Resumo
Na contramão da maior parte da fortuna crítica sobre Alberto Mussa (1961, Rio de Janeiro-RJ), este artigo escolhe não uma abordagem parcial, restrita a um livro ou conto, e sim uma visão de conjunto da obra. A partir de uma leitura sintética de seus principais livros, o trabalho propõe um esquema para a compreensão do conjunto, valendo-se de algumas imagens conceituais: haveria um momento cartográfico (1997-2006), em que o autor testa recursos formais e deles se apropria; depois, um intervalo radical (2007-2010), em que Mussa diminui a preponderância da ficção em sua escrita, em busca de um diálogo com suas “raízes”, isto é, obras, gêneros e figuras por ele tomados como base de sua poética; e, por fim, um momento expedicionário (2011-2018), quando seus esforços criativos se voltam para um único projeto: os romances do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Alberto Mussa; literatura brasileira contemporânea; revisão de literatura
Abstract
Contrary to most critical literature on Alberto Mussa (1961, Rio de Janeiro), this article focuses not only on one of his books or short stories but rather on a comprehensive overview of his work. By quickly analyzing all of his novels and short story collections, the study offers a comprehensive overview of his literature, proposing a schema for understanding his oeuvre, utilizing some conceptual images: there is a cartographic moment (1997-2006), in which Mussa experiments with form, selecting what suits best his fiction. Then, there is a radical intermission (2007-2010), in which he moves a little bit away from creative literature and explores what he deems the “roots” of his poetics, i.e., works, genres, and figures he considers foundational to his writing. Finally, there is an expeditionary moment (2011-2018), with a concentration of efforts into a single project: the novels of his Mythical Compendium of Rio de Janeiro (Compêndio Mítico do Rio de Janeiro).
Keywords: Alberto Mussa; contemporary Brazilian literature; literature review
Resumen
En contraposición a la mayoría de los estudios sobre la ficción de Alberto Mussa (1961, Rio de Janeiro), este artículo elige analizar no solo un libro o algunos cuentos, sino el conjunto de su obra. Analiza de modo rápido todas sus novelas y reuniones de cuentos y ofrece una nueva manera de comprender el conjunto de la literatura de Mussa, utilizando algunas imágenes conceptuales: habría un tiempo cartográfico (1997-2006), en el que el escritor prueba recursos de la forma literaria, eligiendo los que le parecen más interesante. Después, un intervalo radical (2007-2010), con un apartamiento temporario de la ficción en su escritura, buscando un diálogo con sus “raíces” de su base poética. Por fin, un tiempo expedicionario (2011-2018), con una concentración de sus esfuerzos creativos se vuelven hacia un único proyecto: las novelas de su Compêndio Mítico do Rio de Janeiro.
Palabras-clave: Alberto Mussa; literatura brasileña contemporánea; revisión de literatura
O escritor carioca Alberto Mussa (1961) tem uma obra relativamente extensa. Em 25 anos de carreira literária, são 11 obras em autoria ou coautoria, das quais se destacam oito livros de ficção, entre contos e romances. Conquistou prêmios, como o Casa de Las Américas e o de romance da Biblioteca Nacional, e atraiu uma cobertura constante — às vezes condescendente — na imprensa. A isso se somam textos de críticos literários de vulto, como Walnice Nogueira Galvão, autora de um prefácio a O Enigma de Qaf; João Cezar de Castro Rocha, com um posfácio a O Senhor do Lado Esquerdo; Leyla Perrone-Moisés, que assina a orelha de Os Contos Completos; entre outros.
Os comentários sobre a obra de Mussa, tanto os de teor elogioso quanto outros mais severos, tendem a compartilhar uma característica: a restrição de foco. Com algumas exceções, privilegiam um ou outro livro, às vezes um aspecto de determinado livro, evitando uma visada de conjunto. Creio que já se pode buscar uma visão global de sua obra, porque ela tem uma dimensão razoável, com uma preferência nítida por uma modalidade de escrita — a ficcional — e um conjunto de referências e procedimentos literários recorrentes. De modo metafórico, diria que não sei se os textos de Mussa formam uma piscina, um lago ou um rio, mas tenho certeza de que há espaço para nadar.
Começarei apresentando e discutindo o que me pareceram as duas perspectivas menos insatisfatórias já tentadas para se abranger a obra de Mussa — uma delas dividindo o conjunto dos livros em três fases, a outra advogando pela unidade da obra. Cada uma delas forma um grupo, de que apontarei o texto mais destacado. Apresentada cada perspectiva, analisarei seus possíveis limites. Daí extrairei o modelo que no decorrer da minha pesquisa me pareceu mais esclarecedor, argumentando a seguir por que preferi-lo, com base nos livros de Mussa — o foco deste artigo é, sempre, a análise da fatura literária.
A DIVISÃO DA OBRA DE MUSSA EM TRÊS FASES
Pela clareza e capacidade de síntese, o texto mais representativo do grupo que enxerga três fases distintas na obra de Mussa é um artigo de opinião escrito por Alvaro Costa e Silva (2017) no site da Folha de S.Paulo, intitulado “Com ‘O Senhor do Lado Esquerdo’, Alberto Mussa começou uma nova fase”.
O texto tem uma finalidade bastante específica: divulgar o clube de leitura do jornal. A intenção trivial e mercantil, no entanto, não lhe esvazia o interesse. Costa e Silva (2018) tem conhecimento do objeto, não apenas da obra de Mussa, mas de como situá-la de modo mais amplo: Costa e Silva (2018) acompanha a produção literária contemporânea, sobretudo brasileira e latino-americana, e em particular o romance policial.
