Acessibilidade / Reportar erro

Tradições que se refazem

Traditions that rebuild themselves

Resumo

Este artigo discute a relação entre duas tradições - a tradição do folheto de cordel, advinda da oralidade, feita e refeita no manuscrito e no escrito, e a tradição do discurso científico a respeito do folheto, construída por meio do discurso intelectual - que se entrelaçam em um jogo de autoridade e legitimidade sobre o que é a tradição no contexto de produção, recepção e crítica do cordel.

Palavras-chave:
cordel; escrita; tradição; crítica

Abstract

This article discusses the relationship between two traditions - the tradition of the leaflet of cordel narratives, coming from orality, made and remade in handwriting and in writing, and the tradition of the scientific discourse about the leaflet, built by means of the intellectual discourse - that intertwine in a game of authority and legitimacy over what is tradition in the context of production, reception and criticism on the cordel.

Key words:
cordel; writing; tradition; criticism

O conceito de tradição que hoje conhecemos teve sua acepção construída ao longo do tempo, por meio de uma série de ressignificações, de acordo com mudanças em seu uso no cotidiano, ou mesmo em seu emprego na criação de uma epistemologia acadêmica. Percorrendo os significados do termo, nós remontamos ao latim traditio, derivado da forma verbal traditum, do verbo tradere, composto de trans e dare, quer dizer, dar, passar ou fazer passar a alguém, transmitir produtos ou bens e, por extensão, transmitir conhecimentos, um saber, a sabedoria, a memória, como conotação primeira a de intensa e contínua atividade. Não é por acaso que em inglês a palavra, tanto o substantivo quanto o verbo, para dizer “comércio” é trade e to trade, ou seja, um movimento incessante, contínuo dos bens, de produtos, que são passados de uma mão para a outra. Hoje em dia, a raiz latina deu também o neologismo trader, para aludir àquelas pessoas especializadas na transmissão esperta, febricitante, instantânea e totalmente imoral dos enormes capitais do mundo da especulação financeira.

O problema inteletual, epistemológico, que passo a discutir aqui é o de que é exatamente esse termo, que denota originalmente e basicamente uma atividade incessante, uma procura, invenção e reinvenção contínuas - e que ainda hoje é ressentido, assim como mostra o neologismo trader! -, que se tornou também, no mundo moderno, e sobretudo no discurso dos inteletuais, o equivalente a atraso, imobilismo e conservadorismo sob a forma do substantivo tradição. É nesse sentido que o discurso científico sobre o cordel utiliza o termo tradição para definir e caraterizar o folheto. É com o argumento de ele ser uma tradição arcaica, que tem de ficar pura e autêntica, que os eruditos rejeitam como impuras e desviantes as formas e expressões do folheto que não correspondem ao modelo puro, arcaico, parado no tempo.

Na verdade, esse sentido negativo, do termo é recente. Segundo o Dictionnaire historique de la langue française, de Robert, ele aparece por volta do ano 1850. Em 1849, Robert assinala, na língua francesa, um novo adjetivo, traditionaliste, e, em 1851, o substantivo que lhe corresponde, traditionalisme, com o sentido de “apego às noções e práticas tradicionais”. Trata-se, na altura, da atitude contrária à que é a promulgada pela doutrina oficial da burguesia e do poder: a do progresso. A dicotomia que está por trás dos dois neologismos (a classe social da burguesia versus a do povo) trai-se em dois outros termos que nascem na mesma época: o folclore, sabedoria do povo (1848), e arts et traditions populaires.

