Open-access Migração, identidade e memória em O cisne e o aviador , de Heliete Vaitsman

Migration, identity and memory in O cisne e o aviador , by Heliete Vaitsman

Migración, identificación y memoria EN O cisne e o aviador , de Heliete Vaitsman

resumo

Este artigo analisa os conflitos decorrentes do trânsito espacial e cultural no romance O cisne e o aviador, de Heliete Vaitsman, bem como interrogar as novas relações dos imigrantes com o espaço, as modalidades intersubjetivas surgidas da relação dialética entre memória e esquecimento e a reconfiguração do sentido de pertencimento, considerando que, em sua maioria, as personagens migrantes são judeus que emigraram para o Brasil para escapar do nazismo.

Palavras-chave: migração; identidade cultural; memória; esquecimento

abstract

This article analyzes the conflicts arising from spatial and cultural mobility in the novel O cisne e o aviador, by Heliete Vaitsman. Considering that the novels’ characters are migrants, mostly Jews who emigrated to Brazil to escape Nazism, the article interrogates the relations immigrants establish with space, the inter-subjective modalities derived from the dialectical relationship between memory and forgetting, and the reconfiguration of a sense of belonging.

Keywords: migration; cultural identity; memory; oblivion

resumen

Este artículo pretende analizar los conflictos derivados del tránsito espacial y cultural en la novela O cisne e o aviador, de Heliete Vaitsman, así como interrogar las nuevas relaciones de los inmigrantes con el espacio, las modalidades inter-subjetivas surgidas de la relación dialéctica entre la memoria y el olvido y la reconfiguración del sentido de pertenencia, teniendo en cuenta que los personajes son migrantes, en su mayoría Judíos que emigraron a Brasil para escapar del nazismo.

Palabras clave: migración; identidad cultural; memoria; olvido

Desterritorialização e reterritorialização

No capítulo introdutório de Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos (2010), Zilá Bernd apresenta uma tipologia das mobilidades que inclui as mobilidades migratórias transculturais, que, por sua vez, abrangem as diversas possibilidades de deslocamento em que comunidades étnicas são levadas ao processo, por vezes traumático, da migração.

O processo migratório dá-se por meio de uma desterritorialização seguida de uma reterritorialização,2 que enseja novas modalidades subjetivas. Desterritorializar-se significa abandonar o “lugar antropológico”, definido por Augé (1994, p. 51) como uma construção concreta e simbólica do espaço, que é simultaneamente identitário, histórico e relacional.

Se, por um lado, as sociedades ainda guardam resquícios de uma geografia pautada em enraizamentos e na delimitação de territórios, por outro, os deslocamentos humanos apontam para um novo olhar geográfico, voltado para os espaços nômades, para os espaços de mobilidade, em que há um esbatimento de fronteiras.

As articulações que se estabelecem entre os seres e seus papéis sociais implicam diferentes relações com o espaço. Em Les passages obligés de l’écriture migrante (2005), Simon Harel defende a noção de “lugar habitado”, que descreve a maneira de ser do sujeito no mundo, expressando uma correspondência entre o próprio lugar e o sujeito que nele se molda. Assim, na reterritorialização, há um engendramento de novos espaços e novos relacionamentos que geram um enfraquecimento dos laços precedentes.

Na literatura brasileira, a temática das migrações surgiu com maior relevância a partir da década de 1980, muito embora sempre tenha estado presente no cenário literário brasileiro, não apenas focalizando as migrações internas, como também as diversas ondas migratórias de estrangeiros de diferentes nacionalidades que vieram ao Brasil em busca de acesso ao trabalho e ascensão social. Entre as obras contemporâneas que abordam a questão da imigração há que destacar aquelas que focalizam a situação específica da diáspora causada pela ascensão nazista e pelo holocausto.3

Longe de renderem-se apenas ao formato de relato testemunhal das atrocidades cometidas contra os judeus, essas obras se embrenham pela seara das relações humanas no pós-guerra, dos desafios impostos àqueles que, além de estarem em solo brasileiro na condição de imigrantes, ainda tiveram de conviver com seus próprios fantasmas: as lembranças de suas vidas no seu local de origem e a memória de familiares mortos pelo III Reich.

Conforme Zygmunt Bauman aponta em Modernidade e holocausto (1998, p. 50), devido à autodispersão e onipresença territorial, os judeus sempre constituíram “um elemento não nacional em um mundo de nações já existentes”. Enquanto comunidade imaginada, suas lembranças sempre estiveram conectadas a uma terra que não era a sua, sendo este um dos fatores preponderantes a alimentar o antissemitismo durante a ascensão do nazismo.

Em O cisne e o aviador, Heliete Vaitsman4 constrói um romance histórico no qual a tessitura focaliza as histórias pessoais de três imigrantes judias, cujas histórias pessoais entrecruzam-se à de Herberts Cukurs, um capitão aviador da Força Aérea Letoniana. Segundo o historiador Andrew Ezergailis, Cukurs foi um dos líderes das atrocidades cometidas no gueto de Riga, estando diretamente envolvido em vários outros massacres de judeus.

Refugiado no Brasil desde 1946, onde voltou a trabalhar com aviões e introduziu os passeios de pedalinho na Lagoa Rodrigo de Freitas, Cukurs teve seu envolvimento com o nazismo oculto por muito tempo, até que, devido a denúncias, foi obrigado a mudar-se para São Paulo. Em 1965, atraído por um agente do Mossad disfarçado, foi assassinado no Uruguai. Junto ao corpo, havia um bilhete assinado por “Aqueles que não esquecem”.

