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Da legibilidade das catástrofes em nosso tempo: uma tarefa de restituição1 1 Fonte de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

The readability of catastrophes in our time: a task of restitution

Sobre la legibilidad de las catástrofes en nuestro tiempo: una tarea de restitución

Resumo

Neste ensaio reflito sobre as tarefas da crítica poética em sua importância para a legibilidade das catástrofes. Por meio da leitura de “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, de Alberto Pucheu (2020a)PUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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, e das teorias memória e imaginação de Georges Didi-Huberman (2018aDIDI-HUBERMAN, Georges (2018a). A imagem queima. Tradução de Helano Ribeiro. Curitiba: Medusa.; 2018b)DIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., circunscrevo uma tarefa de restituição, que se opera diante dos negacionismos e apagamentos das violências históricas. Considerando a teoria benjaminiana do conhecimento (Benjamin, 2012BENJAMIN, Walter (2012). Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. Obras Escolhidas, v. 1.; 2020bBENJAMIN, Walter (2020b). Sobre o conceito de História. Tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda.) e seus desenvolvimentos em Didi-Huberman, tomo o poema como uma montagem crítica de nosso tempo, em que o poeta justapõe diferentes paradigmas de legibilidade dos processos de extermínio que se deram no Brasil e que culminam na pandemia de COVID-19.

Palavras-chave:
poesia brasileira contemporânea; imagem; memória; catástrofe

Abstract

In this essay, I reflect on the tasks of poetic criticism in its importance for the readability of catastrophes. From a reading of “Poema para a catástrofe do nosso tempo” by Alberto Pucheu (2020a)PUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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and the theories of memory and imagination by Georges Didi-Huberman (2018aDIDI-HUBERMAN, Georges (2018a). A imagem queima. Tradução de Helano Ribeiro. Curitiba: Medusa.; 2018b)DIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., I circumscribe a task of restitution, which operates in the face of denialism and erasure of historical violence. Considering Walter Benjamin’s theory of knowledge (Benjamin, 2012BENJAMIN, Walter (2012). Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. Obras Escolhidas, v. 1.; 2020bBENJAMIN, Walter (2020b). Sobre o conceito de História. Tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda.) and its developments in Didi-Huberman’s work, I view the poem as a critical montage of our time, where the poet juxtaposes different paradigms of readability related to the processes of extermination that have occurred in Brazil and culminate in the Covid-19 pandemic.

Keywords:
contemporary Brazilian poetry; image; memory; catastrophe

Resumen

En este ensayo reflexiono sobre las tareas de la crítica poética en su importancia para la legibilidad de las catástrofes. A partir de una lectura de “Poema para a catástrofe do nosso tempo” de Alberto Pucheu (2020a)PUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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y de las teorías de la memoria e imaginación de Georges Didi-Huberman (2018aDIDI-HUBERMAN, Georges (2018a). A imagem queima. Tradução de Helano Ribeiro. Curitiba: Medusa.; 2018b)DIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., circunscribo una tarea de restitución, que se lleva a cabo frente a los negacionismos y los borrados de las violencias históricas. Considerando la teoría del conocimiento de Benjamin (2012BENJAMIN, Walter (2012). Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. Obras Escolhidas, v. 1.; 2020b)BENJAMIN, Walter (2020b). Sobre o conceito de História. Tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda. y sus desarrollos en Didi-Huberman, tomo el poema como un montaje crítico de nuestro tiempo, en el que el poeta yuxtapone diferentes paradigmas de legibilidad de los procesos de exterminio ocurridos en Brasil y que culminan en la pandemia de Covid-19.

Palabras-clave:
poesía brasileña contemporánea; imagen; memoria; catástrofe

Compreender: exercer duas vezes sua paciência. Uma vez pelo páthos (o sofrimento, o tempo sofrido), uma vez pela forma (o conhecimento, o tempo reconstruído e remontado)
(Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 193).

INTRODUÇÃO

Das tarefas da crítica literária que hoje podem ser fundamentais para a legibilidade da violência e dos mecanismos políticos de sua perpetuação pelo Estado, atenho a certas funções que atuam entre um dever de memória e um dever de imaginação das catástrofes históricas. Entendo que no esforço conjunto das áreas do conhecimento para a leitura do período da pandemia de COVID-19 no Brasil, a poesia pode dar a ver partes significativas da construção desse tempo — o modo como passado, presente e futuro estão sobredeterminados no acontecimento e as formas que dispomos para apresentá-lo. Sugiro que essa compreensão — e tudo o que dela depende: a punição dos culpados; o rememorar das vítimas; a criação de políticas da memória — deve valer-se, ou carece, de uma “lógica do poético” (Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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) e de uma capacidade de imaginação (Didi-Huberman, 2018aDIDI-HUBERMAN, Georges (2018a). A imagem queima. Tradução de Helano Ribeiro. Curitiba: Medusa.; 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG.) contrárias à apropriação do passado como instrumento de violência e de apagamento no presente. Passo, então, para a leitura de um poema de Alberto Pucheu, no desdobrar de uma pergunta: “Por que, em que e como a produção de imagens participa com tanta frequência da destruição dos seres humanos?” (Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 98, grifos do autor).