Como podemos constatar, a significação moderna da palavra tradição nasce num momento e contexto políticos bem definidos, a saber, o da lenta e progressiva ascensão política da alta burguesia europeia. Essa classe social, depois de ter conquistado o poder em aliança com o povo, no momento da Revolução Francesa, em 1789, criará progressivamente, no decorrer do século XIX, a Europa moderna, a Europa dos EstadosNações1 1 A Bélgica, por exemplo, nasce em 1830, a Itália em 1869 e a Alemanha em 1870. , distanciando-se cada vez mais do povo, o seu aliado inicial. No decorrer desse processo altamente político, a velha Europa das milhares de pequenas “nações”2 2 Nação no sentido original, social e cultural, da palavra: comunidade, região geográfica, língua, cultura, memória e tradição em que a pessoa nasceu e viveu a vida toda e com a qual ela se identifica, base da sua identidade. Como a define o poeta Patativa do Assaré: “a nossa vida, a nossa terra, a nossa gente”. É a Revolução Francesa que dará à palavra o seu sentido político de ¨entidade política constituída pelo povo autônomo”. , se transformará, em cem anos mais ou menos (17891870), na Europa moderna dos grandes Estados-Nações, a do progresso, da democracia e da civilização universal, com base na Nação e numa ideologia nacionalista (Hobsbawn, 1990HOBSBAWM, Eric (1990). Nações e nacionalismo desde 1789: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Nessa nova Europa, as milhares de pequenas “nações” serão consideradas conservadoras, atrasadas e fadadas à morte por serem, na visão da burguesia, economicamente inviáveis.

Por volta dos anos 1880, no apogeu do seu poder, a burguesia toma consciência das ameaças que pesam sobre o seu poder arrogante e altivo. De um lado, a Internacional socialista e comunista confronta uma força política que se organiza bem além das fronteiras dos respetivos EstadosNações. Do outro lado, e no próprio seio da Nação, a resistência das pequenas nações/regiões toma formas de expressão cada vez mais pertinentes; a burguesia se dá conta de que aqueles povos não subordinarão tão facilmente a sua língua, a sua cultura, o seu amor da terra e os laços afetivos tradicionais em que ele se baseia a um amor superior, novo, exigente e mais ou menos abstrato: o da pátria.

Nasce a consciência de que é preciso controlar melhor, formar e educar esses povos “atrasados”, impor-lhes progressivamente um imaginário e uma sensibilidade modernos, voltados para o amor da pátria, a nova comunidade a ser imaginada (Anderson, 1983ANDERSON, Benedict (1983). Imagined communities. Londres: Verso.) por todos como fonte de identidade individual, baseada na sua expressão na língua nacional. Por volta dos anos 1880, os países europeus declaram obrigatório, no ensino primário e secundário, o ensino da história nacional3 3 O primeiro departamento de história nacional foi fundado na Sorbonne, em Paris, em 1810; o segundo, em 1812, na Universidade de Berlim. . Ao mesmo tempo, eles começam a criar, nas faculdades de Letras das universidades, os departamentos de língua e de literatura nacionais, com a missão de formar os futuros docentes que ensinarão nas escolas primárias e secundárias essa língua e literatura nacionais às jovens gerações. Assim, as universidades se tornam os suportes legitimadores das políticas nacionalistas do país cuja língua e literatura ensinam. O objetivo principal da ciência ensinada não vai ser a procura da verdade, de um conhecimento cada vez mais completo e autêntico, vai ser a formação de bons cidadãos.

Assim, o que as elites políticas querem que aconteça - a saber, que morram as línguas e culturas regionais por serem os suportes principais dos milhares de pequenos “nacionalismos” tradicionais - transforma-se em base da organização e em teoria científica do ensino superior: as culturas regionais serão marginalizadas e desprezadas ou até completamente ignoradas; os estudantes aprenderão que elas são inferiores e estão fadadas à morte perante a superioridade da cultura nacional. O ensino nas Letras vai ser, durante todo o século XX, uma aprendizagem e doutrinação sistemáticas no desprezo e na rejeição das línguas, das artes e das culturas populares, que, de qualquer jeito, o ensino universitário considera em vias de extinção.

É esse discurso teórico, por inacreditável que possa parecer hoje, que vai ser importado pelo Brasil quando no Nordeste nasce o folheto, em finais do século XIX. Desde os primeiros estudos sobre o folheto, ainda no século XIX, e apesar do seu imenso sucesso na época, peritos como Sílvio Romero, em flagrante contradição com a realidade que eles podem observar pessoalmente em torno deles, anunciam a morte iminente do folheto, esse produto simples de um povo atrasado, analfabeto e inculto! Até hoje, o discurso acadêmico sobre o cordel repete mutatis mutandis essa mesma teoria. Sílvio Romero criou, em cima do folheto, um discurso científico que se transformou em tradição; ele “fez” uma tradição científica brasileira que se refaz e perpetua, com inúmeras variantes, até hoje em dia.

