Resumo
O presente artigo busca realizar reflexões sobre o dialogismo e a narração multipessoal em De espaços abandonados, de Luísa Geisler (2018), romance experimental que trata da busca de Maria Alice pela mãe, Lídia, na Irlanda. O contexto da imigração massiva de brasileiros à ilha configura uma vítrea parte na (des)construção do livro, dividido em três partes e repleto de gêneros como cartas, emails, listas de supermercado e arquivos de computador. A alternância da voz entre primeira e terceira pessoa do singular, em especial com a personagem Maria Alice, é discutida antes de chegarmos ao conceito de narração multipessoal. Buscar-se-á demonstrar como o movimento de presença e não presença do narrador em primeira pessoa, bem como as diferentes línguas-gênero utilizados, reforçam uma fronteira necessária para o desenvolvimento da trama.
Palavras-chave: narratologia; dialogismo; narração multipessoal; de espaços abandonados
Abstract
This article seeks to reflect on dialogism and multipersonal narration in De espaços abandonados, by Luísa Geisler (2018), an experimental novel that deals with Maria Alice's search for her mother, Lídia, in Ireland. The context of the massive immigration of Brazilian people to the island plays a significant role in the (de)construction of the book, divided into three parts and full of genres such as letters, emails, grocery lists, and computer files. The alternation of voices between the first and third person, especially with the character Maria Alice, is discussed in this article before the concept of multipersonal narration. This study aims to demonstrate how the movement of presence and non-presence of the narrator in the first person, as well as the different languages-genres used, reinforce a necessary boundary for the development of the plot.
Keywords: narratology; dialogismo; multipersonal narration; de espaços abandonados
Resumen
Este artículo busca una reflexión sobre el dialogismo y la narración multipersonal en De Espaços Abandados, de Luísa Geisler (2018), una novela experimental que describe la búsqueda de Maria Alice por su madre, Lídia, en Irlanda. El contexto de la inmigración masiva de brasileños a la isla forma parte vital en la (de)construcción del libro, dividido en tres partes y lleno de géneros como cartas, correos electrónicos, listas de compras y archivos informáticos. La alternancia de la voz entre la primera y la tercera persona del singular, especialmente con el personaje de María Alice, se analiza antes de llegar al concepto de narración multipersonal. Buscaremos demostrar cómo el movimiento de presencia y no presencia del narrador en primera persona, así como los diferentes lenguajes-géneros utilizados, refuerzan una frontera necesaria para el desarrollo de la trama.
Palabras clave: narratología; dialogismo; narración multipersonal; de espaços abandonados
Imigrantes. Todos nós o somos, hoje. Quando a viagem não nos move, é o entorno que nos foge, o que dá no mesmo. Ficamos então parados, com tudo o mais indo, imigrantes a tentar entrar, todos os dias, em nós mesmos (Elvira Vigna, O que deu para fazer em matéria de história de amor).
INTRODUÇÃO
Sabemos que a escolha de um ponto de vista adequado ao relato que se quer transmitir é essencial à escrita de um romance. Dessa maneira, toda a escolha é deliberada para um efeito estético pretendido ao leitor. Em uma narrativa, aquele que narra claramente se importa com o que está fazendo, criando uma intimidade — ou diminuindo-a — entre narrador e leitor. Essa escrita faz parte de um mundo próprio, cuja unidade se constitui por intermédio de uma série de procedimentos estilísticos condizentes com o propósito de sua narração. Não obstante, a linguagem utilizada também se faz importante neste momento.
O presente artigo busca realizar reflexões sobre o dialogismo e a narração multipessoal em De espaços abandonados, de Luísa Geisler (2018), romance experimental que trata da busca de Maria Alice pela mãe, Lídia, na Irlanda. O contexto da imigração massiva de brasileiros à ilha configura uma vítrea parte na (des)construção do livro, dividido em três partes e repleto de gêneros como cartas, e-mails, listas de supermercado e arquivos de computador. A alternância da voz entre primeira e terceira pessoa do singular, em especial com a personagem Maria Alice, é discutida neste artigo por meio de leituras teóricas como a de Wayne Booth (1980), Paul Ricoeur (1997), Norman Friedman (2002) e Gérard Genette (2017), antes de chegarmos no conceito de narração multipessoal de Brian Richardson (2018). Buscar-se-á demonstrar como o movimento de presença e não presença do narrador em primeira pessoa, bem como as diferentes línguas-gênero utilizadas, reforçam uma fronteira necessária para o desenvolvimento da trama, distanciando a protagonista de sua própria vida.
O PONTO DE VISTA E O LEITOR
Ao trabalharmos conceitos da(s) teoria(s) da narrativa, A retórica da ficção, de Wayne Booth (1980), demonstra as diferenças entre o contar e o mostrar. Exploram-se os mais variados meios que os autores — assim intitulados à primeira vista — usam para seduzir seus leitores. Ao trazer o exemplo de Haircut, de Lardner (1926), acerca da orientação que um leitor pode receber ou não, diz que o autor "retirou-se para os bastidores e deixou os personagens no palco resolvendo os seus próprios destinos" (Booth, 1980, p. 25). No entanto, no momento em que o leitor é efetivamente orientado, o movimento não diz respeito somente ao "esconder-se" do narrador, mas em nossa própria aproximação das personagens. Na construção de artifícios possíveis para a constituição do narrador, Wayne Booth (1980) entende que é a distância entre autor e narrador que determinaria o que é ou não confiável na narração.
Paul Ricoeur (1997, p. 267) introduz sua digressão determinando que somente um historiador poderia trazer a "realidade", sendo todos os personagens do romancista irreais e também a experiência que a ficção descreve. A noção de memória, muito cara às suas contribuições acadêmicas mais significativas, constrói uma outra noção: a de representância ou de locotenência. Não importa muito a referência para a refiguração, portanto, posto que a representância da ficção depende da "mediação da leitura" pela qual "a obra literária obtém a significância completa, que seria para a ficção o que a representância é para a história" (Ricoeur, 1997, p. 269).
