).

Novamente, assim como ele foi constituído historicamente no cerne da civilização, agora o eu é apenas um dado histórico. Mas, com o esfacelamento da cultura, trata-se especificamente do ego de G.H, ou de qualquer subjetividade identificável como “eu”? Por mais que a narradora enuncie a angústia gerada por essa experiência radical, a dissolução da forma humana passa de um acidente para o dever-ser preconizado como o próprio projeto do romance: “Seremos inumanos — como a mais alta conquista do homem. Ser é ser além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido um constrangimento” (Lispector, 2020LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 173).

Analogamente à iminência do encontro com o Minotauro, previsto por Erasmo Rangel, é quando G.H se defronta com a barata e a devora. Mais uma vez, o animal é uma alteridade radical que deve ser excluída do horizonte de visibilidade, mas que, ainda assim, habita os espaços recônditos desse edifício da cultura e de seu próprio eu. Por isso, a barata repulsiva é o recalcado que retorna: “Foi então que a barata começou a emergir do fundo” (Lispector, 2020LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 49). O ato de devorar o animal não depreende que este tenha sido subjugado como um objeto, mas que, com a violência de sua irrupção, este também consome o humano. A partir do momento em que essa mulher civilizada e sofisticada come aquela massa branca, ela vê emergirem as pulsões mais primitivas como uma pura forma de vida. Bem como discorreu a narrativa freudiana, a devoração não implica a eliminação dessa alteridade-animal tão rejeitada, mas a possibilidade de se identificar com ela: “Eu, corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim — eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos” (Lispector, 2020LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 63). Não se trata, portanto, apenas de matar o inseto que causa horror, mas de sentir renascerem todas as fibras de seu corpo com o gesto violento e com o prazer do assassinato.

É curioso observar que a reemergência do outro animal ocorre exatamente quando a narradora entra no quarto da empregada Janair, a quem havia acabado de demitir, mas de cujo rosto ou nome ela sequer se lembrava. Assim como o inseto, a arrumadeira é um outro recalcado, ou seja, a produção de alteridades empurradas para além das margens da civilização envolve a natureza, tanto quanto as classes sociais subalternizadas. Na densidade filosófica das páginas de Lispector (2020)LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., esse fator social permite visualizar a amplitude colonizatória, que está implícita no desenho dessa forma humana e nos andares da civilização. A barata assassinada e a empregada demitida se tornam objetos elimináveis frente às mãos da mulher dominante, porém, por mais que G.H deseje expulsar esse outro, ela já se encontra atravessada por ele.

Afinal, o que essas linhas de Autran Dourado e de Clarice Lispector (2020)LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco. podem revelar? De imediato, seria possível dizer que, se a instituição literária atuou na definição dos contornos do rosto humano, ela também não cessa de problematizá-los. São abundantes os exemplos da produção ficcional brasileira do século XX, em que a própria possibilidade de alterização da natureza é colocada em xeque. Não cabe, nesse contexto, falar da figura daquele que, enquanto fonte do conhecimento, reserva a si próprio a tarefa de ser o agente de transformações sobre o objeto-mundo.

Com essa diminuição expressiva da distância ontológica que separaria o humano e a natureza, bastaria propor o esvaziamento de seu arcabouço conceitual, partindo sobretudo do desmanche do sujeito? Considerando que a semântica do sujeito está relacionada à própria imputabilidade do agente — de que derivam noções como a de sujeito jurídico e de sujeito de direitos —, essa alternativa ainda deixa escaparem as implicações políticas que são caras à discussão. Afinal, recorrer a esse caminho sob o argumento de que o animal e o vegetal seriam desprovidos de subjetividade sem dela precisarem não significaria ainda reafirmar o esquema antropocêntrico com todos os seus privilégios? Se o sujeito não é uma singularidade isolada a toda e qualquer exterioridade, talvez a perspectiva de um sujeito ambiental aponte para a possibilidade de um sistema de agenciamento coletivo. Nesse ponto, coloca-se em pauta a exigência histórica de um projeto filosófico e literário em que o sujeito não-essencializado é inevitavelmente atravessado pelas alteridades humanas e não-humanas, de maneira que estas devem ser igualmente vistas como fontes de conhecimento.

