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A dúvida como tradição: uma poética da desconfiança na obra de Ana Martins Marques

Doubt as tradition: a poetics of distrust in the works of Ana Martins Marques

La duda como tradición: una poética de la desconfianza en la obra de Ana Martins Marques

Resumo

Este artigo baseia-se em uma reflexão sobre a relação entre a poesia brasileira do pós-guerra e a concepção de poeta encontrada na obra do autor austríaco Rainer Maria Rilke para sugerir como, especialmente no caso da poesia de Carlos Drummond de Andrade, há no Brasil uma tradição moderna antirrilkeana, a qual pensamos como constituída das ideias de suspeita, dúvida e desconfiança. Em seguida, detemo-nos sobre a obra da poeta mineira contemporânea Ana Martins Marques, procurando mostrar como a sua poesia se insere também nessa tradição, particularmente no que se refere à dúvida quanto à capacidade de a poesia nomear o mundo.

Palavras-chave:
Rainer Maria Rilke; Carlos Drummond de Andrade; Ana Martins Marques; dúvida; poesia brasileira moderna

Abstract

This article starts from a reflection on the relationship between post-war Brazilian poetry and the conception of the poet found in the works of the Austrian author Rainer Maria Rilke, to suggest how, especially in the case of the poetry of Carlos Drummond de Andrade, there is in Brazil a modern anti-rilkean tradition, which we suggest to be constituted by ideas of suspicion, doubt, and distrust. Next, we dwell on the works of the contemporary Brazilian poet Ana Martins Marques, seeking to show how her poetry is also part of this tradition, particularly concerning the doubt regarding poetry’s ability to name the world.

Keywords:
Rainer Maria Rilke; Carlos Drummond de Andrade; Ana Martins Marques; doubt; modern Brazilian poetry

Resumen

Este artículo parte de una reflexión sobre la relación entre la poesía brasileña de posguerra y la concepción de poeta encontrada en la obra del autor austríaco Rainer Maria Rilke para sugerir cómo, especialmente en el caso de la poesía de Carlos Drummond de Andrade, existe en Brasil una tradición moderna antirrilkeana, que sugerimos pensar como constituida a partir de las ideas de sospecha, duda y desconfianza. A continuación, nos detenemos en la obra de la poeta brasileña contemporánea Ana Martins Marques, buscando mostrar cómo su poesía también es parte de esta tradición, particularmente en lo que respecta a la duda sobre la capacidad de la poesía para nombrar el mundo.

Palabras-clave:
Rainer Maria Rilke; Carlos Drummond de Andrade; Ana Martins Marques; duda; poesía brasileña moderna

DEMIURGOS VERSUS DESCONFIADOS

O poeta austríaco Rainer Maria Rilke não inventou, mas foi quem talvez melhor tenha formulado as concepções de poesia e de poeta que, de uma maneira ou de outra, chegaram até nós como legado da modernidade: poeta é aquele que, pela força da sua expressão, representa toda a humanidade na tarefa de devolver às coisas, nomeando-as, uma existência que nem mesmo elas sonhariam em ter intimamente. É assim que a figura do poeta aparece nas Elegias de Duíno, especialmente na nona elegia. Na tradução de Dora Ferreira da Silva:

Mas porque estar-aqui é excessivo e todas as coisas

parecem precisar de nós, essas efêmeras que estranhamente

nos solicitam. A nós, os mais efêmeros. Uma vez

cada uma, somente uma vez. Uma vez e nunca mais.

E nós também, uma vez, jamais outra. Porém este

ter sido uma vez, ainda que apenas uma vez,

ter sido terrestre, não parece revocável.

[...]

Estamos aqui talvez para dizer: casa,

ponte, árvore, porta, cântaro, fonte, janela –

e ainda: coluna, torre... Mas para dizer, compreende,

para dizer as coisas como elas mesmas jamais

pensaram ser intimamente (Rilke, 1972RILKE, Rainer Maria (1972). Elegias de Duíno. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Porto Alegre: Globo., p. 51-52).

O poeta na sua acepção moderna é, assim, aquele que redime o mundo inerte das coisas sem linguagem ao nomeá-las e, ao fazê-lo, redime a humanidade mostrando que temos afinal um propósito — redimir o mundo. Em contraste, poderíamos chamar de “antipoesia” toda poesia que desconfia desse destino manifesto do poeta e da humanidade. Veja-se por exemplo este poema de Ferreira Gullar, que, diante da morte de outra poeta — Clarice Lispector —, formula uma tese em tudo oposta àquela de Rilke:

MORTE DE CLARICE LISPECTOR

Enquanto te enterravam no cemitério judeu

de S. Francisco Xavier

(e o clarão de teu olhar soterrado

resistindo ainda)

o táxi corria comigo à borda da Lagoa

na direção de Botafogo

E as pedras e as nuvens e as árvores

no vento

mostravam alegremente

que não dependem de nós (Gullar, 1987GULLAR, Ferreira (1987). Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olympio., p. 402).

O vazio deixado pela morte de Clarice é sentido por Gullar como uma obstinada independência das coisas em relação aos seres humanos; é nesse eclipse da poeta e da poesia que a verdade alegre do mundo vem à tona. Por sua vez, é preciso notar que, em certo sentido, as coisas — as pedras, as nuvens, as árvores — dependem do poema para mostrar que não dependem dele. Apenas a formulação da tese contrária àquela que ampara o poeta rilkeano não é o bastante para anulá-la; por mais que nomeie negativamente as coisas, nomeando a parte nelas que resiste em ser nomeada — a sua parte, precisamente, antirrilkeana, que, ao contrário da Elegia, “não depende de nós” —, o poema não obstante trabalha para chamar as coisas ao seu verdadeiro ser; nesse caso, o ser limite, já com um pé para fora da própria poesia, o ser que não precisa ou não pode ser dito.

Vistas desse ângulo, a ênfase cai sobre aquilo que, nas coisas, resiste alegremente a depender de nós e garante que o mundo exista num estado de autossuficiência que tem, afinal, efeito consolador. Ao recusar, ao menos no plano da enunciação, a ideia de que as coisas precisam de nós, o poema de Gullar (1984) recusa certa ideia de poesia — ideia esta que faz fundamento para boa parte da obra dele próprio, para quem o poema, como o autor gostava sempre de lembrar, nasce fortuitamente, produto espantoso das circunstâncias não previsíveis ou controláveis pelo poeta.

Há no Brasil toda uma tradição moderna que eu arriscaria chamar de antirrilkeana ou, mais precisamente, antidemiúrgica, da qual esse poema de Gullar (1984) participa. Não apenas em razão do eventual uso de recursos que na superfície parecem antipoéticos — a piada, o trocadilho, o cinismo —, mas porque, mais profundamente, articulam outra posição do poeta diante da linguagem, do ser e da sua relação.

