A invenção de uma pele: Nuno Ramos em obras, de Eduardo Jorge de Oliveira (2018) deixa entrever já no título um dos eixos temáticos de análise das obras do multiartista paulistano - a invenção de uma pele - bem como a escolha metodológica para aplicação dessa análise: a obra do artista em seu conjunto, numa perspectiva integrada entre plástico e literário. A pele, tema recorrente em Nuno Ramos, tanto na escrita - “Comecei a arrancar a pele das coisas. Queria ver o que havia debaixo. Ergui a superfície do assoalho, que saiu inteira sem quebrar” (Ramos, 1993/2011, p. 29) -, quanto em suas obras de arte plástica, como Pele I (1988) e Pele III (1989), representa, para além de uma temática, um verdadeiro procedimento estético. A busca de uma pele, a criação de uma pele ou o ato de arrancá-la resultam em práticas de criação.
Enquanto ensaio de verve estilística altamente literária, o livro estrutura-se em sete partes principais: “Pele, textura da animalidade”, “Pele e expansão literária”, “Inventar um lugar, fazer pele”, “Manto: camadas de pele, pintura”, “Inventar uma pele, transferir uma pele, possuir uma pele”, “Breve retorno: Proteu e a invenção da pele” e “Nuno Ramos em obras”. Cada parte, à exceção da última (um apêndice de imagens coloridas), é marcada por giros (primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto), a fim de assinalar uma viagem dentro da obra do autor,1 como uma rodada que não exaure o que se tem para dizer. Talvez, esses giros, em que são abordadas obras plásticas e literárias escolhidas, sejam só o início de uma reflexão em espiral que, exatamente como a roda, nunca acaba.
As reflexões sobre as obras abrangem de alguma maneira toda a produção de Nuno Ramos. Ideias como a de “animalidade como um fenômeno de superfície” (Oliveira, 2018, p. 72) relacionadas às obras Craca e Caixa de areia, ambas de 1995, são, de fato, aplicáveis a outras criações de Nuno Ramos.2 Se, ao abrir o livro, Eduardo Jorge explora, através do dicionário, o verbete animalidade “como um conjunto de qualidades ou de faculdades que são os atributos dos seres que compõem o reino animal”, do ponto de vista da obra de criação, ela convida o leitor a “lidar com os limites do corpo diante da matéria”, misturando assim “pulsões de vida e de morte, ao longo de uma observação da própria matéria em obra” (Oliveira, 2018, p. 12). Tanto em Caixa de areia quanto em Craca, “a animalidade como fenômeno de superfície” nessa vontade de observação da matéria em obra, sob a osmose de impulsos contrastantes (vida e morte) resultaria na tentativa de invenção de uma pele por detração, como no primeiro caso, ou por acumulação, como no segundo.
Em Caixa de areia, carcaças de animais mortos deixaram seu calque na areia, cristalizando a memória da passagem daqueles corpos, os quais, uma vez extraídos, deixaram nas duas partes das caixas o resíduo especular do que foram. Uma nova superfície côncava configura-se como uma nova pele para a materialidade arenosa que ali ficou exposta, uma pele que se dá por subtração. Em Craca, ao contrário, o molde espelha os materiais por acumulação, constituindo-se como um espelho por excesso e ao avesso. Assim, a nova pele do alumínio fundido no molde se constrói por adição e acumulação do díspar. Essa análise poder-se-ia aplicar também a outras obras. Se pensarmos nos quadros da década de 1990, retomados a partir de 2007, os quais Nuno Ramos costuma chamar de “pinturas em relevo”, há procedimentos similares: criação de peles externas fixando a matéria em trânsito por acumulação/junção de elementos díspares. Ou, ainda, a repetição do diálogo entre dentro e fora que caracteriza Caixas de areia, a interpenetração de materiais líquidos e sólidos e os jogos entre côncavo e convexo são evidentes em performances-instalações como Maré mobília, de 2000, ou, ainda, obras como Manorá preto, de 1999, ou Pedras de Marcantônio, de 1998.
