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A comunidade que resiste: ficção e memória em A mais longa duração da juventude (2017), de Urariano Mota

Resumo

Este ensaio apresenta uma leitura do romance A mais longa duração da juventude (2017), do escritor e jornalista Urariano Mota, com foco nas complexas relações entre a tessitura ficcional do presente e a memória da ditadura civil e militar pós-64. Com base em teorias críticas envolvendo as relações entre a memória, a política e a estética (Ricoeur, Assmann, Derrida, Rancière), e em parte da fortuna crítica sobre a ficção brasileira contemporânea e a ditadura civil e militar pós-64 (Seligmann-Silva, Vecchi), o aspecto central abordado neste trabalho é o potencial crítico e criativo do uso da comunidade como resistência em diversos aspectos e elementos da narrativa de Mota.

Palavras-chave:
comunidade; ditadura civil e militar pós-64; ficção; memória

Abstract

This essay presents a reading of the novel Never-Ending Youth (2017), by writer and journalist Urariano Mota, focusing on the complex relationships between the fictional fabric of the present and the memory of the post-1964 civil and military dictatorship. Based on critical theories involving the relationships between memory, politics, and aesthetics (Ricoeur, Assmann, Derrida, Rancière), and partly on the critical fortune on contemporary Brazilian fiction about the post-1964 civil and military dictatorship (Seligmann- Silva, Vecchi), the focus of this work is the critical and creative potential of the notion of community as resistance in different aspects and elements of Mota’s fictional narrative.

Keywords:
community; post-64 civil and military dictatorship; fiction; memory

Resumen

Este ensayo presenta una lectura de la novela La duración más larga de la juventud (2017), del escritor y periodista Urariano Mota, centrándose en las complejas relaciones entre el tejido ficcional del presente y la memoria de la dictadura civil y militar post-1964. Basado en teorías críticas que involucran las relaciones entre memoria, política y estética (Ricoeur, Assmann, Derrida, Rancière), y en parte de la fortuna crítica sobre la ficción brasileña contemporánea y que aborda la dictadura civil y militar posterior al 1964 (Seligmann-Silva, Vecchi), el aspecto central abordado en este trabajo es el potencial crítico y creativo de utilizar a la comunidad como resistencia en diferentes aspectos y elementos de la narrativa ficcional de Mota.

Palabras-clave:
comunidad; dictadura civil y militar post-1964; ficción; memoria

A lembrança é mais forte que a dor da perda. A lembrança é mais forte que a dor da perda. A lembrança é mais forte que... A lembrança é... A lembrança é mais forte... A lembrança... A lembrança... [...] que a perda. [...] que a perda. Vocês se vão, eu fico. Vocês se vão, eu fico. Vocês foram, estou aqui. Estou aqui. No emaranhado, na nebolusa, nos nós atados pelo tempo. A lembrança, a perda, nós, aqui, agora. Serei só?

Em A mais longa duração da juventude, de Urariano Mota, publicado em 2017 pela editora LiteraRUA, temos um relato ficcional sobre a extensa duração temporal dos efeitos diretamente provocados pelos acontecimentos pulverizados na recente história política brasileira. É a partir da ditadura civil e militar iniciada em 1964, e sobre ela e suas consequências intermináveis, que se desnovela o enredo vivido e relembrado por um ex-militante clandestino (como o próprio se intitula), cujo desdobramento comungamos (narrador, personagem, autor e leitores) por meio das relações e das formas econômicas e culturais do presente pela via de uma política neoliberal. No texto, assim como na narrativa histórica do presente em que estamos todos imersos, Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA. faz uso estético da memória e da sua correlação com o sentido político da comunidade. Ou seja, nas relações entre o autor/narrador do presente, as personagens militantes do passado e os leitores (eu, nós), vislumbramos potentes dispositivos de resistência ao passado e ao presente autoritário e individualista. Será que podemos fugir desse lugar ontem que nos assola hoje?

No romance, as cenas de dissenso e suas inúmeras reativações do tempo são propostas estéticas de coparticipação para o leitor do presente, muito mais do que informes sobre acontecimentos do passado ditatorial. Propostas de intervenção e de ressignificação de como lidamos com o coletivo, de como podemos, numa utopia possível e paradoxal, pelo menos combater o sistema neoliberalista e sua avassaladora máquina de produção de individualismos inférteis e autodestrutíveis. Afinal de contas, como bem adverte Vladimir Safatle (2020SAFATLE, Vladimir (2020). A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 14-43., p. 29), precisamos encarar o neoliberalismo como a lógica da extrema gestão de si e a destruição máxima da solidariedade e dos laços comunitários.