O maior poeta desconfiado talvez seja Drummond, a respeito de quem Betina Bischof (2005)BISCHOF, Betina (2005). Razão da recusa: um estudo da poesia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Nankin. formulou a expressão “razão da recusa”; com efeito, há por toda a obra do poeta mineiro uma refinada ironia diante da poesia tal qual a nona elegia de Rilke (1972)RILKE, Rainer Maria (1972). Elegias de Duíno. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Porto Alegre: Globo. concebe, ironia que com alguma frequência se converte em confronto ou recusa explícita. “A máquina do mundo” é, provavelmente, a maior expressão dessa recusa, bem como, se assim se pode dizer, o grande poema anti ou pós-rilkeano. O que se tem em “A máquina do mundo” é o poeta que, diante do convite feito para que os seus sentidos se apliquem “sobre o pasto inédito / da natureza mítica das coisas” (Andrade, 2007ANDRADE, Carlos Drummond de (2007). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 302), rejeita não apenas o conhecimento absoluto do universo, mas também e sobretudo a capacidade de formulá-lo, fazendo do seu poema não a expressão direta daquela verdade, mas a descrição perfeita do ato de recusar. No poema, a verdade aberta pela máquina é sempre apenas aludida:

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste… vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo (Andrade, 2007ANDRADE, Carlos Drummond de (2007). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 302).

Mesmo ao dirigir-se em discurso direto ao “noturno e miserável” caminhante da estrada pedregosa, a máquina só se refere à verdade oferecida indiretamente, por meio de pronomes demonstrativos (“essa riqueza”; “essa total explicação da vida”; “esse nexo primeiro e singular”), que indicam como aquilo que se revela está mais além do que as palavras podem dizer. Com efeito, a riqueza, a explicação e o nexo revelados pela máquina são acessíveis apenas aos sentidos imediatos, isto é, ali na experiência efetivamente vivida: “Abriu-se em calma pura, e convidando / quantos sentidos e intuições restavam [...] / convidando-os a todos, em coorte” (Andrade, 2007ANDRADE, Carlos Drummond de (2007). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 302). Mesmo quando o sujeito retoma a palavra para enumerar ao leitor a sequência de maravilhas entrevistas, permanecemos no regime da indicação indireta: “o que nas oficinas se elabora, / o que pensado foi e logo atinge” (Andrade, 2007ANDRADE, Carlos Drummond de (2007). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 302-303, grifos nossos) etc. Ao final do prodigioso elenco de imagens a que somos apresentados, somos lembrados, mais uma vez, de que tudo isso não está senão “submetido à vista humana” (Andrade, 2007ANDRADE, Carlos Drummond de (2007). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 302-303, grifo nosso):

As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados

e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo o que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar

na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que tantos

monumentos erguidos à verdade;

é a memória dos deuses, e o solene

sentimento da morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana (Andrade, 2007ANDRADE, Carlos Drummond de (2007). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 302-303).

Se o caminhante viu com os próprios olhos a “total explicação da vida” que a máquina lhe abria, o fato determinante é que entre o que ele viu e o que ele pode dizer há um hiato — e esse hiato, quero sugerir, é a razão da recusa com que o poema se encerra. “A máquina do mundo” é um poema magistralmente bem escrito sobre um poema que o poeta se recusa a escrever, seja porque já não acredita mais ser possível escrevê-lo (“pois a fé se abrandara” [...] “como defuntas crenças convocadas / presto e fremente não se produzissem / a de novo tingir a neutra face”), seja porque a oferta vem tarde demais (“como se um dom tardio já não fora / apetecível”) e o que era necessário viver para escrevê-lo terminou por torná-lo supérfluo.

Com efeito, Rilke aparece nominalmente em Claro enigma, em chave de recusa, no negativo poema “Aspiração”:

Já não queria a maternal adoração

que afinal nos exaure, e resplandece em pânico,

tampouco o sentimento de um achado precioso

como o de Catarina Kippenberg aos pés de Rilke (Andrade, 2007ANDRADE, Carlos Drummond de (2007). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 262).

Aquilo a que o Drummond da virada dos anos 1940 para os 50 aspira é, ao contrário, a “fiel indiferença”, “pausada bastante para sustentar a vida” (Andrade, 2007ANDRADE, Carlos Drummond de (2007). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 262). Analisando a recepção de Rilke na poesia brasileira do pós-guerra, Vagner Camilo (2017)CAMILO, Vagner (2017). Nota sobre a recepção de Rilke na lírica brasileira do segundo pós-guerra. Navegações, v. 10, n. 1, p. 71-78. https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017.1.28357
https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017....
comenta o interesse especial que esse poema suscita para ilustrar precisamente a posição desviante de Drummond em relação à influência rilkeana que marcava a geração de 45. Segundo Camilo (2017, p. 75)CAMILO, Vagner (2017). Nota sobre a recepção de Rilke na lírica brasileira do segundo pós-guerra. Navegações, v. 10, n. 1, p. 71-78. https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017.1.28357
https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017....
, “a evocação a Rilke em ‘Aspiração’ faz-se não no sentido da adesão incondicional ao rilkeanismo, mas pela negação”. Comentando e contextualizando a primeira estrofe do poema, Camilo (2017, p. 76)CAMILO, Vagner (2017). Nota sobre a recepção de Rilke na lírica brasileira do segundo pós-guerra. Navegações, v. 10, n. 1, p. 71-78. https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017.1.28357
https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017....
continua:

Ainda na 1ª estrofe — a de maior interesse aqui pela referência expressa a Rilke — , o que se nega juntamente com a “maternal adoração” é o “sentimento de um achado precioso” que a esposa de Anton Kippenberg, dono da prestigiosa casa editorial Insel-Verlag e editor de Rilke, nutriu em relação ao poeta austríaco, sobre quem, aliás, ela escreveu um estudo de referência. Quem sabe, Drummond conhecesse a tradução francesa desse estudo, que saiu, em uma edição ilustrada, em 1944. A atitude de frau Kippenberg configura, em boa medida, algo daquele fervor e convicção que marcou a atitude do leitor de Rilke. [...] É essa atitude devocional que os versos de “Aspiração” buscam, afinal, recusar. Com isso, trata-se também de uma recusa à concepção do poeta como oráculo ou ser de exceção, “curandeiro da alma”, [...] detentor de uma verdade maior que interessa a todos e justifica a reverência e a idolatria de Catarina Kippenberg para com o poeta. [...] Essa atitude de constante ou “fiel indiferença” pode ter algum eco nos escritos do próprio Rilke, que falam de uma “indiferença íntima” [...] ou se voltam criticamente contra essa ordem de sentimento em poemas como “A morte do poeta” e a 5ª elegia duinense. Drummond, todavia, segue na contramão do rilkeanismo e sua acolhida curativa que, mesmo quando põe ênfase na negatividade, é para descartar a suspeita e assegurar a veracidade daquela promessa de salvação existencial.