Resumindo, podemos concluir que existem, em relação ao folheto de cordel, duas “tradições” radicalmente diferentes e, num certo sentido, contraditórias:

  • a própria tradição (material, econômica, cultural, artística) do folheto que vem de longe, das tradições orais das civilizações da oralidade, e se refaz e reinventa a cada introdução de nova tecnologia;

  • a tradição do discurso científico sobre o folheto, que é uma tradição que se fez, no Brasil, em finais do século XIX, ao importar, para teorizar sobre o folheto, o discurso que era o que a burguesia europeia elaborou como suporte da sua política nacionalista.

Tradição oral é movência

O ponto de partida do nosso pensamento é o verbo latim tradere, essa atividade permanente, incessante e até meio ansiosa, cujo objetivo é passar, transmitir coisas. Essa é, na verdade, a prática cognitiva básica das civilizações da oralidade, nas quais, para que os conhecimentos possam existir, para que possam evoluir e crescer, têm de ser passados de boca para orelha, passar de boca em boca, continuamente. É só os repetindo, e repetindo sem parar, que os conhecimentos vão poder integrar-se na memória das pessoas, transformar-se em tradição. Essa é a primeira significação da palavra tradição: o conjunto dos conhecimentos que as pessoas de uma civilização da oralidade transmitiram e continuam transmitindo de uma geração para outra. Nesse primeiro sentido, trata-se de um contexto cultural em que tanto a produção quanto a transmissão, a recepção, a repetição e a conservação dos conhecimentos, da tradição dependem da voz humana e de um público ouvinte; trata-se do verbo tradere no sentido original do termo: trans-dare.

A estratégia pedagógica e didática das civilizações da oralidade é a da performance; baseia-se numa arte teatral, dramática, e na presença de um público coator e coautor do conhecimento. É esse público, testemunha ocular e auricular da performance que vai, em seguida, transmitir, por sua vez, o conhecimento: criar inúmeras testemunhas auriculares que vão repeti-lo, divulgá-lo e, fazendo assim, contribuir para que o conhecimento seja salvaguardado. A memória e também o esquecimento do conhecimento dependem de todos esses coatores e coautores, são o resultado de uma decisão - consciente ou inconsciente - da comunidade toda; esse fazer e refazer, criar e recriar, inventar e reinventar constituem a essência e a conditio sine qua non da existência de uma tradição oral.

Para pensar melhor essa reinvenção contínua, que é na verdade o contráriodoqueadefiniçãonegativadotermotradiçãosugere,PaulZumthor (1983ZUMTHOR, Paul (1983). Introduction à la poésie orale. Paris: Seuil. e 1987______ (1987). La lettre et la voix-de la littérature médiévale. Paris: Seuil.) inventou o conceito teórico de mouvance, que foi traduzido no Brasil por movência. Esse conceito crítico, ao opor-se ao discurso convencional em Letras, tenta dizer teoricamente esse refazer, esse recriar permanente de uma memória/tradição que fica sempre a mesma, porque as pessoas estão repetindo os mesmos conhecimentos para eles não se perderem, e, ao mesmo tempo, será cada vez um pouco diferente, evoluirá lenta e progressivamente, sendo que as sucessivas performances e públicos implicam, cada vez, um refazer, um recriar diferentes. Nenhuma performance pode ser igual à precedente nem à que vai seguir, apesar de o objetivo da performance continuar o mesmo: transmitir esse conhecimento, o que Paul Zumthor, num artigo publicado nos Yale French Studies (67) em 1984, caraterizerá como “the impossible closure of the oral text”.