No que tange à memória sobre a ditadura civil e militar pós-64, a comunidade pode vir a ser uma resistência às perdas arquivísticas dos feitos de indivíduos invisibilizados e esquecidos por uma narrativa oficial em torno da repressão e da militância. A comunidade resiste, ainda, aos movimentos e aos gestos neoliberais que buscam solapar as relações sociais calcadas na solidariedade e no convívio com o(s) outro(s).

Não se trata da comunidade calcada em laços identitários e/ou forjada com base em um comum nacional. Movimentos multiculturais e plurinacionais, assim como atravessamentos sociais e subjetivos de várias ordens, já nos deram mostras suficientes de que os arranjos comunitários encontrados na contemporaneidade se situam mais nas relações contingentes entre as subjetividades em constante mutação. Somos, juntos, uma multidão de eus. Portanto, comunidade aqui é compreendida muito mais pela singularidade da diferença do que pelo vínculo a priori a algum coletivo pressuposto; “uma comunidade que não se funde sobre a identidade (a semelhança), mas que se construa na rede da heterogeneidade (a ‘comunidade inoperante’ ou a ‘comunidade que está por vir’)” (Pedrosa et al., 2018PEDROSA, Célia; KLINGER, Diana; WOLFF, Jorge; CÁMARA, Mario (org.) (2018). Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 69).

Outra forma de compreensão da comunidade enquanto teia de relações solidárias se dá pela sutil tessitura da memória coletiva. Os laços mnemônicos são ativados no convívio com os grupos culturais, mas também por meio da convivência com as diferentes subjetividades coetâneas, muitas delas pela via dos conflitos de narrativas sobre o passado e sobre uma intenção de futuro. Recorremos, para isso, a uma relevante reflexão proposta por Ricoeur (2007)RICOEUR, Paul (2007). A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp. envolvendo a relação triádica entre o “si”, o “se” e o “próximo”. Segundo o pensador francês:

Não existe, entre os dois polos da memória individual e da memória coletiva, um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos? Esse plano é o da relação com os próximos, a quem temos o direito de atribuir uma memória de um tipo distinto. Os próximos, essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos, estão situadas numa faixa de variação das distâncias na relação entre o si e os outros. Variação de distância, mas também variação nas modalidades ativas e passivas dos jogos de distanciamento e de aproximação que fazem da proximidade uma relação dinâmica constantemente em movimento: tornar-se próximo, sentir-se próximo. Assim, a proximidade seria a réplica da amizade, dessa philia, celebrada pelos Antigos, a meio caminho entre o indivíduo solitário e o cidadão definido pela sua contribuição à politeia, à vida e à ação da polis. Do mesmo modo, os próximos estão a meio caminho entre o si e o se (apassivador) para o qual derivam as relações de contemporaneidade descritas por Alfred Schutz. Os próximos são outros próximos, outrens privilegiados. (Ricoeur, 2007RICOEUR, Paul (2007). A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp., p. 141).

Nesse jogo complexo e, ao mesmo tempo, dinâmico e criativo é que se forjam as relações solidárias com o passado, ou seja, com aquilo com que nos relacionamos cotidianamente e que, de certa forma, está relacionado com aquilo que já fomos. Uma sociedade não se forma apenas de presentes, mas sobretudo com o que fazemos no presente com o que trazemos de outrora. A variação das distâncias nas relações com o(s) outro(s), que originam o “se” das nossas subjetivações, é a mola propulsora de uma mobilização ética da coletividade que se quer justa com o passado. Já não mais se trata de uma sentença determinista do tipo: “A gente não modifica o passado, então para que revirá-lo?”.

