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Apresentação: literatura além do livro

Presentation: Literature Beyond the Book

Presentación: la literatura más allá del libro

O interesse pelo assunto da literatura além do livro não é novo. Talvez a penúltima iteração do motivo seja produzida pela chegada da mídia digital décadas atrás, determinando o surgimento de visões críticas sobre as possibilidades do literário além de seus limites históricos. Sabe-se também que não houve vanguarda literária recente em ambos os lados do Atlântico que não seja identificada com uma mudança de coordenadas que envolva uma reinterpretação do campo. Nesse sentido, o Brasil é rico em experiências, sendo o mais relevante o movimento antropofágico da primeira parte do século XX. Então, qual é o significado específico de uma questão especial sobre o “além do livro” no contexto brasileiro contemporâneo? Talvez a resposta mais óbvia seja que as transformações que o país experimentou durante a primeira década do século XXI determinaram um contexto em que o trabalho literário precisava ser repensado, estabelecendo outras direções e caminhos de interpretação. Isso é indubitavelmente verdadeiro e, é claro, determina a intenção analítica da atual coleção de artigos. No entanto, essa resposta, embora precisa, é limitada. Como organizadores deste dossiê, não poderíamos deixar de ver o desafio da curadoria também como uma oportunidade de intervenção no que podemos chamar de tradição da reinvenção: aquela em que o questionamento sobre a literatura está no DNA cultural do país desde a sua vida republicana. O Brasil, metonímia da América Latina, é um território que foi antes de tudo uma história. E uma edição crítica sobre o tema da literatura além do livro é uma oportunidade única de se inserir no contexto de uma longa tradição de análise sobre esse assunto e de tomar o pulso da narrativa literária em uma época em que as narrativas molduram o sentimento do público e a política permeia o domínio criativo. Onde, em resumo, a questão da cidadania é inseparável da cultura.

Os trabalhos publicados na seção temática deste número da revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea demonstram isso, por meio de uma seleção que comenta sobre os diferentes universos nos quais o campo literário brasileiro foi transformado nos últimos anos. Poemas visuais, tridimensionais e interativos; diálogos intertextuais; espaços performativos; prática coletiva e cultura participativa; representações digitais; intervenções socioculturais; estratégias de reclamação de direitos; laboratórios de democracia; políticas de inclusão. Esta lista sugere algumas das manifestações que testemunhamos neste volume. Nosso interesse por esta temática vem de um ponto em comum em nossas pesquisas: os saraus e slams de poesia. Nesses espaços culturais e populares se encontram novos meios de articular a literatura, seja por meio de convivências performativas e participativas, seja por uma ênfase no coletivo e público. No que diz respeito a essas novas tendências literárias, o que vale a pena salientar é a importância que trazem para questões de cidadania e inclusão, ao registrar uma “democratização do acesso à produção poética” (Medeiros, 2018MEDEIROS, Rosana (2018). Slam das Minas: uma rede de poesia e resistência. Blog do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados - IBPAD, 15 fev. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2RFMu5r . Acesso em: 15 jan. 2020.
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). Analisamos esses espaços culturais tendo em mente a definição que Leila Lehnen (2013LEHNEN, Leila (2013). Citizenship and crisis in contemporary Brazilian literature. New York: Palgrave Macmillan.) dá para cidadania no sentido amplo da palavra, que abrange o cultural, assim como as dimensões civil, política e social. No Brasil, as transformações econômicas dos primeiros anos do século XXI, coincidentes com o chamado boom das “commodities” e as políticas públicas do governo do Partido dos Trabalhadores, ocasionaram uma situação-limite determinada pelo que Evelina Dagnino (2005DAGNINO, Evelina (2005). Meanings of citizenship in Latin America. Brighton: Institute of Development Studies/University of Sussex., p. 17) identifica como a perversa coincidência entre “o direito a ter direitos” enquadrado em contextos de exclusão e o projeto de governo neoliberal que busca reduzir a esfera de inferência do estado. Essa coincidência, apesar disso, determinou a emergência duma produção cultural robusta e um correlato crítico onde a cidadania e a democracia estão no centro do debate. Uma das expressões centrais mais férteis que emergiram nessa conjuntura foram os slams e os saraus em sua expressão contemporânea. O interesse do trabalho investigativo dos curadores deste dossiê gira em torno dessas questões, justamente por demonstrar, de acordo com a autora Crystal Leigh Endsley (2016ENDSLEY, Crystal Leigh (2016). The fifth element: social justice pedagogy through spoken word poetry. Albany; New York: Suny Press.), a importância desses espaços comunitários criativos para a luta pela justiça social. A pesquisa de Harrison, por exemplo, aborda os Slams das Minas por ocuparem um espaço propício na articulação de uma coletividade que concerne ao universo feminino, as pautas feministas e às mulheres da periferia. As diversas participantes dos Slams das Minas dão voz a questões que reclamam as exclusões e a discriminação em termos de gênero da mesma maneira que mostram resistência contra adversidades habituais como a violência doméstica e o assédio sexual. Esses espaços performáticos incentivam, portanto, o ato de protesto contra o machismo, o racismo e a homofobia. A pesquisa de Bustos (representada com um artigo neste número) também segue essa visão, caracterizando o sarau como um espaço onde as aspirações democráticas do país se tornam visíveis, destacando subjetividades e práticas relacionadas à definição da periferia nos últimos vinte anos.

