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O lagarto e a serpente: excesso e homoerotismo no romance A céu aberto, de João Gilberto Noll

The lizard and the snake: excess and homoerotism in the novel A céu aberto, by João Gilberto Noll

El lagarto y la serpiente: exceso y homoerotismo en el romance A céu aberto, de João Gilberto Noll

Resumo

Em A céu aberto, de João Gilberto Noll (1996)NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., a operação do excesso, bem como sua estreita ligação com o homoerotismo, estabelece um jogo simbólico que concentra, na intimidade erótica do texto, o protagonista que se fratura em vários outros, de modo a romper com a quietude do corpo. Dessa forma, tem-se um personagem que, na constância do excesso sexual, autoriza aquilo que está embaixo, jogado no chão — os excrementos, os líquidos viscosos que jorram do corpo, dentre outros —, a ocupar um lugar de centralidade no enredo.

Palavras-chave:
A céu aberto ; excesso; homoerotismo; corpo

Abstract

In A Céu Aberto, by João Gilberto Noll (1996)NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., the operation of excess, as well as its close connection with homoeroticism, establishes a symbolic game that concentrates, within the erotic intimacy of the text, a character that fractures into several others, in order to break with the stillness of the body. In this way, we have a narrator who, in the constant excessiveness of sex, authorizes what is underneath, cast on the ground — the excrement, the viscous liquids that flow from the body, among others — to occupy a central place in the plot.

Keywords:
A céu aberto; excess; homoeroticism; body

Resumen

En A Céu Aberto, de João Gilberto Noll (1996)NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., la operación del exceso, así como su estrecha conexión con el homoerotismo, establece un juego simbólico que concentra, en la intimidad erótica del texto, un personaje que se fractura en varios otros, de modo a romper con la quietud del cuerpo. De esta manera, tenemos un narrador que, en la constante desmesura del sexo, permite que lo que hay debajo, tirado al suelo — los excrementos, los líquidos viscosos que brotan del cuerpo, entre otros — ocupe un lugar central en la trama.

Palabras-clave:
A céu aberto; exceso; homoerotismo; cuerpo

Nessa noite, sentado de vigia comi mariposas
(Noll, 1996NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras.).
eu preciso esquecer que existo mariposas perfuram o céu de cimento eu me entrincheiro no Arco-íris
(Piva, 2023PIVA, Roberto (2023). Morda meu coração na esquina: poesia reunida. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Companhia das Letras.).

A GRAFIA VERMELHA DO EXCESSO

Interessa aqui investigar a composição estético-literária do excesso e do homoerotismo masculino no romance brasileiro contemporâneo A céu aberto, de autoria do escritor gaúcho João Gilberto Noll (1996)NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras.. Em uma narrativa densa e labiríntica, o leitor é inserido em um domínio vermelho da linguagem, cujas rotas de acesso parecem demarcar outras rotas, mas sempre orbitando em torno das ações do inominado personagem-narrador, que possui em seu corpo o excessivo da linguagem em vias de dilapidação e desregramento. Os personagens nollianos transeuntes — configuração esta recorrente em seus romances — percorrem os espaços citadinos e naturais experienciando o sexo e a desolação de modo reverso, isto é, extraindo desses territórios uma soberania que sempre os coloca sob a condição de predadores — seja no aspecto simbólico, seja na fabulação literária do termo.

De início, a operação do excesso nesta pesquisa encontra-se alicerçada no pensamento do teórico francês Georges Bataille (2013a)BATAILLE, Georges (2013a). A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. 2. ed. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica.. Ademais, recorre-se à interpretação refinada e necessária proposta pela ensaísta brasileira Eliane Robert Moraes (2023)MORAES, Eliane Robert (2023). A parte maldita brasileira: literatura. Excesso. Erotismo. São Paulo: Tinta da China Brasil., que amplia consideravelmente a perspectiva batailliana acerca do território ora em análise. Ao desenvolver teorias que abarcam os domínios da literatura e da economia e ao criticar a utilidade clássica, em A noção de dispêndio (1939) e A parte Maldita (1949), Bataille (2013aBATAILLE, Georges (2013a). A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. 2. ed. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica., p. 21) desenvolve o pensamento do “princípio da perda”, ou seja, do “dispêndio incondicional”. De maneira específica, ao partir da economia, ele põe em questão a relevância daquilo que sobra, do que resta; em outras palavras, do que é colocado na esfera da perda diante dos excessos industriais da sociedade, por ele denominado de a parte maldita. Nesse sentido, o excedente, aquilo que é jogado no lixo, ordena-se como o imperativo da ação, traduzindo a importância do que é tido como refutável.

