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Colonialidade do poder em Salvar o fogo, de Itamar Vieira Junior

Coloniality of power in Save the Fire, by Itamar Vieira Junior

Colonialidad del poder en Salvar el fuego, de Itamar Vieira Junior

Resumo

Salvar o fogo, de Itamar Vieira Junior (2023)VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., é uma narrativa que prima pela pobreza extrema, desembocando na exclusão, e não prenuncia salvação. Ambientada no nordeste brasileiro, recupera o estereótipo de nordestino como sinônimo de pobreza, bem como a desigualdade social que assola o país desde os tempos da colonização. Remete aos desmandos da Igreja Católica, que, por meio da religiosidade, não somente manipula, como também explora a população desvalida. A narrativa passa-se na contemporaneidade e, por isso, corrobora a afirmativa de Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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de que o colonialismo deixou rastros por onde passou, pois, apesar de não mais existir, a colonialidade do poder ainda continua presente, principalmente entre as camadas mais vulneráveis da população. A selvageria do capitalismo com o neoliberalismo corrói a existência dos mais pobres, forçando a migração constante como meio de fugir da miséria. Para além disso, os pressupostos de raça, etnia e gênero também se apresentam, demonstrando a interseccionalidade sempre presente nessas camadas da população. Utilizando esses pressupostos como fios condutores para a análise da narrativa, foi imprescindível recorrer aos estudos de Gayatri Spivak (2010)SPIVAK, Gayatri C. (2010). Pode o subalterno falar? Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG., Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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, María Lugones (2014)LUGONES, María (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952. https://doi.org/10.1590/%25x
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, Walter D. Mignolo (2017)MIGNOLO, Walter D. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução: Marco Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, e329402. https://doi.org/10.17666/329402/2017
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, Isildinha Baptista Nogueira (2021)NOGUEIRA, Isildinha Baptista (2021). A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva., Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021)COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma (2021). Interseccionalidade. Tradução: Rane Souza. São Paulo: Boitempo., Rita Segato (2021)SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., entre outros.

Palavras-chave:
pobreza; colonialismo; colonialidade do poder; interseccionalidade

Abstract

Save the fire, by Itamar Vieira Junior (2023)VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., is a narrative that focuses on extreme poverty, leading to exclusion and does not foreshadow salvation. Set in northeastern Brazil, it recovers the stereotype of northeasterners as synonymous with poverty, as well as the social inequality that has plagued the country since colonial times. It refers to the excesses of the Catholic church which, through religiosity, not only manipulates but also exploits the underprivileged population. The narrative takes place in contemporary times and, therefore, corroborates Aníbal Quijano’s (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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statement that colonialism left traces wherever it went, because, despite no longer existing, the coloniality of power is still present, mainly among the most vulnerable sections of the population. The brutality of capitalism together with neoliberalism corrodes the existence of the poorest, forcing constant migration as a means of escaping poverty. Furthermore, the assumptions of race, ethnicity, and gender also present themselves, demonstrating the intersectionality always present in these layers of the population. Using these assumptions as guiding threads to analyze the narrative, it was essential to resort to the studies of Gayatri Spivak (2010)SPIVAK, Gayatri C. (2010). Pode o subalterno falar? Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG., Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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, María Lugones (2014)LUGONES, María (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952. https://doi.org/10.1590/%25x
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, Walter D. Mignolo (2017)MIGNOLO, Walter D. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução: Marco Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, e329402. https://doi.org/10.17666/329402/2017
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, Isildinha Baptista Nogueira (2021)NOGUEIRA, Isildinha Baptista (2021). A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva., Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021)COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma (2021). Interseccionalidade. Tradução: Rane Souza. São Paulo: Boitempo., Rita Segato (2021)SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., among others.

Keywords:
poverty; colonialism; coloniality of power; intersectionality

Resumen

Salvar el fuego, de Itamar Vieira Junior (2023)VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., es una narrativa que se centra en la pobreza extrema, que conduce a la exclusión y no presagia la salvación. Ambientada en el noreste de Brasil, recupera el estereotipo de los nordestinos como sinónimo de pobreza, así como la desigualdad social que azota al país desde la colonización. Se refiere a los excesos de la Iglesia católica que, a través de la religiosidad, no solo manipula, sino también explota a la población desfavorecida. La narrativa se desarrolla en la época contemporánea y, por lo tanto, corrobora la afirmación de Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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de que el colonialismo dejaba huellas por donde pasaba, porque, a pesar de ya no existir, la colonialidad del poder sigue presente, principalmente entre los sectores más vulnerables de la población. El salvajismo del capitalismo junto con el neoliberalismo corroe la existencia de los más pobres, forzando una migración constante como medio para escapar de la pobreza. Además, también se presentan los supuestos de raza, etnia y género, lo que demuestra la interseccionalidad siempre presente en estos estratos de la población. Utilizando estos supuestos como hilos conductores para analizar la narrativa, fue imprescindible recurrir a los estudios de Gayatri Spivak (2010)SPIVAK, Gayatri C. (2010). Pode o subalterno falar? Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG., Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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, María Lugones (2014)LUGONES, María (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952. https://doi.org/10.1590/%25x
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, Walter D. Mignolo (2017)MIGNOLO, Walter D. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução: Marco Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, e329402. https://doi.org/10.17666/329402/2017
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, Isildinha Baptista Nogueira (2021)NOGUEIRA, Isildinha Baptista (2021). A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva., Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021)COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma (2021). Interseccionalidade. Tradução: Rane Souza. São Paulo: Boitempo., Rita Segato (2021)SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., entre otros.

Palabras-clave:
pobreza; colonialismo; colonialidad del poder; interseccionalidad

Salvar o fogo, de Itamar Vieira Junior (2023)VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., apesar de estar dividida em partes, tem início com um preâmbulo em itálico, que remete o leitor para a oralidade despontando no texto. Trata-se do nascimento do “Menino”, que foi “coado nas águas” e, tempos depois, saberemos que terá o nome bíblico “Moisés”. Mais adiante descobrimos que a personagem é Luzia, mãe da criança, mulher semianalfabeta, mas que sabe o valor da letra, pois ao longo da narrativa faz de tudo para o filho ter acesso à educação para que tenha um destino diferente.