TRÊS DIFERENÇAS E DUAS ALEGRIAS

Nessa posição de desconfiança ou suspeita, que Camilo (2017)CAMILO, Vagner (2017). Nota sobre a recepção de Rilke na lírica brasileira do segundo pós-guerra. Navegações, v. 10, n. 1, p. 71-78. https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017.1.28357
https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017....
identifica expressamente como antirrilkeana, a dúvida quanto à capacidade salvífica da poesia para nomear o mundo se transforma, ela mesma, em procedimento poético. Dada a importância de Drummond e especialmente a influência exercida por Claro enigma, não é de se espantar que o antirrilkeanismo drummondiano teve desdobramentos na poesia brasileira subsequente. Nesse sentido, creio ser plausível ler nessa mesma tradição a obra de uma poeta contemporânea, também mineira, Ana Martins Marques. Uma dúvida análoga à de Drummond se expressa, por exemplo, em “Lembrete”, do livro Risque esta palavra (2021b), no qual, assim como em “A máquina do mundo”, também está em jogo uma sequência enumerativa, em que o efeito cumulativo das imagens contrasta, na estrofe final, com o aviso para que o poema esteja à altura da multiplicidade maravilhosa do mundo:

LEMBRETE

Lembrar que

enquanto andamos

por estas ruas banais

sob um céu inestrelado

templos brancos como ossos

repousam entre oliveiras

quase igualmente antigas

uma mulher desfaz

sobre a nudez noturna

sua trança pesada

um pequeno lama

cabeceia de sono

e há leões e laranjas

falcões e hangares

anêmonas e zinco

um bando de antílopes

atravessa um pedaço de terra

como este

deixando-o depois

vazio de sinais

em silêncio um homem prepara

menos comida do que ontem

um a um

partem os barcos

de passeio

chove intensamente

sobre teleféricos

uma mulher vê

a cidade acender-se

à medida que anoitece

e para acalmar-se

conta as janelas

iluminadas

arrumam-se armários

roupas de pessoas mortas

envelhecem corpos jovens

envelhecem também

os automóveis

e as máquinas agrícolas

com uma rede veloz

recolhem-se do mar

peixes luminosos

que então serão deixados

afogando-se

na areia

alguém conhece

pela primeira vez

a enguia, o sexo, a escrita

pensar que devemos estar

à altura

disso (Marques, 2021bMARQUES, Ana Martins (2021b). Risque esta palavra. São Paulo: Companhia das Letras., p. 35-37).

A advertência contida nesse lembrete tem como pano de fundo uma distribuição de proporções inversa àquela do poeta demiúrgico rilkeano, para quem o mundo, em termos de intensidade de existência, está aquém da palavra. Já num livro anterior da autora, O livro das semelhanças (2015), essa inversão entre as escalas do mundo e do poema aparece:

POEMA DE VERÃO

Você está sob a luz

de certos poemas cheios de sol

sua mão faz sombra sobre a página

encobrindo algumas palavras

a palavra menina agora está à sombra

a palavra retângulo

a palavra brinquedo

as outras palavras ficam pairando

no poema como partículas de poeira

brilhando na luz

você gostaria de escrever poemas assim

em que se encontrasse de repente

o esqueleto alvo de um animal pequeno

ou em que um jovem casal dormisse

dentro de uma picape vermelha

ou ao menos em que houvesse uma raposa

vinho de maçã, cadeiras desdobráveis

e onde as cervejas fossem postas para esfriar

dentro de um rio

você gostaria de escrever um poema

em que acontecessem tantas coisas

e as palavras vibrassem um pouco

num acordo tácito

com as coisas vivas

em vez disso você escreve este (Marques, 2015MARQUES, Ana Martins (2015). O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das letras., p. 27).

A imagem da mão que faz sombra sobre as palavras impressas nas páginas de um poema serve de ilustração para o que viemos sugerindo até aqui. O que é da ordem do mundo e da vida faz sombra sobre o que é da ordem da escrita e da linguagem; não é a palavra que nomeia a coisa, revelando-a, mas a coisa, o corpo e a vida que encobrem a palavra, obscurecendo-a.

Vistas desse ângulo, as coisas são dotadas de uma existência dada e não precisam da linguagem para entrar no mundo — ao contrário, são as coisas que recebem as palavras no seu reino de semelhanças e diferenças, e o poema precisa pedir licença para entrar no âmbito vivo onde já habitam, como se desde sempre, os esqueletos, raposas, casais, picapes, cervejas etc. O expediente da enumeração, frequente na autora, com seu ar de aleatoriedade mundana e profundidade simples — semelhantemente ao que compõe quase todo o “Lembrete”, que vimos antes —, contribui para a sensação de variedade e riqueza de mundo que compõe a poesia de Ana Martins.

Nessa poesia, tanto quanto se trata de “penetrar surdamente no reino das palavras”, para evocar Drummond (2007) outra vez, se trata também de penetrar o reino barulhento das coisas e dos acontecimentos, buscando estar à altura do mundo. Trata-se sobretudo de fazê-lo armada apenas com palavras — portanto pouco armada, pois as palavras, como estamos vendo, não são confiáveis, se obscurecem sob a sombra sem poder fazer nada. O que se deseja é uma poesia atravessada por acontecimentos, em que as palavras “vibrem” num “acordo tácito / com as coisas vivas”; uma poesia na qual as palavras se vivifiquem pelo contato com as coisas, e não, vale insistir, em que as coisas acordem para a existência no contato demiúrgico com as palavras.

Trata-se, essa profusão de experiências extraídas da vida concreta e de todo dia, de uma linha de força da poesia contemporânea, visível também em poetas da mesma geração, como Angélica Freitas, Fabrício Corsaletti e Bruna Beber. Em Ana Martins, esse aspecto é particularmente modulado pela dúvida, pela desconfiança e mesmo, como nesse poema, pela dissimulação, já que ao final somos lembrados de que a tarefa é mais difícil e dúbia do que parece e de que esse poema que se escreveu não está à altura daquele outro, hipotético e desejado, que se prometia.