Moraes (2023)MORAES, Eliane Robert (2023). A parte maldita brasileira: literatura. Excesso. Erotismo. São Paulo: Tinta da China Brasil., em seu estudo sobre a obra batailliana, reafirma a potência da perda, alocando-a à noção de excesso. Em suas palavras:

Daí a pertinência em associar a perda ao excesso, essa noção instável que pertence tanto ao domínio da filosofia quanto ao da literatura e que, de fato, supõe menos um conteúdo específico do que uma série de operações simbólicas particulares. Experiência do desregramento e da dilapidação, a escrita que lhe corresponde implica invariavelmente um voto de fé na transgressão que se faz valer por reiteradas subversões de paradigmas
(Moraes, 2023MORAES, Eliane Robert (2023). A parte maldita brasileira: literatura. Excesso. Erotismo. São Paulo: Tinta da China Brasil., p. 34).

Assim, a autora compreende o excesso — sobretudo na literatura — como uma “experiência” vinculada ao desregramento e à dilapidação, conceitos caros à erótica literária. A operação literária do excesso não se atrela necessariamente ao hiperbólico, mas pode ser encontrada no processo de dilapidação moral no qual os personagens se encontram imersos. Na seara do texto erótico ela atinge uma potência que consegue quebrar a regularidade da economia do livro, cedendo lugar à vertigem e, novamente, ao desregramento. Tal aspecto se manifesta no personagem entregue aos vícios da carne e ao deboche. Quando Moraes (2023MORAES, Eliane Robert (2023). A parte maldita brasileira: literatura. Excesso. Erotismo. São Paulo: Tinta da China Brasil., p. 34) assevera que a escrita do excesso implica “um voto de fé na transgressão”, residindo na “subversão de paradigmas”, o eixo dessa balança é o erotismo enquanto pedra de toque para a manifestação do desejo, do sexo e do desvio — este último compreendido aqui como uma ruptura na ordem factual do enredo, ou seja, quando a ação erótica é rompida, dando lugar a reações outras que superam as anteriores, conforme veremos mais adiante.

A escrita do excesso, quando presente em textos eróticos, pode resultar não apenas o excedente, mas também a confecção interna acerca de como ocorre esse processo de dilapidação na estruturação dos personagens. Moraes (2023)MORAES, Eliane Robert (2023). A parte maldita brasileira: literatura. Excesso. Erotismo. São Paulo: Tinta da China Brasil., ainda em interpretação à teoria batailliana, pontua que:

A literatura é por excelência o celeiro do excedente, seja ele material, seja moral. A ela destina-se, portanto, a tarefa de guardar os restos, as sobras, os estilhaços, os entulhos, compondo um inesgotável abrigo simbólico onde cabe tudo que se perde na vida humana, incluindo o que se joga no lixo, o que falta e até mesmo o que não existe
(Moraes, 2023MORAES, Eliane Robert (2023). A parte maldita brasileira: literatura. Excesso. Erotismo. São Paulo: Tinta da China Brasil., p. 34, grifo nosso).