Como exemplificação dessa atitude, recentemente por motivo da proximidade com os 60 anos do golpe de 64, quiçá por uma tentativa de manutenção de pretensa e frágil paz com setores militares que ainda permanecem na estrutura do Poder Executivo brasileiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu posicionar-se pelo silêncio e por deixar o passado na história. Questionado sobre o assunto em uma entrevista para a RedeTV e reproduzida em parte no site de notícias Publica, Lula afirma:

Eu, sinceramente, vou tratar da forma mais tranquila possível. Eu estou mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64. Eu tinha 17 anos de idade, estava dentro da metalúrgica Independência quando aconteceu o golpe de 64. Isso já faz parte da história. Já causou o sofrimento que causou. O povo já conquistou o direito de democratizar esse país. Os generais que estão hoje no poder eram crianças naquele tempo. Alguns acho que não tinham nem nascido ainda naquele tempo. O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país pra frente (apud Valente, 2024VALENTE, Rubens (2024). Nos 60 anos do golpe militar, “remoer o passado” é alerta sobre o presente. Publica. Disponível em: https://apublica.org/2024/03/nos-60-anos-do-golpe-militar-remoer-o-passado-e-alerta-sobre-o-presente/. Acesso em: 7 maio 2024.
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).

Diante disso, o que significa co(n)viver? Vejamos como o narrador do presente e também personagem do passado no romance de Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA. reflete a questão:

Quarenta e seis anos depois a pergunta ganha outro significado. No dia do enterro, com o cadáver saído do necrotério, quando a repórter perguntou “quem era Luiz do Carmo?”, eu respondi que para ele ainda não havia soado o momento da justiça. [...] Se a vida passa e os jornais não a percebem, que dirá de uma pessoa fundamental que não é celebridade? Mas o impossível ali eu recupero. Era irônico que, perseguido na ditadura como um terrorista, ainda depois, no tempo dos anistiados, Luiz do Carmo não conhecesse a justiça. Se antes havia tido a negação absoluta de direitos e de leis democratas, agora nos anos de governo eleito pelas urnas, quando podia ir e vir, discursar e escrever, ele continuava sem justiça. Mudavam-se os tempos, mudamos nós, e continuávamos mudos para todos. Pois o reconhecimento público não chegava. [...] Em seu favor, ela poderia dizer que seu hard de famosos merecia receber um upgrade. E o seu chefe, igualmente desconhecedor, a socorreria mais ferino com a frase “A memória dos jornais é bem seletiva”. [...] A culpa — se usamos a palavra redutora — era do conjunto da sociedade que esmaga a todos, que pulveriza tudo como um pozinho à toa (Mota, 2017MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA., p. 56-57).

No trecho supracitado, o pensamento é tecido por aquele que ainda vive e lembra, do amigo que observa, na agora ausência de um companheiro de antes, uma lenta e silenciosa desaparição do que foram, pelo menos para os que estão, os que virão. Apesar da existência “muda”, da constatação de uma prática e de uma dinâmica própria da atualidade, de uma política da desmemória e da redução esmagadora da vida — “que pulveriza tudo como um pozinho à toa” (Mota, 2017MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA., p. 57) —, o presente sempre inacabado da leitura do romance, diferentemente da “memória dos jornais”, insiste em reclamar os laços, as relações, os afetos e as recordações. Enquanto o que se publiciza nos anais do cotidiano e o que se celebra como feito estão aquém do que ainda não teve página oficial na história coletiva, o jorro mnemônico do solitário autor de ficções se apresenta como uma possível, entre poucas, oportunidade de inscrição de convivências que lutaram com a própria vida para a existência deste hoje que coabitamos.

Já em outra passagem do romance lemos:

De muitos que atravessaram na militância clandestina aqueles anos, poderíamos falar de uma Vida Curta e Triste sob o terror de Estado. E de todos podemos dizer que tínhamos vida dupla, uma oculta e outra legal. Sendo mais preciso, tínhamos uma existência legal e uma vida clandestina. Na primeira, mantínhamos uma dolorosa e sufocante aparência de ser, em si mesma uma farsa que representávamos sob ameaça de morte. Na segunda, éramos quase livres, pois mantínhamos um espaço de humanidade, de pessoas apesar da opressão. Uma vida, enfim, que sorria para nós como prometida amante. Era, portanto, na sua negação legal, um suplício de Tântalo. Quando queríamos pegar a flor vermelha, papoula, narcótica e doce, ela se afastava. E quando apressados íamos tomá-la nas mãos, a morte nos imobilizava. Isso conduzia também a uma dupla moral. Os que nos submetíamos à tortura da sobrevivência em trabalho alienante, onde amargávamos ser jovens bobos e calados, estranhos, contribuímos para os clandestinos que levavam a vida gloriosa. Natural e necessária a contribuição. Natural a glória, porque estavam no front. Mas os da retaguarda estaríamos a salvo se os da frente caíssem? Quase nunca. Se não se vê uma ironia nesta frase, digo que o terror era democrático. A sociedade sem classes que sonhávamos, em uma versão macabra o terror fascista realizava. Onde antes a tortura e o assassinato de presos haviam sido exclusivos de negros e pobres, agora atingiam a todos. Em uma só fila, com faces idênticas todos éramos terroristas. Assim nos chamavam em infame versão os terroristas de Estado. No entanto, de terror era a vida de animais caçados. (Mota, 2017MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA., p. 177-178).