A proposta deste trabalho é analisar os conflitos decorrentes do trânsito espacial e cultural que o romance retrata, bem como interrogar as novas relações com o espaço, as modalidades intersubjetivas surgidas da relação dialética entre memória e esquecimento e a reconfiguração do sentido de pertencimento.

A voz de quem desejou esquecer

No romance de Vaitsman, o fio narrativo é puxado por Frida, uma senhora de 90 anos, que, sentindo a proximidade da morte, conta à neta a história da família. Ao rememorar o passado, ela afirma que chegara ao Brasil há 72 anos e que nunca mais retornara à Alemanha, nem tampouco voltara a ler ou escrever em alemão, “língua que ela jamais absolvera dos ultrajes cometidos” (Vaitsman, 2014, p. 9).

O relato surge como um depoimento extemporâneo, uma cura pela fala, como ressalta o narrador. Brígida, a neta - tratada por Frida como Meine Lieber, “na língua que quis exilar” (Vaitsman, 2014, p. 12) -, é a escolhida para juntar os pedaços das histórias do passado. Muito embora Frida lhe estenda fragmentos de memória escritos em papel fino e em um velho caderno amarelado, “é na fala que jorra a torrente que a neta gostaria de catalogar, classificar e arrolar como documento comprobatório, ainda que Frida nada queira provar; obedece apenas ao imperativo da transmissão, antes que o fôlego diminua e a voz se cale” (Vaitsman, 2014, p. 12).

E ela começa por narrar o seu primeiro contato com o aviador:

Fazia dez anos que eu estava no Rio, quando, no dia seguinte a uma tempestade, dia de nuvens espessas, tropecei numa raiz de árvore [...] e ele correu para me ajudar [...] aos poucos nos aproximamos, macho e fêmea iguais desde que o mundo é mundo [...] ele tinha chegado logo depois da guerra, contou, e construíra uma dúzia de pedalinhos que eram utilizados em passeios por adultos e crianças [...] tinha sido piloto militar famoso em seu pequeno país (Vaitsman, 2014, p.13-15).

Cukurs apresentara-se à Frida como um militar que nunca estivera em combate na Segunda Grande Guerra. Afirmara viver em uma propriedade rural que não prosperara por causa da guerra e mostrara-lhe também o álbum de recortes de notícias de jornais cariocas, que o louvavam como empreendedor e até mesmo como um herói que lutara contra os comunistas.

À medida que a narrativa prossegue e o envolvimento da jovem com o aviador evolui, surge a primeira menção ao holocausto e à participação de Cukurs em massacres nazistas:

Antes que o mundo virasse do avesso, teve tempo para me observar como ninguém fizera [...] perfil camafeo - declarou com seu sotaque carregado [...] O belo perfil não me teria servido, reagi, eu teria virado pó como os outros se estivesse lá - cabelos de cinzas, no lugar de cachos dourados de ariana. O aviador engoliu a frase com uma careta. Pouco pródigo em aquiescências, tampouco fazia exigências, quem agia era eu, meus passos é que se aproximavam dele e do barracão em madeira, nos espaços deixados pela vida real [...] isso aconteceu antes que os relatos sobre ele me deixassem perplexa, primeiro; insone, depois. Quando tudo se precipitou e o Aviador foi banido da Lagoa, condenado pelos mesmos entusiastas que haviam proclamado seu futuro radiante (Vaitsman, 2014, cap. 3, p. 6).

As memórias de Frida regridem ao tempo em que vivia com a família em Berlim e ao início do avanço do nazismo:

Até o outono de 1937, papai e titio [...] mantinham a esperança de que Hitler não duraria no poder. O povo alemão não se deixará contaminar pela falta de razão, Frida. Como alguém chegado da Áustria pode fazer o que bem entender com os militares? [...] Raça não era assunto tratado à mesa. Religião muito menos [...] nossa pequena família mantinha apenas um rito: a visita anual ao cemitério judaico no aniversário da morte de mamãe. (Vaitsman, 2014, p.18)

Muito embora a família não fosse praticante do judaísmo, não fora poupada e a percepção do perigo que a ascensão de Hitler representava foi se construindo aos poucos:

Nada aconteceu de repente. Não houve um raio caindo sobre nossas cabeças; tudo na Alemanha de Hitler era explicado de maneira muito civilizada. Pequenas proibições aqui; pequenas proibições ali, e a gente ia se adaptando, supondo que já havia restrições suficientes. Como imaginar que depois de um anúncio assustador, novos anúncios viriam até a vida se tornar impossível? (Vaitsman, 2014, p. 19).

O romance enfatiza como a ideologia da supremacia da raça ariana transformou-se em um antissemitismo voraz. Frida fora expulsa da escola que frequentava e seu pai, proibido de clinicar. Por todos os lados, nas ruas e nas revistas, ela via propagandas contra os judeus: pessoas de narizes aduncos, avarentos com mãos em forma de garra e olhos saltados, e não se reconhecia nessas figuras estereotipadas. Quando se olhava no espelho, loura, de olhos azuis, Frida pensava que os judeus nada tinham a ver com ela, com sua família berlinense.