O tamanho menor da linguagem diante da vida volta a aparecer algumas páginas depois, no poema sem título “Pintores que pintam apenas títulos de quadros...”. Aqui o ângulo varia, e, se antes víamos o jogo de forças pela perspectiva da vida — da mão que sombreava as palavras, do eu que deseja compor um poema —, agora se adota o ponto de vista hipotético e divertido de uma realidade feita só, ou quase só, de linguagem:

Pintores que pintam apenas títulos de quadros

fotógrafos que só fotografam fotografias

atores com seus figurinos de palavras

com sua maquiagem de palavras

num cenário de palavras

viajantes de mapas, turistas de nomes de cidades

enamorados de nomes de homens

enamorados de nomes de mulheres

pais de nomes de crianças

até que seus próprios nomes morrem nas campas (Marques, 2015MARQUES, Ana Martins (2015). O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das letras., p. 62).

Por mais que gozem certa simpatia, esses artistas e cidadãos do reino das palavras, feitos inteiramente de linguagem e reproduzindo-se apenas como nomes, sofrem de uma flagrante falta de mundo. São pobres criaturas bidimensionais; suas vidas — se é que se pode chamar assim — são marcadas por feitos meramente repetitivos. O reino das palavras, se for o reino das palavras, é o reino do sempre mesmo, do nunca novo; nele habitam patéticos nomes que fazem nascer nomes, e que morrem nomes. Nomes que — ironia máxima — morrem “nas campas”, isto é, gravados sobre as pedras usadas para cobrir os túmulos. Morrem, portanto, para fora, sem ser enterrados; nem na morte penetram no mundo. A imagem do nome na lápide é das mais fortes para contrastar com a ideia do poeta demiurgo, o nomeador redentor. O nome na lápide está ali para, por toda a eternidade, marcar precisamente a ausência física e material daquele que o sustentou em vida. É o nome antipoético por excelência, palavra solta, trancada para fora do mundo, significante que flutua à procura de alguém ou alguma coisa para se acoplar. (Talvez os fantasmas que nas lendas populares assombram os cemitérios sejam exatamente isso.)

A dúvida quanto à pertinência da capacidade das palavras para nomear as coisas é tornada tema um pouco adiante, e ainda mais explicitamente, no sintético poema “Faca”:

FACA

Como chamar faca

tanto aquela

enfiada na fruta

quanto aquela

enfiada no peito?

como chamar fruta

tanto o sol polpudo da laranja

quanto a lua doce da lichia?

como chamar peito

tanto o peso oco do meu coração

quanto o peso oco do seu coração? (Marques, 2015MARQUES, Ana Martins (2015). O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das letras., p. 93).

O desajuste entre nome e coisa produz na poesia de Ana Martins a constante experiência de habitar uma zona fronteiriça, em que a palavra não cobre inteiramente a coisa que nomeia, nem a coisa se resume na palavra que quer cobri-la. A palavra faca é pouco para o tanto de facas que há no mundo, e mesmo a ideia do objeto, o objeto ideal faca, é pouco diante da multiplicidade de usos com os quais se pode empregá-la; ainda que seja a mesma faca, sob a mesma palavra, enfiá-la na fruta ou no peito é fator de produção de diferença1 1 Esse processo de diferenciação faz lembrar a hipotética “teoria dos números singulares” a que aspirava Valéry (2022, p. 112), na qual coexistem “diversos 3, diversos 5”. .

Com as frutas, dá-se algo semelhante, só que nesse caso o que escapa à uniformidade em que a palavra fruta desejaria resumir todas as frutas é a diferença natural entre o “sol polpudo da laranja” e a “lua doce da lichia” — duas imagens que, cada uma por si mesma, são exemplos de precisão e beleza e que ademais instauram talvez a mais antiga diferença possível, aquela entre claro e escuro ou dia e noite, transmutando a laranja em sol e a lichia em lua e atribuindo a uma e a outra cada uma das polaridades. Chamo essa segunda diferença de natural consciente de que a laranja-sol e a lichia-lua são construções simbólicas, cuja existência é fornecida pelo poema, contudo creio não estar enganado ao sugerir que essa distribuição simbólica de predicados se sustenta sobre uma diferença que o próprio poema atribui ao mundo natural, a saber, a diferença entre claro e escuro, sol e lua, dia e noite.

Por sua vez, é determinante para a revelação dessa diferença um deslocamento da perspectiva sob a qual usualmente se observam os objetos. Isto é, ainda que a laranja não seja literalmente um sol nem a lichia uma lua, cada uma tem em si atributos tão diferentes (polpuda, doce) que basta mudar ligeiramente a luz na qual as vemos para constatar que tampouco elas cabem juntas sob a mesma palavra fruta. Embora sejam ambas frutas, a laranja e a lichia pouco se parecem uma com a outra, posto que, sob certo ângulo, a laranja se parece mais com um sol e a lichia se parece mais com a lua. Se uma faca era diferente da outra apenas circunstancialmente, a laranja e a lichia são substancialmente diferentes; daí se poder falar em diferença natural, que diz respeito às coisas tais quais elas são, e não apenas como são empregadas.

Por fim, um terceiro modo de estabelecer diferenças completa o poema: insuficiente aqui é a univocidade da palavra peito para discernir entre o “peso oco” do “meu” e do “seu” coração. Ao contrário do que se deu com as palavras faca e fruta, contudo, os dois versos que representam a polaridade a ser diferenciada são praticamente idênticos: “tanto o peso oco do meu coração” / “quanto o peso oco do seu coração”. A diferença entre um verso e outro, excetuando o sinal de interrogação que arremata o segundo, se resume a duas palavras (tanto/quanto; meu/seu), que têm uma diferença mínima de umas poucas letras e que rimam perfeitamente. Sem ser a diferença dos distintos usos a que se presta o mesmo objeto, nem a diferença natural entre as substâncias de cada coisa, essa é uma diferença diferente das duas anteriores, pois se dá na singularidade absoluta entre um e outro indivíduo: meu ≠ seu. E, à diferença do que se passava entre a laranja e a lichia, uma claramente identificada como “sol” e outra como “lua”, aqui não há nada que qualifique um e outro sujeito a não ser o fato de serem, afinal, um e outro.

Vê-se assim que a diferença mínima é também a mais radical e irreconciliável: a não coincidência do que é praticamente o mesmo. Há algo de paradoxal nesse minimalismo absoluto, que a expressão peso oco capta, indicando que não só o vazio pesa, mas que diferentes vazios pesam diferentemente. Se na diferença natural estávamos no âmbito do simbólico, aqui estamos no âmbito puramente virtual da diferença absoluta entre duas coisas iguais.

Resumidamente, se quisermos insistir na leitura do poema como uma topologia de três tipos de diferença, podemos chamá-las, como estamos fazendo, de diferença prática, diferença natural e diferença absoluta. A primeira, entre as duas facas, é aquela entre os diferentes usos dos objetos; a segunda, entre as duas frutas, é dada pelos próprios objetos, independentemente do uso que se faça deles ou não; e a terceira, entre os dois peitos, é a diferença ao mesmo tempo mínima e total entre dois sujeitos, ou, mais genericamente, entre duas singularidades.