“Poema para a catástrofe do nosso tempo”, de Alberto Pucheu (2020a)PUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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, foi publicado em 15 de maio de 2020 na revista Cult — dia que registrou 824 vítimas de COVID-19 no Brasil (Figura 1). O poema compõe-se de 21 fragmentos, cada qual com um conjunto singular de recursos estéticos que modificam a apresentação dessa experiência. Responde à exigência do tempo com um rigor e extensão que ultrapassam os limites de um único texto. Recorto-o, portanto, (sobre)compondo essa visão em diálogo:

Figura 1
Cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus, AM. Foto de Sandro Pereira/Fotoarena/Agência O Globo.
IAmanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem. Há um
sentimento fúnebre no ar,
de quem tem vivenciado
uma morte após a outra,
de quem tem vivenciado,
antecipadamente, mais uma
morte, a última delas, a morte
após a própria morte, a morte
da qual não se tem retorno,
a morte da qual os mortos
não voltam dela para a vida,
a morte a que apenas os vivos
se encaminham para ela
sem jamais poder voltar,
a morte da qual não se tem
poemas para se fazer,
não a morte simbólica,
mas a outra, a real,
a experiência final da morte
em vida, da qual sobrevivemos,
se tanto, ainda que neste mundo,
enquanto fantasmas desossados,
descarnados, desfigurados,
que berram na tentativa de evitar
a morte e de evitar, a todo custo,
a morte em vida. Berramos em vão.
[...]
Nunca aprendemos a fazer
o luto coletivo do que matou
e torturou muitos de nós, nunca
aprendemos a fazer a luta coletiva
contra nossa história de horror,
que permanece torturando e matando.
Os torturadores e assassinos
estão vivos, viveram em família
sem ser incomodados, falam
em nome da família e de deus,
viraram nomes de ruas, pontes,
cidades até se alçarem, de novo,
ao posto da presidência e da vice-
presidência da república
[...]
Neste momento, é importante dizer
que a poesia não é uma arma
contra o autoritarismo, mas
o desejo de desarmar
o autoritarismo, desarmando
os que querem acabar
com a democracia em nome
do autoritarismo ou da ditadura.
Desarmar, portanto, ao menos,
e para quase ninguém,
mas desarmar, desde nossa
impotência radical,
um dos modos do autoritarismo,
um dos modos do fascismo,
o da língua. Amanhã
não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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).

Esse “Amanhã” desde o princípio nos parece extremamente indiciário, povoando nossa imaginação na vertigem dos eventos e dos dias. E o poema é datado ao fim: “Rio de Janeiro — Vale do Socavão, 22 de outubro de 2018 (semana imediatamente anterior ao segundo turno das eleições) a 11 de maio de 2020” (Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
https://revistacult.uol.com.br/home/poem...
). Mas isso não significa estabelecer uma cronologia demarcada dos fatos, entre a posse do ex-presidente Jair Bolsonaro e os primeiros meses da pandemia de COVID-19. Ao contrário, implica buscar, nos entretempos, os rastros, a sobredeterminação desse acontecimento (Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 162). Assim, ao longo do poema, somam-se outros tempos, anteriores, como os discursos criminosos de Bolsonaro na defesa de torturadores durante o processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

O amanhecer diário do período pandêmico se viu envolto pela imaginação e pela presença da morte objetiva, calculada como foi, a cada dia. A velocidade dos versos curtos e o intenso uso do enjambement carregam o breve lapso do passar dos dias. A verticalização na página em branco acentua a vertigem. A frequência da morte, reiterada 11 vezes nos primeiros 28 versos, cria uma sequência intensa, na qual vemos refletido um imaginário desses anos. Esses recursos direcionam uma leitura “exaustiva”. Em certo sentido, há desde aí uma falta de ar causada por um dizer constante, insistente — e que se intensifica nos “berros em vão”, nas perguntas sem resposta e, por contraste, nos silêncios, na impossibilidade de abarcar os mínimos pormenores.

Todo o fragmento I (de 237 versos), porém, não apresenta nenhuma referência direta à pandemia de COVID-19 no Brasil ou no mundo. Pode até mesmo ter sido escrito em sua forma final antes de todos esses acontecimentos. Esse me parece o ponto mais importante da composição. Porque essa ausência faz notar dois processos ao longo dos fragmentos: o histórico-político, compondo discursos, decretos e testemunhos; e o estético, a mudança do regime de imagens; as formas de apreensão do real; a montagem pela qual os sentidos podem apresentar-se em um poema e compor-se na história. Desse modo, eu deveria ter iniciado a leitura por uma fotografia (Figura 1) — que abre o poema nessa publicação.

Desde o início, o poema põe-nos diante das covas do Cemitério Nossa Senhora Aparecida, em Manaus (AM). A fotografia remete-se a um acontecimento maior, a crise sanitária causada pela omissão do governo federal ante a nova cepa (Sars-CoV-2), que levou à escassez de respiradores durante o colapso hospitalar de janeiro de 2021. Evoca por si tantas outras imagens2 2 Na versão do poema publicada em Vidas rasteiras (Pucheu, 2020b), mesclam-se ainda outras tantas imagens e fotografias, como a figura de Ustra; memes políticos do Bolsonaro; leitos de hospital — com concepção gráfica de Fernando Saraiva. , como a das inúmeras covas abertas no Cemitério da Vila Formosa, na zona leste de São Paulo (SP), e com isso modifica nossa leitura e o conjunto de imagens de que dispomos para ler os primeiros versos.