É, pois, no celeiro do excedente que o excesso se materializa, reorganizando a experiência erótica dos personagens. Com base na materialidade dos corpos, o jogo entre moralidade e imoralidade é percebido, ocasionando, portanto, uma fissura na derme da narrativa, isto é, um desvio no tabuleiro das ações eróticas. A partir desse movimento, o erotismo acaba por encontrar a vertigem do excesso. Citando caso análogo, na própria paisagem da literatura brasileira contemporânea, o romance Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino (2005)AQUINO, Marçal (2005). Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras., contribui para o pensamento aqui exposto. Na referida obra, a protagonista Lavínia, ex-prostituta convertida ao evangelho, apresenta uma conformação de personagem que a estabelece ora como santa, ora como devassa, engendrando em sua composição uma fissura observada nas cenas eróticas do romance. Como exemplo, há a ocasião em que Lavínia — que, nas palavras do narrador, era puramente “suor e tesão” — resolve abruptamente fazer sexo com Cauby no quintal da casa do amante. Nesse mesmo instante, ambos são observados pelo tatu Zacarias: “um momento glorioso, com direito a testemunhas. Uma foi Zacarias, que dormitava feito um velhinho no fundo do quintal” (Aquino, 2005AQUINO, Marçal (2005). Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras., p. 40).

Na escrita do excesso, a ruptura ocasionada com a inserção do pequeno mamífero acaba por acrescentar a densidade da cena, a qual transcorria como que em um rito quase naturalista. É precisamente nessa fratura notada na espacialidade da ação que o excesso opera, pois, na gangorra entre a prática e aquilo que incide sobre quem a observa, a semântica do erótico é potencializada. Para além da metáfora carnívora que existe na composição da cena (dadas as características alimentares da espécie animal que observa a referida ação), o que paira sobre a narrativa é o desvio e, consequentemente, a ruptura de sentidos, convergindo, inadvertidamente, para o mesmo ângulo, a saber: o suor, líquido excedente, arrefecendo a urdidura dos corpos.

Isto posto e focando a narrativa nolliana, a textualização do homoerotismo se vincula à figura do excesso na própria pele do personagem, sobretudo quando as passagens eróticas evocam o baixo corporal — principalmente os líquidos a ele relacionados: sangue, suor, sêmen, urina — e outros dejetos que são validados no enredo. Em Noll (1996)NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., conforme veremos a seguir, o corpo é um hemisfério sensorial, cujos símbolos da permanência erótica se vinculam não apenas ao obsceno, mas também à descoberta do corpo do outro.

AQUILO QUE É LÍQUIDO, QUE SE PERDE

Em um cenário indefinido de guerra, o narrador de A céu aberto leva o seu adoecido irmão mais novo ao campo de batalha para encontrar o pai, um general, indo em busca de remédios para o jovem. Com esse introito, veremos esse mesmo narrador alistar-se no exército, desertar e enfrentar intempéries de toda ordem, sempre exposto a paisagens que evocam a androginia, a fragmentação do corpo e a exasperação do ser. Embora Noll permaneça fiel ao estilo seco e árido de seus seis romances anteriores, com o qual ficou conhecido, em A céu aberto todas as luzes de emergência são acesas, vibrando em cores o labirinto espesso da itinerância do personagem diante de espaços que reivindicam as intermitências da noite e a abrasividade do dia.

Prestemos especial atenção a uma passagem específica do romance em que o narrador, expatriado e sem documentos, foge da polícia e embarca clandestinamente no Largo, um navio que zarpava próximo ao cais, levando fugitivos da guerra. Nesse navio, o personagem é feito de escravo sexual pelo comandante, passando a habitar a cabine, com raros acessos ao exterior. Aqui, excesso e homoerotismo intensificam a claustrofobia presente na cena:

Sei que ele gostava do cheiro exasperado do meu suor... Eu já não era eu mas uma coleção de pruridos presos no calor daquela cela soturna. Ele vinha então continuamente com a desculpa de que se esquecera de me dar banho... É, naquela cabine só tinha lugar para mijar e cagar, não havia uma merda de chuveiro... em tempos normais ele chegava com uma toalha umedecida e me passava pelo corpo inteiro, às vezes me alisava para me ver excitado, houve períodos em que aqueles banhos precários se transformavam num ritual diário de limpeza-e-gozo-limpeza-e-gozo, pois o estremunhava o prazer de mexer nos meus suores pruridos e espasmos, arrancando de mim jatos de mijo arrotos escarros que lhe desciam pelo peito como se a mais valiosa medalha do comandante do navio
(Noll, 1996NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., p. 145-146).