A primeira é constituída por um conjunto de nove peças de mobiliário colocadas em diferentes pontos de maré baixa em Nova Almeida, no Espírito Santo. No momento em que a maré sobe, a interpenetração de água, areia e madeira cria novas formas a partir desse jogo entre consistências. Do mesmo modo, nas outras duas, o diálogo entre sólido e líquido se dá por interpenetração de materiais que, por se encontrarem em diferentes estados (líquido/sólido), excluem-se reciprocamente, criando um transbordamento do líquido excedente que expande a pele originária, gerando uma pele nova por contato entre texturas distintas. Essa prática da justaposição de materiais por excrescência é também associada a alguns procedimentos aplicados na escrita, definidos como “craca verbal” (Oliveira, 2018, p. 78), como mostra o exemplo de Cujo (1993) escolhido por Eduardo Jorge: “Poroso, caudaloso, branco, espumante, em rotação, Maelstrom, bolhas, borbulhante, sem osso, líquido, insosso, coalhada, talhado, espalhado, molhado, silencioso, calado, assustador, redondo, em espiral, movediço, pantanoso, afunda-pé, engole-o-pé, monótono, hipnótico, de uma nota só” (Ramos apud Oliveira, 2018, p. 78). 3
Ao analisar os procedimentos artísticos que instauram um certo regime estético, Eduardo Jorge aplica a análise dos procedimentos de forma integrada entre plástico e verbal transversal aos campos de atuação, compondo, assim, um mapa da poética e da estética do autor. A leitura desse ensaio de 143 páginas, portanto, consegue oferecer uma visão abrangente da obra de Nuno Ramos especulando sua poética artística em 360 graus, não se reduzindo a uma análise das obras tomadas singularmente, mas, sim, em um duplo movimento de relacionar não só as obras entre elas mas também os meios expressivos plástico e literário.
A literatura de Nuno Ramos, nascida de peles “inventadas como procedimentos” (Oliveira, 2018, p. 13), torna-se, no ver de Eduardo Jorge de Oliveira, plástica: memória da matéria. De fato, essa escrita identificada como “prosa de ateliê” (Massi apud Oliveira, 2018, p. 15) imortaliza os processos em seus devires, fotografa o “fazer-se” da matéria. Especialmente em obras como Cujo (1993), há o relato da matéria nos seus processos de transformação e montagem, mudança de forma e de estado. Assim a escrita incorpora “a perda, o desperdício”, absorve ou espelha o díspar, poderíamos dizer? O fragmento e o estatuto de transformação constante que caracteriza a matéria são “unidos pela lógica do texto”, que se converte em um “ateliê semântico” (Oliveira, 2018, p. 16). Interessantes essas duas definições, “prosa de ateliê” e de “texto como ateliê semântico”, pois, pela primeira vez, há um olhar mais articulado sobre a expansão da literatura para as artes plásticas, através da incorporação de práticas. Muitas vezes o que vemos, e também mais fácil de se explicar, é como o verbal e o literário conseguem entrar na arte contemporânea e não vice-versa. Para explicar esse último ponto seria suficiente apenas pensar em algumas obras de Nuno Ramos como Breu, de 1990, ou Vidro texto I, de 1991, nas quais há textos verbais em forma de vaselina que integram a instalação. Porém é sempre mais difícil entender esse processo de contaminação ao contrário, ou seja, como a literatura se contamina com as artes plásticas e como as práticas das artes plásticas são incorporadas na literatura. Essas expressões utilizadas por Eduardo Jorge conseguem aportar um diferencial se comparadas à ideia de “arte inespecífica” cunhada por Florencia Garramuño (2014, p. 87), pois os textos de Nuno Ramos ainda no “não pertencimento” (Garramuño, 2014, p. 87) aos gêneros canonicamente estabelecidos, possuem um carácter próprio - caráter este a ser indagado.
Se pensarmos no caminho contrário, ou seja, a literatura no museu, o autor escreve que “no museu a literatura é resto”, e que de fato “nunca é suficientemente exposta a ponto de ser lida integralmente” (Oliveira, 2018, p. 24). Na presença de um verbal opaco e na vontade de “não domínio da matéria”, mas “do dúctil”, do que que se estica em possibilidades infinitas, parece residir um dos questionamentos principais de Nuno Ramos sobre as possibilidades de representação da linguagem. A linguagem como duplo, na sua função representativo-referencial é questionada. Ela traz consigo uma aporia originária: ser sem ter substância, representar sem ser matéria. Assim Eduardo Jorge identifica nesse hiato que permeia a obra de Nuno Ramos “um gesto originário para voltar e deturpar o ‘primeiro nome’, ação que funda a homogenia entre nome e coisa” (Oliveira, 2018, p. 100). Colocar em discussão essa visão binária é abrir novas fronteiras nas fissuras da linguagem (plástica e verbal) para construir novos discursos, ou melhor, contradiscursos.