O movimento inicial — entre título, fotografia e primeiros versos — coloca-nos, assim, perante a imago — o molde de gesso — e a sua ausência — o rosto de cada vítima. O primeiro olhar recai sobre aquilo de inapreensível dessa experiência, para restituí-la em um processo de luto individual e de luto público:

Em seu sentido antigo, ligado à antropologia política do mundo romano à época da República, a imago [...] coloca de imediato a questão de sua apreensão e de sua restituição. [...] Porque a imagem, nesse sentido, é ao mesmo tempo um objeto de culto privado — os ancestrais, os mortos, a família — e um objeto de culto público — o “direito às imagens” sendo concedido apenas em relação ao lugar ocupado pelo ancestral na res publica, e a exposição das imagines sendo um espetáculo público no âmbito das “pompas fúnebres” ou rituais de sepultamento — pode-se dizer que ela institui a questão da semelhança fora de toda a esfera “artística”. Ela aparece sobretudo como um objeto de corpo privado (o próprio rosto daquele que se fabrica a imagem) devolvido à esfera do direito público
(Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 169-170).

Talvez seja possível pensar, desse modo, que há a cumprir uma tarefa de restituição, de recuperar, refazer, ressarcir, retornar. De reestabelecer o tempo sofrido. A primeira linha de corte de minha leitura, então, é considerar esse princípio (“Amanhã não será um dia melhor / do que hoje, que não é um dia / melhor do que ontem”) como um páthos ativo que direciona a ação de uma montagem crítica (Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 97) — o poema — do tempo sofrido por nós. Sua recorrência ao longo dos fragmentos, mesmo isolada no XVI, a torna brado de múltiplos significados: organização do pessimismo; tarefa diária; acusação colérica; fazer poético. Isso se complementa por essa segunda linha, o ato de restituir — a imagem, o ar, a memória e a ação no tempo presente; e pela terceira: o ato de desarmar. Três atos e uma dor: vejo nesse conjunto uma lógica poética.

IMAGEM E CONHECIMENTO

Com base na ideia de uma legibilidade da história (Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG.), retomo a concepção de Walter Benjamin (2018)BENJAMIN, Walter (2018). Passagens. Organização de Willi Bolle. Colaboração de Olgária Chain Féres Matos. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Revisão de Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora UFMG. de que o passado só pode ser percebido em um ponto crítico de nossa experiência no presente. Logo, um acontecimento pode nunca vir a ser efetivamente lido em sua complexidade intrínseca:

A marca histórica das imagens não indica somente que elas pertencem a uma determinada época, ela indica sobretudo que elas alcançam a legibilidade (Lesbarkeit) somente a uma época determinada. E o fato de alcançar “a legibilidade” certamente representa um determinado ponto crítico do movimento (kritischer Punkt der Bewegung) que as anima. Cada presente é determinado pelas imagens que lhe são sincrônicas; cada Agora é o Agora de uma determinada conhecibilidade (Erkennbarkeit)
(Benjamin, 2018BENJAMIN, Walter (2018). Passagens. Organização de Willi Bolle. Colaboração de Olgária Chain Féres Matos. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Revisão de Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora UFMG. apud Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 20-21).

Qual é a legibilidade das catástrofes no fluxo do nosso presente? Quais imagens determinaram a leitura de nosso tempo-de-agora? É possível que ainda não tenhamos capacidade visiva suficiente para apreender (assimilar, abarcar, tomar posse) o período da pandemia de COVID-19. Esse esforço depende das formas de que dispomos para a leitura e das formas como todo esse período se apresentou e se construiu. Depende de nossa potência crítica — mas também de nossos berros em vão, de nossos gritos, de nosso espanto — ante o ostensivo uso das imagens técnicas, das fake news e de todo o aparato contemporâneo de reprodução maciça de imagens, nas redes sociais e nos aplicativos de comunicação.

A primeira restituição é a da imagem, portanto. É preciso devolver à esfera do comum a imagem do luto, da luta, do choro, do grito. Criar políticas da memória que restituam os nomes e as faces das vítimas, em embate direto contra as políticas de apagamento, que tensionaram medir a catástrofe sob o “signo do recorde”3 3 Refiro-me ao chamado “Placar da Vida”, realizado no período. . Mas também é preciso reestabelecer o uso das imagens em prol das relações humanas, e não de sua destruição, para então questionar: em que, como e por que cada uma das muitas imagens produzidas pelo governo Bolsonaro 2018-2022 conduziu à destruição?

IIIO que eu vi até o momento
é que outras gripes
mataram mais do que essa.
Assim como uma gripe, outra
qualquer leva a óbito.
Por enquanto, nada de alarme.
Não é uma situação alarmante.
Não é motivo para pânico.
Se estiver tudo redondinho
no Brasil, não vamos buscar
ninguém [na China].
[...]
Muitos pegarão isso
independente dos cuidados
que tomem. É uma neurose.
70% [da população] vai pegar
o vírus. Isso vai acontecer
mais cedo ou mais tarde.
[...]
Não dá para querer jogar
nas minhas costas
uma possível disseminação
do vírus.
[...]
Não temos como impedir
o direito de ir e vir.
Eu tenho o direito constitucional
de ir e vir. Ninguém vai tolher
minha liberdade de ir e vir.
Ninguém.
[...]
Vão morrer alguns. Sim, vão morrer.
E daí? Lamento. Quer que eu faça
o quê? Eu sou Messias, mas não faço
milagre
[...]
Essa é uma realidade, o vírus
‘tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo,
mas enfrentar como homem, porra.
Não como um moleque.
Tem mulher apanhando em casa.
Por que isso? Em casa que falta pão,
todos brigam e ninguém
tem razão. Como é que acaba
com isso? O cara quer trabalhar,
meu Deus do céu. É crime
trabalhar?
[...]
Daqui para frente, não só
exigiremos, porque chegamos
no limite. Faremos cumprir
a Constituição. Será cumprida
a qualquer preço. E ela tem
mão dupla. Não é só uma mão,
não. As Forças Armadas estão
ao nosso lado. Todos nós
juramos um dia dar a vida
pela pátria. Agora é Brasil
acima de tudo e Deus acima de todos.
Deus abençoe nossa pátria querida
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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).