No artigo, o jornalista faz um apanhado da literatura de Mussa, com um itinerário crítico, pitadas de interpretação, uma entrevista e, bem ao gosto de um veículo jornalístico, um furo: o assunto do último romance do Compêndio Mítico, o quinto. Hoje, com a passagem do tempo, são irrelevantes os dois últimos aspectos — vicissitudes da reportagem cultural — , mas o apanhado da literatura de Mussa continua instigante:
Pode-se dizer que “O Senhor do Lado Esquerdo”, publicado em 2011, inaugura uma nova fase na carreira de Alberto Mussa. “O Enigma de Qaf” (2004) e “O Movimento Pendular” (2006) são borgeanos na preocupação de discutir a narrativa e na escolha de temas universais, enquanto “Elegbara” (1997) e “O Trono da Rainha Jinga” (1999) recriam ficcionalmente o Brasil com ênfase nas experiências culturais indígena e africana [...]. “O Senhor do Lado Esquerdo” reúne as duas tendências. O fascínio do autor pelo mito – gênero supremo da literatura, segundo Mussa – elege o Rio de Janeiro, cidade que será estudada e recontada a partir dos crimes perpetrados nela (Costa e Silva, 2017).Nota-se uma intimidade com os livros e um esforço de situá-los segundo aspectos próprios à criação literária — no caso, os temas. A isso se soma uma referência ao cânone, concentrada no adjetivo “borgeano”. Os paralelos têm algo de efusivo, que se liga à intenção de seduzir o leitor para a participação no clube do jornal e que se poderia relativizar, quando não descartar, com um exame mais detido das obras mencionadas. Mas o texto vale como paradigmático da sistematização em três fases.
Organizando cronologicamente, o raciocínio aponta para um desdobramento. De início, a literatura de Mussa seria mais “brasileira”, em Elegbara e O Trono da Rainha Jinga, pelo destaque à inspiração indígena e africana. Em Elegbara, isso estaria no conto de abertura, “A primeira comunhão de Afonso Ribeiro” — que narra a chegada da esquadra de Cabral sob a perspectiva dos indígenas e do degredado —, ou então no conto “O enforcado” — uma glosa narrativa da origem mítica da feijoada. Ressalve-se por ora a imprecisão problemática em se equiparar experiências indígenas e africanas a uma “identidade nacional”. A esta fase se seguiria outra, “borgeana”, termo aqui tomado como “universal” e “metalinguístico”, já que O Enigma de Qaf colhe sua matéria na cultura árabe, em especial pré-islâmica, e O Movimento Pendular costura narrativas dispersas no tempo e no espaço, mas reunidas em torno de um mesmo motor da intriga, o triângulo amoroso. Ressalve-se, dessa vez, o clichê a respeito da obra de Borges, vista problematicamente como desgarrada da realidade argentina1. Por fim, haveria uma terceira fase, iniciada por O Senhor do Lado Esquerdo, uma espécie de síntese que supera, conservando, as fases anteriores, pois as reúne e congraça numa mesma obra, com coerência – a conotação positiva está no termo “inaugura”. Costa e Silva (2017) assim reafirma uma leitura que já estava presente em dois outros comentários, para quem Elegbara e O Trono da Rainha Jinga seriam uma fase específica, seguido por um “salto quântico” dado em O Enigma de Qaf. A expressão é de Marco Lucchesi (2004) na orelha deste livro, retomada por Hermano Vianna (2005, p. 7) no prefácio à segunda edição de Elegbara.
Saltam à vista os problemas da tripartição. Dá-se um peso excessivo ao critério temático, como se a mera mudança de assunto significasse alteração substancial, “inaugurando” um novo período. Lucchesi (2004), Vianna (2005) e Costa e Silva (2017) não desconsideram de todo outros aspectos formais — como a trama, a elaboração das personagens, o estilo —, mas não elaboram satisfatoriamente os motivos para se colocar o tema em primeiro plano.
E mesmo que os houvesse, continuariam os problemas. Afinal, Elegbara também tem contos que se espraiam no tempo e no espaço, recuando até a época dos neandertais ou ambientando uma narrativa em regiões africanas distantes da colonização europeia2. Do mesmo modo, O Enigma de Qaf traz a voz de um neto brasileiro de imigrantes árabes, e O Movimento Pendular situa algumas histórias no Rio de Janeiro ou no atual território do Brasil antes da chegada dos portugueses3.
O terceiro problema, talvez o principal, é a visão teleológica aí implícita. Do modo como está escrito, parece que a publicação das obras se dá como um aprimoramento constante — algo que funciona como propaganda, mas não para uma compreensão nuançada do fenômeno literário, com suas incertezas, idas e vindas, impasses. Assim, embora o arranjo quase dialético da tripartição tenha o valor da clareza, ele não parece tão pertinente quando se considera a arbitrariedade dos cortes.
A RECUSA DA DIVISÃO DA OBRA DE MUSSA EM FASES
Das raras ocasiões em que se olhou para o conjunto da obra do autor carioca, houve outra perspectiva que recusou a tripartição, e com ela qualquer partição. Refiro-me a dois textos: uma entrevista dada por Mussa à revista Topoi (Mussa, 2016b) e um artigo de Joyce Silva Braga (2013). Uma critica explicitamente a divisão, enquanto o outro oferece um esquema alternativo. Ambos priorizam a unidade da obra.
Na Topoi, depois de apresentar um esquema muito semelhante ao de Costa e Silva (2017), os entrevistadores o despacham como um dos “lugares comuns” sobre o autor. Enfatiza-se que “há muito mais do que aquilo que a psicologia expressa numa intenção autoral racionalizada em fases pode supostamente oferecer” (apud Mussa, 2016b, p. 287). Embora não explicite uma sistematização própria, o texto permite inferi-la pelas perguntas ao autor, que transitam livremente por obras de ficção, não ficção e até em parceria. Assim, fica implícita a unidade da obra.