A narrativa está dividida em quatro partes: “A vingança tupinambá”; “Luzia do Paraguaçu”; “Manaíba” e “A alma selvagem”. A primeira parte é narrada por Moisés. A narrativa passa-se em uma aldeia chamada Tapera do Paraguaçu, por estar às margens do Rio Paraguaçu, no interior da Bahia. Ali se desenvolvem várias atividades: agricultura, pesca e a produção de peças em cerâmica. Todavia, é a Igreja Católica quem manda no lugar. Os monges de um mosteiro, construído no século XVII, demarcam os resquícios da colonização. Luzia do Paraguaçu, personagem principal, abriga-se no poder dessa instituição para fugir da violência da população.

Trata-se de uma comunidade afro-indígena que, por causa das intempéries do clima, perde constantemente as lavouras e cujos homens vão para a cidade vender o que restou, muitas vezes demorando para voltar, deixando mulheres e filhos à deriva. A fome assola, e as mulheres viram-se como podem para dar conta dos filhos. Estes, quando crescem, vão embora, em busca de melhores condições de vida. A maioria do sexo masculino. Já as mulheres sonham com a aparição de homens que possam levá-las embora. É dessa forma que a família de Luzia se desfaz, os irmãos mais velhos foram embora, as irmãs seguiram suas vidas com homens que apareceram ali. Luzia tentou, mas não teve sorte, foi estuprada e abandonada.

A narrativa tem início com Moisés falando de sua agressividade direcionada a Luzia, que ele pensa que é sua irmã, pois foi criado por ela e pelo pai, Mundinho, nome sugestivo que dá conta da mediocridade do lugar. Logo de saída, Moisés já informa sobre o peso que carrega, pois a “irmã”, diante das suas malcriações, repete sempre que ele foi responsável pela morte da mãe. Ela sempre repete que a vinda do irmão “deu fim à nossa mãe”, pois, segundo ela, após o parto, a mãe nunca mais se levantou. Morreu de “melancolia” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 17).

Luzia é diferente, não se contenta com a vida que leva, tanto é que não aceita nenhuma das atividades que ali são desenvolvidas; torna-se lavadeira do mosteiro. Essa atividade carrega em si vários pressupostos que vão ao encontro dos anseios da personagem: além de não aceitar as atividades propostas pelo lugar, abriga-a da violência da população que se desenvolveu contra ela, ainda na infância, pois lhe foram atribuídos dons sobrenaturais, uma vez que houve uma época em que os incêndios eram constantes e descobriram que a personagem pressentia onde eles iriam ocorrer. Também, a única escola existente na aldeia era a do mosteiro, que vai “beneficiar” Moisés. Aqui surge a “colonialidade do poder” empreendida por Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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, pois a Igreja Católica demanda esse poder naquela comunidade, no entanto esse poder denota certa ambivalência: se, por um lado, serve para “abrigar” a personagem, por outro torna a vida da comunidade muito difícil. Luzia foi estereotipada como “bruxa” pela população:

O povo da aldeia cochichava pelos cantos e fizeram de Luzia uma assombração evitada por todos. As crianças nas ruas, e depois na escola, repetiam as histórias contadas pelos mais velhos: que nossa casa era amaldiçoada, que as coisas se quebravam sozinhas, os móveis se moviam do nada; que o fogo se apoderava das coisas sem ser provocado. O fogo, em especial, parecia preocupar os que contavam (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 20, grifo nosso).

Isso fica mais forte na adolescência, quando engravida e desenvolve uma corcunda. Ela passa a sofrer bullying. A Igreja protege-a e explora-a ao mesmo tempo. Paga uma mixaria pelo seu trabalho, mas a situação dela e de sua família é tão difícil que ela passa a depender desse trabalho para sobreviver, pois a comida é muito pouca. Porém, antes de pensar no aspecto econômico, ela busca a Igreja como refúgio, porque, ao longo da narrativa, se sente culpada por tudo o que lhe aconteceu:

Cuidaria da casa de Deus e dos homens santos e assim pagaria minhas penitências, disse a mim mesma. Quiçá acolhida pelos padres, servindo a Deus como uma boa lavadeira, conseguisse fazer com que os vizinhos me olhassem com mais respeito e, por fim, esquecessem do que me acusavam (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 154).

Em Tapera do Paraguaçu, espaço onde está ambientada a narrativa, são os monges do mosteiro quem dita as regras. Pela religião, manipulam não somente o pensamento das personagens, como também dificultam as suas vidas, uma vez que se valem da extrema pobreza para explorarem sem piedade a população. Cobram impostos sobre suas terras e, quando estes não são pagos, confiscam da população o direito sobre elas.

Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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, ao empreender o conceito “colonialidade do poder”, afirma que este tem sua fundamentação em raça / etnia, advém da colonização, porém tem sido mais duradouro, já que ficou introjetado na mente dos colonizados:

La colonialidade es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda em la imposición de uma classificación racial / étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder, y opera em cada uno de los planos, ámbitos y deminsiones, materiales y subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala rica1 1 A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos para o padrão global de poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação racial / étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada um dos planos, área e dimensões, materiais e subjetivos, da existência cotidiana e em grande escala (tradução nossa). (Quijano, 2014QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
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, p. 285-286).

Percebe-se com isso que o colonialismo acabou, mas o patriarcalismo e o imperialismo continuam massacrando e empobrecendo as populações vulneráveis. Estas, por sua vez, sem acesso à educação, não conseguem defender-se e sucumbem à própria sorte. Nessa narrativa, um conjunto de mazelas é ressaltado: pobreza, gênero, exclusão, racismo, desigualdade social etc., o que configura o conceito de interseccionalidade, criado por Kimberlé Crenshaw na década de 1990. Segundo Collins e BilgeCOLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma (2021). Interseccionalidade. Tradução: Rane Souza. São Paulo: Boitempo. (2021COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma (2021). Interseccionalidade. Tradução: Rane Souza. São Paulo: Boitempo., p. 15-16):

A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária — entre outras — são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas.

Luzia, a personagem principal, é mulher, negra e pobre. Desde criança estigmatizada como bruxa, quando chega à adolescência aparece um forasteiro em sua comunidade, aparentemente bem-posto na vida, e a mãe dela a incentiva a insinuar-se para ele, uma vez que percebe que ele lhe dá atenção:

Minha mãe um dia reparou num homem vistoso e gentil me cercando de cima de seu cavalo. “É preciso melhorar a raça, Luzia...” [...] “É preciso segurar um homem que possa te levar para um lugar melhor...” [...] Seu jeito requintado de homem de posse me fez suspirar, como se descobrisse que meu dia havia chegado (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 105).