Parte de Hanna, uma vizinha da família, a ideia da fuga. Como as cotas para a América estavam esgotadas, ela sugere ao pai de Frida que ele envie as duas filhas à Palestina. Entretanto, para ele não havia outra pátria senão aquela; nenhuma terra prometida além de Berlim. Até mesmo a sugestão de conversão ao cristianismo feita por um primo não o demovera. A realidade que se descortinava ante seus olhos era que, para os alemães, era considerado judeu quem tinha três avós judeus. A conversão não limparia o “sangue impuro”.

A fuga de Frida e de sua irmã, Helga deu-se uma semana antes de o Ministério da Justiça do Reich invalidar os passaportes de judeus-alemães, que foram obrigados a devolvê-los às autoridades. O romance busca, de certa forma, dar uma resposta para a tão questionada passividade dos judeus alemães: “Os judeus obedeceram, e não por serem judeus: nada é tão alemão quanto seguir instruções ao pé da letra” (Vaitsman, 2014, p. 28).

Dois dias após a “Noite dos cristais”, quando as lojas dos judeus foram depredadas, suas casas arrombadas e muitos foram espancados nas ruas, as duas irmãs foram enviadas a Paris, à casa de um casal amigo. Por intermédio de um tio materno que vivia no Brasil, as duas irmãs conseguiram convencer o pai de que deveriam ir para o Rio de Janeiro.

O relato de Frida denuncia certo esnobismo, uma ideia de superioridade que se reflete no isolamento que ela e a irmã se autoimpõem durante a viagem de navio:

Chapeuzinhos de feltro, roupas clássicas, sapatos de verniz, casacos de pele, luvas de pelica, os últimos brincos de pérolas, éramos olhadas no navio de imigrantes como se fôssemos beldades. Admiração, tivemos de sobra; solidariedade e afeto, não recebemos nem dispensamos, um círculo invisível nos isolando dos outros passageiros, aqueles que forjavam laços perpétuos na travessia do oceano. Na terceira classe imunda, com medo de ficarmos doentes, o cheiro de azedo tomando conta de tudo, o mofo nos fazendo tossir [...]. Não fizemos amizades naqueles dias de mar. Ainda que nossos recursos fossem escassos, não vínhamos da miséria das cidadezinhas da Rússia, da Polônia, da Romênia. Deixáramos para trás piano, edredons macios, travesseiros de penas, porcelana fina. E uma biblioteca que devia ser legada para as gerações seguintes (Vaitsman, 2014, p. 33).

A experiência migratória dos judeus que vieram para o Brasil para escapar do nazismo reveste-se, como demonstra o romance, de uma particularidade: a partida não se dá envolta da emoção cindida usual, revestida de saudade antecipada do lugar de origem, mas na surpreendente complexidade do alívio: “Não vou mentir dizendo que chorávamos ao partir [...] quem olha para trás vira estátua de sal” (Vaitsman, 2014, p. 30).

Ao contrário da maioria dos imigrantes que chegam ao país de adoção com a esperança do retorno, os judeus se autoexilaram para sobreviver; não havendo, portanto, para onde retornar. Muito embora todo o exílio signifique “uma fratura incurável entre um ser humano e o lugar natal”, como afirma Said (2003, p. 46), no caso específico dos judeus que emigraram durante o período que antecedeu à Segunda Grande Guerra não havia espaço para a melancolia. A tristeza decorrente do deslocamento está associada à memória de atrocidades cometidas contra os judeus e não à saudade da terra natal.

Ao partir, Frida tem a súbita consciência de ser uma pessoa “fora do lugar”. Por um lado, fora obrigada a fugir por laços de sangue que não a definiam como ser humano; e, por outro lado, o que conhecia como pátria, a Alemanha, nunca fora de fato a “sua” pátria. Conforme Said nos faz recordar: “o exilado sabe que, num mundo secular e contingente, as pátrias são sempre provisórias”, e que “fronteiras e barreiras, que nos fecham na segurança de um território familiar, também podem se tornar prisões” (Said, 2003, p. 58).

À chegada das duas irmãs ao Brasil, permeada do espanto causado pela sensação produzida pela beleza da baía de nome impronunciável, segue-se um período na casa dos tios e, finalmente, a hospedagem definitiva em uma pensão no Catete, onde Frida começa a aprender a língua em livros emprestados.

Algum tempo depois da chegada ao Rio de Janeiro, as jovens recebem uma carta informando que pai e o tio haviam sido enviados à Letônia em 1941 e mortos na floresta de Rumbula. A opção de Frida pelo esquecimento é claramente enunciada: “Vou acender as velas uma vez por ano [...] mas nos outros 364 dias não quero revolver as feridas. Tudo o que quero é sair do passado” (Vaitsman, 2014, p. 32).

Na mente de Frida, paira ainda a incerteza da escolha paterna: “Até hoje me perturba o pensamento de que ele e titio poderiam ter fugido - afinal, os sábios do Talmude ensinam que o ser humano tem direito a salvar-se por qualquer meio - exceto o incesto, a idolatria e o assassinato” (Vaitsman, 2014, p. 32). Teriam eles - “alemães até a medula” (Vaitsman, 2014, p. 32) - escolhido para si mesmos a obediência a todas as diretrizes? Segundo Hall,

Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, [...] estamos falando de forma metafórica. Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós definitivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial (Hall, 2006, p. 47).

A angústia de Frida em relação à morte do pai traz à baila conjeturas de que o sentimento de pertencimento, a reafirmação da identidade alemã pode ter sido a causa da passividade e consequente morte de muitos judeus na Alemanha nazista.