Chama a atenção na teia narrativa de recordações e reflexões o uso da terceira pessoa do singular como um verdadeiro nó(s) cerzido na relação constituída daquele que lembra como se davam as relações mais próximas entre si e os companheiros da subversão clandestina em relação aos outros companheiros considerados oficiais, os quais se tornariam, e se tornaram, os únicos inscritos no livro da memória coletiva da revolução.

Nas páginas oficiais da historiografia, dificilmente houve linhas para os que não tiveram nomes. O olhar distanciado, e também amargurado, nota e anota a ironia do discurso diante da prática da luta pelo bem comum que provocava, apesar dos seus objetivos, as suas rupturas e as suas feridas incicatrizáveis. É inegável, ainda, a percepção da existência de uma partilha, no ontem e no hoje, de sujeitos em prol de uma vida digna e livre, intensa e claramente defendida pelo autor/narrador/personagem do romance, porém igualmente há um sintoma patente, traduzido na divisão de classes, de uma ruptura de si, quando o Estado fascista o obrigava a uma existência dupla. O desdobramento subjetivo espiralado e decalcado na segura e firme colocação pronominal coletiva e inclusiva é, quiçá, o recurso discursivo mais potente utilizado por Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA. para falar não do passado ditatorial apenas, mas sobretudo de um presente que nos empurra a todo momento para uma existência estéril e falsamente personalizada.

Em tempos do hoje, enquanto o menino ergue a cabeça sobre o prato de sopa para ouvir a estranha notícia de que um comandante das forças armadas acaba de ser condenado pelos crimes cometidos há mais de 40 anos, uma chacina envolvendo menores ocorre numa viela escura de uma das favelas da maior capital do Hemisfério Sul. Jornais publicam ataques, alguns à base de violência física, de candidatos a cargos públicos às vésperas das eleições. Uma mãe solteira e seus três filhos pedem esmola nos arredores do Museu da Resistência, em São Paulo (SP). Empurram a Cracolândia para lá e para cá. O livro de Urariano Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA. permanece intacto nas vitrines da livraria, hoje nem tão frequentada assim como outrora.

O gesto do desdobramento de si por via ficcional pode e deve ser encarado como ativismo estético, já que a práxis do cancelamento do comum é norma de nosso cotidiano. Ainda segundo Safatle (2020SAFATLE, Vladimir (2020). A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 14-43., p. 29), “essa violência pede uma justificação política, ela precisa se consolidar em uma vida social na qual toda figura da solidariedade genérica seja destruída, na qual o medo do outro como invasor potencial seja elevado a afeto central, na qual a exploração colonial seja a regra”. Por isso, a busca pelo afeto e pelas relações comunitárias com a memória da co(n)vivência militante é uma tentativa de não sucumbir passivamente ao status quo, ao apagamento voraz e ferino do outro em si e de si nos outros. É o “se” de que fala Ricoeur (2007)RICOEUR, Paul (2007). A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp..

Diante desse problema, podemos inferir: e se tentarmos, diferentemente de parte considerável das narrativas produzidas para a compreensão do passado, reconhecer e destacar a responsabilidade dos sujeitos do presente com a memória dos que já se foram, mas que pairam por meio de lembranças afetivas? No caso das narrativas ficcionais, e da arte verbal mais especificamente, trata-se de exercer uma percepção mais ativa dos elementos mobilizados pelo narrador, mas também pela figuração do autor do romance, além da teia discursiva em que se situam as personagens da trama. Afinal de contas, lidamos com tempos diversos ao mesmo tempo que mobilizamos textos; e isso não se pode ignorar.