Temos aqui dois pressupostos que se ressaltam: o racismo e a pobreza. Na fala da mãe de Luzia sobre a necessidade de “melhorar a raça”, pode-se perceber uma premissa antiga que povoa a vida dos povos negros, no entanto, como afirma Stuart HallHALL, Stuart (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A. (2006HALL, Stuart (2006). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A., p. 63), “a raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica”, ou seja, um discurso de caráter social utilizado para subjugar determinadas camadas da população, diferentemente da etnia, que é uma “forma de organização social, baseada na atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua origem suposta que se acha validada na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores” (Potignat; Streif-Fenart, 1998POTIGNAT, Phillipi; STREIF-FENART, Jocelyne (1998). Teoria da etnicidade. Seguido por Grupos Étnicos e suas Fronteiras. Tradução: Elcio Fernandes. São Paulo: Editora da Unesp., p. 141).

Já a questão de encontrar um homem para levar a mulher embora também é muito presente nos lugares mais pobres, sem perspectivas de mudança para os mais jovens. Em Tapera, “deixar a casa com um homem era maneira digna de uma mulher deixar a Tapera. Nenhuma mulher deixava a casa sozinha; só saía para o mundo sem homem se estava perdida, se era mulher do mundo” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 106). Todavia, Luzia acaba sendo estuprada por esse homem. A prática do estupro era muito utilizada no período da escravidão para demarcação de poder. Os senhores utilizavam-na para afrontar os maridos das mulheres escravizadas, demonstrando seu poder enquanto proprietários, o que nos faz perceber que essas mulheres não tinham o direito de formar uma família. Isso foi naturalizado durante o período da escravidão; não havia questionamentos. O senhor poderia fazer o que bem entendesse com suas escravas.

Kimberlé Crenshaw (1991)CRENSHAW, Kimberle (1991). Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color. Stanford Law Review, v. 43, n. 6, p. 1241-1299. Disponível em: https://blogs.law.columbia.edu/critique1313/files/2020/02/1229039.pdf. Acesso em: 10 out. 2023.
https://blogs.law.columbia.edu/critique1...
, em seu artigo “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color” (“Mapeando as Margens: Interseccionalidade, Política e Violência Contra Mulheres de Cor”), publicado em 1991, fala sobre a situação das mulheres nos Estados Unidos, enfatizando essa questão do estupro mesmo após a escravidão, alegando que, quando se tratava de negros(as), as autoridades nunca deram muita importância.

Para além disso, essa prática de deixar a casa por meio de um homem é tão relevante no meio das populações pobres que a irmã mais nova de Luzia, Mariinha, vai embora sem a aprovação da mãe, pois, segundo Luzia, o homem era um “zé-ninguém” e a mãe não queria para a filha a vida que ela já havia levado, que era viver de fazenda em fazenda à procura de trabalho. Para além disso, essa era a filha mais clara e tinha o cabelo bom, então a mãe depositava nela a esperança de “clarear a raça” e melhorar as condições de vida. O pai autorizou a ida, pois, apesar da pouca idade da jovem, ele achava que ela havia crescido, já podia ir embora. A mãe, mesmo contrariada, arruma as coisas da filha e depois chora:

Minha mãe chorou feito uma criança quando viu Mariinha partir em pau de arara, a caminho de destino incerto para viver de morada, em terra que ninguém conhecia, só porque não havia lugar para os filhos na Tapera. Essa era a sina dos fracos, dos que moravam em casa humilde, dos que plantavam roça ou trabalhavam apanhando peixe, dos esquecidos pelo Deus da esperança. Os fortes eram os comerciantes, os cobradores, os que diziam não ter medo de trabalho, os abençoados por Dom Tomás e por Bom Jesus (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 106-107).

Percebe-se com isso uma forma mais específica da colonialidade, que é a colonialidade de gênero. María LugonesLUGONES, María (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952. https://doi.org/10.1590/%25x
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(2014LUGONES, María (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952. https://doi.org/10.1590/%25x
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, p. 939), na esteira de Aníbal Quijano e Walter Mignolo, afirma:

Diferentemente da colonização, a colonialidade do gênero ainda está conosco; é o que permanece na intersecção de gênero/classe/raça como construtos centrais do sistema de poder capitalista mundial. Pensar sobre a colonialidade do gênero permite-nos pensar em seres históricos compreendidos como oprimidos apenas de forma unilateral. Como não há mulheres colonizadas enquanto ser, sugiro que enfoquemos nos seres que resistem à colonialidade do gênero a partir da “diferença colonial”. Tais seres são, como sugeri, só parcialmente compreendidos como oprimidos, já que construídos através da colonialidade do gênero.

A discriminação de gênero, o racismo, o sexismo, a intolerância religiosa e a opressão de classe fazem parte da realidade das populações mais vulneráveis desde tempos imemoriais, no entanto o colonialismo e o imperialismo não contemplaram essas questões como relevantes; muito pelo contrário, valeram-se delas para consolidarem seus desmandos, enquanto isso foi ou ainda é possível. Segundo alguns estudiosos, nos países colonizados, as mulheres sofreram uma dupla colonização: de um lado, o patriarcado, que sempre as subjugou e, de outro, o imperialismo, que sempre as discriminou.

Mais adiante, Luzia, contemplando a sua mãe, comenta: “Minha mãe, minha velha mãe, andou no seu tempo; minha boa mãe que sonhava com uma família mais clara destinada a ser salva da miséria pela sorte que só a gente branca pode ter” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 135).

Aos 7 anos, Moisés inicia seus estudos no mosteiro de Santo Antônio do Paraguaçu. Segundo ele, tudo na aldeia girava em torno do mosteiro. Era como se nada tivesse existido antes. Na ocasião, uma personagem muito importante entra na narrativa: Dom Tomás, o abade, “o senhor a projetar sua sombra em tudo ao redor, não apenas no mosteiro e na escola, como também nas ruas e nas vidas das famílias da Tapera” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 27-28).