Ademais, "é somente na leitura que o dinamismo de configuração termina seu percurso. E é para além da leitura, na ação efetiva, instruída pelas obras consagradas, que a configuração do texto se transmuta em refiguração" (Ricoeur, 1997, p. 270).
O autor dá muito mais importância à "retórica do leitura", citando Michel Charles, à própria "retórica da ficção" de Wayne Booth (1980), entendendo que este pode implicar na confusão entre a autoridade do autor real e o "autor implicado", aquele que "toma a iniciativa do teste de força que subjaz à relação entre escritura e leitura" (Ricoeur, 1997, p. 272). Mas é a sua noção conexa de narrador digno de confiança (reliable) ou não digno de confiança (unreliable) que contrasta as noções de objetividade de Wayne Booth (1980). Ao bagunçar as expectativas do leitor, o narrador indigno de confiança pede um trabalho crítico baseado na incerteza da recepção no que tange à criação da narrativa, de maneira inequívoca. Logo, seria profícuo o "combate com o autor implicado" alicerçado nessas questões, "um combate que o reconduz a si mesmo" (Ricoeur, 1997, p. 279).
O narrador não digno de confiança pede, no pacto de leitura, um voto de fé na sua estratégia de persuasão; semelhante ao que a prova documental é para a historiografia, mas não factível. Assim, "é precisamente porque o romancista não tem prova material para fornecer que pede ao leitor que lhe conceba", o que aqui diz respeito à sugestão de apreciação, mas que em De espaços abandonados (Geisler, 2018) aparece com o exercício concreto, como nas fichas incompletas das personagens. Nós criamos a narrativa concomitantemente ao narrador, preenchendo lacunas que, por vezes, também são preenchidas nas páginas a seguir, como num jogo no qual tentamos perceber semelhanças e discrepâncias em várias visões de mundo. Nesse viés, Ricoeur (1997, p. 285) busca uma teoria de leitura que traga a ênfase na resposta do leitor (como se vê, a escolha de palavras do autor se faz extremamente pertinente) — o leitor, "presa e vítima" do autor implicado, se vê na ambivalência da passividade e na atividade entre "receber" o texto e a "ação" de lê-lo e, como em Geisler (2018), recriá-lo com base na sua leitura.
Como o texto não é produto do homem se é ele quem o pensa? Nesse sentido, Booth (1980, p. 38) não parece tão radical em suas concepções acerca de objetividade e impessoalidade: "o juízo do autor está sempre presente e é sempre evidente a quem saiba procurá-lo". No entanto, reitera que, para os critérios gerais do que constituiria um bom romance, na saída do autor, a história conta-se a si própria. Ao chamar a atenção do leitor e realizar comentários sobre personagens, indo de encontro ao que traz Booth (1980), Luísa Geisler contra-ataca na guerra à subjetividade.
DE ESPAÇOS ABANDONADOS (GEISLER, 2018) E A DISTÂNCIA NARRATOLÓGICA
De espaços abandonados, de Luísa Geisler (2018), é dividido em três partes. O livro conta a história da busca de Maria Alice por sua mãe bipolar, em uma fragmentação de discursos entre cartas, trechos de livros, fotografias, manuais de escritas, e-mails etc. Seu contexto está na comunidade brasileira na Irlanda, conhecidamente numerosa, que está em busca de um futuro melhor. Para além da jornada de Maria Alice, que vai à Irlanda em busca de sua mãe baseada em postagens de um blog, há a busca de seu irmão, Caio, pela irmã — que também desaparece —, bem como traz a história de personagens perdidos, como Bruna e Maicou, também, por vezes, na primeira pessoa do singular. A presença do mito da imigração (e não presença no espaço, haja vista que há a movimentação constante entre países) constitui a marca do mosaico entre narradores e gêneros.
A primeira parte do livro contém uma carta na qual um homem ajuda Caio no paradeiro da irmã. Depois, todas as páginas têm indicação de quais gêneros contêm ("Folha de papel de um organizador semanal", "Folha de caderno com linhas azuis"), a princípio contadas pela perspectiva de Maria Alice, como ela mesma diz: "E este é meu livro" (Geisler, 2018, p. 11). Contudo, quase como um exercício de distanciamento, eis um arquivo de computador intitulado "Terceira pessoa onisciente 1.txt", em que (aparentemente) Maria Alice transveste-se em narrador onisciente para falar sobre o blog que lê: "o post favorito de Maria Alice é sobre o parque japonês Nara Dreamland […] Para Maria Alice, tudo se explica apenas com a imagem de uma montanha-russa de madeira apodrecendo" (Geisler, 2018, p. 20). Esta guinada serve, em termos de descrição do que se vê, para que Maria Alice encontre na distância um refúgio necessário e o discernimento correto para que se entenda o que escreve e o que precisa escrever; assim, mesmo que durante toda a narrativa esteja na defensiva na guerra contra a subjetividade, o autor implicado vale-se do que falamos outrora sobre "objetividade", a fim de que crie efeito estético e proteja a própria protagonista, Maria Alice.
Dessa maneira, o evento não se sobressai à narração, como Norman Friedman (2002) poderia dizer sobre um autor onisciente intruso. Já o narrador onisciente neutro, que pode "negar a si mesmo" (Friedman, 2022, p. 174) ao descrever a cena como a vê e não como a veem seus personagens, faz sentido justamente pela escolha de palavras do teórico, mesmo que este não considere obrigatória tal negação — mas entendemos que é através dela que Maria Alice encontra, na primeira parte do romance, a possibilidade de representação do que busca em seu relato.