Assim, a partir da interpelação contemporânea do tópico, a ordem que escolhemos propõe uma apresentação tripartida da questão da cidadania na literatura brasileira: novas formas do livro, mundos digitais e novas cidadanias. Embora essa ordem não tenha sido pensada cronologicamente, é significativo observar que o resultado final aponta para uma série de práticas e intervenções que obedecem a dinâmicas históricas: momentos de mudanças e interpelações às definições de cidadania que determinaram a esfera pública nas últimas décadas. Isso permite redescobrir e reinterpretar eventos anteriores à luz dos desenvolvimentos recentes, além de desafiar o contemporâneo como herdeiro de uma tradição de inquietude democrática na cultura do território. Começando com os novos desdobramentos do livro que surgiram durante os anos 1970, revisitando a ampliação dos espaços literários no âmbito da tecnologia e no mundo digital, assim como questionando as novas formas e usos expressivos coincidentes com as transformações democráticas dos últimos anos, o presente dossiê quer apresentar um guia útil para pesquisadores interessados nas ligações entre cidadania e cultura nos últimos anos.

O artigo de Marina Ribeiro Mattar sobre os Poemóbiles de Augusto de Campos e Julio Plaza aproxima o livro ao objeto de arte na maneira como acentua a tridimensionalidade assim como uma estrutura comunicante. Mattar comunica a importância da experiência de articulação do livro-objeto e da questão do simultâneo, que reforça o movimento, o visual e a interatividade.

O artigo de Saulo Gomez Thimoteo trata da adaptação do romance O cortiço como jogo de tabuleiro e do tipo de perguntas que essa adaptação apresenta ao campo literário. Essa tradução dum texto e dum espaço simbólico caro à tradição democrática do país (o tipo de moradia ocupada por trabalhadores que não podem comprar uma casa) revela uma série de gramáticas e reflexões importantes para a compreensão contemporânea do processo democrático brasileiro.

Assim como o anterior, o ensaio de Vinícius Carvalho Pereira comenta mais outra mudança da literatura de sua casa habitual ao estudar o trabalho do artista visual André Vallias e a produção de textos a partir de gráficos e algoritmos 3D. Esse espaço novo, material e simbólico, comenta espaços referenciais fundamentais para a concepção espacial da democracia e suas demandas e desafios, e propõe no processo um guia topográfico das possibilidades democráticas do território e de sua produção cultural.

O ensaio de Manaíra Aires Athayde e de Rejane Cristina Rocha sobre os novos modos de circulação da literatura no mundo on-line a partir dos exemplos de dois grandes escritores brasileiros, Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, reitera o aspecto participativo da cultura no que diz respeito às fanpages nas redes sociais. As autoras enfatizam as experiências vividas no âmbito virtual que permitem uma nova maneira de interpretar e considerar questões de identidade literária.

O artigo de Daniela Silva de Freitas comenta a relação entre produção poética e cidadania ao historiar o caso do Slam Resistência em São Paulo e a postulação de espaços de democracia a partir da intersecção entre as estratégias formais e temáticas que utiliza. A partir do rastreamento da origem do slam como prática e de seu surgimento na cidade, bem como da análise de textos e estratégias, a autora propõe uma análise das possibilidades cívicas desse espaço.

O ensaio de Paulo Dutra apresenta, a partir da análise do trabalho de Racionais MC’s e sua assimilação ao cenário cultural brasileiro, uma crítica analítica aos métodos de branqueamento utilizados pelo discurso acadêmico na discussão do espaço ocupado pela subjetividade afrodescendente no país. O texto comenta os mecanismos pelos quais esse processo opera e propõe uma discussão sugestiva sobre as maneiras pelas quais as relações entre cidadania e a questão racial servem como pano de fundo dessas dinâmicas.

O ensaio de Diego Bustos sobre os saraus no Rio de Janeiro permitem retomar a questão de cidadania e intervenção cultural ao enfatizar e expandir o espaço cultural para abranger as regiões periféricas. De acordo com Bustos, saraus que integram poesia, música e performance se transformam em laboratórios de democracia que permitem refletir as complexidades geradas em torno de questões como desigualdade, periferia, cultura e empreendimento.

Em resumo, oferecemos aos leitores uma coleção diversificada e consciente da urgência de sua intenção e do espaço que ocupa em um período que parece testemunhar o último ataque ao pleno exercício do direito a ter direitos.

Referências

  • DAGNINO, Evelina (2005). Meanings of citizenship in Latin America. Brighton: Institute of Development Studies/University of Sussex.
  • ENDSLEY, Crystal Leigh (2016). The fifth element: social justice pedagogy through spoken word poetry. Albany; New York: Suny Press.
  • LEHNEN, Leila (2013). Citizenship and crisis in contemporary Brazilian literature. New York: Palgrave Macmillan.
  • MEDEIROS, Rosana (2018). Slam das Minas: uma rede de poesia e resistência. Blog do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados - IBPAD, 15 fev. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2RFMu5r Acesso em: 15 jan. 2020.
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    Organizadores: Marguerite Itamar Harrison e Diego Bustos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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