Essa “sombra” vai causar mais aflição nas famílias no mês de março, o mês que todos deviam pagar o “foro” à Igreja, ou seja, o imposto sobre suas terras. Mundinho, pai de Luzia, sempre se negava a pagar, mas ela o fazia sem ele saber: “Ano após ano Luzia retirou do colchão, depois de descosturar uma pequena abertura, o dinheiro minguado que ganhava da própria igreja como lavadeira. Era a quantia dada ao cobrador, para pôr fim à cobrança e termos paz” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 37).

Por anos, Luzia fez isso para manter a paz e para que o pai continuasse trabalhando nas terras, contudo a Igreja, apesar da opressão, é o único refúgio que encontra para acolher suas desventuras. Segundo Moisés, “Luzia era uma andarilha solitária por todo canto da aldeia. Sabia que era desprezada pelo povo da Tapera por um passado sobre o qual ela não teve escolha” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 41). Ele reza, pedindo a Deus um lugar onde ele e a família possam recomeçar a vida, entretanto corrobora dizendo: “Como se fosse possível viver sem ser julgado pelo próprio corpo, pelos males e pelos dons que carregamos conosco” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 41). Mais uma vez, na fala do narrador personagem, percebemos as marcas do racismo na vida dos negros. Estigmatizado por uma sociedade escravagista, o negro acaba assimilando diversos estereótipos atribuídos à sua condição. Assim, no meio em que vive, está submetido à cor da pele, à marginalização de suas religiões, ao neoliberalismo. “As condições socioeconômicas e a ideologia modelam a estrutura psíquica dos homens [...] e a consciência, assim estruturada, percebe o real de uma forma particular, transformando essa percepção em opiniões e ideias que correspondem às exigências sociais” (Rouanet apud Nogueira, 2021NOGUEIRA, Isildinha Baptista (2021). A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva., p. 34).

A forma como isso se processa acaba afetando as estruturas psíquicas dos negros, que, inconscientemente, assimilam tudo o que lhes é atribuído que se tornam “cativos e mantenedores de tais condições” (Nogueira, 2021NOGUEIRA, Isildinha Baptista (2021). A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva., p. 34). Essa ideia é confirmada por Albert MemmiMEMMI, Albert (1977). Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. Rio e Janeiro: Paz e Terra. (1977MEMMI, Albert (1977). Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. Rio e Janeiro: Paz e Terra., p. 84): “Para que o colonizador seja inteiramente senhor, não basta que o seja objetivamente, é preciso ainda que acredite na sua legitimidade; e, para que essa legitimidade seja completa, não basta que o colonizado seja objetivamente escravo, é necessário que se aceite como tal”.

Tempos depois, Moisés, que a princípio se encantou com o conhecimento adquirido na escola do mosteiro, desilude-se com as atitudes do abade, Dom Tomás. Moisés foi abusado. Ainda menino, sem entender bem a situação, passa a adoecer, até que aos 16 anos se dá conta do que vem acontecendo com ele e desiste da escola. Luzia, por não entender o que está ocorrendo, quer obrigá-lo a continuar estudando. Uma grande batalha é travada entre os dois, até que ele revela os abusos sofridos, e ela, com medo de perder sua única fonte de renda, tendo em vista que o pai, nos últimos tempos, começou a beber e trabalha pouco, acusa o rapaz de blasfêmia, chama-o de mentiroso. Revoltado, o “Menino”, como ela o chama, foge de casa para a capital levando consigo o dinheiro que ela guardava dentro do colchão para pagar o imposto da terra. Na capital, ele vai em busca do irmão e o encontra morando em um lugar pior do que Tapera.

Zanzei por ruas estreitas, íngremes, à beira de encostas que davam em vales habitados como os topos. Me equilibrava ao descer e subir escadas esculpidas em níveis no próprio barranco. Era meu primeiro contato com a cidade e de pronto já me encontrava fascinado e espantado. A sina de qualquer um que sonhasse com a sorte de estar na grande aldeia era viver amontoado (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 73).

Percebem-se aqui as marcas sociais que acompanham a vida dos negros, os lugares que habitam, o sistema de saúde precário, a educação incipiente. O país libertou os escravos, mas não propiciou qualidade de vida para esses povos. O mito da democracia racial existe, as leis são criadas para atender a eles, e, na Constituição Federal, todos são iguais perante a lei. Fala-se de igualdade, porém não se pratica a equidade. Os negros continuam sendo discriminados.

Tendo que conviver com a mais cruel forma de discriminação, isto é a de um racismo encoberto, sutil, em que, embora aparentemente e legalmente amparado e com os mesmos direitos de qualquer outro cidadão, o negro é tratado como se não o fosse, e responsabilizado pelo seu déficit em relação aos outros cidadãos: “os negros não têm força de vontade” (Nogueira, 2021NOGUEIRA, Isildinha Baptista (2021). A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva., p. 33).

Rita Segato (2021)SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., falando sobre a luta dos anos 1960 e 70 “contra o sistema”, que nos anos 1980 se tornou “inclusão no sistema” e “demandas para ampliar a sobrevivência dentro dele”, afirma que surgiram duas possibilidades:

Uma delas afirma que a promessa de inclusão constitui e reproduz uma falsa consciência, uma vez que as leis que regem o mercado — os cálculos de custo / benefício, o valor da produtividade e da competitividade e a tendência à acumulação e concentração de riqueza só geram, inevitavelmente, uma exclusão cada vez mais progressiva e irreprimível (Segato, 2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., p. 248).

Já a outra, empreendida pelos que compõem os direitos humanos, encara essas lutas como uma expansão do viés democrático, percebendo os direitos como ferramentas que limitam e oprimem o poder econômico, abrindo caminhos para a obtenção de benefícios do poder político (Segato, 2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.).

Apesar das lutas empreendidas em prol do racismo, das questões de gênero, sexismo, religiosidade, a colonialidade do poder continua imperando e destruindo as populações mais vulneráveis. Rita SegatoSEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. (2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., p. 273) afirma: “Nunca a subordinação foi tão exclusivamente racial como na modernidade avançada, quando a raça, transformada em fantasma, aciona o mundo por trás das regras e dos nomes”.

Dessa forma, populações como a da narrativa Salvar o fogo tem poucas chances de evoluir para uma melhor qualidade de vida. Em pleno século XXI, com tantos avanços por parte da ciência e da tecnologia, apesar de tantas lutas empreendidas, o país continua mantendo o trabalho escravo e o capitalismo desenfreado, fazendo suas vítimas. Seja nos lugares mais atrasados, seja nas metrópoles, a pobreza extrema será sempre mantida.