Por vezes, a hermenêutica na primeira parte de De espaços abandonados (Geisler, 2018) cria constantemente a tensão entre primeira pessoa e terceira pessoa, trazendo mudanças sutis na narrativa que nos permitem dizer, timidamente, quais os pontos de vista dos arquivos: por exemplo, em uma página, "esta foto não é minha" (Geisler, 2018, p. 22) e na outra "posta fotos de um shopping abandonado na Europa" (Geisler, 2018, p. 23) e "Maria Alice decidiu que iria para Dublin" (Geisler, 2018, p. 25). A onisciência desse narrador é ainda mais corroborada pelo fato de que tal movimento existe: afinal, se é Maria Alice quem fala na página anterior, o processo de escrita que envolve "Maria Alice voltava a dirigir e reparar em como a palavra "bed" de fato parecia uma caminha" (Geisler, 2018, p. 27) pode fazer parte de um mecanismo da própria narradora, Maria Alice, para narrar sua história.
Isso também pode ser feito para que se crie um senso coletivo muito importante quando se fala (e se escreve) sobre uma comunidade marginalizada, como é o caso de imigrantes brasileiros na Irlanda. Une-se Maria Alice ao conglomerado "brasileiros" para que personifique tudo aquilo que "ser brasileiro", ou melhor, "ser brasileirA", se configuraria fora do nosso país, principalmente em situação ilegal. Portanto, no exercício em terceira pessoa "O CONNELL SUCKS.txt", o nome próprio de Maria Alice é substituído por "Brasileira" em sentido coletivizante, bem como outros personagens — "Cada um, Brasileiro, Brasileiro e Brasileiro, gastava dois euros e cinquenta todas as noites" (Geisler, 2018, p. 35). Esse movimento despersonalizante é condizente com a perspectiva da imigração, que contrasta os indivíduos em um Estado-nação fundamentado em seus aspectos culturais:
Na frente de Brasileira, um copo de café Costa que gostaria que estivesse cheio de uma bebida quente. No entanto, no copo, apenas algumas moedas e notas de euro, chicletes, uma palheta de violão, dois panfletos. Brasileira viu dois policiais se aproximarem. A roupa amarela ridícula. De cabeça baixa, fuçou uma caspa um pouco mais difícil. Usou as unhas (Geisler, 2018, p. 34).
Theodor W. Adorno (2003) discute como a posição do narrador no romance contemporâneo se vê em um entrave, haja vista que não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração. Na era burguesa, com a ascensão de classes sociais, o nascimento da imprensa e um público consumidor preocupado com seus private affairs, o foco no realismo tornou-se questionável. Eis o subjetivismo, "que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade" (Adorno, 2003, p. 55). O seu intuito é claro: dar conta daquilo que o relato não consegue, considerando uma clara barreira de linguagem (inexistente em outras manifestações artísticas, como na pintura). Uma "desintegração lógica da linguagem" (Adorno, 2003, p. 54) aparece como espelho das experiências de vida, não dominadas pelo homem, "a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite" (Adorno, 2003, p. 56). Em um processo traumático, explicitado pela escrita joyciana pós-Guerra, as experiências não são mais dominadas pelo homem moderno, atônito pela quantidade de traumas aos quais não sai imune. Nesse sentido, o romance de Geisler (2018) demonstra a impossibilidade de estandardização e linearidade — de vozes e de gêneros —, ao passo que reinventa sua matéria e força em um processo de individualização.
Nesta crise da objetividade, a psicologia de Dostoiévski denota o quão inacessível é aquilo que se pretende dizer naquele momento. Renuncia-se a um realismo e busca-se a representação de uma essência, um tanto quanto performática, para que se consiga exprimir o sentimento de um tempo "em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos" (Adorno, 2003, p. 59), o que é certamente transponível para De espaços abandonados (Geisler, 2018). O próprio nome do romance, assim como suas estratégias narratológicas, auxilia o entendimento da distância da realidade, dos sujeitos e de suas visões de mundo, desencantadas.
Assim,
não é apenas porque o positivo e o tangível, incluindo a facticidade da interioridade, foram confiscados pela informação e pela ciência que o romance foi forçado a romper como esses aspectos e a entregar-se à representação da essência e de sua antítese distorcida, mas também porque, quanto mais densa e cerradamente se fecha a superfície do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta encobre a essência como um véu (Adorno, 2003, p. 57).
Ademais, todo esse movimento "destrói a tranquilidade contemplativa" daquele que lê um romance constantemente contraditório (Adorno, 2003, p. 61), entre o realismo e a psicologia. O leitor torna-se, assim como Paul Ricoeur (1997) intuía, um contraponto à impotência do homem representado e à limitação da linguagem; um encolhimento da distância estética realizaria as ligações pendentes entre as personagens e as narradoras, o que se é percebido em De espaços abandonados (Geisler, 2018). É vítrea a diferença entre a experiência de narrar contida não só em Wayne Booth (1980) mas em Walter Benjamin (1987, p. 197), que "impõe a exigência" de uma distância e de um ângulo específico de observação para que se constitua o que chamamos de romance.
Para Paul Ricoeur (1997, p. 273-274),
ao mesmo tempo, quer o autor escolha um ângulo de visão ou outro, trata-se sempre do exercício de um artifício que é preciso relacionar com o direito exorbitante que o leitor concede ao autor. Tampouco será porque o romancista se esforçou mais em "mostrar" do que em "informar e ensinar" que terá desaparecido […] o artifício próprio à operação narrativa, longe de ser abolido, aumenta com o trabalho empregado nas simulação da presença real através da escrita. Por mais que essa simulação se oponha à onisciência do narrador trai um igual domínio das técnicas retóricas. A suposta fidelidade à vida nada mais faz que dissimular a sutileza das manobras mediante as quais a obra comanda, do lado do autor, a "intensidade de ilusão" desejada por Henry James.