A procura por uma concepção de pensamento menos centrada no modelo do sujeito individual tem sido um dos principais temas da produção filosófica de Roberto Esposito. No cerne de suas reflexões, está a ideia de que concentrar a imputabilidade jurídica no indivíduo seria um mecanismo por meio do qual se operacionalizaria sua sujeição. Por essa razão, ele busca na literatura de Musil e de Kafka uma ética segundo a qual as ações não seriam imputáveis a sujeitos específicos, com vistas a um olhar sobre os agentes do conhecimento como coletividades:

Ver na inteligência não uma propriedade de alguns em detrimento de outros, mas um recurso de todos, pelo qual é possível transitar sem dele se apropriar, significa atribuir-lhe uma potência coletiva, que somente a espécie humana em seu conjunto pode plenamente atualizar. [...] Longe de ser produção de sujeitos particulares, as ideias são expressão de uma inteligência humana constituída pela interação das mentes individuais na unidade do cérebro social
(Esposito, 2019ESPOSITO, Roberto (2019). Dois: a máquina da teologia política e o lugar do pensamento. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG., p. 20-21).

Ainda que, de um lado, ele mantenha o entusiasmo com a ideia de uma especificidade da espécie humana, a perspectiva da inteligência coletiva sustenta o questionamento da relação entre sujeito e objeto, inviabilizando a concepção de propriedade — inclusive a propriedade intelectual sobre o objeto-conhecimento. Por si só, essas linhas nos permitem ir além e pensar na possibilidade de uma comunidade também não humana. Ocorre que sua posição ressoa a crítica de Heidegger (2002)HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138. ao estabelecimento do agente que opera sobre o mundo-objeto, tornando-o sua propriedade. Por isso mesmo, em um trajeto arqueogenealógico que recorre a discussões filosóficas pré-modernas, a sua ética da ação não imputável ao sujeito individualizado termina por remeter ao hypokeimenon grego, segundo o qual toda a natureza, enquanto substrato de predicação, é sujeito. Trata-se, então, de afirmar o retorno ao mundo grego? Absolutamente, não. Mas o que as arqueogenealogias têm pontuado nas incursões pelo mundo pré-moderno é sempre a repetição em diferença na busca por se criar condições de pensar subjetividades outras.

Além de Heidegger (2002)HEIDEGGER, Martin (2002). O tempo da imagem do mundo. In: HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Tradução de Irene Borges et al. Coimbra: Calouste Gulbekian. p. 95-138., o que veríamos nas palavras de Esposito, senão um estreito diálogo com o agenciamento coletivo vinculado ao rizoma de que falavam Deleuze e Guattari (1973)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1973). O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvim.? Nessa imagem, em vez do centramento no indivíduo, do desejo singular, do ego como fonte de representações, os autores dão preferência a operadores como multiplicidades, corpos sem órgãos, agenciamento maquínico e máquina desejante. O desenvolvimento desse vocabulário próprio tem como objetivo evitar a semântica cristalizada na dita filosofia da metafísica. Isso lhes permite, no capítulo “Selvagens, bárbaros, civilizados” de O anti-Édipo, questionar as bases sobre as quais se erigiram as dicotomias civilizatórias. Para tanto, faz-se condição necessária “substituir o sujeito privado da castração, clivado em sujeito da enunciação e sujeito do enunciado, e que remete apenas para duas ordens de imagens pessoais, pelos agentes coletivos que remetam para arranjos maquínicos” (Deleuze; Guattari, 1973DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1973). O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvim., p. 324). Ora, é no mínimo curioso que, para tratar dos agenciamentos coletivos, os autores empreguem a metáfora vegetal do rizoma. Não seria isso o sintoma de uma inteligência coletiva das plantas e, por extensão, do não-humano? Quando, anos depois, os autores revisitam essa imagem, eles recorrem às formigas, orquídeas e vespas para falar da fluidez rizomática:

É impossível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir. [...] Como é possível que os movimentos de desterritorialização e os processos de re-territorialização não fossem relativos, não estivessem em perpétua ramificação, presos uns aos outros? A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade
(Deleuze; Guattari, 1973DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1973). O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvim., p. 18-19).