Muitos anos depois, Luzia para de lavar as roupas da Igreja. No dia em que ela faz o comunicado, um incêndio destrói o mosteiro, e os padres vão embora. Sem renda, ela para de pagar o imposto, e o pai é constantemente ameaçado, pois os cobradores continuam a cobrança. Até que um dia, o pai envolve-se num incêndio em um canavial e fica muito mal, pedindo para ver todos os filhos, incluindo o “Menino”, que já sabe que é filho de Luzia. Não conseguem contato com os dois irmãos mais velhos, mas um dos filhos que mora na capital e as filhas vêm ver o pai. O “Menino” vem também. A essa altura, Luzia já se arrependeu do que fez com ele. Segundo ela:

Se pudesse voltaria àquele momento e o deixaria falar mais uma vez, mesmo exigindo como compensação o silêncio eterno sobre o que me falava. Mas além de não acreditar, o acusei de pecado, de crime, o chamei de degenerado e o ameacei com o fogo do inferno pelo que dizia (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 93, grifo nosso).

Nota-se aqui que, mesmo Luzia arrependida, a religião a faz exigir “como compensação o silêncio eterno”. Isso mostra que, mesmo sabendo da verdade, ela não consegue assimilar o erro do abade. É interessante, porque ela não aceitou o filho, tendo em vista ele ser fruto do que aconteceu com ela, tanto é que ela não acreditava que ele pudesse voltar, pois ele “não voltaria para recordar a mulher que o criou, carregada de má vontade para com ele e o mundo” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 93). Mas o “Menino” foi o primeiro a chegar.

Agora, Luzia já está velha e diz ter vencido os medos, e muitas recordações vêm à tona. Uma delas é a morte da mãe, que começou a definhar quando o marido se interessou por outra mulher e saiu de casa para ir atrás desta na capital. Moisés nasceu e a mãe assumiu a criança; o pai voltou muito arrependido, dizendo que não sabia que ela havia ficado grávida e, depois disso, nunca mais saiu de Tapera.

Mais adiante, Luzia revela que o imposto pago não era somente sobre a terra, mas também sobre a casa. A forma como ela explica isso nos remete à colonização: “Além da roça, o imposto dizia respeito às casas da Tapera onde vivíamos, porque tudo pertencia a Deus, e se era de Deus, era da Igreja. Tinha sido assim desde que desembarcaram os jesuítas, contavam os mais velhos” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 129). Walter MignoloMIGNOLO, Walter D. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução: Marco Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, e329402. https://doi.org/10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017...
(2017MIGNOLO, Walter D. (2017). Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Tradução: Marco Oliveira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, e329402. https://doi.org/10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017...
, p. 5), na esteira de Aníbal Quijano, afirma:

O fundamento histórico da [matriz colonial de poder] MCP (e consequentemente da civilização ocidental) foi teológico: a teologia cristã é responsável por marcar no “sangue” a distinção entre cristãos, mouros e judeus. Apesar da disputa entre as três religiões ter uma longa história, esta foi reconfigurada desde 1492, quando os cristãos conseguiram expulsar os mouros e os judeus da península ibérica e forçar a conversão daqueles que queriam permanecer. Simultaneamente, a configuração racial entre o espanhol, o índio e o africano começou a tomar forma no Novo Mundo.

A influência do cristianismo sobre essa população é muito intensa. No preâmbulo da narrativa, que é o nascimento de Moisés, o narrador afirma:

Não queria aquela criança; não poderia levar outra boca para uma casa sem recursos. Só não bebeu os chás porque não os conhecia. Nem fez os encantos das mais velhas e os segredos guardados nos lugares mais insondáveis do espírito das suas mulheres. Havia muito que essa vida passada era rejeitada por sua gente, que aos poucos se tornou outra, pois passou a acreditar nas palavras de forasteiros. Mas nada pôde deter o animal que crescia dentro de outro animal e ela não sabia se era por falta de conhecimento, se pelo eco das pregações do mosteiro que sepultaram a Tapera sob a permanente ameaça de castigo dos Céus ou pelos desígnios do Espírito de Deus (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 13-14).

Ainda sobre essa questão, em suas memórias, Luzia conta um ritual que a mãe fez para curar uma dor de dente, embora deixe claro que a mãe afirmava não gostar dessas coisas, porque Deus não aprovava, tinha relação com a religião de “gente feiticeira”. Para aliviar a dor da filha, resolveu procurar uma árvore chamada “Loco”. Ao chegar à mata, “retirou um cigarro da sacola e, valha-me Deus, acendeu a palha para a Caipora. Deu três tragadas e deixou o cigarro aceso sobre uma pedra preta onde os caminhos se dividiam. Fez o sinal da cruz, pedindo perdão mais uma vez” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 135). Caipora pertence à mitologia tupi-guarani. Segundo a lenda, os índios acreditavam que ela temia a claridade. Deve ser por isso que a personagem deixa o cigarro aceso. A narradora personagem corrobora dizendo: “Nem de longe parecia a mulher que se esforçava para esquecer o jeito de viver do passado” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 135). Ressalta-se aqui a maneira como muitos brasileiros vivenciam a religiosidade: apesar de terem o catolicismo como religião oficial, nos momentos cruciais recorrem a outras crenças.

Voltando ao ritual, ao encontrar a árvore procurada,

retirou o pano branco da sacola e envolveu o tronco. Caminhou por cima das raízes observando atenta até escolher com cuidado o local onde golpearia com o facão. Um leite branco, leite de peito, leite do verde, leite da árvore, leite da terra brotou na ferida aberta. Um leite generoso e forte. Minha mãe não tocou o líquido como também não se toca no sacrário da hóstia. Deixou apenas o sumo escoar, grosso, suculento, um fio sobre o facão, e esse mesmo fio devolveu ao pequeno pedaço de tecido que depois eu poria sobre o dente doente. “Não bebe”, ela me disse, “nem deixe espalhar e escorrer para outros dentes” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 135/136).