A descrição do espaço, bem como a detalhística do ritual erótico do banho, soma-se a uma voz narrativa que, ao mesmo tempo em que parece reprimir as ações, acaba por ressignificá-las ante o excesso do corpo. Há, também, um invariável diálogo com o clássico romance libertino francês de 1785, Os 120 dias de Sodoma, ou, a Escola da libertinagem, do Marquês de Sade (2006)SADE, Marquês de (2006). Os 120 dias de Sodoma, ou, a Escola da libertinagem. Tradução de Alain François. São Paulo: Iluminuras., especialmente quando notamos no comandante o poder do libertino perante o corpo do efebo, que se encontra preso e, irremediavelmente, sujeito à ordem e às normatizações a ele impostas por seu algoz. Contudo, o que chama atenção na passagem é justamente a relação entre os dejetos corporais diante do signo do erótico. Os jatos de mijo, escarros e suores tornam o pacto — entre excesso e homoerotismo — jurado sob o signo da perda. Assim, em meio ao cenário precário em que ambos os personagens se encontram, aquilo que é destinado à perda, que se estenderia ao ralo, é elevado pelo comandante a um patamar de adoração erótica. O excesso, portanto, surge na medida em que a prática do banho — destinado à limpeza, momento em que a sujeira se direciona ao baixo do ralo — reverte-se, na verdade, em um ritual cujo propósito é subverter o caminho do que se perderia, da impureza, direcionando o considerado improdutivo à agente da ação.

Na revista Documents (1929), onde se encontra o dicionário crítico de Bataille (2018)BATAILLE, Georges (2018). Documents. Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie., o autor atribui uma semântica particular ao Abatedouro, que pode iluminar o discurso nolliano ora em análise. Ao afirmar que o abatedouro está vinculado à religião, mas que o sentido tradicional deste lugar se alterou com o tempo, ele constata:

Contudo, em nossos dias o abatedouro é amaldiçoado e posto em quarentena como um barco onde graça a cólera. Ora, as vítimas dessa maldição não são os açougueiros ou os animais, mas as próprias pessoas de bem, que chegaram assim ao ponto de só conseguir suportar a própria feiura, feiura que corresponde de fato a uma necessidade doentia de limpeza, de pequenez biliosa e de tédio: a maldição (que só aterroriza aqueles mesmos que a proferem) os leva a vegetar o mais longe possível dos abatedouros, a se exilar por correção num mundo amorfo, onde não há mais nada de horrível e onde, sofrendo de indelével obsessão da ignomínia, são reduzidos a comer queijo.
(Bataille, 2018BATAILLE, Georges (2018). Documents. Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie., p. 127-128, grifo nosso).

O espaço, antes destinado não apenas à matança, mas também a implorações, é reivindicado pelo autor em sua acepção extrema de espelho da sociedade. Desse modo, o abatedouro perde seu sentido quando se torna algo destinado à limpeza, desalojando-se de sua lógica genuína: o sacrifício que traduz “os mistérios mitológicos e a grande lúgubre característica dos lugares onde o sangue corre” (Bataille, 2018BATAILLE, Georges (2018). Documents. Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie., p. 127). Assim, ao trazermos tal definição batailliana para o romance de Noll, a cabine do comandante opera na desfuncionalização dessa imagem, ao passo que reclama para si a impureza recaída dos pruridos da pele. Na prática homoerótica entre os personagens, a qual é validada pelo excesso, a toalha úmida que limparia a sujeira configura-se como instrumento fabular que perscruta os buracos por meio da ótica obscena. Em A céu aberto, o abatedouro é soturno, à deriva, destinado ao gasto corporal que despende a soberania do erotismo.