A entrevista poderia ser complementada pelo artigo de Braga (2013), que propõe uma questão dominante para compreender a obra de Mussa. Escolhe-se como ponto de partida O Enigma de Qaf. Citando Poética do pós-modernismo, de Linda Hutcheon, Braga (2013, p. 326) destaca os “des-centrados”, “ex-cêntricos” como as personagens preferidas de Mussa, isto é, os marginalizados pela cultura eurocêntrica, cientificista, colonizadora (etc.). O Enigma de Qaf, por exemplo, apresentaria uma perspectiva duplamente estrangeira para um suposto leitor médio, que não tem o costume de mergulhar no universo árabe para além dos clichês orientalistas de sempre, e muito menos no mundo árabe anterior ao islamismo, da cultura beduína (Braga, 2013, p. 347).
De fato, os “degradados”/ “degredados” (as duas palavras se alternam no texto4) se mostram recorrentes na obra, mesmo em livros de Mussa posteriores ao artigo. Em A Primeira História do Mundo (2014), o Rio de Janeiro recém-fundado apresenta muitos indígenas da região, vários portugueses avessos às ordens da Metrópole e, também, moradores que não mais se encaixam em nenhuma delas. Em A Hipótese Humana (2017), o protagonista — um capoeirista professor de latim — também parece “ex-cêntrico”, enquanto em A Biblioteca Elementar (2018) as personagens ciganas têm sublinhado seu deslocamento diante da ordem católica, metropolitana, portuguesa e oficial.
Mas essas leituras em favor da unidade também têm problemas, como o risco de achatamento das variações, das diferenças, no interior da obra. Veja-se o caso da escolha da figura dos “degradados”/“degredados” como eixo. Mussa está longe de ser o único autor contemporâneo que demonstra essa preferência: lembre-se, por exemplo, de Foe, escrito por J. M. Coetzee (2016); de Terra Sonâmbula, de Mia Couto (2015); ou dos romances de Salman Rushdie, todos muito diferentes entre si e de Mussa. Deve-se evitar o risco de, priorizando demais as continuidades, criar-se uma visão tão unitária e fechada da obra que deixe passar, pelas malhas largas das semelhanças, as distinções significativas, as transformações internas. Às limitações da visão tripartite de progresso e aperfeiçoamento, corresponde então uma outra: a percepção da obra de Mussa como estacionária.
Além do mais, uma sistematização com ênfase nas diferenças internas não cai necessariamente na tal “psicologia expressa numa intenção autoral racionalizada em fases”. Seria possível formular um esquema interpretativo que apreenda, dentro do contínuo, as oscilações, os diferentes momentos, as tendências que ganham ou perdem força — mais ou menos como nos estudos historiográficos, tão sensíveis à duração quanto às rupturas — de modo independente do discurso do próprio autor, de seus parceiros comerciais ou não. Basta, por exemplo, priorizar o texto concreto — a fatura literária — como prova para a hipótese, qualquer que seja.
“Fases”, de fato, é um termo ruim pelo que implica de etapismo, progressão, linearidade. A unidade e a pura continuidade, porém, tampouco esclarecem em si. Prefiro “momentos”, recortados pela crítica e lidos em seu encadeamento, sem hierarquia entre eles, parcialmente sobrepostos e identificados a partir da obra. Um método mais indutivo.
CONTORNO GERAL DO MAPEAMENTO: DOIS “MOMENTOS” COM UM INTERVALO
A partir da leitura da obra de Mussa publicada até 20185, incluída a não ficção, vemos dois momentos significativos, aqui resumidos numa metáfora, para fins de clareza.
O primeiro consistiria em um momento cartográfico, com os livros que vão de Elegbara (1997) a O Movimento Pendular (2006). “Cartográfico” porque, durante sua escrita, Mussa parece mapear possibilidades, testando recursos formais, com ora maior, ora menor sucesso. Reunir as ditas “fases” “brasileira” e “borgeana” em um mesmo momento evita a armadilha da tripartição, que dividia as obras de modo superficial e excessivamente colado à narrativa de “progresso” do autor. Da mesma forma, evita-se o risco da racionalização da intenção autoral, do psicologismo, porque esse teor de busca, de tentativa e erro, aparece na materialidade do texto, na realização literária, contestando a versão de que haveria consciência desde o início, “saltos quânticos” e afins.
Depois de O Movimento Pendular, haveria uma mudança: um intervalo radical. Não se pretende aqui qualquer conotação política; trata-se, antes, de uma referência a uma espécie de busca das “raízes” da literatura de Mussa, um retorno a figuras e obras reivindicadas pelo próprio autor (de modo contestável) como suas matrizes poéticas.
Por fim, o momento seguinte seria o expedicionário. São os anos do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, quando a ficção de Mussa se volta exclusivamente para essa série, entre 2011 e 2018. “Expedicionário” porque o autor se propõe publicamente a elaborar a sequência de livros, e o faz; estabelece um ponto literário de chegada e o alcança, do que se deve excluir conotações automáticas de sucesso — na verdade, como argumentei em outra ocasião6, há um custo para isso. De todo modo, a imagem da expedição parece pertinente por causa do traçado pré-definido, buscado e concluído. Não deixa de ser uma experimentação, que, no entanto, logo vê esse teor amainado pela repetição cansativa das coordenadas de escrita do Compêndio. Experimentação qualitativamente distinta, portanto.
Antes de passar à análise rápida das obras, dois pontos me parecem trazer alguma vantagem neste mapeamento. Um: ele não implica hierarquia, muito menos um sentido teleológico. O juízo fica a critério do leitor, que pode valorizar mais o risco do desconhecido ou a ambição do projeto extenso. Além disso, creio que o esquema proposto tem uma abertura para desdobramentos futuros. Dois: esse mapeamento pode ser confrontado com uma dimensão bastante concreta e palpável — uma trajetória apreensível nos textos. Qualquer intenção fica em segundo plano diante do que de fato produziu, das obras feitas e publicadas, legíveis, acessíveis, disponíveis ao público.