Por sua vez, é preciso notar que em momento nenhum esses poemas de Ana Martins, desconfiados que são da capacidade da linguagem para dar conta do mundo, sugerem que se deva simplesmente abandonar certas palavras, ou substituir umas por outras. O dado dramático dessa experiência com as palavras está no fato de que, afinal, a palavra peito sim nomeia o meu e o seu coração, como fruta nomeia perfeitamente a laranja e a lichia, e a faca que entra na fruta e no peito são, ao menos até certo ponto, a mesma faca. O resultado é que, nessa poesia, habitamos um mundo em que ao mesmo tempo é e não é possível nomear as coisas. Os nomes funcionam e não funcionam. Por consequência, a própria poesia ao mesmo tempo é e não é possível2 2 Lembremos novamente o poema finalmente escrito ao final de “Poema de verão”. .

Recuando um pouco mais até o segundo livro da autora, Da arte das armadilhas (2011), o problema está colocado em dois poemas, como “A descoberta do mundo” e “Resistência à teoria”:

A DESCOBERTA DO MUNDO

Procuro alcançar-te

com palavras

com palavras

conhecer-te

como quem

com uma lanterna e um mapa

crê empreender

a descoberta do mundo

levanto-me

estou sozinha no escuro

com os dois pés

no cimento frio

(onde estás

no que escrevi?) (Marques, 2011MARQUES, Ana Martins (2011). Da arte das armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 34).

RESISTÊNCIA À TEORIA

Um galo de lã

não tece a manhã

flores de tecido

não brotam no vestido

mapas no fundo

não são o mundo

com nenhum nome

se mata a fome

as uvas tampouco

nascem na vinha

sob a luminosidade

da palavra dia

(podes ver

o amor

brilhando

entre as letras?) (Marques, 2011MARQUES, Ana Martins (2011). Da arte das armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 56).

É interessante ler esses dois poemas lado a lado, pelo que têm de similar entre si quanto à estrutura, ambos terminando com uma estrofe entre parêntesis que formula da maneira mais clara possível a dúvida que primeiramente os pôs em movimento. Em cada um dos parêntesis — e, de fato, ao longo dos dois poemas como um todo —, pulsa em primeiro plano a ausência daquilo que as palavras não capturam. Enquanto “A descoberta do mundo” refere-se especificamente ao âmbito da escrita, “Resistência à teoria” trata de todo o aparato humano de produção de imagens: flores de tecido, mapas e palavras formam um mesmo conjunto de simulacros, inutilmente tentando decifrar o mundo. A estrofe que encerra o poema, por sua vez, é obstinadamente ambígua e se deixa ler tanto negativamente (não há amor algum brilhando entre as letras) como positivamente (apesar da dificuldade de representar o mundo, ainda assim, resistindo, o amor brilha entre as letras). As duas leituras são possíveis, dada a indecisão provocada pela articulação da frase “podes ver...?”.

Como acabamos por empreender esse sobrevoo de trás para frente sobre a obra da autora, não há por que parar aqui e não voltar ao primeiro livro, A vida submarina, publicado em 2009 e reeditado em 2021. Com efeito, precisamos voltar todo o caminho até essa obra de estreia para encontrar uma experiência inequívoca de coincidência entre palavra e mundo. A essa feliz coincidência a poeta dá o nome singelo e significativo de “alegria”. Mas, como todo remédio é também o seu próprio veneno, as coisas complicam-se quando constatamos, ao final do mesmo poema, que “alegria” é igualmente o nome daquela dessincronia que estamos desde o início perseguindo. Alegria é, afinal, o signo sob o qual nasce esta poesia da desarticulação e do desajuste duvidoso:

ALEGRIA

Nos dias em que o dia

parece coincidir com o teu desejo,

aguardas entre coisas que aguardam,

e entre coisas que ardem, ardes.

Aprendeste com os bichos os nomes dos bichos

e com o mar

o amor enorme do mar.

E então estás alegre como um pátio

como uma coisa de barro

posta sobre a mesa.

Tens nas mãos um livro quente

de coisas para cantar.

Toda a geografia do verão.

Dispões de palavras suficientes

para o mundo de que dispões,

e a tua idade coincide com a idade que tens,

e as horas do dia equivalem

às horas do teu corpo acordado,

e a isso chamas alegria.

Mas há também duas de desenfreado desencontro

em que as tuas mãos incendeiam o que tocam

e a tua boca ultrapassa as palavras

e o teu amor não sabe do que é amor

e o teu corpo está agudo e esbarra

e não cabe no mundo,

corpo de limalha e noite sibilante.

E a isso chamas também alegria (Marques, 2021aMARQUES, Ana Martins (2021a). A vida submarina. São Paulo: Companhia das Letras., p. 83).

À medida que a obra da autora vai amadurecendo, ao longo dos anos e dos livros, algo dessa alegria inicial parece nunca desaparecer por completo, fazendo com que a descoberta do desajuste seja por si própria prazerosa, mesmo nos poemas que sentem e formulam de maneira mais aguda a limitação da sua própria capacidade de entrar no mundo, no entanto a experiência de que sujeito e circunstância coincidam naquela alegria de “coisa posta sobre a mesa” se torna mais rarefeita, e com o passar do tempo aquela segunda alegria, a do desajuste, é que domina. Há na obra toda da autora um cada vez mais “desenfreado desencontro” entre linguagem e mundo, resultado da máquina de produzir diferenças que são os seus poemas — mesmo e sobretudo naqueles d’O livro das semelhanças — e que a poeta vai aperfeiçoando a cada novo livro.

Ora, o que significa falarmos em descompasso, desajuste, dessincronia etc., para além daquilo que, nessas questões, interessa apenas a poetas e críticos de poesia? Se há, qual é o lastro desse mal-estar, ou, mais precisamente, desse estar no mundo sempre um tanto de lado, nunca coincidindo inteiramente com o próprio desejo? A pista talvez esteja em atentarmos para o período coberto pela poesia de Ana Martins até aqui. Com efeito, entre a alegria de que falávamos agora, que aparece em livro em 2009, e o auge do descompasso, em Risque esta palavra, de 2021, vemos a intensificação do desajuste entre linguagem e mundo, o qual podemos agora formular como o progressivo descolar entre desejo e realidade. Os “dias em que o dia / parece coincidir com o teu desejo” se tornam mais raros; mais frequente vai se tornando a experiência da não coincidência, que, como não devemos esquecer, pode ser também alegre a depender do ângulo em que se a vê, embora de uma alegria, talvez possamos dizer, em tom menor.