A reterritorialização das irmãs ocorre de forma inusitada. Helga consegue um emprego como balconista que a deixa frustrada ao ponto de aceitar o pedido de casamento de um ourives austríaco, mergulhando “em uma existência sem sustos” (Vaitsman, 2014, p. 36). Frida obtém um contrato como professora de alemão, francês e piano na residência dos Prates de Souza, família abastada, com muitos bens e donos de obras de arte das quais muito se orgulhavam.

Acomodada em um quarto no andar térreo, Frida vê a si mesma de forma privilegiada:

Acordava cedo, tinha obrigações, mas não era uma criada. Em primeiro lugar era branca. Os outros - os que cozinhavam, limpavam a sujeira de adultos e crianças, serviam à mesa, lavavam, engomavam, cerziam roupas, faziam as compras - tinham a tez escura, as mãos grossas, dormiam em quartinhos sobre a garagem dos fundos, acordavam ainda mais cedo, usavam uniformes e toucas para esconder os cabelos [...] eu usava minhas próprias roupas, saias pretas ajustadas ao corpo, blusas brancas de gola bordada, casaquinhos leves, meias de seda que realçavam as pernas. Relógio de pulso, sempre [...] tinha minha sagrada hora de folga após o almoço, as noites e os domingos livres, pequenos privilégios que no início me envergonharam. Depois, o inusitado tornou-se habitual, o romantismo alemão fez uma mesura, adaptou-se (Vaitsman, 2014, p. 39).

Ao observar a arrogância da Madame Prates com seus empregados, a limitação social imposta aos filhos destes, que não vão à escola e não têm sequer a oportunidade de aprender um ofício, Frida se recorda dos tempos de perseguição em Berlim, dos objetivos e sonhos perdidos.

Ligada ao aviador por uma paixão platônica que começara a ser abalada com as denúncias de envolvimento com os crimes de guerra, Frida vê no casamento com João Afonso, o filho mais velho da família Prates, a chance para uma nova vida. A noiva de João Afonso morrera em um acidente de automóvel e as sessões de leitura com que distraía Madame Prates e João Afonso tornaram-se o ponto de partida para o relacionamento, que mantiveram em segredo por dez meses. Se para o jovem o casamento com Frida representava autoafirmação diante da família, para Frida, ele era o cavaleiro que a salvaria “do lugar subalterno de moça pobre, obrigada a trabalhar em casa alheia”.

O papel social de Frida delineia-se quando ela mesma se define como “amestrada”, perita em dizer “sim” sem dizer nada. A rejeição inicial da família Prates desfaz-se com o nascimento e batismo das filhas do casal, ato que ela define como “gesto social”, “documento do mundo” ao qual pertencia agora. A consciência do que isso representaria para a própria família faz com que ela não convide a irmã e os primos residentes no Brasil para a cerimônia de casamento. No entanto, admite a total falta de importância da cerimônia para ela: “Não lembro o que senti quando o padre borrifou água na testa dos bebês. Roma e Jerusalém tinham o mesmo significado para mim: nenhum. Se o gesto nada significa, é fácil ignorá-lo” (Vaitsman, 2014, p. 88).

Ao contrário da maioria dos imigrantes, Frida não busca manter relações com pessoas da mesma origem e, inclusive, rejeita com veemência a possibilidade de casamento com um judeu:

Que mulher sem fortuna não sonha em subir meia dúzia de degraus? Casar com um dos judeus que frequentavam a casa dos tios me parecia intolerável, ainda que um ou outro pudesse oferecer conforto a alguém que já passava da idade. Esse iletrado, aquele arrogante, esse de dentes podres, aquele mal-humorado. Sepultar o passado se tornara minha ideia fixa, e eu enumerava os defeitos dos candidatos estrangeiros. Você vai muito ao cinema, declarou uma noite a tia, quer um galã! Eu sonhava com a paixão, a tia entendera, e paixão é miragem, como sabem os adultos. Na falta dela, não custei a optar pelo que era palpável (Vaitsman, 2014, p. 85-86).

Da Frida H. do passado, restam pequenos objetos e a paixão pelo carniceiro de Riga, cuidadosamente recolhidos ao esquecimento, para dar lugar à Frida Prates de Souza, desenraizada e entregue à representação de um papel social em uma pátria que não considera sua. O romance deixa claro que a assimilação5 cultural de Frida é forjada; é uma assimilação de conveniência. A sua nova configuração identitária é metaforizada por meio da imagem do cisne, que “é capaz de passar a vida inteira no lago onde nadam outras espécies” (Vaitsman, 2014, p. 86).

A voz de quem o passado não se aparta

Uma segunda narrativa imbrica-se à primeira. No desembarque do navio Cabo de Buena Esperanza, em que viera para o Brasil, a judia Rosa W. reconhece Cukurs, o carniceiro de Riga, mas se mantém calada, desejosa de apagar o negrume dos invernos e o cheiro de corpos queimados:

Cukurs, Herberts Cukurs, o Aviador - Rosa W, reconhece-o no desembarque no Cais do Porto do Rio de Janeiro, mas nada diz ao marido. Como não reconheceria o herói que os jornais exaltavam antes da guerra? Entre os 438 passageiros do transatlântico [...] aqueles que fizeram o inominável para salvar-se valem tanto quanto os outros. Sem perguntas, sem respostas. Cinzas frias, memórias silenciosas. E o silêncio não lhe é estranho (Vaitsman, 2014, p. 43).