O fragmento III (de 315 versos) incorpora em justaposição caótica uma série de discursos proferidos por Bolsonaro e seus ministros nos primeiros meses do período — assimilando suas vozes, ao contrário de outros fragmentos em que esses discursos são inseridos com aspas. Há com isso uma mudança significativa no olhar, uma oposição daquilo que vemos. O conjunto dá a ver a condução da catástrofe pela organização das imagens que moveram as imaginações e ideologias. Valores religiosos e morais, ética e necessidade de trabalho, desemprego, senso comum e preconceito, tudo serviu aos argumentos tantas vezes repetidos nos canais oficiais e extraoficiais, como o da insistente defesa da “imunidade de rebanho” contra qualquer outra medida sanitária, não apenas prevendo, mas constantemente incentivando, a contaminação de 70% da população brasileira — mais de 147 milhões de pessoas4 4 O total de casos está na ordem dos 38 milhões. Considerando que a taxa de mortalidade acumulada do período 2020–2024 é de mais de 330/100 mil habitantes, é possível imaginar a dimensão da catástrofe e o caos sanitário decorrente de tais condições (Brasil, 2024). , ou da constante autoisenção de culpa ou de qualquer responsabilidade. Construção de um imaginário autoritário em que já figurava toda a incitação pública a um golpe de Estado que culminou nos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023.

É possível pensar que todo esse excesso de imagens, das mais terríveis, sobrepostas, vertiginosamente, no correr dos dias, tensionava fazer mais do que esvaziar o significado e apagar as vítimas na reprodução catastrófica da catástrofe — que atingiu um novo patamar de reprodutibilidade com as operações técnicas propiciadas pelas atuais redes sociais e de comunicação. Em grande medida o controle desses dispositivos estéticos foi capaz de conduzir o morticínio — organizando suas imagens.

Para muitos, o tempo-de-agora da pandemia foi uma visão do caos. De fato, um sonho: um processo imaginativo nos limares do nosso controle. Restituir a imagem talvez implique, assim, apresentar a dimensão, “ao mesmo tempo, sem excluir, documentária e alucinatória” (Didi-Huberman, 2017DIDI-HUBERMAN, Georges (2017). Quando as imagens tomam posição: o olho da história I. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 212), de toda essa experiência, o que não é feito sem rigor nem sem risco. E talvez dependa de uma forma muito específica de visão, de uma “dupla distância” daquele que olha:

Uma forma sem olhar é uma forma cega. É preciso o olhar, certamente, mas olhar não é simplesmente ver, nem mesmo observar com mais ou menos “competência”: um olhar supõe a implicação, o ser-afetado que se reconhece, nessa mesma implicação, como sujeito. Reciprocamente, um olhar sem forma e sem fórmula continua sendo um olhar mudo. A forma é necessária para que o olhar tenha acesso à linguagem e à elaboração, única maneira, com um olhar de “proporcionar uma experiência e um ensinamento’’, ou seja, uma chance de explicação, de conhecimento, de relação ética; devemos, então, nos implicar em para ter uma chance — dando forma a nossa experiência, reformulando a nossa linguagem — de nos explicarmos com
(Didi-Huberman, 2018aDIDI-HUBERMAN, Georges (2018a). A imagem queima. Tradução de Helano Ribeiro. Curitiba: Medusa., p. 57).

Depende de um gesto crítico, em crise, que não afasta a emoção, mas que desvela o fato de que a própria racionalidade se compõe com a e-moção que afeta nossa experiência e nossa perceptibilidade, nosso olhar. De compreender como estamos implicados em cada um desses acontecimentos.

“Amanhã não será um dia melhor do que hoje”. No tempo sofrido, até o ato de ler se tornou extremamente contaminado — como vemos o coveiro da fotografia, que para seu trabalho e proteção necessitou de ostensivo aparato técnico. Há “toxicidade” em cada imagem desse período — como de outros —, o que exige delicadeza nesse ato de restituição:

XIVSou feito de nervos, carne, assombros
e muito do que olho me intoxica.
Nunca foi tão difícil olhar à minha
volta, mas, muito mais difícil é ver
o que olho. Hospitais a cada dia
mais lotados, mortes, pânico nos olhos
das pessoas, ameaças reais de mortes
por contágio familiar em muitos lares,
cemitérios cavando covas sem parar,
preços disparados do que se tornou
o mais necessário, decretos autorizando
demissões em massa, decretos autorizando
reduções da jornada de trabalho, decretos
autorizando cortes salariais de 30 a 50%
do funcionalismo público, decretos
para reduzir o isolamento, decretos
obrigando as pessoas a trabalharem,
decretos incluindo atividades religiosas
e casas lotéricas como essenciais,
decretos para dia do jejum, decretos
para a morte em nome da economia…
Decretos…
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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).

Construção de um imaginário que intoxicou grande parte da população, cada qual à sua maneira. O que não aconteceu sem formas concretas de produzi-lo nem de respaldá-lo com decretos em série e medidas provisórias. A toxicidade daquilo que vemos, ou tentamos ver, não é casuística nem inerente, é histórica e socialmente produzida — portanto, direcionada e distribuída. Cabe a nós o esforço crítico desse olhar, de uma “dupla distância” entre aquilo que nos move e aquilo que devemos explicar.