Depois, a narradora personagem teme que as pessoas descubram a realização do ritual por causa do pano branco que ficou na árvore, mas convence-se de que não será possível saber quem o realizou nem suspeitar de sua família, uma vez que elas são “católicas praticantes”. Isso demonstra a assimilação à religião do colonizador. Aliás, a questão do branqueamento empreendida pela mãe da narradora personagem e a adesão ao cristianismo são pressupostos herdados da colonização, o que nos remete a Albert MemmiMEMMI, Albert (1977). Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. Rio e Janeiro: Paz e Terra. (1977MEMMI, Albert (1977). Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. Rio e Janeiro: Paz e Terra., p. 107), quando afirma: “A primeira ambição do colonizado será a de igualar-se a esse modelo prestigioso, de parecer-se com ele até nele desaparecer”. Dessa maneira, o colonizado renuncia aos seus valores e assimila os valores do colonizador. Ou seja, “para libertar-se, ao menos é o que pensa, aceita destruir-se” (Memmi, 1977MEMMI, Albert (1977). Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Tradução de Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. Rio e Janeiro: Paz e Terra., p. 107). Luzia assimila de tal forma o catolicismo por meio da função que exerce no mosteiro que se sente segura diante dos moradores de Tapera:

Era tratada com confiança, como filha de Deus e de Nossa Senhora, e não iria triscar em nada que não estivesse sob meus cuidados. Abençoada pelo Divino, não corria mais o risco de ser acusada dos azares e das derrotas da Tapera, muito menos de bruxaria e de pacto com o Diabo (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 158).

Tanto Moisés como Luzia narram que esta “era invisível aos olhos dos padres”, pois, para recolher as roupas sujas, “precisava bater nas portas, olhava para o chão por quase todo o tempo” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 157). Isto é, não tinha voz nem vez, o que nos remete à pergunta de Gayatri Spivak (2010)SPIVAK, Gayatri C. (2010). Pode o subalterno falar? Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG.: “Pode o subalterno falar?”. Segundo a estudiosa, “a relação entre a mulher e o silêncio pode ser assinalada pelas próprias mulheres; as diferenças de raça e classe estão incluídas nessa acusação” (Spivak, 2010SPIVAK, Gayatri C. (2010). Pode o subalterno falar? Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 84), uma vez que no contexto colonial impera a dominação masculina. “Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade” (Spivak, 2010SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., p. 85). A narradora personagem, Luzia, “herda” os resquícios da colonização. Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/...
afirma que, embora a “colonialidade do poder” seja um conceito vivenciado na modernidade, pois resulta do sistema capitalista, não se pode negar que seja um construto advindo da colonização.

Em suas rememorações, Luzia lembra-se de quando percebeu a fuga do “Menino”, após tê-lo tratado com violência quando revelou os abusos sofridos no mosteiro. Seu medo da reação da população e de perder seu ganha-pão a fez maltratar mais uma vez o filho, que, revoltado, foi embora. É nesse momento que ela admite o seu fracasso enquanto mãe:

Eu me vi sozinha. [...] Me engasguei, não conseguia controlar a tristeza crescendo como um bolo de saliva na minha garganta, e os olhos lavaram meu fracasso em ser mãe. Eu o maltratei desde o dia em que veio ao mundo. Não, não presto, não valho nada, sou ruim, por isso a Tapera cismou comigo, por isso o pai do menino não quis mais a mim depois de me desonrar. Lamentei e depois se seguiu uma sensação de alívio: não vou mais maltratar o Menino... (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 164, grifos nossos).

Desde o início da narrativa, como aqui já foi dito, Luzia culpa-se pelo que lhe aconteceu, sentimento muito comum na atualidade em relação às vítimas de estupro, o qual muitas vezes a sociedade atribui às roupas que costumavam usar; por isso tantos casos ficam sem punição, até mesmo porque não se tem a coragem de denunciá-los. Um dado importante nessa narrativa é que o tratamento que a narradora personagem dá ao filho desde que ele nasce é uma forma de afastá-lo dela; ela está sempre aconselhando-o a estudar para ir embora de Tapera. A rejeição ao filho é instintiva, denota o asco pela maneira como ele foi concebido. Em nenhum momento, por exemplo, ela o chama pelo nome; é o “Menino”.

A vida continua, Dom Tomás pergunta pelo “Menino”, ela informa que este foi embora. O abade chama-o de “ingrato” e lamenta ele não ter esperado concluir os estudos, mas desdenha, dizendo que ele vai voltar, pois o que estudou não seria suficiente para arrumar um bom trabalho e ninguém contrataria “um roceiro para trabalhar numa loja ou supermercado” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 164). Luzia, por sua vez, afirma que nem se lembrou de contar “o segredo” que havia escutado do “Menino”, até porque não havia deixado este dizer o nome do padre, uma vez que não arriscaria perder a paz que conquistou com tanto esforço. Restava-lhe apenas “guardar aquela história como um delírio” e esforçar-se para esquecer. Porém, um mês depois, ela recebe notícias do “Menino”. O irmão avisa que ele está na capital procurando trabalho e prometeu voltar a estudar para concluir os estudos. Com isso, Luzia sossega e segue adiante.

Tempos depois, Luzia sente outra dor de dente. Como não tem recursos para procurar um dentista, resolve embrenhar-se na mata novamente, à procura da árvore que um dia a havia curado. Contudo, por não saber fazer o ritual feito pela mãe, coloca o leite na boca sem se importar com os outros dentes e perde todos. Mais tarde, é época de eleição, e aparece um político dizendo que iria consertar os dentes de quem necessitasse. Luzia empolga-se e vai atrás do benefício, no entanto decepciona-se:

Mas para minha surpresa não tinha dentista nem cadeira e o que eu vi nem pensava que poderia existir, coisa de outro mundo. Duas bacias grandes e cheias d’água: uma com peças de dentes de todo tamanho e outra somente com água. O povo retirava a peça, a gengiva rosa, os dentes de todo tamanho, e lavava na bacia ao lado, para depois experimentar na boca nua até encontrar a que melhor encaixava. Claro que a que melhor se encaixava dançava na boca quando o afortunado falava (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 167).

A narradora personagem não tem coragem de submeter-se ao processo e vai embora. Aparentemente, é um fato sem importância, mas faz-se necessário analisá-lo para demonstrar como essas populações são tratadas pelo poder público. A coisificação dos seres humanos, o neoliberalismo, faz questão de manter os mais pobres nas piores condições e o povo que se aceita como tal.

Continuando suas lembranças, Luzia lembra-se de quando o pai descobriu que o “Menino” era seu filho. Ela afirma que ele havia juntado os pontos e descobrira tudo. Apesar de chamá-la de mentirosa e ameaçar bater nela, não o faz e, diferentemente do que sempre prometeu as filhas, isto é, castigá-las pela desonra, ele esqueceu o assunto e ficou em silêncio, o que faz a narradora pensar que era uma forma de “protegê-la da aldeia” e conceder-lhe o perdão.