Em tal perspectiva, a compreensão do leitor está em foco para que ele mesmo renove a história literária. É na definição ricoeuriana de "leitor implicado" que ganha corpo no leitor real. Indo ao encontro das lacunas que os "espaços abandonados" de Geisler (2018) trazem durante a narrativa, está na mão do autor a solução para as perguntas (!) que constituem o problema estético e moral colocado pela obra, o que constituiria em uma literatura complexa e eficiente por meio de uma estética de recepção.
Tal estratégia fica deveras explícita na segunda parte do livro, "Primeiro mergulho na ficção: Resolva os seus problemas de escrita (e até os de seus personagens!)", que contém inclusive uma capa com ano e cidade de publicação, enfatizando sua agência metadiegética, citando Genette (2017). No capítulo um, "Boas-vindas!", o narrador comentarista coloca a responsabilidade do leitor a ele mesmo realizar a escrita do romance mediante detalhes que irá omitir, como "espaços em branco" (abandonados) (Geisler, 2018, p. 53). É o leitor quem irá escrever o livro, primeiro planejando a história a contar: depois de uma extensa ficha das personagens, por vezes preenchida de maneira incompleta, por vezes em branco para que o próprio leitor busque fabulá-las, haverá 366 perguntas para que se escreva este livro. Como se vê, as perguntas nem sempre fazem sentido com as respostas que o livro nos dá, reiterando, mais uma vez, nossa responsabilidade para além de uma mera recepção.
Diz Ricoeur (1997, p. 276) que "o narrador se distingue do autor implicado sempre que é dramatizado por ele mesmo", o que faz com que a complexidade deste romance recaia no fato de que suas propriedades estilísticas e ideológicas mudam constantemente entre vozes — de Bruna, Caio, Caetano, Maicou, Maria Alice e o narrador em terceira pessoa. Na segunda parte, temos um narrador onisciente em terceira pessoa que sabe o porquê "Maria Alice escreve. Escreve pelo mesmo motivo que a mãe (a que foi enlouquecida) fotografava" (Geisler, 2018, p. 56). Em poucas páginas depois, à pergunta que nós, leitores, deveríamos responder, "Seu romance em uma frase de dez palavras" (Geisler, 2018, p. 59, grifo nosso), caímos na armadilha da ambiguidade do pronome possessivo seu. Antes que possamos formular uma resposta, é Maria Alice quem fala:
Esta é a minha história, sobre como eu fui procurar Lídia, que todo mundo acha que morreu - mas que está na Irlanda, e eu sei disso porque ela tem um blog em que ela me contou -, e sobre como acabei morando com vários grupos de gente ferrada que acha que está travando diálogos bem mais profundos do que está.
Isso.
Essa é a minha história.
E este é o meu livro (Geisler, 2018, p. 59-60).
Quando o narrador em primeira pessoa diz que "Maria Alice é tão self-important e passa tanto tempo narrando a própria vida e recontando a própria história que Maria Alice às vezes narra a primeira pessoa em terceira" (Geisler, 2018, p. 65) confirma todas as nossas hipóteses acerca da negação e distância necessária que ela se dá para realizar o seu relato. Realmente inovativo, esse narrador se perde (deliberadamente) em suas próprias identidades: "Essa é a história da Lídia, que tem transtorno bipolar tipo II. Pelo menos é o que eu acho, Maria Alice acha, que ela tem/tinha" (Geisler, 2018, p. 65, grifos nossos).
Gérard Genette (2017) faz um estudo da voz e das relações com o sujeito considerando todos que participam da atividade narrativa. A subjetividade na linguagem se dá pela produção do discurso-narrativa, ao passo que "a situação narrativa de um relato de ficção nunca se confunde com sua situação de escrita" (Genette, 2017, p. 290). Na citação anterior, que fizemos de De espaços abandonados (Geisler, 2018), demonstra como o conceito de metalepses aparece em uma narrativa quando o poeta opera ele próprio os efeitos que conta; por conseguinte, "qualquer intrusão do narrador ou do narratário extradiegético ou de personagens diegéticos num universo metadiegético" (Genette, 2017, p. 293) a fim de causar um estranhamento. Tudo faz parte da história de acordo com o teórico, que entende que "toda narração é, por definição, virtualmente feita na primeira pessoa" (Genette, 2017, p. 294). A alternância das narrações autodiegéticas e heterodiegéticas em De espaços abandonados (Geisler, 2018) são tão paradoxais quanto a narração proustiana em primeira pessoa e também onisciente trazida pelo autor.
No capítulo seis do livro dentro do livro, "De quem é a voz?", a autora realiza uma retomada teórica sobre a escolha do ponto de vista para uma narrativa. Não nos estenderemos sobre as diferenciações que o narrador faz entre a primeira e terceira pessoa, mas é interessante sua sugestão ao leitor (possível escritor) acerca de seus próprios procedimentos estilísticos dentro de De espaços:
Se você estiver escrevendo experiências pessoais, ou memórias, um conselho que eu daria seria usar a terceira pessoa o máximo possível, mesmo que aquilo tenha acontecido com você, mesmo que queira usar a primeira pessoa mais tarde. Isso ajuda a ver eventos dos quais você participou com a distância necessária, analisando o todo de forma a interessar o leitor. Força a pensar na cena, sair de si mesmo, despersonalizar. Isso ajuda a ficcionalizar detalhes de que você não lembra — e isso é muito necessário em memórias. Não tenha medo de mudar pontos de vistas e pessoas à procura de um efeito que funcione melhor para você (Geisler, 2018, p. 67, grifos nossos).
Maria Alice, em itálico e no final deste capítulo, demonstra como é ela — enquanto narradora — quem conduz a narrativa em terceira pessoa. Aqui, brinca-se com a credibilidade de uma narradora onisciente digna de confiança que claramente é, também, protagonista e narradora em primeira pessoa.
Tudo que está na terceira pessoa aconteceu. E se sabe que aconteceu porque o(a) narrador(a) é onisciente e confiável. O(a) narrador(a) é sempre confiável. O(a) narrador(a) não mentiria sobre aonde ele vai durante a noite. O(a) narrador(a) pode ver. E tudo que está na terceira pessoa aconteceu com certeza. Aconteceu porque eu sei que aconteceu (Geisler, 2018, p. 68).