Sabemos que a institucionalidade ocupada por corpos e mentes do momento decide, com o povo que diz representar, que memórias se devem celebrar, quais memórias se devem enclausurar numa arquivologia conveniente aos seus interesses, além de se ancorarem na própria dimensão constituinte de arquivo, ou o seu “mal de arquivo” (Derrida, 2001DERRIDA, Jacques (2001). Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.). Nada é por um mero e simples acaso, mas fruto de jogos, de negociações e de disputas. Segundo Aleida Assmann (2011ASSMANN, Aleida (2011). Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Editora da Unicamp., p. 19):

Enquanto os processos de recordação ocorrem espontaneamente no indivíduo e seguem regras gerais dos mecanismos psíquicos, no nível coletivo e institucional esses processos são guiados por uma política específica de recordação e esquecimento. Já que não há auto-organização da memória cultural, ela depende de mídias e de políticas, e o salto entre a memória individual e viva para a memória cultural e artificial é certamente problemático, pois traz consigo o risco da deformação, da redução e da instrumentalização da recordação. Tais restrições e enrijecimentos só podem ser tratados se acompanhados de crítica, reflexão e discussão abertas.

No contexto da arte, recordação individual e memória cultural podem ser tratadas com “crítica, reflexão e discussão abertas”, desde que reconhecidas e validadas as formas de atuação de seus regimes estéticos. Se arte não é o real, tampouco ela se opõe a ele. A literatura brasileira tem tratado do período ditatorial e da sua herança traumática nos últimos anos com maior ênfase, acompanhando as discussões e os questionamentos levantados pelos usos do passado por parte das instituições e da sociedade civil. Para Márcio Seligmann-Silva (2014SELIGMANN-SILVA, Márcio (2014). Imagens precárias: inscrições tênues de violência ditatorial no Brasil. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 43, p. 13-34. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9942. Acesso em: 18 jun. 2023.
https://periodicos.unb.br/index.php/estu...
, p. 30-31), que também aponta um incremento da discussão ditatorial na esfera pública por meio da Comissão Nacional da Verdade, durante muito tempo houve um recalque do assunto, relegando-o ao foro privado e parental. Era como se quiséssemos ignorar tal passado, ainda que seus espectros habitassem o nosso cotidiano. Muito recentemente, o panorama era outro, uma vez que convivíamos diariamente com ameaças abertas de novas intervenções autoritárias e totalitárias, resultado de um novo encontro entre os quartéis e a sociedade civil conservadora e repressiva1 1 Parte considerável deste ensaio foi escrito durante o período de governo do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019–2022), sujeito extremamente devoto e defensor da ala mais conservadora dos militares remanescentes da ditadura civil e militar pós-64, os mesmos que tratavam a repressão, a violência e a censura como elementos básicos do regime político. Há que se reforçar que as lembranças e os desejos dos anos repressivos ainda permanecem ativos em parcela considerável da sociedade. .

Como sinaliza Roberto Vecchi (2020)VECCHI, Roberto (2020). A impossível memória de Araguaia: um patrimônio sem memorial? In: OLVEIRA, Rejane Pivetta; THOMAZ, Paulo C. (org.). Literatura e ditadura. Porto Alegre: Zouk. p. 45-58. acerca de um episódio histórico do período ditatorial — a Guerrilha do Araguaia —, “os fantasmas daquele tempo como um resto ainda opaco e pouco trabalhado, reemergem toda vez que os nós ainda irresolvidos da história do Brasil contemporâneo voltam à tona e recolocam o passado em jogo” (Vecchi, 2020VECCHI, Roberto (2020). A impossível memória de Araguaia: um patrimônio sem memorial? In: OLVEIRA, Rejane Pivetta; THOMAZ, Paulo C. (org.). Literatura e ditadura. Porto Alegre: Zouk. p. 45-58., p. 45). Numa apropriação de seu pensamento para aplicá-lo à memória pós-ditatorial, trata-se de um comportamento social que confirma a tese de Assmann (2011)ASSMANN, Aleida (2011). Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Editora da Unicamp. de que existe um jogo perspectivístico, e não binário, entre a memória dita funcional, que é mais seletiva e consciente, e a memória chamada cumulativa, que envolve a massa amorfa de imagens conscientes e inconscientes do passado soterradas pela primeira. Em tal jogo, enquanto a memória funcional é proscênio, a cumulativa funciona como pano de fundo sempre possível de emergir; com efeito, uma depende da outra e constitui a nossa relação com a memória (Assmann, 2011ASSMANN, Aleida (2011). Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Editora da Unicamp., p. 149). Jogamos o tempo todo. Estamos jogando agora.