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o trauma desenca deado pela dolorosa experiência dos sobreviventes ao nazismo gerou um período de silêncio sobre o holocausto.

Em “Memória, esquecimento, silêncio” (1989), Michel Pollak aborda a relação dialética entre a memória e o esquecimento fazendo uso de dois exemplos; um deles focaliza o holocausto e, mais especificamente, o silêncio absoluto tanto por parte das vítimas quanto por parte dos algozes. Conforme Pollak, além da experiência traumática, que por si só já seria uma forte razão para o silêncio e a tentativa de esquecimento, havia também, em alguns casos, uma espécie de culpa oculta, gerada tanto pela imposição de alguma atividade colaborativa com os nazistas quanto pela própria condição de sobrevivente, enquanto tantos haviam perecido.

Ainda segundo Pollak (1989, p. 4), os sobreviventes também buscaram poupar os descendentes de suas amargas lembranças, rompendo o silêncio apenas com a proximidade da morte.

É de silêncio que Rosa se reveste no desembarque. O bebê de olhos esbugalhados que traz ao colo é sua principal motivação para uma nova vida. Sofia Esperanza nascera a bordo, quando o navio se aproximava de Curaçao. Rosa temia que acontecesse com ela e o bebê o mesmo que sucedera com outros dois passageiros, que morreram na travessia e foram atirados ao mar às pressas. A criança nascera na terceira classe malcheirosa, em que folhas de jornal substituíam os lençóis nas macas da enfermaria.

Um tumulto atrasa o desembarque. Protestos ecoam contra uma persona nongrata a bordo. Cukurs, que viaja com a esposa, filhos e Miriam K., uma jovem que abrigara em sua casa durante a guerra, apavora-se pensando ser ele o alvo da manifestação, mas, em seguida, descobre que os protestos eram dirigidos ao embaixador espanhol.

Apesar do silêncio e do desejo de esquecimento do passado que circunda as personagens, anos mais tarde, os caminhos de Rosa e Cukurs se cruzam novamente, quando, durante um passeio de pedalinho na Lagoa Rodrigo de Freitas, este vira e Rosa e sua família se veem diante da morte.

O aviador havia percebido a estrela de Davi sobre o decote de Rosa e não se furta ao pensamento de que aqueles judeus lhe parecem muito diferentes dos que conhecera em Riga. Pensa que “longe dali, uma outra vida, a primeira, escorre”, que foram a sorte e o empenho que o trouxeram para uma nova terra, onde “a vida é leve o suficiente para um homem engenhoso”, “como se não houvesse passado” (Vaistman, 2014, p. 53).

Quando o pedalinho vira, Rosa se atira à água, pensando no pai que a ensinara a nadar no longínquo rio Gauja, e salva a filha menor, puxando-a pelos cabelos. Debora terá enxaquecas o resto da vida; Sofia, a mais velha, que sorve o ar entre soluços, padecerá vida afora de falta de ar; Iosse, o marido, que não sabe nadar, é salvo por ter-se agarrado ao pedalinho já emborcado.

Cukurs, que não havia inspecionado o pedalinho, como sempre fazia, dá a Iosse um Rolex prateado, na tentativa de comprar o silêncio da família, o que causa a revolta de Rosa:

Quero que você suma daqui com esse relógio, diz então ao marido, as mãos daquele homem estão sujas do nosso sangue. Você não tem certeza, responde ele impaciente. Ninguém tem certeza do que ele fez, todo mundo conhecia o seu rosto, sua fama, só por isso se lembram dele [...] meu melhor amigo antes da guerra vestiu o uniforme da legião letã [...] e foi forçado a ir com eles (Vaitsman, 2014, p. 62).

Muito embora Iosse levante a hipótese de que Cukurs pode ter sido inocente, o romance reproduz as notícias de jornais veiculadas à época em que jovens universitários dirigiram-se à Lagoa e destruíram os pedalinhos; uns a favor de Cukurs, outros indagando como um criminoso de guerra conseguira entrar no Brasil. A partir desse incidente, Cukurs passa a ser conhecido como o “carniceiro de Riga”.

Durante a guerra, Rosa fora acolhida na casa de uma família luterana que não cessava de afirmar que o Deus dos judeus os havia abandonado e, mesmo no Brasil, na terra que o marido afirma ser “o paraíso”, é difícil “despertar de noites em companhia de fantasmas” (Vaitsman, 2014, p. 62).

Iosse, obcecado por dinheiro, faz questão de apagar o passado; o mesmo passado que a assombra hodiernamente. Ele é a expressão do imigrante integrado culturalmente: em quatro anos aprendera “as manhas da cidade”, “conhecendo meio mundo”. Anda com equilíbrio no estribo do bonde, entra e sai de lojas e escritórios, almoça em botequins, sempre em busca de bons negócios. O processo integrativo6 de Iosse não o impede de vez ou outra sucumbir às lembranças e, ao contrário de Frida, ele não se dissocia da comunidade judaica.

Um mundo foi extinto, outro nasceu, diz para si mesmo ao sentir que a memória se intromete e lhe pesa mais do que a mala de quinquilharias com a qual, encharcado de suor, subia o morro em Vigário Geral, seu primeiro território de vendas no Rio, até o poço das lavadeiras negras. Uma das poucas frases que conhecia então era: Compra, freguesa (Vaitsman, 2014, p. 65).