No capítulo em que constam as fichas das personagens a serem preenchidas pelo leitor, entre lacunas e espaços preenchidos, há mais uma vez a distância necessária entre a primeira pessoa (Maria Alice) e a terceira pessoa que faz comentários. A construção de identidades é realizada a conta-gotas, de rascunho a rascunho, e cada lacuna pode ser preenchida (antes e depois) pelo leitor com liberdade. No convite às 366 perguntas, várias já estão respondidas não só por Maria Alice ou pelo narrador onisciente neutro, mas por personagens como Caio, irmão de Maria Alice, Bruna e Maicou, personagens que viveram com Maria Alice na Irlanda. Em dado momento, o narrador em terceira pessoa conversa diretamente com você (Geisler, 2018, p. 117) sem que saibamos de qual personagem ele está falando.
O guia ao leitor é implícito, fazendo com que a leitura seja constantemente picotada entre vozes que, na trajetória de leitura, apontam para Maria Alice como a personagem e narradora principal.
60
Como você gostaria de ajudar nosso mundo? Você tenta de fato?
Caio e eu estivemos na sala de espera do hospital. Dois dias antes, nosso pai saíra em uma viagem inesperada de trabalho, das que coincidiam com as marés baixas de Lídia (Geisler, 2018, p. 151).
100
Que posses são as mais valiosas em sua família? Você tem uma em particular? Descreva esses itens.
Bom, meu pai não gosta de pessoas. Ele não gostava de mim.
O pai de Maria Alice não confiava nela porque sabia que a filha já não enxergava bem. Na verdade, ele não confiava no mundo ao redor dela. (Geisler, 2018, p. 176).
***
179
Como você usa a Wikipédia? (Geisler, 2018, p. 237).
O DIALOGISMO EM DE ESPAÇOS ABANDONADOS (GEISLER, 2018): A TEORIA DA NARRAÇÃO MULTIPESSOAL
De antemão, aprendemos que o dialogismo é um conceito formulado por Mikhail Bakhtin (1990) ao observar a interação das dinâmicas das enunciações, tais como acontecem no livro analisado por este artigo. Nas palavras de José Luiz Fiorin (2016, p. 27), "todo enunciado é dialógico. Portanto, o dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem", pois "todo enunciado constitui-se a partir de outro enunciado, é uma réplica a outro enunciado". Se todos os fenômenos analisados à luz do dialogismo são considerados em sua bidirecionalidade, a presença do outro na obra de Luísa Geisler (2018) não se justifica somente enquanto conversa entre narrador e leitor ou até mesmo as passagens epistolares. Na realidade, pretendemos mostrar que a alteridade está presente no livro porque, mediante o dialogismo, demonstra-se também o próprio Brasileiro — em maiúsculo — como o Outro, em uma relação de poder que se configura entre nativos e imigrantes.
Em "O discurso do romance", Mikhail Bakhtin (1990) nos demonstra que não existe nenhum discurso neutro; todo discurso é comprometido. Ao falar sobre a bivocalidade de um discurso, em sua relação em dissonância, traz à tona os contrastes ideológicos e sociais que também fazem parte da realidade para além da ficção. Em um romance dialógico, então, o narrador processa o heterogêneo em vozes para dentro e fora do discurso, indo de encontro ao que apresentava a estilística, "que ignora a vida social do discurso fora do atelier do artista, nas vastidões das praças, ruas, cidades e aldeias, grupos sociais, gerações e épocas" (Bakhtin, 1990, p. 71). A forma e o conteúdo, unidos, transformam a palavra viva dentro do discurso em parte imprescindível para a teoria bakhtiniana.
Dito isso, o romance
tomado como um conjunto, caracteriza-se como um fenômeno pluriestilísitco, plurilíngue e plurivocal. O pesquisador depara-se nele com certas unidades estilísticas heterogêneas que repousam às vezes em planos linguísticos diferentes e que estão submetidas a leis estilísticas distintas (Bakhtin, 1990, p. 73).
Na ideia de pluralidade estilística, o autor nos dá algumas opções de composição nas quais o texto se decompõe habitualmente:
-
"a narrativa direta e literária do autor", de qualquer maneira multiformes;
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"a estilização de diversas formas da narrativa tradicional oral", mais conhecida como o gênero russo skaz;
-
as "estilizações de diversas formas da narrativa (escrita) semiliterária tradicional (cartas, diários etc.)";
-
formas literárias que "estão fora do discurso literário do autor", como informações de caráter científico, filosófico etc.;
-
"os discursos dos personagens estilisticamente individualizados" (Bakhtin, 1990, p. 74, grifo nosso).
A terceira opção de unidade estilística é compatível com o que vemos em De espaços abandonados (Geisler, 2018), com a utilização das mais variadas linguagens — inclusive da fotografia — para que se forme o olhar do(s) narrador(es) perante a narrativa, e inclusive o olhar do leitor, que é colocado como narrador em certo momento. Fará sentido, então, a constatação de que "o romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais" (Bakhtin, 1990, p. 74).
A Figura 1 demonstra como a utilização de fotografias no livro de Geisler (2018) não só demonstra a diversidade de linguagens utilizadas na sua construção mas, de maneira extremamente metalinguística, traz à tona a problemática máxima da imigração e de romances que se passam em um entrelugar como Brasil-Irlanda: a linguagem, com base em dois anúncios, lado a lado, de venda de um colchão de solteiro.
Ora, se todo discurso tem uma marca social e todo agrupamento humano é heterogêneo, a admissão de uma variedade de vozes sociais e correlações que passam — inegavelmente — à relação de poder entre narrador e leitor, mas também entre nativo e imigrante, o que também passa pelas "enunciações e as línguas (paroles - langues), este movimento do tema que passa através de línguas e discursos, a sua segmentação em filetes e gotas de plurilinguismo social, sua dialogização" (Bakhtin, 1990, p. 75). Isso é visto em momentos como nos quais o narrador evoca a presença do "Brasileiro" (em maiúsculo) ou do "Irlandês".