Por sua vez, a literatura permite dar vazão às reflexões e aos imaginários que, nas mais diferentes visões, vislumbram questões do passado sem determinações. Seja por meio de jogos lúdicos com as memórias diversas, seja com os esquecimentos inerentes ao processo mnemônico, podemos testar diversas perspectivas sobre os inúmeros momentos que formam o período histórico. Eurídice Figueiredo (2017FIGUEIREDO, Eurídice (2017). A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras., p. 29) propõe a escritura literária como um suplemento aos arquivos sobre a ditadura, que permite imaginar situações e experiências extremas vivenciadas por homens e mulheres durante o período. Na esteira da proposta da pesquisadora e um pouco além, os recursos narrativos da ficção também questionam os arquivos existentes, assim como a ausência de outros, caso em que o romance de Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA. parece intervir de forma contundente ao reivindicar a existência de uma comunidade invisibilizada no ontem por necessidade de sobrevivência e no hoje por manutenção de uma injusta relação com os espectros.

Por outro lado, como resposta ética e estética, a ficção que rememora dá continuidade à existência do comum, da relação de afeto e de reconhecimento dos gestos do outro no outrora. Essa constatação da perda não é motivo para o encerramento da narrativa de resistência no romance de Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA.. Como o narrador/autor reflete:

A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, “atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora”. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência do fugaz. Nós só vivemos enquanto resistimos. Nós alcançamos a imortalidade, isto é, o que transcende a sobrevivência ao breve, porque a imortalidade não é a permanência de matusaléns decrépitos, nós só a alcançamos pelo que foi mortal, mortal, e sempre mortal não morreu (Mota, 2017MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA., p. 129-130).

Eis a vida, a convivência e a memória como elementos fulcrais da resistência ao tempo corrosivo. Pelo menos como utopia, como esperança da chegada de um novo trem, que ainda não veio. O que Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA. tenta como sujeito histórico, tanto como narrador e personagem, e mais ainda como autor da ficção, em que se faz narrador e personagem, é esticar a corda, prolongar a narrativa, emendar a história, e para tudo isso a linguagem se faz necessária, não sem os seus silêncios inerentes. No caso desse romance e de toda a arte verbal que escolhe retomar o passado para questionar os desvãos e os apagamentos, escrever, trocar palavras, articular sintaxes, cruzar nomes de pessoas, de lugares, de sentimentos e de sensações com datas e uma infinidade de sinais gráficos, não é luxo nem superfluidade de quem se sustenta no sistema mercantil editorial; pelo contrário, é ativismo e arte que servem de resposta e contraponto ao neoliberalismo livresco, ou apenas um grito de discordância perante a marcha cotidiana2 2 Cabe mencionarmos como exemplo desse a(r)tivismo editorial a própria editora LiteraRUA, que edita o romance de Mota (2017). Segundo a própria editora, “a LiteraRUA é um coletivo de autores e produtores que praticam cidadania através de livros e da Arte de Rua. Nossa missão é dar voz aos autores e artistas da cultura e da educação popular, nas mais variadas áreas, auxiliando assim para uma bibliodiversidade de temas, cenários e personagens. Em um mundo congestionado, certas cognições se tornam cada vez menos prováveis de se estabelecerem, seja entre os neurônios ou entre dois extremos da cidade. Dessa forma a LiteraRUA nasce para fazer a ponte entre o saber popular e a ciência e também do morro com o asfalto” (LiteraRUA, 2002) — descrição e compromisso que confirmam a intervenção estética sobre o passado ditatorial produzida no ato de leitura ficcional como uma reflexão crítica sobre a coletividade de muitos eus que somos todos. .

Pois, como também nos adverte Derrida (1994DERRIDA, Jacques (1994). Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará., p. 11):

É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos, quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido..