MEMÓRIA E GUERRA

A condução dessas imagens no presente atua no processo de restituição da memória e na ação contrária aos negacionismos, memoricídios e apagamentos, de modo que, ao não citar diretamente nenhum acontecimento da COVID-19 no Brasil em todo o fragmento I, o poema dá a ver uma elaboração anterior. A catástrofe que antecede, mas que de forma muito complexa, é reproduzida e instrumentalizada no presente. O inelutável contra o qual o poema se levanta, desde o princípio, são o período da ditadura militar brasileira e sua permanência nas falas e atos do ex-presidente Jair Bolsonaro:

I[...]
Depois de, antes mesmo
de ser eleito, já ter dito e repetido
“eu sou favorável à tortura,
tu sabes disso, e o povo também
é favorável à tortura”, “através
do voto você não vai mudar nada
nesse país, nada, absolutamente
nada, só vai mudar, infelizmente,
no dia que nós partirmos
para uma guerra civil aqui dentro,
e fazendo o trabalho
que o regime militar não fez,
matando uns 30 mil… Se vai morrer
alguns inocentes, tudo bem”,
“minha especialidade é matar,
não é curar ninguém”, “o erro
da ditadura foi torturar
e não matar”, “Pinochet
devia ter matado mais gente”,
“vamos fuzilar a petralhada”,
o presidente, em campanha,
afirmou que o objetivo
de seu governo é fazer
com que o Brasil volte
40 ou 50 anos, ou seja, volte para
os piores anos, para os porões,
para os calabouços mais sombrios
da ditadura militar.
A partir de então, é preciso dizer
que o futuro é o passado, que
o que está à frente é o que está
40 ou 50 anos atrás, a partir
de então, tudo é o fim,
tudo é pior do que o fim
[...]
Tudo isso
começou há muito tempo,
tudo isso começou
com genocídios e escravidões,
tudo isso atravessou muitos
de nossos momentos, tudo
isso poderia ter vários
começos e recomeços
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
https://revistacult.uol.com.br/home/poem...
).

Os conhecidos e criminosos discursos favoráveis à tortura e ao assassinato de opositores, reiterados ao longo da campanha eleitoral de 2018, além de prática recorrente nos anos de Bolsonaro como deputado federal. Tática de memoricídio. O “assombro” — desde o início de fragmento I — põe-se perante a repetição e permanência das violências históricas. Aos gritos, somam-se então muitos outros — das vítimas da ditadura e de seus combatentes. Assim, o fragmento I coloca em perspectiva o “estado de exceção” enquanto “regra” (Benjamin, 2020bBENJAMIN, Walter (2020b). Sobre o conceito de História. Tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda.), em um posicionamento contemporâneo que compreende o conceito de catástrofe mediante as violências históricas que antecedem os autoritarismos do século XX (Marco, 2004MARCO, Valeria de (2004). A literatura de testemunho e a violência de Estado. Lua Nova, n. 62, p. 45-68. https://doi.org/10.1590/S0102-64452004000200004
https://doi.org/10.1590/S0102-6445200400...
) — os genocídios indígenas e o processo colonial.

Como a responder aos muitos limites, silêncios e incapacidades que percorrem todo o poema, no fragmento II o sujeito atinge certo tom benjaminiano de um “contador de histórias”, daquele que transmite o valor de uma experiência:

IIPara quem não sabe, para quem
não viu, não leu, não ouviu,
para quem não quer saber,
para quem não quer ver,
para quem não quer ler,
para quem não quer ouvir,
para quem está surdo,
para quem não quer cheirar
o que está, fortemente, pelo ar,
mesmo que nada então adiante
dizer, saiba, entretanto, que
são muitos os testemunhos
de tal tempo, do tempo
da ditadura militar
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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).

Há uma mudança significativa no ritmo, que passa do frenético encadeamento a uma pausada acusação e posicionamento. Na sequência, o fragmento II reproduz o testemunho de Eny Moreira e de Cecília Coimbra sobre alguns dos mais conhecidos horrores da ditadura militar brasileira e seus métodos de tortura. Digo “reproduz” para destacar que há plena importância nesse gesto, mas o verbo do poema é outro: “guardar” (Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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) os “testemunhos que foram / dolorosamente prestados” (Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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). Gesto de preservação e defesa, de zelo. Uma forma de velar, portanto, permanecendo em vigília.

A passagem entre o fragmento I (repleto de citações de Bolsonaro) para o fragmento II torna ainda mais contundente seu conteúdo expresso, ampliando os efeitos dessa estética do choque. Os testemunhos aprofundam o horror lido na polifonia das vozes.

Nesses versos iniciais, porém, vejo um tom maior de acusação no poema, uma inversão lógica necessária ao conhecimento possível desse período, em semelhança à reflexão do cineasta Harun Farocki, ao apresentar os efeitos do napalm na Guerra do Vietnã: “Se os espectadores [diz ele] não querem saber nada sobre os efeitos do napalm, é preciso interrogar sobre sua responsabilidade nas razões do recurso ao napalm” (Farocki, 1969 apud Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 90). Os versos interrogam a efetiva responsabilidade do leitor na instrumentalização dessa memória.