Nesse ponto, o campo filosófico-literário que temos discutido cria condições de remeter à recente presença dos estudos animais e vegetais nos estudos literários. Em seu volumoso conjunto de publicações — sem esquecer das várias comunicações da edição de 2021 da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), que se dedicou às relações entre a literatura e as plantas —, desconstrói-se a rígida oposição entre o humano e o não-humano. Mais que o debate relativo à quebra dessa dicotomia, esses trabalhos têm interesse para o estudo do sujeito na literatura, até mesmo, porque estão em diálogo direto com os postulados da crítica do sujeito. Todas essas diferentes perspectivas procuram repensar a centralidade da agência humana, o que, ao fim, tem o fito de criticar a perspectiva humanista do sujeito, pensando o humano em uma rede de relações com animais, vegetais e objetos inanimados. Ou seja, o humano está em íntima relação com o ambiente em que se encontra, de modo que se torna possível pensar em animais e vegetais também como agentes5 5 Conferir a esse respeito os artigos finais do volume Futures of comparative literature: ACLA state of discipline report (Heise, 2017). . Stefano Mancuso (2019)MANCUSO, Stefano (2019). Revolução das plantas. Tradução de Regina Silva. São Paulo: Ubu., em Revolução das plantas, fala exatamente da possibilidade de as plantas possuírem uma inteligência e uma memória sem cérebro. De imediato, essa inteligência difusa não centralizada em um cérebro pode remeter à imagem do rizoma, do corpo sem órgãos e do agenciamento maquínico empregados por Deleuze e Guattari (1973)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1973). O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho. Lisboa: Assírio e Alvim.. Logo na abertura de seu livro, Mancuso (2019)MANCUSO, Stefano (2019). Revolução das plantas. Tradução de Regina Silva. São Paulo: Ubu. delineia uma das hipóteses com que trabalhará: “É fácil conceber que a inteligência não é fruto do trabalho de um único órgão; ela é inerente à vida, seja cerebral ou não” (Mancuso, 2019MANCUSO, Stefano (2019). Revolução das plantas. Tradução de Regina Silva. São Paulo: Ubu., p. 13). Mais à frente, ele descreve como essa inteligência vegetal sem cérebro está associada à memória e à consequente capacidade de aprendizado:

todas as plantas são capazes de aprender com a experiência e, portanto, possuem mecanismos de memorização. Exemplificando: se uma planta qualquer, digamos uma oliveira, for sujeita a um estresse como seca, salinidade ou algo parecido, ela responderá implementando as modificações necessárias na anatomia e no metabolismo para garantir a sobrevivência. Até agora nada de estranho, certo? E se, depois de certo período, propusermos o mesmo estímulo à mesma planta, talvez com intensidade até maior, notaremos um dado aparentemente surpreendente. Ela responderá melhor ao estresse. Portanto, aprendeu a lição! Ela registrou em algum lugar as soluções usadas e, quando necessário, rapidamente as recuperou para reagir com mais eficiência e precisão. Enfim, aprendeu e conservou na memória as melhores respostas, aumentando as chances de sobrevivência
(Mancuso, 2019MANCUSO, Stefano (2019). Revolução das plantas. Tradução de Regina Silva. São Paulo: Ubu., p. 14).

O que está em jogo nessa argumentação é a memória, o aprendizado, a inteligência, a experiência, o agenciamento, todos conceitos- chave que estiveram na base da teoria do sujeito, mas que agora não estão vinculados diretamente ao humano. Por essa razão, há que se notar que, ao considerar as plantas como dotadas de experiência, o posicionamento de Mancuso (2019)MANCUSO, Stefano (2019). Revolução das plantas. Tradução de Regina Silva. São Paulo: Ubu. se afasta do segmento da crítica do sujeito que enxergou na dessubjetivação uma alternativa aos esquemas humanistas. Isso porque ele não propõe o apagamento da memória como suposta produtora de identidades fixas e imóveis, mas enxerga nas plantas uma inteligência dispersa, móvel, dotada de agência e de capacidade adaptativa. Se, por um lado, o questionamento do rosto do homem levou parte da filosofia do século XX a vislumbrar o desmanche da noção de sujeito, a quebra ontológica agora abre a possibilidade de pensar animais e plantas como sujeitos, que deslocam o humano, compartilham com ele possibilidades de agência, reinscrevem-se nos ambientes em que se encontram. O descentramento e a dessubstancialização do sujeito têm como implicação a própria possibilidade de pensá-lo como dotado de uma inteligência não localizada no cérebro. Isso já representa uma fratura na dicotomia tantas vezes repetida de mente/espírito e corpo, mas remete ainda ao próprio sujeito planta com sua inteligência difusa/rizomática. Perspectivas como a de Mancuso (2019)MANCUSO, Stefano (2019). Revolução das plantas. Tradução de Regina Silva. São Paulo: Ubu. colocam as possibilidades de agência novamente em evidência, mas agora, posicionam lado a lado o humano e o que habitualmente se denominou como não-humano. Com isso, de uma visão do ser humano como motor da história, pontua-se a exigência de conceber a máquina do mundo com suas múltiplas engrenagens e movida por agenciamentos plurais. Suprimida a exclusividade da agência humana, inviabilizam-se os discursos que justificaram a propriedade privada burguesa, deslocando os lugares reservados para a natureza e para os objetos na esfera do direito6 6 Conferir A vontade das coisas: o animismo e os objetos, em que Monique David-Menard (2022) procura ressignificar psicanaliticamente as noções de objeto e de vontade, com o fito de questionar a lógica da propriedade privada em que o humano se reserva o direito de possuir o que considera como inanimado. . Se, assim como observamos em Autran Dourado e Clarice Lispector (2020)LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco., as subjetividades são atravessadas pelas alteridades e pelo inevitável processo de alterização de si, reconfiguram-se as relações entre sujeito e objeto em nome de agenciamento heterogêneos.