O MOMENTO CARTOGRÁFICO (1997-2006)
Metáforas e imagens têm lá sua imprecisão, algo temerário numa análise crítica especializada, em que a exatidão terminológica é necessária. Cabe, portanto, precisar o que quero dizer com “cartográfico”, se o termo provar sua validade.
Refiro-me à construção de certo repertório, em que se incluiriam os temas, a dicção, a construção de personagens, as intrigas, as referências intertextuais recorrentes — enfim, os recursos formais do autor. O repertório de Mussa varia mais nos livros publicados entre 1997 e 2006 do que nos seguintes, quando muitas vezes há repetições, inclusive com o narrador remetendo o leitor a uma ou outra obra lançada nesse momento cartográfico (Mussa, 2018, p. 133). De fato, entre Elegbara (1997) e O Movimento Pendular (2006), delineia-se um conjunto restrito, mas versátil, de recursos preferenciais, que obras ulteriores por ora não alteraram de modo substancial.
Já em Elegbara se veem elementos que se tornariam recorrentes. Duas operações se destacam nesta coletânea de contos inspirada na figura de Exu. Primeiro, uma mescla de modos de escrita, aproximando narração e dissertação. Veja-se como neste excerto de “A primeira comunhão de Afonso Ribeiro” o discurso indireto livre em terceira pessoa prefere a dissecação lógica à articulação da interioridade:
Pindaíba, dividido, procurava desesperadamente os olhos do pajé na tentativa de sentir a segurança de sempre. Sabia que os homens do mar não eram maíras, tinham falado sobre isso. Mas Mairapecum não se demovia. Achava que fatos inexplicáveis não podiam pôr em xeque uma verdade evidente. E — argumento definitivo — tinha tido uma visão (Mussa, 1997, p. 22).O mesmo conto mostra outra operação típica do autor: a releitura de textos anteriores, como documentos históricos, a partir das tais personagens “ex-cêntricas” (Braga, 2013). No caso, a chegada dos portugueses, relatada na Carta de Achamento de Pero Vaz de Caminha, surge na perspectiva indígena e na do degredado Afonso Ribeiro.
Assim, Elegbara demonstra um trabalho com três elementos recorrentes na literatura de Mussa: as duas operações citadas, mais o tipo de personagem apontado por (Braga, 2013). Retomando a metáfora, a porção coberta do mapa é pequena, mas central.
Ela se amplia dois anos depois, com O Trono da Rainha Jinga (1999). Há continuidades temáticas óbvias com Elegbara, por exemplo no destaque às referências culturais de origem africana, como a história do reinado de Nzinga Mbande em confronto com os portugueses. Mas também se incorporam novos elementos ao repertório do autor.
O Trono da Rainha Jinga é um romance, o primeiro de Mussa. Nele há duas linhas narrativas. Na primeira, vários pontos de vista em primeira pessoa trazem, a cada capítulo, cenas ligadas a assassinatos no Rio de Janeiro do século XVII, cometidos por uma irmandade de africanos escravizados, e a subsequente investigação conduzida por Mendo Antunes. Na outra linha narrativa, temos flashbacks desta personagem durante uma viagem comercial à atual Angola, durante o reinado de Jinga, que atemoriza e encanta Mendo em igual medida. As linhas se encontram quando ele reconhece na líder da irmandade uma figura marcante do reino africano. A variação da estrutura narrativa, entrecruzando tramas apresentadas por distintas vozes de personagens, se repetiria em A Hipótese Humana e A Biblioteca Elementar.
Ainda sobre a realização ficcional do primeiro romance, há deslizes, como certa obscuridade na construção da polifonia narrativa e na condução da trama, ou então o estilo que, na Topoi, Felipe Charbel classificou como “lento” (apud Mussa, 2016b, p. 296). De todo modo, o livro cabe no momento cartográfico porque também testa a aproximação às convenções do romance policial: lemos a apresentação de uma série de crimes, o trabalho investigativo e, por fim, a revelação das circunstâncias dos delitos7.
Já O Enigma de Qaf, segundo romance do autor, também apresenta continuidades. Tem a mesma costura de duas linhas narrativas: no presente do livro, um neto de um imigrante árabe busca persuadir a comunidade acadêmica da existência de um outro “poema suspenso”, de origem beduína pré-islâmica; no poema, al-Ghatash vence perigos no deserto para juntar-se à amada Layla. Enfrenta um rival, Dhu Suyuf, e busca desvendar o enigma cifrado na montanha circular de Qaf, guardada por um gênio.
Personagens “ex-cêntricas”, aproveitamento de lacunas bibliográficas, tom narrativo (na história do poema) e dissertativo (na história do neto), paralelismo de tramas — as continuidades são evidentes. Destaque-se, então, outro elemento que se revelará importante no repertório de Mussa: um rebuscamento da estrutura do livro. Isso se mostra no arranjo — este sim — tripartite, pois o romance junta às linhas narrativas principais outras duas seções. Na primeira, os “parâmetros”, leem-se a trajetória e os feitos dos poetas a quem se atribuem os verdadeiros “poemas suspensos” da tradição beduína; uma forma de imersão no mundo do romance. Já na outra seção, os “excursos”, interpolam-se contos derivados de narrativas célebres da cultura árabe ou nela inspirados, como uma reimaginação de Sinbad e de Shahrazad, ou então relatos de matemáticos, filósofos, pensadores e intelectuais oriundos dessa comunidade. A articulação de uma narrativa mais longa recortada transversalmente por narrativas curtas voltaria em Mussa (em O Senhor do Lado Esquerdo).