Sem nunca ou quase nunca abordar esses temas de maneira explícita — e pouco tocando-os implicitamente —, o percurso poético de Ana Martins tem a chave para o processo de fundo concreto do desmoronamento da ilusão dos anos 2010. Se na análise política mais fria já desde 2003 se podiam encontrar críticos desconfiados dos rumos que o governo progressista vinha tomando e tomaria, é igualmente verdade que o sentimento de otimismo trazido pela ascensão das camadas mais pobres, pelo boom econômico e pela relativa paz social de que gozavam setores das classes médias durou até o início dos anos 2010. Tal otimismo via, no que antes eram as desigualdades e desajustes da sociedade brasileira, agora o signo da diversidade cultural a ser finalmente celebrada pelo Estado, numa espécie — como Vladimir Safatle (2023, p. 7)SAFATLE, Vladimir (2023). A construção estética do Brasil e seus colapsos: crítica, impasse e modernismos nacionais. Constelaciones, n. 15, p. 4-31. Disponível em: https://constelaciones-rtc.net/article/view/5275/5763. Acesso em: 25 fev. 2024.
https://constelaciones-rtc.net/article/v...
observou de maneira perspicaz — de estatização do programa tropicalista.

No pré-2013, no entanto, a miragem começava a desvanecer, e uma tensão já se instalava, aqui e ali, com o novo ciclo de manifestações de rua iniciado já em 2011, bem como com as tardias mas eventuais consequências da crise econômica global de 2008. Não creio ser de todo impróprio sugerir que aquilo de que a poesia de Ana Martins passa a desconfiar de maneira cada vez mais aguda tem a ver com a ideia, que também entra em crise nesse momento, de que era possível intervir diretamente na realidade, integrando dia e desejo, hora histórica e programa social.

A progressiva fragmentação (na forma) e desolação (no tom) da poesia da autora refletem, em escala menor, algo que também é da ordem dos processos de amplo escopo. Lembremos como, na campanha presidencial de 2022, todo o programa de Lula girava em torno da promessa de retorno àquela situação em que o país coincidia alegremente consigo mesmo. Para ilustrar com um exemplo, em entrevista ao programa do Ratinho durante as eleições daquele ano, após Lula dizer que aumentaria o salário mínimo, o apresentador pergunta “como?”, ao que o então candidato responde: “aumentando”. Não se trata aqui de fazer chacota da resposta de Lula; ela é muito mais verdadeira do que as relativizações economicistas usadas pelos liberais para justificar as “dificuldades” de melhorar as condições econômicas do povo. O que importa ver, contudo, é a simplicidade quase milagrosa do raciocínio contida na promessa de coincidência entre desejo e prática.

Por sua vez, o terceiro mandato do presidente, a partir de 2023, girava em torno da ideia de que o Brasil, ao elegê-lo, havia “se reencontrado consigo mesmo” e de que a tarefa agora seria reintegrá-lo, embora se saiba que isso só pode se dar maneira simbólica — e talvez nem isso —, dado que a realidade dá prova atrás de prova de que está irreversivelmente cindida. Seja como for, o que se repete, como se vê, é a promessa de que um dia retornaremos àquela primeira alegria.

O ACONTECER IRREVERSÍVEL

A partir de O livro das semelhanças, a fragmentação da realidade na qual o desejo da poeta se encena já não tem mais volta. Chamam a atenção os cacos, pedaços e estilhaços que aparecem no livro, como em “Tenho quebrado copos” — “tenho recolhido cacos / tenho observado brevemente seu formato / pensando que acontecer é irreversível” (Marques, 2015MARQUES, Ana Martins (2015). O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das letras., p. 101) — ou no poema-seção “Visitas ao lugar-comum”, dividido em 14 peças curtas, nas quais a poeta aborda uma série de expressões idiomáticas como “quebrar o silêncio” e “quebrar promessas”:

VISITAS AO LUGAR-COMUM

1

Quebrar o silêncio

e depois recolher

os pedaços

testar-lhes o corte

o brilho

cego (Marques, 2015MARQUES, Ana Martins (2015). O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das letras., p. 51)

14

Quebrar promessas

e ao recolher os cacos

discerni-los

entre aqueles

do silêncio

quebrado (Marques, 2015MARQUES, Ana Martins (2015). O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das letras., p. 56).

Essa concepção da realidade e da linguagem como um conjunto de estilhaços é central na obra de Ana Martins e tem seu desdobramento mais consequente (até aqui) no longo poema De uma a outra ilha, lançado como plaquete em 2023. O poema-livro, composto de uma série de fragmentos de extensão variada, é complexo e faz-se de três camadas temáticas principais: os trechos da poesia de Safo que chegaram até nós, as igualmente fragmentadas e incompletas informações biográficas acerca da vida da poeta grega nascida na ilha de Lesbos, e as também feridas e quebradas vidas dos imigrantes que atravessam o Mediterrâneo, especialmente aqueles que terminam por esperar longos períodos em postos de imigração improvisados construídos em países como a Grécia e em ilhas como Lesbos.

Chama a atenção de imediato, de um lado, a extraordinária articulação que a poeta faz dessas camadas, e de outro a profunda humanidade das imagens que o poema constrói nos seus momentos mais altos, sobretudo aqueles em que pinta os detalhes das vidas dos imigrantes, seus gestos, sentimentos, frustrações e expectativas. No todo, De uma a outra ilha é um conjunto de vastas linhas de correspondência, no qual uma camada está a todo momento significando, ou, talvez seja mais preciso dizer, traduzindo a outra, “como a rocha vulcânica / traduz a lava do vulcão” (Marques, 2023MARQUES, Ana Martins (2023). De uma a outra ilha. São Paulo: Fósforo/Luna Parque., p. 28).

Essa rede de sobreposições de temas e imagens é suplantada pela ideia-guia de ilha, que faz as vezes de tema, no que se refere a Lesbos, e de princípio formal, com os hiatos pontuados pelos asteriscos que ao mesmo tempo ligam e separam os fragmentos de poemas, servindo tanto para a construção de pontes inusitadas entre as diversas linhas temáticas quanto para permitir que se realizem guinadas súbitas de sentido, mudando de assunto ou de foco, como se saltássemos de uma ilha a outra:

 palavras como ilhas

cercadas de silêncio

por todos os lados

*

Palavras

em frangalhos

como se também a língua

tivesse passado

pelo domínio de Eros

  que dilacera

– o quebra-

membros

– e da fala

  estilhaçada

restasse

um arquipélago (Marques, 2023MARQUES, Ana Martins (2023). De uma a outra ilha. São Paulo: Fósforo/Luna Parque., p. 8).