Desde as primeiras ondas migratórias, a profissão de mascate fora a porta de entrada do comércio para os imigrantes sírios, libaneses e judeus; e Iosse se saíra muito bem. A tal ponto que quase esquecera de que, quando jovem, fora obrigado a deixar o gueto para roubar e não morrer de fome, e, ainda assim, ao escapar de Kaizerwald, era apenas “pele e osso” (Vaitsman, 2014, p. 66).

Diferentemente, Rosa não consegue deixar de lado a revolta ao ler nos jornais as negativas de Cukurs, quando este é denunciado e acusado de crimes como o encarceramento de judeus em uma sinagoga que fora incendiada em seguida; o afogamento de 1.200 judeus em um lago; o estupro de prisioneiras e o assassinato de 10.600 pessoas na floresta de Rumbula.

As divergências de opiniões e modos de enfrentar a vida distanciam Rosa e Iosse. Ela finge ignorar o fato de que o marido tem uma amante. Basta-lhe a estabilidade, que permite às filhas uma “ancoragem identitária”,7 aquela que a vida lhe negara. Ela mesma passa ao papel de amante, em uma tentativa de preencher o vazio dos dias. O romance deixa claro que, assim como Frida e Helga, Rosa e Iosse são judeus não praticantes. O comportamento ético inerente à fé religiosa não encontra guarida naqueles que experimentaram o trauma.

Cabe aqui a ressalva de que, na elaboração da narrativa, Vaitsman se permite estabelecer novas relações entre literatura e ética. Conforme Moreira (2013, p. 3), “no domínio da ficção, a natureza dessa relação é livre, não é condicionada, nem condicionante. O campo literário, com efeito, é um espaço de experimentação, de liberdade de sonhar e inventar mundos até onde as variações imaginativas do autor nos puder levar.”

Assim como Frida fizera com a neta, Rosa transmite à filha, Sofia, as memórias do que sucedera em Riga: primeiro, a ocupação nazista e o envio de cerca de cinco mil judeus para a Sibéria; e, em seguida, para os campos de trabalho.

Os judeus foram enviados para campos de trabalho, arrancados das filas de distribuição de comida e das camas dos hospitais. Pode esbugalhar os olhos, Sofia, mas eu conto, continua Rosa: papai acabou igual aos outros, obrigado a tirar as roupas e a esticar os braços antes de receber o tiro na nuca. Os nazistas queriam a Letônia judenfrei - livre de nós. Ricos e pobres, trabalhadores e doutores, tudo igual para eles (Vaitsman, 2014, p. 110-111).

Seu pai tivera tempo apenas para enviá-la à granja de uns conhecidos, despedindo-se apressado, sem proferir um adeus. Naquele período, ficara sabendo do envolvimento de Cukurs com a milícia de Viktor Arajs, colaborador dos nazistas. Estava ainda na granja quando o gueto de Riga fora esvaziado e todos os judeus levados em marcha forçada à floresta de Rumbula.

A minuciosa pesquisa histórica realizada por Vaitsman é responsável pela reconstituição da memória das personagens, bem como dos eventos relativos à efetiva presença de Cukurs no Brasil. Os flashbacks promovidos pela lembrança das imigrantes funcionam como contraponto à narrativa do presente.

Rosa não amava Iosse. Em meio aos escombros da memória, o segredo de uma vida é finalmente revelado:

Mamãe, então você se apaixonou por papai?, Sofia insiste. Sim, nos juntamos logo que acabou a guerra, dois náufragos. Nada de amor e flores no meio dos escombros e das famílias desaparecidas. Não sei por que você insiste nisso. Mas o corpo faz exigências, mesmo quando os mortos povoam as noites. [...] ele tinha cabelos louros, era alto, bonitão. Mãos enormes, e me agradava, a boca se colava na minha. Não, mamãe, papai nunca foi louro e alto, muito menos bonitão, tinha mãos pequenas e uma vez me contou que perdeu os dentes em Kaiserwald. Ah, minha filha, esse era o Iosse que chegou na granja na companhia do meu irmão e mais uma moça conhecida deles, uma costureira que tinha passado a guerra escondida num celeiro. Mirrado, canelas finas, rosto chupado, Iosse só encorpou depois. Você se lembra, Sofia? Aleksanders viajou comigo de jipe, de caminhão, também a pé [...] quem é Aleksanders, mamãe? Que nome é este que nunca ouvi. [...] É verdade, não viajei com ele [...] ele ficou na granja, na terra [...] foi Aleksanders que me ajudou a subir no caminhão, quando tudo acabou [...] e me entregou todas as economias dele. Nem por um minuto pensei em ficar lá depois da guerra [...] mas ele não veio comigo [...] quem veio foi o Iosse, nervoso e suado, Iosse que sempre dava um jeito de arranjar comida para nós (Vaitsman, 2014, p. 129-131).