Em tudo isso, dos expressivos ganhos que a arqueogenealogia desenvolvida por Foucault trouxe para as considerações do humano e do sujeito, ao considerar a sua formação histórica em determinadas epistémê, hoje se mostra necessário pensar em outras discursividades não necessariamente vinculadas à produção de subjetividades da Modernidade ocidental. Assim como as ciências humanas, por exemplo, teriam atuado na conformação do humano, interessa questionar também a constituição subjetiva dos povos — no plural — indígenas, com suas diferentes culturas e formas de integração com o sistema político e legal do ocidente — que, por si só, já é amplamente diversificado — e em sua relação com o não-humano. É por esse caminho que Eduardo Viveiros de Castro (2020)CASTRO, Eduardo Viveiros de (2020). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu., em seu livro em Metafísicas canibais, põe em xeque a própria categoria da representação cara ao sistema ocidental, notando como o perspectivismo ameríndio colocaria lado a lado humanos e não-humanos na posição de sujeitos: “Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência da alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os pontos de vista – e um ponto de vista não é senão diferença – não está na alma” (Castro, 2020CASTRO, Eduardo Viveiros de (2020). Metafísicas canibais: Elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu., p. 65). Desta forma, no livro A inconstância da alma selvagem (Castro, 2017CASTRO, Eduardo Viveiros de (2017). A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Ubu.), o autor retoma a questão da devoração do outro, no sentido de indicar a constituição mútua entre sujeito e objeto: “Sujeito e objeto se interconstituem pela predação incorporante, cuja reciprocidade característica, sublinhe-se, atesta a inexistência de posições absolutas (do sujeito como substância, do predicado como acidente)” (Castro, 2017CASTRO, Eduardo Viveiros de (2017). A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Ubu., p. 109). Inexistindo posições absolutas, essa devoração mútua envolve humanos, animais, espíritos, em um sistema simbólico heterogêneo: “O protótipo da relação predicativa entre sujeito e objeto é a predação e a incorporação: entre afins, entre homens e mulheres, entre vivos e mortos, entre humanos e animais, entre humanos e espíritos, e, naturalmente, entre inimigos” (Castro, 2017CASTRO, Eduardo Viveiros de (2017). A inconstância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Ubu., p. 109).

G.H devora a barata e, com isso, se desencontra consigo mesma para se identificar com o animal. O mestre imaginário Erasmo Rangel vê a iminência de ser devorado pelo inimigo Minotauro encerrado nas paredes da obra-labirinto. Os lugares de devorador e devorado são reversíveis, ou, talvez melhor, indiquem um processo simultâneo. É significativo o quanto as literaturas de Clarice Lispector (2020)LISPECTOR, Clarice (2020). A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco. e de Autran Dourado estão em ressonância com as palavras de Davi Kopenawa, quando descreve o rito de preparação por meio do qual se tornaria xamã. Nesse momento, ele comenta o processo de preparação para que os xapiri (espíritos) pudessem morar em seu corpo: “Quando o pai de minha esposa me fez virar outro, tudo ocorreu como acabo de descrever. Com a yãkoana, ele primeiro tirou de mim todo o vigor. O seu espírito, que chamamos Yãkoanari, foi comendo minha carne aos poucos” (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz-Perrone Moisés. São Paulo: Companhia das Letras., p. 143). O contato com o outro espiritual é descrito como um “virar outro”. Os xapiri comem a sua carne como forma de abrir espaço para a sua moradia no corpo do xamã, de maneira que o incorporar e o ser incorporado indicam um duplo caminho de habitar e ser habitado pelo outro.