Se há diversidade de temas que se entrecruzam, o que conduz esses entrecruzamentos é a tensão, a todo momento reativada no assunto e na forma, entre algo ou alguém na sua singularidade e o vazio que o separa do que, sendo-lhe alheio, não lhe é inteiramente estranho. Desse modo, o poema consegue uma rara sensação simultânea de isolamento e comunicação, análoga à proximidade que sentimos lendo a lírica amorosa de Safo, distante de nós dois mil anos e um oceano. Quão distante também não está a maioria dos leitores daqueles imigrantes que aportam na ilha de Lesbos, e, ao mesmo tempo, graças às semelhanças que a poeta vai semeando, quão próximos também não nos sentimos — nós, como ilhas, do outro, que também é uma ilha? Desses outros que

arrancaram com as mãos as próprias raízes

e com dificuldade partiram, carregando-as

como mulheres levando a barra dos vestidos

*

 que tudo perderam

mas não a memória do tempo

em que algo ainda tinham

e a carregam consigo

como um segundo coração (Marques, 2023MARQUES, Ana Martins (2023). De uma a outra ilha. São Paulo: Fósforo/Luna Parque., p. 20).

No que diz respeito à investigação que estamos fazendo aqui quanto aos descompassos entre a linguagem e as coisas, De uma a outra ilha, em razão tanto do seu fôlego de poema longo quanto do largo quadro histórico-social do seu tema, inscreve a questão num novo nível de complexidade. É que agora, e um tanto à diferença dos livros anteriores, na mesma medida em que a fragmentação da experiência se torna mais evidente, aquela dúvida de que falávamos parece dissipar-se.

De uma a outra ilha é ao mesmo tempo o poema mais fragmentado e o mais coeso da autora — e não parece menos significativo (também em razão do tema) que aquela alegria inicial parece converter-se agora numa sutil melancolia. Na forma, o livro é a aceitação dos descompassos; já não busca, para em seguida lamentar não alcançá-la, a feliz coincidência entre dizer e viver, mas concretiza, ao mesmo tempo que tematiza, a constatação de que a realidade está aos pedaços. Mais: de que ela sempre esteve estilhaçada, de que o caco, o incompleto e o resto são as suas unidades elementares. Por sua vez, trata-se de um poema cujos assuntos e a estrutura são feitos de fragmentos isolados, porém cujo procedimento consiste em costurar uma ilha à outra. De maneira muito interessante, ao descobrir que a “lei” da realidade é ela ser arbitrária na produção de fragmentos, o poema, alargando o seu escopo histórico e temático, alcança uma nova coesão. Esse papel coesivo é desempenhado por três elementos: o mar, o tempo e, de maneira menos explícita, mas igualmente consequente, a voz.

Anteriormente, dissemos que o poema varia constantemente de assunto e objeto; é preciso agora acrescentar que ele varia surpreendentemente pouco de tom. A voz que articula as múltiplas camadas do livro parece ser sempre a mesma — a voz da autora, que já encontramos nos poemas anteriores, sempre equilibrada entre a coloquialidade dos gestos e das imagens e alguma solenidade de tom. Sem ser monotônico ou entediante, o tom do livro é de tal modo constante nas suas sutis variações a ponto de ser tentador compará-lo com o som das ondas quebrando-se na praia. Com efeito, tanto o mar quanto o próprio tempo são as duas figuras no poema responsáveis por carregar os fragmentos — de poemas, de objetos, de terra, de vidas —, ao passo que permanecem sempre os mesmos na enormidade da sua indiferença:

O mar não escolhe entre a nau

e o naufrágio

como para a primavera é indiferente

o meu ou a abelha (Marques, 2023MARQUES, Ana Martins (2023). De uma a outra ilha. São Paulo: Fósforo/Luna Parque., p. 12).

A aproximação entre, de um lado, a voz poética que articula os fragmentos de palavras e, de outro, o mar e o tempo que levam, destroem e preservam um tanto aleatoriamente os fragmentos da realidade humana e natural é o grande lance formal de De uma a outra ilha e o que torna a sua leitura ao mesmo tempo comovente e assombrosa:

O trabalho dos séculos:

depositar camadas de coisas

sobre a terra

e depois fazer delas

de novo terra

disfarçar que o mundo é pobre

sobrepondo-lhe

adereços

O trabalho dos séculos:

guardar contra si mesmo

contra seu próprio apetite

restos de edificações

esqueletos de pássaros

inventários de barcos

um único brinco

porcelana trincada

depois destruir

de novo

tudo (Marques, 2023MARQUES, Ana Martins (2023). De uma a outra ilha. São Paulo: Fósforo/Luna Parque., p. 24).

Não se pode deixar de notar que mar, tempo e voz são, por sua vez, figuras da natureza e que, ademais, como vimos, estão inteiros e indiferentes ao estilhaçamento das partes que neles se propagam. O que costura os retalhos poéticos que formam o livro é algo que não participa dessa mesma condição de fragmento. E não participa, pois não pode ser dividido; pois mar, tempo e voz são infinitos — o primeiro e o terceiro simbolicamente, o segundo literalmente. Assim como a voz é a potência infinita que garante que qualquer coisa como palavras possam ser emitidas, o mar é a imensidão que liga as ilhas, e o tempo, a dimensão para todos os efeitos eterna da qual emergem os acontecimentos3 3 Diga-se de passagem, é muito acertada a composição da capa interna da plaquete, que traz a reprodução dos fragmentos de Safo sobre um fundo azul que vaza por entre as lacunas do pergaminho, dando a impressão de se estar vendo uma foto aérea da cadeia de ilhas do mar Egeu. .

Ao apresentar a realidade estilhaçada, mas contra o pano de fundo dessas três grandezas, Ana Martins (2023) evita que o poema se construa apenas como colagem de elementos díspares, o que teria como resultado uma forma artificiosa. O poema evita isso substancializando, explicitamente nas figuras do tempo e do mar, o infinito contra o qual os fragmentos aparecem; como consequência, a sua forma tem aspecto mais orgânico do que construído. Digamos que há, literalmente, um fundo de verdade na coleção de cacos que forma o poema — algo que o muito mais modesto “Visitas ao lugar-comum” não tinha, com seus curtos fragmentos numerados, os quais se sucediam por arbitrariedade da composição e formavam um todo plano, inventivo no uso das expressões populares, mas sem ponto de fuga que lhe desse maior profundidade de perspectiva.

Quando hoje se reitera com frequência e com razão que tudo é construção e que nada é natural, é interessante ver como Ana Martins (2023) consegue alcançar um efeito de organicidade trabalhando quase que exclusivamente com retalhos — sejam reais, como os de Safo, sejam simulados, como nas lacunas, elipses e suspensões que a poeta insere aqui e ali. Há uma grande dose de cálculo e composição na feitura de De uma a outra ilha; o notável, contudo, é que o seu resultado é a sensação de que estamos lidando com forças da natureza muito maiores do que nós, as quais decidem arbitrariamente sobre o destino dos nossos esforços.