Ao fim da guerra, quando tudo acontecia com extrema urgência, Rosa e Iosse decidiram se casar e desde o nascimento de Sofia Esperanza, no navio que os trouxera ao Brasil, ele a tratara como filha. Sofia e Débora tinham passado a vida tentando reconstruir aquele passado sobre o qual a mãe silenciara. Inúmeras vezes, até aquele momento, tinham conjecturado sobre a origem do silêncio. As revelações são feitas quando a memória de Rosa está prestes a se apagar, porque, segundo Sofia, tornara-se necessário sepultar os mortos e só é possível fazê-lo “se eles forem contados”. É como herdeira do relato que ela se apropria do passado. A herança se reveste do caráter de tarefa, conforme aponta Derrida (1994, p. 78): “[A herança] permanece diante de nós, tão incontestavelmente que, antes mesmo de querê-la ou recusá-la, somos herdeiros, e herdeiros enlutados, como todos os herdeiros”. À Sofia caberá aceitá-la e dela testemunhar:

Somos herdeiros, o que não quer dizer que temos, ou que recebemos isto ou aquilo, mas que o ser disso que somos é, primeiramente, herança, o queiramos, saibamos ou não. E sobre o que, Hölderlin o diz tão bem, só podemos testemunhar. Testemunhar seria testemunhar do somos à medida que herdamos, e aí está o círculo, aí está a oportunidade ou a finitude, herdamos isto mesmo que nos permite dar testemunho. Hölderlin chama a isso de linguagem (Derrida, 1994, p. 79).

A pálida existência de quem não tem voz

Clara é uma judia que surge no romance quando o marido, Waldemar, passa a ser o alfaiate de João Afonso. É o elo entre as duas outras personagens femininas, às quais está ligada por uma sólida amizade.

O marido é um homem cujas feridas são frequentemente revolvidas pelas faces dos imigrantes, que chegam aos montes no cais, despertando as lembranças dos familiares que nunca mais verá. No intuito de amenizar as dores do passado, Waldemar entrega-se à política, ao Partido Comunista e ao amor por Clara. Ela o vê como um homem que, “entre agulhas, linhas e o conserto do mundo” (Vaitsman, 2014, parte 1, cap. 20, p. 1), jamais aprendera a remendar as fissuras do sonho.

Única sobrevivente de uma vasta família, Clara escapara ao genocídio por ter tido a coragem de partir antes da guerra. De sua história pessoal, pouco é dito. Mulher sem vaidade, ela vive à sombra do marido, condicionada à sua vontade e ritmo de vida.

Como tantos outros imigrantes, Clara se acomoda à vida sacrificada da classe trabalhadora e já não tem ambições. Não tendo uma terra para a qual voltar, ela busca adaptar-se ao mundo que a cerca. A rotina na alfaiataria e a militância política de Waldemar mal permitem o aflorar das lembranças. O processo de adaptação de Clara corresponde ao que Gordon (1964, p. 71) e Berry (2004, p. 34) denominam assimilação cultural, ou seja, um processo integrativo em que há a aquisição de um modus vivendi próprio da sociedade de adoção, em detrimento de práticas inerentes à cultura original.

Interlocutora silenciosa, Clara é a confidente de Rosa e Frida, a quem estas escrevem cartas quando a amiga, já consumida pelo câncer, não pode mais se deslocar. Da jovem que lera dezenas de livros em Varsóvia, que estudara para ser atriz e frequentara muitas reuniões políticas, resta o apreço pelos poemas de Rilke, pelos versos que a consolam da sua irremediável subalternidade: “Eu sou tão sozinho no mundo, mas não tão sozinho, eu sou tão pequeno no mundo, mas não tão pequeno” (Vaitsman, 2014, p. 91).

A voz a quem o passado emudece

A segunda e a terceira parte do romance contêm a reconstituição histórica da trajetória de Herbert Cukurs. Certo da impunidade, Cukurs entrou em território brasileiro usando o próprio nome, para, em seguida, tornar-se empreendedor no negócio dos pedalinhos, chegando até mesmo a ser publicamente elogiado pelas autoridades.

A reconstituição é feita graças a uma pesquisa profunda da autora, que, em nota ao fim do romance, enumera as fontes, em especial o processo de nº 29.996/50, que se encontra no Arquivo Nacional, e os periódicos da época.

Segundo Pollak (1989, p. 4), houve um silêncio por parte dos que direta ou indiretamente tomaram parte nas execuções durante o holocausto. Muitos cidadãos das áreas ocupadas, entre eles até mesmo judeus, foram recrutados à força pelos alemães e postos a combater e a agir segundo os interesses do III Reich. A par do caráter coercitivo dessa participação ao lado dos nazistas, após a guerra, o grau de colaboração e comprometimento desses indivíduos foi amplamente questionado.

Durante a guerra, os alemães foram bem recebidos pelos eslavos, que se ressentiam da anterior ocupação soviética. Dias depois da ocupação alemã, um anúncio convocava os letões a apresentarem-se ao Comando Arajs, para participar da “limpeza de elementos indesejáveis”. Muito embora as evidências históricas apontem para a participação efetiva de Cukurs, ele sempre negou veementemente qualquer envolvimento no genocídio.

O fato de não ter sido julgado como outros acusados que se refugiaram na América do Sul criou o que o narrador denomina “uma zona borrada na História” (Vaitsman, 2014, p. 119). A personagem ficcional é desenvolvida no rastro do sujeito empírico, não lhe cabendo, por exemplo, a licença ficcional de um envolvimento amoroso com Frida.

A autora não apenas busca reconstruir a trajetória de Cukurs em solo brasileiro, como também focaliza a conivência do poder público no sentido de protegê-lo, ouvindo-o antes das testemunhas que o acusavam e arquivando os depoimentos sem proceder à investigação. Segundo registros, Cukurs obteve, inclusive, proteção do Deops.

Em sua trajetória no Brasil, Cukurs morou no Rio de Janeiro, em Santos e na Riviera Paulista. No Brasil, ele se sentia protegido.O romance busca enfatizar que não era próprio de seu temperamento ater-se ao passado, até mesmo porque esse passado trazia consigo o risco de extradição e julgamento por crimes de guerra.