A imaginação histórica do período da ditadura militar e do militarismo como um todo foi instrumentalizada na gestão da pandemia de COVID-19, ecoando na fatídica e reiterada frase de Bolsonaro, ainda de 29 de junho de 2017: “Minha especialidade é matar, não é curar ninguém” — à época, feita para isentar-se do uso político de outra substância, a fosfoetanolamina —, que por sua vez se remete a outras declarações, mais recentes, como quando indagado sobre o número de mortos na pandemia: “Eu não sou coveiro, tá certo?”5 5 Declaração em que reafirma, na sequência, a “imunidade de rebanho”. . Gestos que se desvelaram como tática de apagamento das vítimas, tornando o escárnio método de propaganda e de controle da narrativa. Mas destaco que, ao fazer isso, o ex-presidente também reproduziu um recorrente gesto militar, remontando a outras violências históricas e seu tratamento político, como, por exemplo, da Guerra do Golfo: “Ao ser interrogado sobre o número de mortos do lado iraquiano, [o Tenente-General dos Estados Unidos Tommy Franks] declarava em 1991 we don’t do body counts” (Farocki, 2004 apud Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 101).

A construção do futuro e o embate pela memória histórica atingem um cenário mundial de ascensão da extrema-direita, de negação e apagamento das vítimas do passado e do presente. O campo político, parece-me, há muito transformou a lógica da guerra em uma de suas “normas históricas”, de modo que seus procedimentos e aparatos são vistos como a única e natural via de condução das tragédias e catástrofes — como Benjamin (2020b)BENJAMIN, Walter (2020b). Sobre o conceito de História. Tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda. via na norma do progresso. Isso refletiu nas formas de condução da pandemia:

VIIMais uma vez, é guerra. É guerra.
É guerra, desta vez, sanitária.
Eis a guerra. Países interceptam
máscaras, respiradores, luvas
que iam para outros países. É guerra.
É guerra sanitária. É guerra por lá,
por aqui, por aí, por sei lá onde,
por toda parte. “Estamos em guerra”,
disse o presidente francês, “estamos
em guerra”, “em uma guerra sanitária”,
“não estamos lutando nem contra
um exército, nem contra outra nação.
Mas o inimigo está lá, invisível,
imperceptível e avançando.
Isso exige mobilização geral”. Esse
mesmo presidente entende “mobilização
geral” como confisco de equipamentos
que iam para outros países e, ao fazer escala
em seu país, foram apreendidos, digo,
roubados. Outro presidente, da nação
mais poderosa do Ocidente, redirecionando
para si mesmos equipamentos médicos
de combate ao vírus que tinham
como destino outros países, disse:
“Precisamos das máscaras. Não queremos
outros conseguindo máscaras. É por isso
que estamos acionando várias vezes
o ato de produção de defesa. Você pode
até chamar de retaliação porque é
isso mesmo. É uma retaliação”
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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).

Foi esta lógica — do sacrifício, do heroísmo, do inimigo, da retaliação — que em grande parte, a meu ver, conduziu à tragédia da pandemia de COVID-19 — comportando, em sua complexidade interna, as nuanças de como essa violência foi distribuída. O poema incorpora, assim, falas de Donald Trump e de Emmanuel Macron, em que esse cenário se dá por evidente. Diante de toda essa situação:

Como construir uma alternativa ao poder das imagens técnicas que os poderes políticos instrumentalizam incessantemente contra nosso bem público? Como abrir nossos olhos, como reaprender as imagens? Podemos esboçar uma dupla hipótese. Primeiro, é preciso desarmar os olhos: derrubar os obstáculos que a ideia prévia — o preconceito — interpõe entre o olho e a coisa. Desfazer o sentido de familiaridade com toda imagem, a impressão de que “tudo já foi visto” e que, por conseguinte, não é preciso mais olhar. [...] Ou seja, quando as ideias preconcebidas — as representações — simplesmente impedem de olhar o que se apresenta diante dos olhos. [...] Mas é preciso, em segundo lugar, rearmar os olhos. Não com regras gerais, com princípios rígidos ou representações que fechariam novamente o visível na armadilha das ideias preconcebidas. Rearmar os olhos para ver, para tentar ver, para reaprender a ver
(Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 120).

Para restituir a memória, parece ser preciso, então, desarmar os dispositivos estéticos que reproduzem e justificam as catástrofes. Inserindo-se na constante guerra pelas imagens e pelos sentidos, o poema articula em metapoética uma percepção semelhante: “Talvez eu assuma aqui / diversos pontos de vista, inclusive, / os de meus piores inimigos, desde / os quais também falo para tentar retirar / suas armas, desarmá-los, ao expô-las” (Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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). Tal postura, além dessa perspectiva filosófica, incide diretamente em tomada de posição contra o período do governo Bolsonaro, que teve como uma de suas tônicas o armamento da população, mas opera nesse campo múltiplo, em que temos de dar a ver os mecanismos que condicionam a morte e os mortos.

MISÉRIA E LUTO

Walter Benjamin (2020aBENJAMIN, Walter (2020a). Rua de mão única / Infância berlinense 1900. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica., p. 18) já disse que, para muitos, a estabilidade significa “miséria estável”. Por essa visão, podemos compreender como o constante apelo à “normalidade” ou ao seu retorno, durante o período da pandemia de COVID-19, guarda em si uma perversão histórica. Restituir o ar não pode ser simples metáfora de um “período de sufocamento”; deve traduzir-se como ato político de reparação no presente, pelo gesto que nos cabe: o fazer crítico.