Outra adição ao repertório é o uso insistente da duplicação. Há, por exemplo, a relação especular entre presente narrativo e universo do poema, com o neto que se espelha em al-Ghatash, este por sua vez desdobrado, dentro da história, na imagem de seu rival quase idêntico, Dhu Suyuf. A amada Layla tem uma irmã, Sabbah (ambas com repetições de letras em seus nomes: la-y-la e sab-bah). Espelham-se os poetas dos “parâmetros” e os dos “poemas suspensos”, assim como a versão de Mussa e as versões tradicionais de Sinbad, Shahrazad e Allahdin, ou então os protagonistas dos “excursos”, como os príncipes Amru e Numan, num conto, e em outro o poeta Yarub, que luta contra os sinônimos — uma duplicação das palavras. Cristhiano Aguiar (2017, p. 59) demonstra em artigo que o jogo especular alcança o nível da frase, com repercussões na trama.
Por fim, chega-se a O Movimento Pendular. Desde o início, o livro desafia a classificação: foi premiado como romance, embora se possa considerá-lo uma reunião de contos. Apresenta-se, porém, como um tratado, em que um narrador expõe uma teoria geral da narrativa e da humanidade com base nos triângulos amorosos. A partir deles, a voz principal desenvolve histórias ambientadas em locais e períodos distantes entre si (Rio de Janeiro oitocentista, Mesopotâmia de Hamurabi, Veneza medieval, China imperial, etc.). É o paroxismo da mescla de registro narrativo e dissertativo, como elementos fundamentais para Mussa.
Refiro-me a três: o triângulo amoroso como motor da intriga; a constituição de um narrador que parece uma figuração autoral, um mestre de cerimônias literário; e, por fim, a indefinição do seu tom, equilibrado entre ambição desmesurada e ironia esquiva.
Esse tom vale um comentário mais detido. Há uma mistura entre o erudito e o zombeteiro. Por um lado, o narrador pinça exemplos, tece comentários, formula hipóteses e faz referências a um corpus literário imenso, que não conhece fronteiras nem limites, com uma ambição colossal: sua releitura da História e das histórias humanas pretende demonstrar um princípio dominante, o tal “movimento pendular”, subjacente a qualquer tradição narrativa, talvez ao próprio conceito de narrativa, quiçá de humanidade. Assim ele se comporta, ao mesmo tempo em que, pelo exagero da empreitada e por toques sutis, instala uma suspeita no leitor: será uma piada? Certamente ele não leva a sério a sugestão de que, num nível básico, qualquer história poderia se reduzir a um arranjo triangular, disfarçado por uma série de operações combinatórias. Ou leva? Está rebaixando as várias tradições literárias conhecidas, nivelando-as a uma banal angústia da traição, ou está satirizando os eruditos de pretensões totalizantes? Impossível saber. Da indefinição, aliás, vem parte do prazer da leitura.
O INTERVALO RADICAL (2008-2010)
A hipótese da tripartição na obra de Mussa (conforme apresentada por Costa e Silva, 2017) talvez se deva a dois intervalos relativamente longos na publicação de seus livros: entre 1999 e 2004 e entre 2006 e 2011, ambos de cinco anos. Apesar das durações semelhantes, eles parecem qualitativamente distintos em realização literária. Se a tendência geral de “cartografia”, de “experimentação”, de “tentativa e erro” é muito semelhante entre O Trono da Rainha Jinga e 2004, isso não ocorre entre O Movimento Pendular e O Senhor do Lado Esquerdo, por um motivo simples: O Senhor do Lado Esquerdo não traz recursos formais novos na obra de Mussa, como ocorria antes, e sim uma recombinação dos anteriores. É uma das razões pelas quais os anos entre 2008 e 2010 merecem destaque específico; há outra nas publicações de Mussa durante o período.
Elas podem ser agrupadas segundo o critério das “raízes”, isto é, das referências reivindicadas por Mussa como fundamentais para sua poética. Nesse momento, seus textos têm um teor retrospectivo. Publica, por exemplo, dois textos irreverentes sobre suas leituras, uma história de sua biblioteca e um “decálogo do leitor” (Mussa, 2016c, p. 389). Além disso, reescreve contos de Machado no centenário de morte do autor, produzindo duas narrativas curtas próprias. Em 2010, lança Samba de Enredo: História e Arte, escrito em parceria com Luiz Antonio Simas, com exegese de canções desse gênero, o único gênero épico genuinamente brasileiro (Mussa; Simas, 2010, p. 9-10).
Com distintos graus de rendimento na obra de Mussa, essa busca de “raízes” talvez não justificasse por si a cisão num momento específico, não houvesse Meu Destino é Ser Onça (2009). É o momento mais experimental, mais diferente de sua obra, e o que mais tem chamado a atenção da crítica especializada — em parte, infelizmente, porque elementos superficiais da obra servem de pretexto para artigos menos preocupados com o livro do que com as teorias a se aplicar8. Seja como for, Meu Destino é Ser Onça desafia o leitor já na estrutura, apresentando-se como a “restauração” de um mito tupinambá, amparada em fontes antropológicas lidas de modo muito idiossincrático, segundo um método eclético. O autor se propõe a desencavar a “lógica narrativa” do mito a partir de fragmentos de relatos de missionários e viajantes franceses. Um nó meio górdio. Tanto que Mônica Machado (2013), em sua dissertação, perguntou a Ronaldo Lima Lins e Eduardo Viveiros de Castro o que achavam da obra, recebendo respectivamente as seguintes afirmações: “Não é literatura, tem mais relação com um estudo antropológico do que com ficção” e “Não é antropologia, o livro é interessante e serve mais a estudos do ponto de vista literário” (Machado, 2013, p. 157)9.