Portanto, eis uma possibilidade ao/no presente que habitamos. Conviver com os espectros, na sua ambígua condição de presença/ausência que lembra e luta contra apagamentos, como sugeriu Derrida (1994)DERRIDA, Jacques (1994). Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará., é tarefa dos que ficam como Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA. nos relata e nos ficcionaliza. Nesse sentido, comunidade, então, afirma o desejo e a necessidade de estar com os outros, mas também comprova a existência outrora do comum, do que vive e age no cotidiano, que, por conseguinte, faz parte de uma conjuntura social, econômica, cultural e política ainda maior, que pode ser denominada de Estado. Essa urdidura sensível de afetos com a qual nos comunicamos com o passado é o dispositivo que temos à disposição para montar a paisagem do futuro no agora. Tudo depende da maneira como encaramos as relações existentes e o resíduo ético do que herdamos, pois, se a preferência for pela conservação do que nos é transmitido e somente, com muita dificuldade haverá chance para outras formas de partilhar, mas, caso a opção seja por uma significativa alteração na ordem do que entendemos como o comum, aí quiçá poderá haver existências e convivências que, de fato, intervenham e estabeleçam um contraponto ao estado neoliberal.

No caso da engrenagem ficcional, o seu raio de alcance na significação do horizonte sensível das relações sociais só será efetivado quando o seu comprometimento com a herança ética transgredir os limites da prosa de entretenimento e da informação de superfície. Ficcionalizar, aqui, é fazer política. Não como o senso comum a compreende, baseando-se em meros interesses midiáticos que apenas a coloca como uma faceta da atuação humana, uma função social exercida por ditos representantes dos diferentes espectros da sociedade, mas como Rancière (2012RANCIÈRE, Jacques (2012). O espectador emancipado. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes., p. 60) aponta: “A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns”.

Diferentemente de sua função panfletária, tão habitual em outros períodos recentes da história, como na Revolução Russa e, em alguma medida, no âmbito da própria ditadura civil e militar pós-64 aqui no Brasil, escrever ficção com o sentido político é encarar a arte verbal como um dispositivo de ressignificação do real e do passado, pois a política, quando de fato exercida, e isso numa dimensão individual e coletiva, “ela o faz por meio da invenção de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns” (Rancière, 2012RANCIÈRE, Jacques (2012). O espectador emancipado. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes., p. 60).

De certo modo, é um gesto e um efeito político operar tais deslocamentos sensíveis na ordem pressuposta sobre a narrativa do passado para que se obtenha a possibilidade de uma nova paisagem, de outra compreensão do comum no presente, e isso perpassa por uma disposição crítica do ser que assume o ato escrito a fim de convidar os outros a partilharem suas perspectivas na contribuição de outra co(n)vivência possível. Encarar a sentença “o que já passou, passou” para reabrir o jogo e suas outras possibilidades de movimentos acerca do que “já passou” é um risco, porém igualmente um imperativo ético. Risco porque, nas brechas propiciadas no levantamento da tampa da caixa de Pandora, sempre se tornam possíveis outros apagamentos abusivos (Ricoeur, 2007RICOEUR, Paul (2007). A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp.).

Todavia, tratando-se do romance de Urariano Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA., o jogo fictício da montagem, da desmontagem e da remontagem mnemônica, por sua vez, sugere uma observação crítica sobre fatos históricos, agora reorganizados pela arte, por meio de uma estética que envolve outro pensamento, além de outros gestos compreensivos, o que convida o leitor atento e interessado a repensar que história e literatura não são opostas, contudo tampouco produzem os mesmos efeitos, ainda que utilizem os mesmos materiais de linguagem e referenciais sociopolíticos. Aqui, também, cabe repensar o que entendemos por “História”:

Não se trata pois de dizer que a “História” é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente que a “razão das histórias” e as capacidades de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o [que] se faz e o que se pode fazer (Rancière, 2009RANCIÈRE, Jacques (2009). A partilha do sensível: estética e política. 2. ed. Tradução de Mônica Costa Neto. São Paulo: EXO Experimental Org./34., p. 59).