No excerto a seguir, a relação homoerótica entre o narrador e o comandante novamente é trincada pelo excesso, além de registrar os buracos do corpo como válvulas do sexo:

E quando o brutamonte entrava na cabine logo depois dessas poluções ele sentia de imediato o cheiro, dava uma boa fungada aspirando o ar carregado de esperma e vinha de joelhos para perto de mim me lamber. Eu não sabia muito bem o que sentir diante daquilo, começava a perceber que estava seriamente farto da minha vida, que precisava de uma alforria antes de o meu corpo cair confinado na velhice ou numa doença pesada, eu precisava mesmo enfim fugir. No fundo, eu estava era exaurido com a minha condição de escravo sexual. E eu era outra coisa? No início tudo bem. A minha fome de sexo mostrava-se insaciável. Mas no desenrolar do tempo você vai vendo que aquilo sim é a estiva do navio. Quantas vezes no meio do sono ferrado ele chegava, me sacudia, queria chupar meu pau mas que estivesse duro, pronto para secretar seus óleos de ardência, que desse uma esporrada monumental bem na sua garganta; ele sempre dizia que sua boca sem os dentes da frente poderia me servir como uma vagina, as minhas gengivas são macias toca aqui — eu tocava meio arrepiado —, a minha língua fará cócegas por baixo do teu prepúcio, o empurrará para trás para que o cabeção fique inteiro descoberto e acaricie minha garganta ou quem sabe a arrebente e dilacere
(Noll, 1996NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., p. 148, grifos nossos).

Novamente, tal como em boa parte do romance, a centralidade do prazer reside na alocação do disforme ao primeiro plano da ação literária. Embora o estranhamento em tocar as gengivas do comandante aparente nojo, neste excerto o excesso é caracterizado pela visão da boca sem os dentes da frente, sobretudo quando lhe é sugerida a transformação imaginária dessa lacuna em uma vagina. A imaginação erótica, aqui metamorfoseando a garganta em abismo, arrebenta e dilacera a forma em uso, retirando dos líquidos — em contato com a maciez das gengivas e do prepúcio — a “necessidade doentia de limpeza, de pequenez biliosa e de tédio” aludida por Bataille (2018)BATAILLE, Georges (2018). Documents. Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie.. A despeito de existir a necessidade de fuga por parte do narrador, o romance não deixa de representar, na errância desse personagem, os corpos abertos à mutilação, desordem e opacidade, revelando espaços sem nomes ou instantes em que o onírico se revela mais concreto do que o real.

O LAGARTO, A SERPENTE E O OLHO

A prosa de Noll (1996)NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras. expande os domínios da linguagem para um absoluto longínquo da condição humana. De acordo com Brandão (2022BRANDÃO, Luis Alberto (2022). Pulsações Noll. In: CAMARGO, Fábio Figueiredo; K. VALO, Antonio (org.). Sob o signo de João. Uberlândia: O Sexo da Palavra. p. 109-120., p. 113), “a intimidade com as palavras é tão forte que elas ganham uma espécie de elasticidade extra, de dimensão expandida, jamais soando mecânicas ou triviais”. Nessa elasticidade, a palavra erótica subverte o cotidiano, instaurando a transgressão como ponto apenas de partida — sem sinais de chegada — aos confins do infinito. Em se tratando da verve transgressora do romance como uma violência “exercida por um ser capaz de razão (colocando no caso a sabedoria a serviço da violência)” (Bataille, 2013aBATAILLE, Georges (2013a). A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. 2. ed. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica., p. 89), esta é entrevista no domínio moral das ações do protagonista, que se entrega ao desregramento, desconhecendo limites.

Tal como no excerto da cabine do navio, em que o personagem era feito de escravo sexual, na cena a seguir, vê-se o narrador praticando sexo com um garoto:

A partir daí perdemos a memória e o que se dá se dá de graça como costumo ver no olho do lagarto a me olhar com um feitiço que ele jamais soube reter na lembrança, um olhar feito de instantâneos compridos quase eternos, eu naquele momento estava sendo o filho de Artur como o lagarto era comigo quando me olhava na noite e só, sim eu espalmei a mão na bunda do garoto, ele quis reagir notei na respiração quase arrebentando, depois foi lhe caindo uma resignação diante do fato de estar sendo bolinado por mim na nádega, depois começou a gotejar pela cara e pescoço um suor cheirando, penetrante, depois as nossas roupas rasgadas a dele e a minha, a mesma fúria: cuspi fundo na palma da mão, untei meu pau de saliva, o pau entrou de um golpe, o rapaz berrou, a cotovia a coruja o quero-quero carpideiro, tudo isso respondeu aos berros, esqueci não quis saber só tinha ouvidos para o meu próprio ronco, côncavo, interno, avarento, miserável e só. Quando eu próprio gritei enfim olhei para o meu púbis e o vi todo banhado em sangue, no começo não entendi mas logo me dei conta de que eu arrebentara o cu do garoto
(Noll, 1996NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., p. 105).

O esmaecimento da memória na presença furiosa do erotismo faz com que a escuridão da cena seja atravessada pela sonoridade dos animais que respondem à fúria do corpo. Convém lembrar que o lagarto — assim como a serpente — integra os denominados escamados, isto é, cobertos por escamas, o que remete ao corpo enquanto estatuto da linguagem e fragmentação. Como lâminas epidérmicas, as escamas parecem representar, na sinuosidade do lagarto, a desarticulação da pele, sobretudo do sangue, que encontra no erotismo o risco necessário à vertigem, tal como já imortalizado, por exemplo, nos versos de Hilda Hilst (1983)HILST, Hilda (1983). Rútilo nada. Campinas: Pontes., em Rútilo Nada: “De sentimentos, um tecido/ De escamas. Sangue escuro/ Lá. Depois do muro/ Criança me debrucei/ Sobre a tua cinzenta solidez/ E até hoje me queima A carne da cintura”. Em Noll (1996)NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., o lagarto que observa o personagem e o sangue que jorra do ânus do garoto inundando a púbis do narrador, rompem o negrume da noite, reconfigurando-se, no descamar das peles, na figura emblemática da serpente.

Silviano Santiago (2002)SANTIAGO, Silviano (2002). O Evangelho segundo João. In: SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra: ensaio. Rio de Janeiro: Rocco. p. 72-78., em ensaio sobre o romance A fúria do corpo (1981), de Noll (2008)NOLL, João Gilberto (2008). A fúria do corpo. Rio de Janeiro: Record., tece afirmações que podem estender-se às demais obras do autor, principalmente A céu aberto, pois, conforme pontua o crítico, a prosa nolliana consegue, “numa sociedade repressiva e conservadora, deixar o corpo rolar com raiva e generosidade (isto é, com paixão) pelos caminhos e vielas de si mesmo, do Outro e da cidade” (Santiago, 2002SANTIAGO, Silviano (2002). O Evangelho segundo João. In: SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra: ensaio. Rio de Janeiro: Rocco. p. 72-78., p. 72). E completa, mais adiante, “Os buracos do corpo (da palavra) viabilizam a saída dos excrementos que constituem o solo concreto da realização erótica” (Santiago, 2002SANTIAGO, Silviano (2002). O Evangelho segundo João. In: SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra: ensaio. Rio de Janeiro: Rocco. p. 72-78., p. 77). A argumentação de Santiago (2002)SANTIAGO, Silviano (2002). O Evangelho segundo João. In: SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra: ensaio. Rio de Janeiro: Rocco. p. 72-78. depura as singularidades da prosa nolliana sem anular a potência do baixo, mas compreendendo aquilo que jorra do corpo dos personagens como instância primeira do erotismo.

Como uma última experiência de análise, um excerto do romance ensaia o homoerotismo sob a égide da despedida, e, novamente, pelo olho de uma alguma testemunha:

Sim, um vai ao banheiro e o outro vai atrás. Tenho a impressão de ter ouvido um bombardeio, não podemos nos esquecer da guerra. Eu não ouvi nada. No banheiro eles dois se beijam como se fossem velhos apaixonados. Entra um garoto e fica olhando. Usa um casaco de couro e masca um chiclete. É ruivo e tem uma argola mínima na orelha. Uma tatuagem de Cristo no pulso. O banheiro recende mijo por tudo e os dois se beijam na boca como se o mundo fosse acabar amanhã num bombardeio inimigo. Os dois se beijam na boca porque é a última vez. Os dois se beijam na boca porque tudo vai se acabar amanhã e isso já foi dito e repetirei mais um milhão de vezes para ninguém esquecer, lá vai: tudo vai se acabar amanhã
(Noll, 1996NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras., p. 135).