Complexidade à parte, o livro evidencia até onde foi o esforço de Mussa em busca de reivindicar as supostas “raízes” de sua poética — no caso, na herança ameríndia na cultura literária brasileira, tratada de modo fragmentário. De fato, a questão das raízes está desde a introdução do livro, em que o autor faz outra mistura eclética de campos do conhecimento para inserir a própria família no patrimônio cultural ameríndio, gesto cientificamente questionável, mas literariamente interessante por sua insistência numa ficção das raízes, uma narrativa (questionável, como todas) da origem de sua poética. Depois dela, o autor retorna com um projeto diferente, a seu modo uma “experimentação”, mas de um esforço sustentado: o Compêndio Mítico do Rio de Janeiro.
O MOMENTO EXPEDICIONÁRIO (2011-2018)
Considerando-se a realização literária, isto é, o que transparece na página, na feitura das obras, de fato há um novo momento na escrita de Mussa a partir de O Senhor do Lado Esquerdo. Isso não tem tanto a ver com a intenção do autor, e sim com uma evidência textual: a novidade dos anos do Compêndio Mítico é a releitura de Mussa da própria obra. Aqui se atenua a apropriação de recursos novos no repertório do autor, que tende a revisitar estratégias, temas e possibilidades já exploradas. Isso se evidencia com um sobrevoo no Compêndio.
Veja-se O Senhor do Lado Esquerdo. Ele narra como o inspetor Baeta desvenda um caso insólito de assassinato num prostíbulo no Rio de Janeiro, no início do século XX. Para acobertar atividades que incluíam noites de troca de casais, o lugar se passava por uma clínica, e uma de suas enfermeiras, Fortunata, a principal suspeita, logo desaparece e só acompanhamos seu suposto irmão, Aniceto. No decorrer da trama, é estabelecida uma rivalidade entre ele e o investigador, estendida inclusive à relação conjugal de Baeta, casado com Guiomar. O caso — em mais de um sentido da palavra — nos é contado como um exemplo de crime mítico do Rio de Janeiro, uma transgressão que, segundo o narrador irônico e erudito, define o caráter da cidade. Para reforçar sua tese, ele insere histórias paralelas, os “crimes antecedentes”.
De imediato, nota-se uma recombinação de quatro recursos já utilizados na obra de Mussa. O adultério no centro da intriga e o narrador que busca provar uma tese vêm de O Movimento Pendular. A estrutura lembra uma versão menos intrincada de O Enigma de Qaf: também ali havia narrativas com personagens distintas interseccionando um enredo principal, todas conectadas por afinidade temática. Por fim, a estrutura do romance policial retoma O Trono da Rainha Jinga.
A repetição, no entanto, não aparece ainda como um defeito, pois a combinação dos recursos antes dispersos dá coerência à narrativa, mostrando um autor mais à vontade em seu universo ficcional. A mistura de narração e digressão, por exemplo, alterna o crescendo de suspense na trama principal com provocações especulativas e irônicas das teorias da sexualidade numa espécie de duplo de Freud, a figura do doutor Zmuda, chefe do prostíbulo que o utiliza como laboratório de observação do comportamento humano. Ainda no manejo da intriga, para despistar o leitor, há os “crimes antecedentes”, cujo interesse não se esgota aí: eles também prefiguram o enredo principal, desenvolvendo o tema da porosidade entre os gêneros masculino e feminino, ao mesmo tempo em que funcionam de modo autônomo. Em retrospecto, O Senhor do Lado Esquerdo talvez seja o mais bem realizado dos romances do Compêndio Mítico, embora se sustentem quase todos os reparos que Alcir Pécora lhe fez numa resenha: o livro apenas “assunta” o mal que a narrativa sugere, preferindo antes um “panegírico anacrônico” do Rio da Belle Époque e às vezes abusando das estratégias pós-modernistas (Pécora, 2011, pos. 314-8).
Em 2014, com A Primeira História do Mundo, Mussa também repete elementos formais já testados. De novo vemos, como em O Movimento Pendular, a intriga de adultério e o narrador erudito, aqui assumindo ele próprio a função de investigador; vemos o romance policial de O Trono da Rainha Jinga e todas as coordenadas do Compêndio (teor histórico, ambientação fluminense, presença de uma narrativa mitológica). Quanto a este último aspecto, aliás, A Primeira História do Mundo recupera uma tendência presente desde o primeiro conto de Elegbara, intensificada posteriormente em Meu Destino é Ser Onça: o diálogo cerrado com culturas ameríndias.
Aqui, o narrador-investigador — do século XX — revisita o que seriam os arquivos do primeiro homicídio registrado no atual território do Rio de Janeiro. Em fins do século XVI, o serralheiro Francisco da Costa é morto a flechadas. Todos os suspeitos são homens, de origens as mais diversas, e só se especula uma causa para o crime: Jerônima Rodrigues, esposa do serralheiro. As autoridades acreditavam que “numa cidade onde há mais homens que mulheres, não pode haver virtude” (Mussa, 2016b, p. 31); essa premissa dará lugar a uma pergunta do narrador sobre o fundamento mítico, antropológico do Rio de Janeiro — assim como em O Senhor do Lado Esquerdo, defende-se uma conexão entre certos crimes e o “caráter” das cidades. As referências das culturas ameríndias aparecem na composição das personagens, culminando no aproveitamento que o narrador faz da lenda de Jurupari, espécie de chave interpretativa do romance, por encenar os choques entre homens e mulheres. As lendas sobre tribos compostas apenas por mulheres também se mostram decisivas para a solução do mistério do romance.
De certa forma, A Primeira História do Mundo consolida as características formais reunidas em O Senhor do Lado Esquerdo. O romance se organiza em três seções. Na primeira, apresentam-se a vítima, o crime, o julgamento inicial e a suposta motivação. Na segunda, mais alentada, a apresentação das evidências do crime e dos dias seguintes a ele se mistura às histórias pregressas de cada suspeito, que funcionam como contos enxertados. Na última seção, analisa-se o caráter das personagens, apresenta-se uma série de soluções do crime, refuta-se a maioria, e o narrador apresenta a sua, envolvendo uma tribo de “amazonas”. O romance então se fecha com um episódio na vida de Jerônima Rodrigues, ligado à morte de seu marido.