Retomando o tópico do plurilinguismo, este só se formaria por intermédio de um verdadeiro meio da enunciação, considerado "dialogizado, anônimo e social como linguagem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado como enunciação individual" (Bakhtin, 1990, p. 82). Assim, "cada enunciação que participa de uma "língua única" […] pertence ao plurilinguismo": "trata-se da língua do dia, da época, de um grupo social" (Bakhtin, 1990, p. 82, grifos nossos), o que corrobora o trabalho dos diversos gêneros textuais encontrados em De espaços abandonados (Geisler, 2018). Desta maneira, é por meio da variedade desses gêneros encontrados no livro, como a correspondência, que se cria a celebração da alteridade pelo dialogismo — apontando, também, para as problemáticas de um grupo social heterogêneo como os de brasileiros residentes na Irlanda e dos nativos da ilha. A utilização da expressão "língua única" por Mikhail Bakhtin (1990) se impõe como uma ótima reflexão para com sua pertinência a este texto. É por meio da língua única de cada dispositivo dialógico na narrativa que se pensa na força ambivalente entre língua inglesa e língua portuguesa em romances como os de Luísa Geisler (2018).
O clash entre as duas línguas (nativo versus imigrante, colonizador versus colonizado) se dá na maneira sutil com a qual a autora do romance trabalha as mudanças de palavras em português para o inglês, não só como se é mostrado na Figura 1 mas em outras situações cuja capacidade de comunicação foi permeada pela ocorrência de frases em inglês e português, concomitantemente.
Dessa maneira,
ao interromper com seu sentido e com sua expressão através do meio de expressões de acentos estrangeiros, harmonizando-se e dissociando-se com ele em diversos aspectos, o discurso pode dar forma a sua imagem e ao seu tom estilístico neste processo dialógico (Bakhtin, 1990, p. 87).
Adalino Cabral, em 1985, publicou sua tese de Doutorado em Filosofia intitulada Portinglês: The Language of Portuguese-Speaking People in Selected English-Speaking Communities, sendo a primeira referência ao termo que configura a junção das duas línguas. Os ajustes que o imigrante que fala português sofre ao imigrar ao país anglófono passam pela questão linguística, de maneira a se integrarem na sociedade. Portinglês, então, serviria "to identify English borrowed terms and expressions in Portuguese speech" (Cabral, 1985, p. 14), denotando a relação de poder entre as duas línguas como fator crucial para o processo de assimilação de valores culturais como a língua nacional.
Em Belfast. Na cozinha. […] Cartazes que eu decorava. Eu usava para decorar o caminho. Stand back. Redmond. Esquerda. Protestantes adormecidos na rua. Your bill may pass parliament but it will not pass Ulster. E ir a pé pro trabalho. Mas em Belfast. Se constroem navios. Muitos navios. Um pórtico gigante de metal. They build ships here, fazem navios aqui (Geisler, 2018, p. 130-131).
Pensemos, então, em mais ressonâncias do dialogismo no romance de Luísa Geisler (2018). O plurilinguismo ocorre principalmente, na perspectiva do autor, pelo fato de dialogizar "a própria língua, a concepção linguística do mundo (a forma interna do discurso)", o que nos diz respeito aos gêneros textuais diversos utilizados ao decorrer da obra; feito que seja o lugar "onde o diálogo de vozes nasça espontaneamente do diálogo social das "línguas", onde a enunciação de outrem comece a soar socialmente alheia" (Bakhtin, 1990, p. 93). Dessa maneira, ao mesclar correspondências, notas fiscais de supermercados, questionários e fotografias, os discursos criam o que se chama de romance: abarcando as particularidades dos sujeitos, tem a característica de viver "fora de si mesmo, na sua orientação viva sobre seu objeto" (Bakhtin, 1990, p. 99).
NOME:
Maria Alice
Papel na história:
a Filha
Conexão com o protagonista:
a Filha
Data de nascimento e/ou: morte
nascida
OCUPAÇÃO:
___________________________________________
DESCRIÇÃO FÍSICA:
___________________________________________
HÁBITOS E VÍCIOS:
___________________________________________
EM MUDANÇA?
() SIM
() NÃO
() A DEFINIR
EXPLIQUE:
___________________________________________
CARACTERÍSTICAS GERAIS (PERSONALIDADE):
___________________________________________ (Geisler, 2018, p. 100).
the cake is a lie não é uma frase que qualquer um de fato dia no jogo ou que apareça em qualquer lugar
maybe that's the point
(Geisler, 2018, p. 392).
Na perspectiva de Bakhtin (1990, p. 107), "as formas composicionais da introdução e da organização do plurilinguismo no romance, elaboradas no decorrer do desenvolvimento histórico desse gênero em seus diversos aspectos, são extremamente variadas". Ele dá primeiro o exemplo do romance humorístico, cujos representantes clássicos na Inglaterra foram Dickens e Thackeray, por exemplo. Aqui, a utilização da paródia se faz presente para reproduzir "tanto as formas da eloquência parlamentar ou jurídica, como […] das reportagens jornalísticas […] a linguagem científica […] o estilo bíblico" e, em geral, como algum personagem socialmente definido está na narração (Bakhtin, 1990, p. 107-108). Afastando-se de uma linguagem comum, como na utilização de jargões, há uma passagem clara de fala de um para outrem (Bakhtin, 1990, p. 107).
168
Com quanta atenção você ouve a letra de músicas?
Éramos neutros. Um amigo do Caetano tentava tirar uma música do Raimundos no violão ao fundo (a gente precisava devolver esse violão pra alguém?).
eu tô passando mal com saudade de mainha
Porra, Caetano, é o segundo mês.