A fixação por escrita: a tradição oral se refaz, se reinventa

A introdução da tecnologia da escritura nas civilizações da oralidade permitirá inicialmente criar um suporte eficaz para o conhecimento se manter e ser salvaguardado de maneira diferente, sendo que ditar o conhecimento a alguém que sabe escrever permite registrar o conhecimento num papel. É essa a primeira função da escritura quando ela chega ao mundo da oralidade, que entrará assim numa fase de “oralidade mista”4 4 É esse o termo que os teóricos que estudaram a transição da civilização da oralidade para a escrita utilizam para sublinhar que essa transição é lenta e progressiva, não foi uma revolução, como se acredita convencionalmente; a introdução da escrita só iniciou uma evolução secular que, no fundo, até hoje continua. . Não é ainda aquele ato da escritura moderna: escrever, criar, compondo versos ou textos, por exemplo, diretamento no papel (Lemaire, 2007LEMAIRE, Ria (2007). “Para o povo ver e ouvir/Pour que les gens voient et entendent - La présence de la voix dans les folhetos de la littérature de cordel brésilienne”. In: PRISMA, CESCM, Poitiers. Tomo XXIII, n. 45-6, p. 123-73., p. 123-73). Só que, naquele momento, os poetas, ao reinventar a tradição oral, começam também uma nova era, em que a tradição funcionará de maneira diferente, sendo que, além do texto oral essencialmente “aberto”, começará a existir um texto “fechado”, parado, por estar manuscrito no papel.

De um lado, a tradição oral continuará refazendo-se oralmente durante séculos, como se a escritura não existisse. Como diz tão bem o título de um livro de Eric Havelock (1988HAVELOCK, Eric (1988). A musa aprende a escrever. Lisboa, Gravida.) sobre a transição da oralidade para a escrita na Antiguidade grega: “A Musa aprende a escrever”, lenta e progressivamente. Porém, ao mesmo tempo, a tradição começa a se refazer de maneira diferente. A escritura permite registrar e consignar por escrito o que alguém, um indivíduo que sabe escrever ou que pode pagar um escriba, acha digno de memória. Memória e esquecimento não dependerão mais - democratica e exclusivamente - da comunidade que detém o conhecimento; eles podem tornar-se o resultado da decisão de um indivíduo só que terá o poder de decidir o que merece ser lembrado; as estruturas tradicionais do poder da transmissão do conhecimento perderam o seu controle exclusivo.

Outra mudança na tradição se faz a partir do momento em que o texto ditado está transcrito, consignado, no papel. Essa nova situação lhe faz perder o que foi a sua essência dentro das tradições da oralidade; ele se transforma em algo fixo, em um documento definitivo que alguém vai poder ler em voz alta e repetir literalmente; a tradição reinventada pela escrita pôs fim - em princípio - a essa movência total e radical que é a base da invenção, criação, recriação e salvaguarda do conhecimento nas civilizações da oralidade.

Essa tradição que se refez é muito diferente também no sentido da autoridade tradicional da fala. Num contexto de performance, simples e tipicamente oral, na presença de um público ouvinte, a voz que fala é a voz que é porta-voz da verdade e tem a autoridade para dizê-la. Porém, essa autoridade tem os seus limites, estabelecidos pelo público. A autoridade do texto nas tradições orais depende, claro, da autoridade do poeta, portavoz da verdade; ela depende da verdade e beleza do texto, da competência do poeta, da beleza da voz e da melodia, mas ela depende, em última instância, da adesão e da autorização/acreditação do público. Para a mensagem do poeta poder se tornar verdade, para ela poder existir como verdade, a condição para ela entrar na memória, e depois na tradição, não depende da voz do poeta, ela depende do público, da decisão que tomam os ouvintes de a repetir para ela não cair no esquecimento.

Esse controle permanente exercido pela comunidade toda perde a sua força quando nasce o texto escrito/transcrito. O conhecimento consignado no documento transforma-se em conhecimento oficial e é revestido de uma autoridade superior à da palavra falada. O leitor só pode aceitar ou não aceitá-lo, mas não existe mais essa possibilidade que tinha o público ouvinte de intervir para o texto ser transformado, completado, corrigido para se adequar mais à verdade. Essa passagem do controle exercido por todos a um controle exercido por uma minoria, e o consequente monopólio da verdade em mãos de poucos, ocorreu inúmeras vezes na transição de civilizações da oralidade para o mundo da escrita.