A perspectiva de um sujeito ambiental se constrói pela necessidade de um conhecimento com múltiplos agentes que se interpenetram. Trata-se de compreender que as formas do humano foram produzidas em condições históricas e em projetos políticos específicos, para vislumbrar a possibilidade de relações outras, que sejam co-habitadas pela potência da natureza em sua diversidade. Isso permite afirmar que a literatura a partir do século XX, se não sempre, tem vislumbrado novas possibilidades de subjetivação e de produção do conhecimento, mas viabiliza entrever também que a própria instituição literária não é um sistema simbólico exclusivo da mente humana. Quem fala na obra-labirinto: Autran Dourado, o alter-ego Erasmo Rangel, ou o alter-alter-ego Minotauro? Quem fala ao descrever os ritos do xamanismo: o Davi Kopenawa que vira outro, os xapiri, ou o etnógrafo Bruce Albert (Kopenawa; Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce (2015). A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz-Perrone Moisés. São Paulo: Companhia das Letras.)? Nesses volumes, a instituição literária é um ambiente complexo de múltiplas inteligências, aberto aos confrontamentos ontológicos.

Notas

  • 1
    Conferir Friedrich Schlegel (1997)SCHLEGEL, Friedrich (1997). O dialeto dos fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras. e Friedrich Schiller (2002)SCHILLER, Friedrich (2002). A educação estética do homem. Tradução de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras..
  • 2
    Conferir, a esse respeito, Ermarth (2001)ERMARTH, Elizabeth (2001). Agency in discursive condition. History and Theory, v. 40, n. 4,p. 34-58. e Sarlo (2007)SARLO, Beatriz (2007). Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG..
  • 3
    Mais recentemente Etienne Balibar (2005)BALIBAR, Étienne (2005). Le structuralisme : une destitution du sujet? Revue de métaphysique et de morale, v. 1, n. 45. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-de-metaphysique-et-de-morale-2005-1-page-5.htm. Acesso em: 17 fev. 2024.
    https://www.cairn.info/revue-de-metaphys...
    afirma que mesmo a doxa da crítica do sujeito francesa — nomeadamente a estruturalista — não valorizou menos a questão do sujeito, procurando pensá-lo não como constituinte, mas enquanto efeito de múltiplos processos.
  • 4
    Isso não significa em absoluto que literaturas do século XIX ou anteriores não problematizassem desde sempre os estatutos do Sujeito e do humano. A perspectivação histórica que aqui se realiza não busca cisões históricas bem demarcadas. Antes, sinaliza os termos de um debate em que se insere a ecocrítica. Ou seja, enquanto uma resposta situada historicamente, é pela via da crítica do sujeito que a ecocrítica confronta as diferentes feições do humano produzidas em distintas agendas sociais e políticas.
  • 5
    Conferir a esse respeito os artigos finais do volume Futures of comparative literature: ACLA state of discipline report (Heise, 2017HEISE, Ursula K. (2017). Comparative literature and the environmental humanities. In: HEISE, Ursula K. Futures of comparative literature: ACLA state of discipline report. Londres, Nova York: Routledge, 2017. p. 293-301.).
  • 6
    Conferir A vontade das coisas: o animismo e os objetos, em que Monique David-Menard (2022)DAVID-MENARD, Monique (2022). A vontade das coisas: o animismo e os objetos. Tradução de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu. procura ressignificar psicanaliticamente as noções de objeto e de vontade, com o fito de questionar a lógica da propriedade privada em que o humano se reserva o direito de possuir o que considera como inanimado.

Referências

  • BALIBAR, Étienne (2005). Le structuralisme : une destitution du sujet? Revue de métaphysique et de morale, v. 1, n. 45. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-de-metaphysique-et-de-morale-2005-1-page-5.htm Acesso em: 17 fev. 2024.
    » https://www.cairn.info/revue-de-metaphysique-et-de-morale-2005-1-page-5.htm
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Editor:

Paulo César Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2024
  • Aceito
    03 Jul 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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