Wittgenstein (1987, p. 138) já havia proposto a formulação “ethics and aesthetics are one”, segundo a qual as formas estéticas implicam ética, no sentido originário do grego ethòs, ou seja caráter, índole. Cada estética escolhida implica um modo de ser da criação exposta que afetará a maneira como a própria obra será recebida. Os procedimentos artísticos e de criação de Nuno Ramos investigados nesse ensaio de Oliveira acarretam consequências estéticas que põem em crise a tirania originária do signo verbal e do sistema de representação binária, obrigando à formulação de um novo vocabulário que, algumas vezes, é de difícil acesso para o espectador ainda não emancipado (Rancière, 2008). Assim o autor desenvolve esse ponto:
O artista cria, assim, uma história e um vocabulário irregular ao fugir a “toda história e todo o vocabulário” conquistado por gerações anteriores. Isso é um problema para a crítica, tanto de arte quanto literária, pois sem uma identificação imediata desse vocabulário, Nuno Ramos se torna um artista difícil, porque ele não segue uma linha ou projeto previamente definido, apresentando mais uma vez um risco para aqueles que se propõem escrever sobre ele” (Oliveira, 2018, p. 100).
Retornando à questão da aporia originária da linguagem verbal, também tratada no mito de fundação da linguagem na abertura do livro Ó (Ramos, 2008), assim como ressaltado pelo autor, Nuno Ramos tenta fornecer uma reconstrução da origem da linguagem em que “o objeto coincidiria com o seu significado” (Oliveira, 2018, p. 42), uma “gramática viva”, um “dicionário de musgo e limo” (Ramos apud Oliveira 2018, p. 42). As palavras não possuem ontologicamente as camadas sensoriais da matéria, ainda assim, o artista acha uma via para compensar esse descompasso, e é aí que a literatura se torna plástica através de um texto construído como “ateliê semântico”, por meio dessa construção de pele-memória. Segundo o estudioso cearense, a memória da matéria na literatura de Ramos passaria pela “semantização dos processos artísticos” (Oliveira, 2018, p.16). O procedimento de invenção de uma pele se colocaria exatamente nesse processo de expansão de campos na tentativa de criar um espaço entre a “apresentação e a representação” (Oliveira, 2018, p. 17) - um campo, enfim, que desborda no lado performático. A própria escrita expõe processos e é ela mesma processo, pois a significação do texto se faz à medida que se avança na leitura através da ativação dos sentidos.
O nível performático da escrita fica evidente também na ausência total de uma unidade narrativa aristotélica; mais que o produto, o centro da escrita é o processo. Relatam-se, por exemplo, o crescimento dos pelos de uma barba, o trabalho de construção de uma obra ou o sono dos cachorros. Além disso, a própria escrita faz coisas; ao ler, o leitor investe com a percepção do próprio corpo no processo de produção de sentido. A esse propósito, Eduardo Jorge ressalta que “o fato de Nuno Ramos manter ‘seu trabalho’ em obras abre a possibilidade para que a gordura se mantenha entre o líquido e o sólido, ou que os materiais continuem em uma divergência constante, negando, pela matéria, o acabado” (Oliveira, 2017, p. 87). O acabado não interessa ao artista, tudo está em formação em uma prática criativa que experimenta as possibilidades oferecidas pelas artes plásticas e os materiais envolvidos, assim como nas possibilidades oferecidas pela linguagem verbal, na experimentação de gêneros. Assim, o artista salta “de uma forma de vida para outra, de um gênero para outro através do conhecimento dos limites entre cada um deles” (Oliveira, 2018, p. 27). A transição de gêneros e a experimentação de estilísticas é muito forte em toda a obra literária de Nuno Ramos até chegar ao livro mais radical da sua produção, em termos de linguagem, que é Adeus, Cavalo (2017), no qual o aspecto performático ligado aos efeitos sonoros e a uma teatralidade intrínseca ao texto - tratam-se de vozes incorporadas por um ator-cavalo que se entrecruzam - poderia ser associado a uma situação de “audição performativa” (Féral apud Zumthor, 2004, p. 42).
Em uma situação de audição performativa, não seria necessária a presença física em um teatro para criar um efeito de teatralidade, mas a leitura interna-mental de um texto, pelas características próprias daquela escrita específica, seria suficiente para recriar um espaço performático. A pele “teatraliza o corpo” por inseri-lo no mundo de aparências (Oliveira, 2018, p. 46), o performático e o plástico, reproduzidos em formas diferentes, não só na terceira dimensão propriamente dita, são fortemente entrelaçados. “A presença física e sobrevivência residual do corpo” vibram “pela sonoridade do próprio nome” (Oliveira, 2018, p. 4) e nenhuma escolha de palavra é deixada ao acaso na obra de Nuno Ramos, sendo que a construção do sentido do texto passa também pela combinação sonora dos elementos linguísticos e pelos efeitos por eles provocados no corpo leitor. Destarte se dá continuidade a investigação Eduardo Jorge:
Tanto o artista quanto o escritor propagam uma sobrevivência pela palavra na sua dimensão sonora e impressa. No texto a dimensão oral é recorrentemente simulada nas narrativas de Nuno Ramos, como se ele se apropriasse de uma oratória da dignidade latina e através de um mecanismo paródico” (Oliveira, 2018, p. 44).