Mas A Primeira História do Mundo sinaliza problemas. Dois merecem destaque. A separação de séculos entre o tempo do crime e o da narração custa em dinamismo ao livro — complicação grave, no caso de um romance policial —, pois se cria um obstáculo na articulação entre os dois planos, estanques, divididos. Posto em um núcleo separado da ação, o narrador se hipertrofia, como que tentando preencher o vazio de seu plano dramático; algo que O Senhor do Lado Esquerdo evitava por justapor o avanço dos esforços de Baeta aos de Aniceto. O “inchaço” do narrador se escancara na postergação do desenvolvimento da trama, complicada ainda mais pela inclusão de uma segunda linha narrativa em torno da lenda do tesouro de Lourenço Cão, que pretende elaborar simbolicamente questões caras ao livro, mas sabota o seu andamento. Isso poderia ser apenas inconveniente, se o romance não pretendesse dar à personagem de Jerônima Rodrigues uma estatura que, em termos de elaboração na página, de realização literária efetiva, ela simplesmente não alcança, preterida que foi aos jogos do narrador. Assim, o episódio final soa menos como uma reviravolta do que como um truque, querendo causar um impacto imerecido, talvez até de mau gosto a depender da leitura10.
A Hipótese Humana (2017), o romance seguinte, também mostra continuidades e fissuras no projeto do Compêndio. Acompanhamos Tito Gualberto, capoeirista e professor de latim, agente informal da polícia e agregado a uma família patriarcal, de posses, radicada no Catumbi de meados do século XIX. Durante uma transa com sua prima Domitila, filha do senhor da casa-grande (e tio de Tito), o protagonista precisa fugir para não serem flagrados, e consegue. No dia seguinte, descobre que a moça faleceu. Convencido de que foi um homicídio, o pai de Domitila contrata Tito para conduzir uma investigação discreta na propriedade — senzala inclusive. O capoeira procede com o máximo de cuidado possível, pois Domitila era casada (obviamente, não com Tito) e a relação de forças dentro da senzala, com ramificações até a casa-grande, é instável.
As mesmas coordenadas dos romances do Compêndio aparecem aqui, recuperando, portanto, O Movimento Pendular e outros. Igualmente, há uma estrutura bipartida na obra, dividida entre a investigação de Tito e trechos que atuam como os “parâmetros” de O Enigma de Qaf, adensando o universo do romance. Eles narram lendas associadas a cinco lugares no entorno da fazenda, todos percorridos por Tito na noite em que Domitila morreu, levando a um evento sobrenatural responsável por assombrar o protagonista durante todo o romance e para além dele — o capoeira não descobre o que houve, embora o narrador o revele ao público.
Destaque-se, ainda, outro aspecto da retomada por Mussa da sua obra anterior: se em A Primeira História do Mundo resgatava-se o universo das culturas ameríndias, aqui se faz o mesmo em relação a culturas africanas, tal como em O Trono da Rainha Jinga. A recriação literária do ambiente da senzala ganha preponderância, com a narrativa se demorando na caracterização das disputas internas e na sua tradução para a casa-grande — chegando até, por vezes, a se inverter a relação de poder. No centro dessa dinâmica está Catarino, o guardador dos cães, personagem temida inclusive pelo coronel.
Mas aqui há também problemas. O primeiro, menos severo na releitura, está na falta de clareza das idas e vindas cronológicas, bastante similar ao confuso jogo de pontos de vista de O Trono da Rainha Jinga. Mais importante, no entanto, é a insuficiência do livro em aproveitar a negatividade sugerida pelo seu próprio material. Explico: parece haver uma complacência ao protagonista, que tem como um de seus atributos a “sorte” – algo literalmente expresso no romance (Mussa, 2017a, p. 171). Isso por si já produziria certa frustração no desenvolvimento da intriga, mas se torna especialmente problemático quando se nota um acanhamento diante de aspectos mais sombrios. Uma segunda linha narrativa fala, por exemplo, que Tito investigava um grupo responsável por sequestrar homens livres e enviá-los como escravizados ao interior. Tão avançado estava o trabalho, que o grupo contrata um assassino para se livrar do capoeirista. A subtrama se resolve com o auxílio da “sorte”, mas mal se notaria se não o fosse, visto que a intriga de adultério absorve praticamente todo o foco do livro, aliás encerrado de modo abrupto.
O ciclo do Compêndio, bem como o que chamei aqui de momento expedicionário, se encerra em 2018 com a publicação de A Biblioteca Elementar, cerca de um ano depois de A Hipótese Humana. Dessa vez, trata-se de romance ambientado no século XVIII, o único — excetuado o XXI — que faltava à série.
Ao contrário dos anteriores, cujos núcleos dramáticos tendiam à concentração, A Biblioteca Elementar tem na narrativa principal uma dispersão. O livro coloca em primeiro plano uma comunidade cigana carioca, com dois triângulos amorosos no centro. De um lado, o relacionamento de Leonor Rabelo e Lázaro Roriz se vê em xeque quando, ao voltar de uma temporada em Minas Gerais, em busca de ouro, Roriz está casado com outra mulher, Bernarda Arrais. A tensão cresce quando Roriz parte em outra expedição, da qual não volta, o que deixa em suspenso a legitimidade das suas relações. De outro lado, há o triângulo entre Silvério Cid, sua esposa Páscoa Muniz e o temido Gaspar Roriz — embora casado com Ângela Pacheca, ele tem fama de conquistador, o que gera ciúmes em Cid. Tanto quanto a intriga amorosa, move a trama do livro o confronto entre a vida dessa comunidade e o peso do Santo Ofício, cujas vítimas preferenciais são as mulheres.