Todas as rememorações de Luzia ocorrem durante o período em que o pai está entre a vida e a morte no hospital e seus irmãos estão voltando, incluindo o filho. Segundo ela, “um rio de histórias correu por minha vida e a vida da Tapera e eu já não me martirizava pelo calvário de viver naquela terra” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 175).

Em suas elocubrações, Luzia chega à conclusão de que o mal destilado pelos moradores de Tapera fora plantado pelos senhores da terra e “regado” pelos padres do mosteiro. De acordo com ela, “nos dividiram para nos enfraquecer” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 176), premissa muito utilizada na chegada dos povos africanos escravizados aqui ao país.

Na narrativa há destaque para a volta de Mariinha, talvez porque seja a filha mais nova, e Luzia, a filha mais velha. Curiosamente, nesse capítulo, reencontramos uma personagem de Torto arado (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia.), Bibiana, a professora que atende a ligação da família no orelhão que ficava em frente à escola e responde que não há nenhuma Mariinha ali. Depois, descobre-se que esta se trata de “Dona Maria Cabocla” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 189). O leitor descobre que Bibiana é a personagem do romance anterior, porque Maria Cabocla agora mora em Água Negra, fazenda onde estava ambientada a narrativa, ou seja, “Maria Cabocla era seu outro nome, pertencia à mulher que se tornou ao lado do companheiro, adentrando cada vez mais as terras de preto, mesmo antes de levantar morada em Água Negra” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 190, grifo nosso). Mariinha até mesmo conta que chegou a essa fazenda tinha muitos anos e houve conflito quando um “novo senhor tomou posse da fazenda” e queria que todos fossem embora. Segundo ela:

Se sentiram malquistos, é verdade, mas até aí nada de novo. Por isso resistiram, mato bravo, tiririca crescendo, mesmo quando cortada, a sina dos desassistidos. Mesmo com sangue derramado, não recuaram. Mas tudo era parte do passado. Pouco a pouco eles ganharam confiança para se apossar da terra, construir casa de alvenaria, distante das ameaças (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 187, grifo nosso).

Diante disso, o leitor percebe que Mariinha se refere à morte de Severo, marido de Bibiana, em Torto Arado (2019)VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia..

Mariinha, agora “Maria Cabocla”, segue viagem, entretanto, antes de chegar aonde deveria tomar outra condução para a Tapera, percebe que foi roubada. Ao desmaiar de fome, uma senhora ajuda-a e empresta-lhe o dinheiro para seguir viagem. Até ali, ela não havia reconhecido nada que fizesse parte de seu passado, mas ao chegar à Tapera acha que nada mudou, a não ser as ruínas do mosteiro que havia se incendiado:

Agora a igreja e o mosteiro não passavam de um monte de entulho mal-assombrado e povoado de morcegos, símbolos de um tempo para sempre desaparecido. Maria Cabocla fez o sinal da cruz, não por medo, mas por respeito a Deus, que não merecia ter sua casa queimada (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 202).

O fogo, sempre presente na tessitura da narrativa, simboliza a vulnerabilidade que permeia a vida dessas pessoas. Sempre expostas a todo o tipo de catástrofe, sempre convivendo com a incerteza, sempre “pisando em chapa quente”, sem parada nem pouso. Em suas reminiscências, Maria Cabocla lembra a infância, quando perguntava ao pai se era bonita. A seguir, descreve a origem de sua família:

Ela perguntava para que soubessem que ela, a mais nova, a cabocla de cabeleira lisa — “Cabelo bom”, a mãe não cansava de repetir — , tinha um lugar especial na vida do pai, junto ao irmão Humberto era herdeira da gente índia, a linhagem de seu pai, os nativos salvos do cativeiro pelos jesuítas e arrancados da terra pela sanha desmedida dos forasteiros. Era a gente comparada à murta pelos jesuítas; podada ganhava a forma que se queria, mas bastava o tempo para lhes recordar quem eram e torná-los de novo um arbusto selvagem. Luzia, Zazau e os outros refletiam a ascendência da mãe, os viajantes dos tumbeiros. Mas suas aparências eram apenas o invólucro, porque nas veias corria o sangue daqueles — inclusive os forasteiros brancos — que se encontravam nessa terra (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 205).

Citação longa, mas necessária para explicar a mestiçagem da família. Aqui temos os vestígios da colonização na formação povo brasileiro. E essa formação nem sempre muito honrosa, pois comporta em seu bojo os estupros que eram cometidos pelos senhores, vitimizando as índias e as negras escravizadas.

Mais adiante, vamos descobrir que Maria Cabocla migrou de Torto Arado (2019)VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia. para essa narrativa. Maria Cabocla era vizinha de Belonísia e vivia apanhando do marido. Belonísia estava sempre lhe defendendo. Mas, agora, ela está viúva. Não chega a tempo de ver o pai vivo. Encontra os irmãos chegando do cemitério. Pouco a pouco, todos vão embora, inclusive o “Menino” e ela e Luzia ficam em Tapera.

Maria Cabocla procura saber se o pai foi enterrado ao lado da mãe e Luzia lhe explica que o cemitério é pequeno e, de tempos em tempos, eles retiram os ossos dos defuntos que não têm “jazigo perpétuo”, passando-os para “vala comum”, abrindo vagas para outros mortos. O que as leva a concluir que,

A terra jamais seria dos pobres, nem mesmo depois de mortos. Decorrido certo tempo, eram despejados como os fazendeiros faziam com os trabalhadores imprestáveis, ou como na cidade, escutavam, com quem não conseguia pagar os aluguéis. (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 219).

E, agora, com a morte do pai, tem início a contenda sobre as terras. Luzia resolve se apropriar das terras que eram do pai, mas quando chega lá, já tem outro dono. Dono esse que ela não consegue encontrar no endereço que lhe é fornecido. Fica sabendo, ali, que ele mora na cidade e, depois de muita peleja com os trabalhadores que não a deixam trabalhar nas terras, resolve chamar o irmão que mora na capital para que ele tente resolver a situação. O irmão vem e tudo que consegue é o endereço onde mora o novo proprietário. Ele faz Luzia prometer que vai esperar que ele resolva a situação e não vai mais se aproximar dos trabalhadores enquanto isso, uma vez que ela já foi ameaçada.