O poema opera, assim, um embate com o pensamento contemporâneo, questionando a produção e distribuição da violência no caso brasileiro. Em vários fragmentos se constrói um diálogo direto com os filósofos contemporâneos na leitura do período, a todo momento refletindo a condição específica da desigualdade no Brasil. Há um diálogo maior com Giorgio Agamben (2020)AGAMBEN, Giorgio (2020). Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia. São Paulo: Boitempo.. Mas afasta-se, por exemplo, da perspectiva de Slavoj Žižek (2020)ŽIŽEK, Slavoj (2020). Pandemia: COVID-19 e a reinvenção do comunismo. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo. (fragmento VIII; X), de que caberia ao vírus “decapitar a coroa” e de que as mortes seriam indiscriminadamente distribuídas entre ricos e pobres, trazendo um tipo de benesse como o fim dos navios superluxuosos. Aproxima-se de Judith Butler (2020)BUTLER, Judith (2020). Sobre a COVID-19: o capitalismo tem seus limites. Blog da Boitempo, v. 20. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20/judith-butler-sobre-o-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/. Acesso em: 1º ago. 2024.
https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20...
:

IX[...]
Sabendo relativizar o que Zizek,
ao menos a princípio, não relativizou,
Butler disse “A desigualdade social
e econômica assegurará que o vírus
discrimina. O vírus, por si só, não
discrimina, mas os humanos seguramente
o fazemos, modelados como estamos
pelos entrelaçamentos dos poderes
do nacionalismo, do racismo,
da xenofobia e do capitalismo”
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
https://revistacult.uol.com.br/home/poem...
).

E de Paul B. Preciado (2020)PRECIADO, Paul B. Aprendiendo del vírus. El País, 2020. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html. Acesso em: 27 mar. 2024.
https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opi...
:

X[...]
Aqui (não só aqui, claro), estamos
mais próximos do que Preciado falou:
“A gestão política das epidemias
põe em cena a utopia de comunidade
e as fantasias imunitárias de uma sociedade,
externalizando seus sonhos de onipotência
de sua soberania política”. Se conseguiremos
“inventar novas estratégias de emancipação
cognitiva e de resistência”, não sabemos,
é uma questão que permanece aberta
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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).

Para, então, refletir com Achille Mbembe (2020)MBEMBE, Achille (2020). O direito universal à respiração. São Paulo: N-1. v. 20.:

XI[...]
É a vida, afinal, um direito,
sobretudo, dos economicamente
privilegiados? Não é hora
de pleitear com todas as forças
uma luta contra a desigualdade
das chances de viver?
Nesse mundo de asfixia
e esgotamento, em que, havendo
uma “desigual redistribuição
da vulnerabilidade”, há uma desigual
redistribuição do fôlego, em que a vida
é mais ofegante para uns do que
para outros, a questão do momento,
a questão de sempre, é, de fato,
como também disse Mbembe,
a questão de sempre, mas ainda mais
a questão do nosso momento,
é encontrar imediatamente “uma maneira
de garantir que todo indivíduo tenha
como respirar. Essa deveria ser
a nossa prioridade política” recompondo
“uma Terra habitável” que “poderá
oferecer a todos uma vida respirável”
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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).

Grande parte do poema se orienta por um embate contra a “necropolítica” do Estado brasileiro — de uma “necrocracia” e de um “necroliberalismo” (Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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). Há, assim, toda uma reflexão sobre como os horrores e as vulnerabilidades são produzidos e distribuídos desigualmente entre os seres humanos. Mas, com esse movimento, o poema também se destaca em seu caráter fortemente crítico, em que os expedientes de montagem articulam uma imagem crítica do nosso tempo.

É nesse sentido que vejo o poema como uma montagem crítica, nos termos de Georges Didi-Huberman (2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 90-98). A construção de um ritmo frenético que se eleva e organiza uma cólera por todo o não dito, por tudo aquilo que nos fere, pela polifonia política que compôs esse tempo, pelas imagens das mais terríveis que lhe são sincrônicas, por toda a violência que o poema cinde, fratura, remonta e nos relega. Modulo, assim, uma tônica maior dos escritos de Alberto Pucheu, aproximando o poema dos procedimentos e da forma do ensaio. Isto é, em seu todo, o poema “justapõe diferentes paradigmas de legibilidade” (Didi-Huberman, 2018bDIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG., p. 111), para nos dar a ver a construção desse tempo.

CONCLUSÃO

Por que razão amanhã haveria de ser um dia melhor do que hoje? O mar da história é agitado; a cada esquina sentimos o cheiro da pólvora; a cada dia ainda arregalamos os olhos às páginas de jornal. Ao fim, talvez seja possível e necessário restituir a ação no tempo presente, almejando as mudanças para um futuro em comum. É preciso reestabelecer sincronicamente os fragmentos desse passado recente. Rememorar as vítimas em cada ato, em luto e em luta. O último fragmento de “Poema para a catástrofe do nosso tempo”, assim, reformula Maiakovski (1987)MAIAKOVSKI, Vladimir (1987). Antologia poética. São Paulo: Max Limonad. — afinal, estamos tristes — e reescreve sutilmente — o vendaval, a interrupção, o sopro — a alegoria benjaminiana do Anjo da História (Benjamin, 2020bBENJAMIN, Walter (2020b). Sobre o conceito de História. Tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda.):