ô mãe
^o mãe
^
vê se me manda um dinheiro
Eu já disse que esqueci, cara, Caetano se apoiava na pia que eu tô no banheiro. Ele terminava de enrolar um cigarro. Mas o que era uma emergência?
Esqueceu o caralho.
e não tem nem papel pra cagar (Geisler, 2018, p. 228).
Do que vemos da passagem acima, fica claro o que Bakhtin (1990, p. 113) quis dizer com "justamente o caráter plurilingue, e não a unidade de uma linguagem comum normativa, que representa a base do estilo". Evidentemente, isso passa pelo relato do narrador ou do suposto autor. Seu sinal dialógico, em "O discurso do romance", aparece pela "conjugação dialógica de duas linguagens e de duas perspectivas" na intenção do autor — configurado como um narrador em certas passagens do texto (Bakhtin, 1990, p. 119).
Mais:
O autor não está na linguagem do narrador nem na linguagem literária normal, com a qual está correlacionada a narrativa (embora ela possa estar próxima de uma e de outra língua), mas ele se utiliza de ambas para não entregar inteiramente as suas intenções a nenhuma delas; ele utiliza essa comunicação, esse diálogo das línguas em cada momento da sua obra, para permanecer como que neutro no plano linguístico, como "terceiro" na disputa entre as duas (mesmo que esse terceiro possa ser parcial) (Bakhtin, 1990, p. 119).
Enquanto o autor "está livre de uma linguagem una e única", assinalando a possibilidade do plano linguístico trabalhar ora com a linguagem por si na linguagem de outrem, ora por outrem na própria linguagem (Bakhtin, 1990, p. 119), podemos perceber a força que tem a utilização do(s) narrador(es) na irrupção do dialogismo.
Em "Eu, etcetera: Narração multipessoal (multiperson) e a variedade de narradores contemporâneos", Brian Richardson (2018) denota a importância teórica da conjunção de diferentes narradores e modos de narração em um mesmo texto literário. Na introdução deste capítulo de livro, comenta sobre romances nos quais "o pensamento e as ações do mesmo personagem são narrados em pessoas verbais diferentes, ou nos quais há uma convergência de narradores absolutamente discrepantes" (Richardson, 2018, p. 122-123), como é o caso explícito de De espaços abandonados (Geisler, 2018). Ao pensarmos na distância, tão citada aqui, ela se dá não somente em relação à língua inglesa e à língua portuguesa, ou ao próprio funcionamento de Maria Alice ao transferir seus pensamentos para a terceira pessoa do singular, mas também os momentos nos quais Bruna, por exemplo, narra a história.
Ué.
O Caetano e a Maria Alice foram ao cinema -
Que adultos.
Me escuta.
Eu ri, observando o apartamento limpo e uma mesa posta com luz de velas (Geisler, 2018, p. 225).
De acordo com a visão do autor, uma teorização acerca das variações de narração multipessoal reafirma "a importância da distinção entre narradores na primeira ou terceira pessoa (e modos homo- e heterodiegéticos)" (Richardson, 2018, p. 124). Posto isso, o autor examina alguns textos incluídos na definição, obras que oscilam posições narrativas. Elas não se situam em quaisquer categorias narrativas de maneira permanente, mantendo sua narração fundamentalmente ambígua. Essa oposição é demonstrada, posteriormente, por um círculo que nos remete àquele bakhtiniano, com uma oposição primária:
textos "centrípetos", que iniciam a narração ao produzirem uma variedade de vozes e posturas aparentemente discrepantes, para então reduzi-las a uma única postura narrativa ao final; e textos "centrífugos", que continuadamente proliferam uma galáxia irredutível de perspectivas diferentes, heterogêneas, e antitéticas (Richardson, 2018, p. 124).
Nessa perspectiva dialógica, o livro de Luísa Geisler (2018) se definiria por um texto centrífugo, com perspectivas diferentes mediante a — tímida — participação de outros narradores em primeira pessoa, como Maicou, Bruna e Caetano, ou na realidade seria um texto centrípeto, focado em Maria Alice desde a concepção da ideia de que o leitor deveria completar a sua história para ela? A alteração da narração entre várias pessoas que se relacionam à personagem principal, mas neste caso entre duas pessoas gramaticais, nos faz acreditar na segunda opção.
Brian Richardson (2018, p. 125) sabe que esse tipo de mecanismo literário não é unanimidade, mas que também não é novidade para a ficção contemporânea — "repleta de polifonia de vozes narrativas que competem entre si; mesmo quando a fala de um narrador parece fixa, vozes alternativas frequentemente ameaçam desestabilizar essa situação". Logo, enquanto sabemos que o romance se trata da perspectiva de Maria Alice porque, mesmo em terceira pessoa se entende que é ela fabulando este narrador, quando escreve "Seu romance em uma frase de dez palavras" (Geisler, 2018, p. 59), passa a função de narrar ao próprio leitor (isso sem contar com a narração breve de outras personagens).
Ao trazer o exemplo do romance de 1971 de Alberto e Moravia (Io e lui) (traduzido como Ego e Id pelo autor), "que dramatiza a batalha entre a razão e o desejo de um homem, apresentando cada um desses na sua pessoa verbal apropriada", demonstra o "drama de identidade" (Richardson, 2018, p. 125) que se instala ao longo do texto, o que pode ser comparado, evidentemente, à mescla de pessoas verbais deliberadamente criada pela própria narradora em primeira pessoa, Maria Alice. Ao mesmo tempo, citando o romance Água viva, de Clarice Lispector, traz a problemática do "eu" e "ele" diretamente para a relação com o leitor, haja vista que todos os pronomes se fundem ao decorrer da narrativa, atingindo seu clímax com o tu tornando-se eu.