A voz de Cukurs como personagem só se faz ouvir plenamente ao final do romance, quando interage com Yaakov Meidad, o agente do Mossad que, sob o codinome de Anton Kuenzle, o atrai ao Uruguai, onde é morto. Curiosamente, é a memória da antiga glória e reconhecimento público em sua terra natal que faz com que Cukurs se torne um alvo fácil para o Mossad. Mesmo sendo um homem cauteloso, que não dispensa a proteção de uma arma, Cukurs sucumbe ante o tratamento especial que Kuenzle lhe dispensa em Montevidéu, dando-lhe a entender que a partir daquele momento recuperaria o antigo status.

Entre trânsitos, memórias e identidades: à guisa de conclusão

O cisne e o aviador traz à baila algumas questões relativas à relação entre migração, memória e identidade. Uma delas diz respeito à configuração da identidade individual como pertencente à identidade de grupo. “A formação da identidade é um processo localizado no âmago do indivíduo, mas também no âmago da sua cultura compartilhada” (Phinney, 2004, p. 49). No romance, a identidade de grupo dos judeus é fragmentada, pois é largamente dependente dos países que acolheram as comunidades judaicas em diáspora. A maior ou menor adesão aos preceitos do judaísmo depende do quanto essas comunidades conseguiram manter vivas suas tradições. Em sua maioria, as personagens de O cisne e o aviador não são judeus praticantes e não frequentam sinagogas.

A outra questão diz respeito à busca de associação a outros indivíduos de uma mesma identidade étnica, que é normalmente um fator de agregação por constituir uma herança ancestral, que pode ser negada, mas não alterada. Esse parece ser um aspecto comum a todos os processos migratórios, e o vínculo é mais forte entre indivíduos que têm por objetivo o retorno ao país natal. No romance, não há o objetivo de retorno e algumas personagens, como Frida, não se identificam com a comunidade judaica, buscando o distanciamento.

Também não há indícios no romance da crise identitária típica dos descendentes de imigrantes. Pelo contrário, a percepção que se tem à leitura é de que o silêncio dos pais sobre o passado promoveu uma identificação plena dos descendentes com a cultura do país em que nasceram.

As três partes do romance estão claramente entrelaçadas às epígrafes: de um modo ou de outro, todas as personagens acabam por defrontar-se com o próprio passado, sendo obrigadas a revivê-lo. A própria existência do romance, histórico em sua gênese, demonstra que a sede de memória do homem contemporâneo pode advir do temor de que, por meio do esquecimento, os episódios mais drásticos da história humana possam vir a repetir-se.

Referências

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  • BAUMAN, Zygmunt (1998). Modernidade e holocausto. Traduçã de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar.
  • GORDON, Milton (1964). Assimilation in American life: the role of race, religion and national origins. New York: Oxford University Press.
  • HALL, Stuart (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A.
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  • PHINNEY, Jean S. Formação da identidade de grupo e mudança entre migrantes e seus filhos. In: DEBIAGGI, Sylvia D.; PAIVA, Geraldo José de (Org.) (2004). Psicologia, e/imigração e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 47-62.
  • POLLAK, Michael (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15.
  • SAID, Edward (2003). Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras.
  • SELIGMANN-SILVA, Márcio (2005). Literatura e trauma: um novo paradigma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: 34.
  • VAITSMAN, Heliete (2014). O cisne e o aviador. Rio de Janeiro: Rocco.
  • 2
    Os conceitos de “desterritorialização” e “reterritorialização” foram desenvolvidos por Gilles Deleuze e Felix Guattari e utilizados pela primeira vez em O anti-Édipo (1972) e, posteriormente, em Kafka: por uma literatura menor (1975), Rizoma (1976), Mil platôs (1980) e O que é filosofia? (1991).
  • 3
    A título de esclarecimento, apontamos as restrições feitas por autores como Vivian Patraka e Márcio Seligmann-Silva ao termo “holocausto”, que ambos consideram inapropriado. Segundo Patraka, a origem grega da palavra holocausto remete ao sentido de oferta queimada, sugerindo uma interpretação cristã da história judaica. Tanto ela quanto Seligmann-Silva sinalizam que o termo Shoá é mais adequado tanto do ponto de vista acadêmico quanto político, por distanciar-se da ideia de sacrifício ritual.
  • 4
    Heliete Vaitsman é jornalista, tradutora, romancista e sócia de uma agência literária. Foi colunista e redatora de O Globo e repórter do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. Graduada em comunicação social e direito e pós-graduada em tradução, também atuou em assessorias de comunicação e marketing e trabalhou no Banco Mundial, em Washington.
  • 5
    Consideramos neste trabalho a concepção de assimilação de John Berry em “Migração, aculturação e adaptação”, que consiste no abandono total das raízes culturais em prol daquelas do país de adoção. A opção pela classificação de Berry, em detrimento de estudos anteriores, como o do sociólogo Milton Gordon (1964), deve-se, principalmente, à sua focalização na psicologia intercultural.
  • 6
    Segundo John Berry, o processo de aculturação integrativo implica manter um certo grau de integridade cultural enquanto se busca, ao mesmo tempo, participar integralmente da sociedade majoritária, ou seja, da cultura da pátria de adoção.
  • 7
    A ancoragem identitária traduz-se pelo sentimento de pertença, pela nacionalidade brasileira e uma boa localização na estratificação social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2017
  • Aceito
    30 Maio 2017
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Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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