Assim como em A Hipótese Humana, pontua-se o desenrolar da narrativa principal com outra história; aqui, é uma voz em primeira pessoa que relata visões obscuras, cifrando o destino de Lázaro Roriz. À semelhança entre as estruturas anteriores, à figura do narrador erudito e zombeteiro, à intriga de adultério, à moldura do romance policial, pode-se acrescentar mais um paralelo, dessa vez com O Enigma de Qaf: há uma retomada da herança árabe, em especial por meio de uma narrativa misteriosa, protagonizada por um general de Saladino, cujo enigma Bernarda Arrais (não à toa, a “Moura”) deve solucionar.
Em termos de realização literária, A Biblioteca Elementar talvez explicite algo que se sugeria nos outros romances: o autor parece gravitar rumo ao conto – algo às vezes problemático na fatura. As personagens ganham destaque em cenas específicas, em instantes de alta voltagem dramática (como a denúncia de uma mulher por sua amante, ou quando uma personagem sucumbe à inveja), que, no entanto, vêm ligadas por um mecanismo narrativo excessivamente aparatoso: não bastassem as sete personagens envolvidas nos dois triângulos amorosos, há ainda um rábula, uma estalajadeira, um frei, um marinheiro, três cegos que fazem estrofes satíricas, etc., etc. Pode-se imaginar, sem muita dificuldade, como aquelas cenas específicas ganhariam em poder sugestivo caso tivessem vida autônoma, até porque Mussa deu exemplos felizes disso nos “crimes antecedentes” de O Senhor do Lado Esquerdo. Mais que isso, porém, A Biblioteca Elementar sinaliza um esgotamento da “fórmula” do Compêndio. Basta observar como a limitação autoimposta pelo narrador de uma onisciência geograficamente seletiva — ele diz que não poderia contar os episódios de Minas Gerais porque o livro é um “romance carioca” (Mussa, 2018, p. 113), deixando-os para a voz de uma personagem — atrapalha o rendimento de uma das principais sequências do livro: a traição de Lázaro Roriz em Minas pelo homem que se passa por Silvério Cid. Se antes as coordenadas do Compêndio poderiam estimular as soluções criativas, em A Biblioteca Elementar e em A Hipótese Humana fica evidente seu caráter de limitação, em prejuízo da obra.
Como que sinalizando um esgotamento, Mussa se distanciaria da ficção nos anos imediatamente seguintes. Em 2021, lança A Origem da Espécie, que confirma a tendência de um afastamento provisório da ficção, ao menos diante do público. Trata-se de um ensaio bastante descompromissado do ponto de vista metodológico, passeando livremente pela teoria da narrativa, pela divulgação científica, pela genética e pela antropologia, para sugerir uma espécie de “protomito” fundamental da humanidade. É sua hipótese para a recorrência do mote do “roubo do fogo” em comunidades distantes no tempo e no espaço. Ecoa à sua maneira Meu Destino é Ser Onça, mas tem uma estrutura bem mais tradicional: uma passagem dissertativa, que constitui o núcleo do livro, e uma compilação de mitos sobre a origem do fogo. Pode-se pensar que o momento de publicação do ensaio espelhe o intervalo de fins dos anos 2000, anterior a um projeto de maior fôlego.
Mas é cedo para dizer, quanto mais analisar. Por ora, é melhor seguir de perto o que a sua trajetória criativa nos trouxer, avaliando o quanto cabe, ou o quanto se transforma, um esquema provisório como este de um momento cartográfico, um intervalo radical e um momento expedicionário. Há muito terreno por onde transitar, e ainda mais estrada a se construir.
Notas
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1
Tal leitura reducionista de Jorge Luis Borges já foi amplamente refutada por trabalhos como os de Davi Arrigucci Jr., coligidos no livro Outros achados e perdidos, e de Beatriz Sarlo, em Jorge Luis Borges, um escritor na periferia.
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2
Leia-se, por exemplo, os contos “O último neandertal” e “Os sábios de Tombuctu”.
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3
Encontra-se isso em “O jogo dos erros” e “A teoria aimoré”, entre outros.
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4
Comparem-se as ocorrências às páginas 328, 340 e 347 (Braga, 2013).
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5
Este artigo optou por se restringir ao período logo após a conclusão do projeto do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro, visto ser este, por ora, a última incursão de fôlego do Mussa ficcionista. Alguns anos depois de 2018, o autor publicou o ensaio A Origem da Espécie (2021), que a meu ver não contradiz o esquema aqui proposto e que comentarei muito rapidamente ao fim da seção sobre o momento expedicionário.
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6
Refiro-me à minha tese de doutorado, Erudito e zombeteiro: uma leitura do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro (Balbi, 2022), em especial ao quarto capítulo.
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7
Por uma limitação de espaço, não conseguirei discutir uma manobra intrigante de Mussa, que retroativamente insere O Trono da Rainha Jinga como um romance do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro. Discuto isso no primeiro capítulo da minha tese, a que remeto quem se interessar pela ambivalência do autor – que julgo um gesto criativo com implicações interessantes (Balbi, 2022).
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8
Refiro-me, em especial, aos artigos de Ribeiro e Momm (2009) e Cernicchiaro (2015).
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9
Desconfio que Eduardo Viveiros de Castro está com a razão, visto se tratar de uma obra tanto com pretensão literária quanto descompromisso metodológico diante da discussão antropológica especializada. Mas confirmar tal hipótese exigiria um estudo à parte.
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10
Pretendo desenvolver mais essa discussão em artigo posterior, mas por ora remeto ao mesmo capítulo 4 de minha tese, Erudito e zombeteiro: uma leitura do Compêndio Mítico do Rio de Janeiro (Balbi, 2022).
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Editor:
Paulo César Thomaz
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
20 Jun 2024 -
Aceito
02 Jul 2024