Nesse sentido, a ficção que dialoga com o passado ditatorial é sintoma e resistência ao mesmo tempo, pois confirma a permanência dos espectros, mas combate, enquanto arte ativa, ou escritura do a(r)tivismo, os apagamentos forçados do passado e, como adverte Paul Ricoeur (2007)RICOEUR, Paul (2007). A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp., os abusos da memória e do esquecimento. Destarte, em A mais longa duração da juventude, o passado é um tempo alargado, por opção e confissão do narrador, como outra estratégia para dirimir o peso do presente e para forçar a reconfiguração da marcha que quer impor um futuro sobreposto e vitorioso. Vejamos mais um trecho do romance em que a questão é posta e refletida:

Lembrar? Não, é tão vivo, que a voz me fala: vivemos hoje o que o calendário indica ter ocorrido há 44 anos. É diferente da luz mecânica, congelada, da estrela morta há séculos, as pessoas retornam vivas com significados que não podíamos ver antes. Melhor, não retornam. Elas não saíram de nós. Continuam, na compreensão sobre elas que amadurecemos. São elas, transformadas pelo que delas só agora entendemos (Mota, 2017MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA., p. 291).

Permanece. Não está superado. Ainda permite filtrar a herança. A convivência com as lembranças de companheiros próximos, ou não, é a esperança que o autor e narrador cultiva, e, pela forma romanesca, convida os detentores dessa dívida com o passado a um claro enfrentamento conjunto aos tempos áridos e solitários do presente e do futuro. O romance de Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA. não opera a manutenção de uma imagem fixa e cristalizada da militância e da resistência no passado, mas antes reivindica, no presente da escritura e no sempre presente da leitura, espaços na história contemporânea para os pequenos feitos daqueles grandes indivíduos que presenciou como resistentes solitários e anônimos. Trata-se do processo estético e revolucionário interminável do escritor engajado, aqui tanto o autor de ficções quanto o historiador e o jornalista, de “escovar a história a contrapelo”, como assinalou Walter Benjamin (2020BENJAMIN, Walter (2020). Sobre o conceito de História: edição crítica. Tradução de Adalberto Muller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda., p. 74) em suas teses Sobre o conceito de História.

Afinal de contas, ressignificar o passado é também construir partilhas, outros mundos, onde e quando outras subjetividades possam existir. Não obstante, para isso, como dizem as vozes de outros povos que habitam os limites territoriais do que chamamos Brasil, é preciso frear, interromper e frustrar o progresso, ou ainda, “adiar o fim do mundo” (Krenak, 2019KRENAK, Ailton (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.). Isso pode ser feito com a atenção devida e atualizada às trajetórias interrompidas de vidas e dos discursos impedidos por uma ordem e uma forma de vida contrária às formas de vida no plural. A ficção apresenta-nos o dissenso como um dispositivo poderoso de reflexão e de efetiva ação no presente da leitura, assim como no vislumbre de uma existência no porvir. É a ruptura pela congregação, a parte com o todo organicamente cindido.

Notas

  • 1
    Parte considerável deste ensaio foi escrito durante o período de governo do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019–2022), sujeito extremamente devoto e defensor da ala mais conservadora dos militares remanescentes da ditadura civil e militar pós-64, os mesmos que tratavam a repressão, a violência e a censura como elementos básicos do regime político. Há que se reforçar que as lembranças e os desejos dos anos repressivos ainda permanecem ativos em parcela considerável da sociedade.
  • 2
    Cabe mencionarmos como exemplo desse a(r)tivismo editorial a própria editora LiteraRUA, que edita o romance de Mota (2017)MOTA, Urariano (2017). A mais longa duração da juventude. 2. ed. Recife: LiteraRUA.. Segundo a própria editora, “a LiteraRUA é um coletivo de autores e produtores que praticam cidadania através de livros e da Arte de Rua. Nossa missão é dar voz aos autores e artistas da cultura e da educação popular, nas mais variadas áreas, auxiliando assim para uma bibliodiversidade de temas, cenários e personagens. Em um mundo congestionado, certas cognições se tornam cada vez menos prováveis de se estabelecerem, seja entre os neurônios ou entre dois extremos da cidade. Dessa forma a LiteraRUA nasce para fazer a ponte entre o saber popular e a ciência e também do morro com o asfalto” (LiteraRUA, 2002LITERARUA (2002). Editora LiteraRUA. Seção: Quem somos. Disponível em: https://www.literarua.com.br/quemsomos. Acesso em: 7 maio 2024.
    https://www.literarua.com.br/quemsomos...
    ) — descrição e compromisso que confirmam a intervenção estética sobre o passado ditatorial produzida no ato de leitura ficcional como uma reflexão crítica sobre a coletividade de muitos eus que somos todos.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2023
  • Aceito
    13 Maio 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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