Tempos depois, Maria Cabocla vai embora. Antes, convida Luzia para ir com ela, mas esta não aceita. Não consegue se ver fora de Tapera. Ali estão suas raízes, sua história. “Sem a aldeia, Luzia seria apenas um corpo oco e sem vida”. (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 273).

Ao ficar sozinha, Luzia passa a visitar os escombros do mosteiro e lá existe umas ruínas chamadas “salão do mar”. Ali, como se estivesse delirando, ela vê o “desembarque de homens brancos”; os desmandos dos padres do mosteiro, o sofrimento dos povos escravizados. E tudo isso acaba, com a chegada do “Menino”.

Após a morte do pai, Moisés retornou para a capital e deu continuidade a sua vida. Havia estudado mais um pouco; segundo ele, o suficiente para não ter que enfrentar trabalhos muito pesados. É assim que servindo mesas em um restaurante, um dia reencontra o abade – Dom Tomás, mas este parece não reconhecê-lo. Ele descobre o mosteiro onde o abade vive. A essa altura Dom Tomás já está muito velho e em decorrência de seu estado de saúde já não recebia ninguém. Mas ele faz de tudo até ser recebido e o faz lembrar de tudo que fez com ele. O abade, então, começa a lhe dar dinheiro e ali tem início a chantagem.

Moisés e os irmãos, segundo Luzia, foram embora, mas ninguém melhorou muito de vida. Isso faz perceber que, em qualquer lugar, determinadas classes sociais estão sempre vivendo à margem da sociedade. Ou seja, como foi dito no início, não há salvação. São pessoas invisíveis; vítimas de estereótipos, sempre avaliadas pela cor da pele, precisando sempre fazer mais que os outros para comprovar o seu valor. O poder está sempre relacionado às classes sociais.

Produziu-se sob pressão, principalmente do materialismo histórico, um tipo de visão reducionista dessa sociedade que consistia em reduzir toda a estrutura de poder a relações de classe. Isso produziu dois resultados indesejáveis. Um, a invisibilidade sociológica de fenômenos como as etnias e a cor, embora extremamente presentes, o tempo todo, nas relações de exploração e de dominação. Outro foi buscar sempre classes pertencentes a padrões estruturais puros ou depurados, capitalismo ou feudalismo. (Quijano apud Segato, 2021SEGATO, Rita (2021). Crítica da colonialidades em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Tradução: Danielli Jatobá e Danú Gontijo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo., p. 265)

Voltando às ruínas, onde Luzia se encontrava, Moisés retorna e encontra-a ali. Os dois saem dali juntos. Ela se dá conta das mudanças no “Menino”, que agora, já homem, não precisa mais do seu afeto. Ele, por sua vez, também percebe a transformação em Luzia. Ela parece ter se libertado de tudo que a afligia. Os dois parecem mais à vontade, pois não há mais cobranças. Nos dias que se seguem, Luzia reflete sobre o papel de mãe, mesmo a vida tendo imposto-lhe isso contra a sua vontade. Apesar de se sentir “incompleta” nesse papel, chega à conclusão de que fez o que podia, porém não se perdoa “por não ter acreditado no Menino quando esse contou sobre a violação” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 308); vai carregar essa culpa e tentar redimir-se até o fim da vida.

Antes de ir embora, Moisés entrega um dinheiro a Luzia. A princípio, ela não quer receber a quantia; ele diz que está ressarcindo o dinheiro dela, que levou quando foi embora. Após muita insistência, ela recebe o dinheiro e resolve realizar seu maior sonho: ter dentes novamente. Moisés ganhou aquele dinheiro chantageando o abade. Segundo ele, quando visitou Dom Tomás pela primeira vez, não queria nada, só queria mesmo que ele sentisse remorso por todo o sofrimento que seu ato havia causado nele, mas o abade ofereceu-lhe dinheiro. Moisés ofendeu-se, mas depois resolveu tirar tudo o que ele tinha e assim o fez, levando o abade ao desespero, até ficar sem nada.

Da última vez que encontrou dom Tomás, Moisés avistou apenas um corpo oco, sem viço e lume nos olhos, destituído do fôlego que pudesse chamar de alma. Toda a razão tinha sido tragada pelo embate com os próprios atos, a tentativa de se justificar, expiar, sem um arrependimento genuíno. Almejava se salvar do escândalo, mas se tornou um morto em vida. Sua sina havia se cumprido (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 312).

Assim, o “Menino” destruiu o abade, que tanto sofrimento lhe causara. Após sua partida, Luzia cansa de esperar notícias do irmão sobre as terras e resolve enfrentar os invasores das terras de seu pai. O narrador finaliza afirmando que ela “está consciente dos riscos que corre”, mas “seu nome é coragem, e já não teme a morte” (Vieira Junior, 2023VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., p. 317). Luzia caminha para a morte.

Dessa forma, a narrativa revela o suplício das pessoas esquecidas que vivem à margem da sociedade. Uma sociedade que preserva em suas entranhas os resquícios da colonização. A colonialidade do poder vivenciada na modernidade, por meio do capitalismo selvagem e do neoliberalismo, carrega em seu bojo o pensamento colonial. Este é marcado pelas relações de poder e assimilado pelos mais pobres, que, assim como Luzia, acabam resignando-se e não buscam salvação.

Salvar o fogo, de Itamar Vieira Junior (2023)VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo. São Paulo: Todavia., desvela um mundo desconhecido por grande parte da população desse país; denuncia uma população “invisível”, uma classe social que, segundo Aníbal Quijano (2014)QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso. p. 285-326. Disponível em: https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20140506032333/eje1-7.pdf. Acesso em: 3 maio 2021.
https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/...
, Karl Marx se esqueceu de nomear, ou seja, povos marcados pelos estereótipos criados por uma sociedade que se diz “democrática”.

REFERÊNCIAS

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  • VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado São Paulo: Todavia.
  • VIEIRA JUNIOR, Itamar (2023). Salvar o fogo São Paulo: Todavia.
  • 1
    A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos para o padrão global de poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação racial / étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada um dos planos, área e dimensões, materiais e subjetivos, da existência cotidiana e em grande escala (tradução nossa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2023
  • Aceito
    18 Abr 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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