Esse movimento é visto no início da segunda parte de De espaços abandonados (Geisler, 2018, p. 53): "Seja bem-vindo ao seu Primeiro mergulho na ficção. Este livro é bastante autoexplicativo e, como autor, o ideal é que você não precise lê-lo. Você quer escrever nele". Percebe-se, então, o caráter dialógico, metaficcional, paradoxal e inovador de toda a construção do romance, principalmente no que tange às relações entre o "eu" e "ele" e "eu" e "eles". Para José Luiz Fiorin (2016, p. 30), "a teoria bakhtiniana leva em conta não somente as vozes sociais, mas também as individuais", permitindo examinar relações dialógicas na fala cotidiana — o que se relaciona ao enredo específico do romance analisado. É evidente, contudo, que a questão da imigração entra como uma orientação, por intermédio da literatura, de que "a maioria absoluta das opiniões dos indivíduos é social" (Fiorin, 2016, p. 31).
Enquanto trazemos a ideia de que essa distância é expandida de forma a proteger Maria Alice, Brian Richardson (2018) aponta que, como leitores, não podemos ter uma distância confortável do "eu" e do "outro" na narração multipessoal, haja vista que não se determina um ponto de vantagem fixo. A diferença entre a narrativa em pessoa e em segmentos em primeira pessoa, "não apenas abole a distância temporal aparentemente inevitável entre o "eu" que experiencia e o "eu" escritor que relata esses eventos muito depois de terem ocorrido; ele também recusa a distinção entre posições de primeira e terceira pessoa" (Richardson, 2018, p. 129). Entretanto, a citação diz respeito a um romance em que a primeira pessoa é tida como uma ficção escrita diretamente por um escritor, ou seja, não como um personagem fictício como Maria Alice. Logo, enquanto um narrador em primeira pessoa "reivindica o material na terceira pessoa" (Richardson, 2018, p. 130), acreditamos ser possível criar uma distância apropriada para a narração e sua recepção (e não diminuí-la).
Tais técnicas
podem ajudar um escritor a reproduzir com mais precisão as fissuras retalhadas de uma subjetividade única […] definir de forma mais clara — ou implodir com mais eficiência — distinções convencionais entre diferentes personagens, mundos narrativos que competem entre si ou narrativas dentro da narrativa. De forma talvez mais importante, eles permitem um jogo livre de vozes múltiplas e podem ser vistos como uma prática que gera um grau mais elevado de dialogismo do que técnicas mais convencionais tipicamente permitem (Richardson, 2018, p. 130, grifo nosso).
Ao trazer o exemplo de romances como The Unamable, de Samuel Beckett, e obras mais tardias de Robbe-Grillet, o autor demonstra como todo o enredo revela ficções inventadas pela própria voz narrativa, "porquanto pessoas que aparentam serem independentes entre si são desintegradas em uma única voz narrativa" (Richardson, 2018, p. 140). Se à primeira vista podemos pensar que esse é o caso de De espaços abandonados (Geisler, 2018), ou seja, uma narrativa centrípeta, devemos nos lembrar de outras vozes contidas no romance, como as de todos os outros imigrantes que residiam com Maria Alice, sem falar de Caio e do próprio leitor da obra, um dos tópicos mais caros à análise. Portanto, me parece mais correto qualificar a narrativa de De espaços como centrífuga, possibilitando uma escala de narrações que foge à teoria narrativa tradicional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho buscou demonstrar como "a pessoa verbal é uma categoria indispensável em análise narrativa" (Richardson, 2018, p. 134), realizando uma significativa retomada de conceitos sobre pontos de vista até chegar na narração multipessoal através do dialogismo de Mikhail Bakhtin (1990). Acompanhando uma tendência contemporânea da narração multipessoal, De espaços abandonados (Geisler, 2018) nos parece uma narração centrífuga, que produz várias possibilidades de narração e justapõe narrações em primeira pessoa, terceira pessoa e outras perspectivas, como a extensa seção em que é o leitor o condutor e escritor de seu próprio livro.
A inclusão de mais vozes e tipos de vozes — por meio de outras personagens e outros gêneros textuais, como a carta, a fotografia, anúncios de jornais etc., tomam "a forma de mais perspectivas que narram o mundo de uma única figura" (Richardson, 2018, p. 134). Por sua vez, as possibilidades de definir este livro são inúmeras: o trânsito de vozes, que conta com a ativa participação do leitor, demonstra como unir em definitivo a narração multipessoal ao dialogismo acarreta leituras minuciosas de obras literárias.
Referências
- ADORNO, Theodor W. (2003). Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I São Paulo: Duas Cidades/34. p. 54-63.
- BAKHTIN, Mikhail (1990). O discurso do romance. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec/Unesp. p. 71-163.
- BENJAMIN, Walter (1987). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. p. 197-221.
- BOOTH, Wayne (1980). A retórica da ficção Lisboa: Arcadia.
- CABRAL, Adalino (1985). Portinglês: the language of Portuguese-speaking people in selected English-speaking communities Tese (Doutorado em Filosofia) – Boston College, Boston.
- FIORIN, José Luiz (2016). Introdução ao pensamento de Bakhtin 2. ed. São Paulo: Contexto.
-
FRIEDMAN, Norman (2002). O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Tradução: Fábio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i53p166-182
» https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i53p166-182 - GEISLER, Luísa (2018). De espaços abandonados Rio de Janeiro: Alfaguara.
- GENETTE, Gérard (2017). Discurso da narrativa. In: GENETTE, Gerard. Figuras III São Paulo: Estação Liberdade.
- RICHARDSON, Brian (2018). Eu, etcetera: Narração multipessoal (multiperson) e a variedade de narradores contemporâneos. Tradução de Nicole Didio. Revista de Letras da Universidade do Estado do Pará, Belém, n. 14, p. 123-144.
- RICOEUR, Paul (1997). Mundo do texto e mundo do leitor. In: RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa Campinas: Papirus. v. 3.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
14 Mar 2024 -
Aceito
17 Set 2024