No banheiro, espaço bastante recorrente nas literaturas de tematização homoerótica, os dois personagens se beijam em meio ao odor de urina e à fissura do excesso, desta vez percebida na presença do garoto que, com uma tatuagem de Cristo no pulso e com a boca em movimento de mastigação de um chiclete, assiste ao desespero do beijo entre os homens, enquanto o narrador, na hipérbole de dizer um milhão de vezes o que precisa, consagra o momento pela ótica do último instante, da despedida e da última vez. Garcia (2014)GARCIA, Paulo César Souza (2014). Literatura e representações do homoerotismo. Salvador: Eduneb., acerca das representações homoeróticas na literatura brasileira contemporânea, explica que “a estética contemporânea desperta para tais interesses com perfis que visam à existência submetida à fluidez da identidade, da negatividade, datada de faces de anestesiamento com a realidade e com o sentido das coisas” (Garcia, 2014GARCIA, Paulo César Souza (2014). Literatura e representações do homoerotismo. Salvador: Eduneb., p. 83-84). Nesse bojo aludido pelo autor, A céu aberto entra no território do verbo homoerótico firmando a linguagem como instrumento para o excesso do corpo e de imagens em movimento.

Nesse sentido, nas trilhas aqui percorridas, o céu faz-se invólucro para as identidades em trânsito que se devoram, se reintegram e se ressignificam, erigindo de si mesmas a alteridade capaz de conceber o excesso cotidiano como espelhos que, ao invés de refletir, refratam em múltiplos outros a ascendência do desejo. Na cabine, no bosque, nos banheiros, o excesso e o homoerotismo nollianos são veias discursivas que operam, cada qual a seu modo, nas particularidades de algo desmedido, irrefreável que, como o poeta Roberta Piva (2023PIVA, Roberto (2023). Morda meu coração na esquina: poesia reunida. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Companhia das Letras., p. 79) eternizou, “é cuspido pelo cu sangrento de um Deus-Cadela”.

Referências

  • AQUINO, Marçal (2005). Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios São Paulo: Companhia das Letras.
  • BATAILLE, Georges (2013a). A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio” 2. ed. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica.
  • BATAILLE, Georges (2013b). O erotismo Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica.
  • BATAILLE, Georges (2018). Documents Tradução de João Camillo Penna e Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Cultura e Barbárie.
  • BRANDÃO, Luis Alberto (2022). Pulsações Noll. In: CAMARGO, Fábio Figueiredo; K. VALO, Antonio (org.). Sob o signo de João Uberlândia: O Sexo da Palavra. p. 109-120.
  • GARCIA, Paulo César Souza (2014). Literatura e representações do homoerotismo Salvador: Eduneb.
  • HILST, Hilda (1983). Rútilo nada Campinas: Pontes.
  • MORAES, Eliane Robert (2023). A parte maldita brasileira: literatura. Excesso. Erotismo. São Paulo: Tinta da China Brasil.
  • NOLL, João Gilberto (1996). A céu aberto São Paulo: Companhia das Letras.
  • NOLL, João Gilberto (2008). A fúria do corpo Rio de Janeiro: Record.
  • PIVA, Roberto (2023). Morda meu coração na esquina: poesia reunida. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Companhia das Letras.
  • SADE, Marquês de (2006). Os 120 dias de Sodoma, ou, a Escola da libertinagem Tradução de Alain François. São Paulo: Iluminuras.
  • SANTIAGO, Silviano (2002). O Evangelho segundo João. In: SANTIAGO, Silviano. Nas Malhas da Letra: ensaio. Rio de Janeiro: Rocco. p. 72-78.

Editor:

Paulo César Thomaz

Editora de seção:

Patricia Trindade Nakagome

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2024
  • Aceito
    02 Jul 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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