Nas instalações de Nuno Ramos também é frequente a presença de alto-falantes, como no caso de Soap-opera, de 2008, analisada especificamente por Eduardo Jorge. A voz na instalação é materialidade projetada no vento, feita de ar. É a união do inefável da ferramenta da linguagem verbal com alguma forma de materialidade; os efeitos sonoros vão atingindo os corpos espectadores, criando uma percepção da obra a partir do som. Assim, nos textos escritos, a dimensão da palavra não é só impressa, mas também sonora, pelos recursos poéticos utilizados. O autor fala de uma “elaboração do ritmo e do encadeamento das frases que não está no princípio do poema, nem na origem da escrita filosófica” (Oliveira, 2018, p. 44). Há que se dizer, todavia, que apesar de o texto não ser nem poesia, nem escrita filosófica, os recursos sonoros usados para atingir alguns efeitos, são próprios do gênero da poesia, pois há aliterações, assonâncias, consonâncias e rimas internas que agem no processo de significação das obras escritas, criando efeitos como labirintos, concatenação de campos semânticos distintos por vizinhança sonora ou falhas no sentido por armadilhas da linguagem. O mesmo acontece nos textos lidos e amplificados nas instalações.
A voz, portanto, em seu aspecto performático, está presente de maneira transversal em toda a obra de Nuno Ramos. Eduardo Jorge associa à voz e aos procedimentos estéticos que a envolvem uma ideia de uma “pele fônica”, expressão cunhada pelo filósofo italiano Emanuele Coccia (Coccia apud Oliveira, 2018, p. 46). Nuno Ramos, portanto, investiria “contra a propriedade que a matéria fixa” (Oliveira, 2018, p. 97) e, poder-se-ia acrescentar, contra o pensamento binário que uma visão essencialista da linguagem tem afirmado ao longo dos séculos, buscando espaços de criação entre o “entusiasmo e o cansaço” (Oliveira, 2018, p. 97). No final, as “formas precárias de vida” e a “as formas limites” (Oliveira, 2018, p. 100) que tanto fascinam o artista paulistano são um ponto imprescindível para formas estéticas contradiscursivas. O ensaio apresenta-se como um guia de reflexão abrangente sobre a obra de Nuno Ramos, seja para quem esteja se aproximando pela primeira vez do seu trabalho, oferecendo caminhos de abordagem da obra, seja para quem já esteja envolvido em um estudo aprofundado da sua obra - oferecendo elementos de reflexão interessantes contaminados por uma leitura enraizada na filosofia.
Referências
- GARRAMUÑO, Florencia (2014). Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco.
- OLIVEIRA, DE Eduardo Jorge (2018). A invenção de uma pele: Nuno Ramos em obras. São Paulo: Iluminuras.
- RAMOS, Nuno (1993/2011). Cujo. São Paulo: Editora 34.
- RAMOS, Nuno (2007). Ensaio geral. Porto Alegre: Globo.
- RAMOS, Nuno (2008). Ó. São Paulo: Iluminuras .
- RAMOS, Nuno (2017). Adeus, Cavalo. São Paulo: Iluminuras .
- RANCIÈRE, Jacques (2008). Le spectateur emancipé. Paris: La Fabrique.
- WITTGENSTEIN, Ludwig (1987). Tratado lógico filosófico. Tradução de M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
- ZUMTHOR, Paul (2004). Performance, recepção, leitura. 2. ed. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify.
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1
O próprio Nuno Ramos intitula De giro em giro a seção do livro Ensaio geral (2007) dedicada aos roteiros. Cada roteiro/giro será numerado: primeiro giro, segundo giro, terceiro giro, quarto giro. É evidente no ensaio à retomada desses títulos do autor.
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2
As imagens de obras e instalações citadas neste artigo estão disponíveis no site do autor: http://www.nunoramos.com.br/portu/obras.asp.
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A citação não foi transcrita na íntegra.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Nov 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
07 Set 2018 -
Aceito
06 Ago 2019