XXINão temos podido fazer
quase nada, senão
o que fazemos.
[...]
Mas não conseguimos
sustentar o sopro
do vendaval
[...]
Fomos interrompidos,
obrigados a recuar:
a peste reina no país
[...]
O som de nossas vozes
deveria trazer um sopro
de pensamento a proteger
[...]
Encho os pulmões
e retiro ritmos
urbanos do que quer
que me sirva para tentar
dizer o nosso tempo
eloquente de escassez
e excessos, de angústias
e desejos, nosso tempo
simultaneamente
legível e ininteligível.
Estamos tristes, poeta,
o mar da história é,
de fato, agitado,
atravessamos ameaças
e guerras.
[...]
Talvez não seja tão pouco
assim; talvez, nessa guerra
entre os diversos agentes
dos múltiplos poderes,
alguma brecha acabe
por se abrir, por onde
possa se dar uma disjunção
do tempo, uma fratura
na continuidade dos fatos,
um contrapelo da história,
por onde consigamos,
mais uma vez, e de novo,
romper aquilo que,
neste país imenso, desde
sempre trabalha, com todo
poder, para se impor, mas
tenhamos a certeza
de que amanhã não será
um dia melhor do que hoje,
que não é um dia
melhor do que ontem
(Pucheu, 2020aPUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/. Acesso em: 27 mar. 2024.
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).

No esforço conjunto das áreas do conhecimento para a reparação das violências históricas, à poesia cabe fazer aquilo que sempre fez. Da barbárie testemunhada em cada testemunho da cultura, brilhar o fragmento em centelha revolucionária. Organizar a legibilidade da História não pela norma da razão, mas de uma lógica, poética, que nos envolve, nos implica, fere a nossa sensibilidade. Que nos conduz pela e-moção que cada imagem e palavra criam em seus efeitos. E que é, em si, um ato político de imaginação e de memória.

Notas

  • 1
    Fonte de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
  • 2
    Na versão do poema publicada em Vidas rasteiras (Pucheu, 2020bPUCHEU, Alberto (2020b). Vidas rasteiras. São Paulo: Cult.), mesclam-se ainda outras tantas imagens e fotografias, como a figura de Ustra; memes políticos do Bolsonaro; leitos de hospital — com concepção gráfica de Fernando Saraiva.
  • 3
    Refiro-me ao chamado “Placar da Vida”, realizado no período.
  • 4
    O total de casos está na ordem dos 38 milhões. Considerando que a taxa de mortalidade acumulada do período 2020–2024 é de mais de 330/100 mil habitantes, é possível imaginar a dimensão da catástrofe e o caos sanitário decorrente de tais condições (Brasil, 2024BRASIL. Ministério da Saúde. COVID-19 no Brasil. Disponível em: https://infoms.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html. Acesso em: 15 mar. 2024.
    https://infoms.saude.gov.br/extensions/c...
    ).
  • 5
    Declaração em que reafirma, na sequência, a “imunidade de rebanho”.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio (2020). Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia. São Paulo: Boitempo.
  • BENJAMIN, Walter (2012). Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. Obras Escolhidas, v. 1.
  • BENJAMIN, Walter (2018). Passagens Organização de Willi Bolle. Colaboração de Olgária Chain Féres Matos. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Revisão de Patrícia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • BENJAMIN, Walter (2020a). Rua de mão única / Infância berlinense 1900 Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica.
  • BENJAMIN, Walter (2020b). Sobre o conceito de História Tradução de Adalberto Müller e Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Alameda.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. COVID-19 no Brasil Disponível em: https://infoms.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html Acesso em: 15 mar. 2024.
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  • BUTLER, Judith (2020). Sobre a COVID-19: o capitalismo tem seus limites. Blog da Boitempo, v. 20. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20/judith-butler-sobre-o-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/ Acesso em: 1º ago. 2024.
    » https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/20/judith-butler-sobre-o-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/
  • DIDI-HUBERMAN, Georges (2017). Quando as imagens tomam posição: o olho da história I. Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges (2018a). A imagem queima Tradução de Helano Ribeiro. Curitiba: Medusa.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges (2018b). Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II. Belo Horizonte: Editora UFMG.
  • GOMES, Pedro Henrique. “Não sou coveito, tá?”, diz Bolsonaro ao responder sobre mortos por coronavírus. G1, Brasília, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-por-coronavirus.ghtml Acesso em: 27 mar. 2024.
    » https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/nao-sou-coveiro-ta-diz-bolsonaro-ao-responder-sobre-mortos-por-coronavirus.ghtml
  • MAIAKOVSKI, Vladimir (1987). Antologia poética São Paulo: Max Limonad.
  • MARCO, Valeria de (2004). A literatura de testemunho e a violência de Estado. Lua Nova, n. 62, p. 45-68. https://doi.org/10.1590/S0102-64452004000200004
    » https://doi.org/10.1590/S0102-64452004000200004
  • MBEMBE, Achille (2020). O direito universal à respiração São Paulo: N-1. v. 20.
  • PRECIADO, Paul B. Aprendiendo del vírus. El País, 2020. Disponível em: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html Acesso em: 27 mar. 2024.
    » https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html
  • PUCHEU, Albert (2020a). Poema para a catástrofe do nosso tempo. Revista Cult, São Paulo. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/poema-para-catastrofe-do-nosso-tempo/ Acesso em: 27 mar. 2024.
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  • PUCHEU, Alberto (2020b). Vidas rasteiras São Paulo: Cult.
  • STEELE, Jonathan; GOLDENBERG, Suzanne. What is the real death toll in Iraq? The Guardian, 2008. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2008/mar/19/iraq Acesso em: 27 mar. 2024.
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  • ŽIŽEK, Slavoj (2020). Pandemia: COVID-19 e a reinvenção do comunismo. Tradução de Artur Renzo. São Paulo: Boitempo.

Editor:

Paulo César Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2024
  • Aceito
    04 Jul 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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