Ao contrário de ser naturalizadora e alienante, no entanto, essa forma com fundo natural costura por trás aquilo que pertence a domínios díspares da história, da cultura e da geografia, mostrando como o mesmo mar em que se jogam as vidas dos imigrantes não europeus é aquele das viagens das narrativas poéticas antigas, e a mesma Grécia, berço da civilização ocidental, é um dos palcos do seu colapso, na catástrofe política e humanitária contemporânea.

Desse modo, criam-se conexões entre pontos que, em princípio, não estariam conectados, e se na economia do poema essas conexões são estabelecidas, em última instância, pelo fato de que todos os fragmentos se combinam e se equivalem diante da arbitrariedade representada pelo tempo e pelo mar — figuras de um deus maior, o acaso, que governa o poema —, algumas conexões são mais enfatizadas do que outras, no que o gesto organizador da autora vem ao primeiro plano. Vem para frente também a constatação da dose de arbitrariedade envolvida na preservação ou destruição dos fragmentos, que por sua vez escapa aos desígnios da artista ou de quem quer que seja. Assim, no belo trecho que encerra o livro:

Aconteceu de as coisas se destruírem

mas que algo delas não se destruísse.

Aconteceu de os lugares se espatifarem contra o tempo

mas que algo deles perseverasse no tempo.

Aconteceu de algo acontecer

deixando um rastro do acontecido.

Aconteceu com uma pegada de animal,

com o resto de um rosto num pano esgarçado,

com pentes, panelas, uma unha de urso.

Aconteceu com o que mais se amou

e com o que menos se amou

e com o mais útil e com o mais inútil

e com uma árvore e com um camundongo e com um coral

e com uma pedra e com um pneu e com um poema Ana Martins (2023, p. 32-33).

É esse feito de coesão obtido na conjunção de contrários — que preserva os fragmentos enquanto fragmentos, mas contamina-os da infinitude contra a qual eles surgem; e que guarda a autonomia construtiva da poeta ao mesmo tempo que revela que tudo se dá no escuro, e que ninguém sabe o que, de tudo isso, sobreviverá — que permite ao poema superar o predicado da dúvida. Não mais se almeja a um horizonte reconciliado em que se possam dizer adequadamente as coisas — em que as palavras vibrem num “acordo tácito com as coisas vivas”; até onde se pode ver, tudo é pedaço, como os poemas de Safo, irremediavelmente lacunares, ou como os sofrimentos e esperanças dos imigrantes, apenas parcialmente adivinháveis.

A ausência é um dado incontornável das coisas, que já chegam para nós incompletas. Por essa razão, não há nome que possa cobri-las por inteiro, pois no limite a própria linguagem vem, por assim dizer, fundida com o seu não. É por isso, no entanto, que tudo se equivale e corresponde — tudo são ilhas; fragmentos maiores ou menores, mais ou menos bem preservados; são, afinal, fragmentos: nau ou naufrágio, para o mar é indiferente. E a poesia, que é a arte das semelhanças, como a poeta nos lembra, floresce na equivalência universal dos fragmentos.

Ao fim e ao cabo, a poesia é possível, porque tudo é de uma arbitrariedade inexorável e pode bem ser que, dadas condições favoráveis e imprevisíveis, um poema chegue até nós e nos comova. No tempo de larga duração em que as coisas ocorrem, a única constante é o acaso que governa os acontecimentos. E se parece que esse movimento de apreensão da totalidade representa uma mistificação da história, das lutas, das imigrações em massa e das sociedades e culturas humanas, é preciso lembrar que talvez este seja o momento de arriscar ampliar a lente para capturar não a inexorabilidade das coisas tais como elas se apresentam agora, nessa quadra histórica — quando as mercadorias circulam, e as pessoas não —, mas, ao contrário, a absoluta arbitrariedade e sem-razão do atual estado do mundo e, em consequência, a liberdade que temos para mudá-lo.

Notas

  • 1
    Esse processo de diferenciação faz lembrar a hipotética “teoria dos números singulares” a que aspirava Valéry (2022, p. 112)VALÉRY, Paul (2022). Poiética (Cadernos). Tradução de Roberto Zular e Fábio Roberto Lucas. São Paulo: Iluminuras., na qual coexistem “diversos 3, diversos 5”.
  • 2
    Lembremos novamente o poema finalmente escrito ao final de “Poema de verão”.
  • 3
    Diga-se de passagem, é muito acertada a composição da capa interna da plaquete, que traz a reprodução dos fragmentos de Safo sobre um fundo azul que vaza por entre as lacunas do pergaminho, dando a impressão de se estar vendo uma foto aérea da cadeia de ilhas do mar Egeu.

REFERÊNCIAS

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  • BISCHOF, Betina (2005). Razão da recusa: um estudo da poesia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Nankin.
  • CAMILO, Vagner (2017). Nota sobre a recepção de Rilke na lírica brasileira do segundo pós-guerra. Navegações, v. 10, n. 1, p. 71-78. https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017.1.28357
    » https://doi.org/10.15448/1983-4276.2017.1.28357
  • GULLAR, Ferreira (1987). Toda poesia Rio de Janeiro: José Olympio.
  • MARQUES, Ana Martins (2011). Da arte das armadilhas São Paulo: Companhia das Letras.
  • MARQUES, Ana Martins (2015). O livro das semelhanças São Paulo: Companhia das letras.
  • MARQUES, Ana Martins (2021a). A vida submarina São Paulo: Companhia das Letras.
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  • MARQUES, Ana Martins (2023). De uma a outra ilha São Paulo: Fósforo/Luna Parque.
  • RILKE, Rainer Maria (1972). Elegias de Duíno Tradução de Dora Ferreira da Silva. Porto Alegre: Globo.
  • SAFATLE, Vladimir (2023). A construção estética do Brasil e seus colapsos: crítica, impasse e modernismos nacionais. Constelaciones, n. 15, p. 4-31. Disponível em: https://constelaciones-rtc.net/article/view/5275/5763 Acesso em: 25 fev. 2024.
    » https://constelaciones-rtc.net/article/view/5275/5763
  • SBT (2022). Sabatina com Luiz Inácio Lula da Silva. Candidatos com Ratinho. Youtube Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M-kvW21_roM&t=1365s. Acesso em: 30 maio 2024.
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  • VALÉRY, Paul (2022). Poiética (Cadernos) Tradução de Roberto Zular e Fábio Roberto Lucas. São Paulo: Iluminuras.

Editora de seção:

Patricia Trindade Nakagome

Editor:

Paulo César Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2024
  • Aceito
    13 Maio 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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