Podemos ver o exemplo da Bíblia. Existiam antes da produção manuscrita do Antigo Testamento milhares e milhares de textos e variantes de textos cantados pelos profetas. Até hoje em dia, de vez em quando, são encontrados novos textos, manuscritos em rolos, que fazem parte da tradição judaica que só está parcialmente consignada no Antigo Testamento. Recentemente, foi decifrada a notação musical que acompanha os versetos bíblicos; o que veio, depois de intermináveis controvérsias eruditas, confirmar que aqueles textos do Antigo Testamento eram cantados pelos profetas. Ela deu razão a uma tradição de tradução5 5 Contra a longa tradição oficial que traduz a Bíblia nas línguas modernas a partir da tradução grega, chamada Vulgata. “hebraisante” da Bíblia. Essa tradição, que implica outras interpretações, leva em conta a musicalidade e a construção rítmica dos textos bíblicos que não são versos no sentido atual da palavra, mas produtos de uma arte poética de prosa ritmada, baseada numa melodia fixa que serve para manter o ritmo do canto (Vantoura, 1978VANTOURA, Suzanne Haïk (1978). La musique de la Bible révélée: une notation millénaire décryptée. Paris: Dessain et Tolra.).

Levando em conta a existência de milhares de textos até hoje encontrados e confrontando-os com o corpus limitado dos textos selecionados e fixados pelos escribas judeus na Bíblia oficial, acrescentando a eles a hipótese de no futuro serem encontrados ainda novos rolos com novos textos, com novas variantes daquela Bíblia oficial, podemos nos dar conta do que foi, dentro da tradição oral, a utilização da tecnologia da escritura. Ela permitiu que uma casta de homens poderosos, os doutores-escribas, fizesse uma seleção limitada dentro de um corpus de inúmeros textos que circulavam pela voz dos profetas cantadores. Os “doutores”, aquelas pessoas que consignaram por escrito os textos, esse grupo de dirigentes espirituais, reuniram-se e decidiram que eles iam estabelecer a doutrina oficial, o conjunto autêntico dos textos que serviriam como base da fé judaica.

Travou-se, na verdade, uma gigantesca luta pelo poder da palavra entre os detentores do poder tradicional, os profetas cantadores controlados pela comunidade, e uma nova casta, os homens da lei, detentores da tecnologia da escrita, que se apoderaram da voz do povo para, ao domesticá-la, impor a voz e a autoridade de uma minoria (Goody, 1977GOODY, Jack (1977). The domestication of the savage mind. Cambridge: Cambridge University Press.). A voz do profeta perdeu, pouco a pouco, a sua autoridade tradicional baseada na adesão do povo e substituída progressivamente pela palavra “escrita” (na verdade, registrada por escrito) do Testamento. Debaixo das aparências harmoniosas - repetem-se, como sempre e salvaguardam-se melhor textos da tradição que todos reconhecem por serem a doutrina religiosa do povo - a tradição se refaz, se fixa e estabelece as bases e legitimações para as futuras exclusões e perseguições da voz do povo. A voz do profeta e o público perdem a sua autoridade tradicional, o seu poder sobre a verdade.

Dentro da lógica da movência da própria tradição oral, esse momento da fixação é fortuito; aquele encontro dos doutores-escribas ocorreu naquele momento, mas poderia ter sido cem anos antes ou cem anos depois. A tradição da palavra declamada, cantada por todos aqueles profetas durante séculos ainda continuou, passando as grandes verdades da fé judaica para as gerações sucessivas, como testemunham os rolos que trazem os textos ditos ”apócrifos” (quer dizer, não autorizados), mas ao mesmo tempo a tradição reinventada pelos doutores da lei mudará fundamentalmente a “ordem do discurso” e a tradição.

Texto oral, texto manuscrito, texto impresso

O teatro de cordel ibérico que se divulgava sob forma de folhas volantes, representado no mundo lusófono por Gil Vicente, Chiado, António Prestes e Baltazar Dias, entre outros, pode servir para ilustrar de uma maneira diferente como uma tradição oral, através do texto manuscrito e impresso, evolui, se reinventa, fica ao mesmo tempo a mesma tradição, reconhecida por todos os membros da comunidade, evolui e muda.

Os textos teatrais de Gil Vicente e Baltazar Dias existiam sob forma de cadernos manuscritos, antes de serem impressos sob forma de folhetos. A existência e a divulgação dos folhetos impressos não impediu a sua reprodução e divulgação sob forma de cadernos manuscritos até uma época recente. Esse fato, tão importante para o estudo da obra de Gil Vicente, foi mais ou menos ignorado pela crítica literária, que tomou como ponto de partida os textos impressos das peças, reunidas na Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (1562). Eles serão estudados e classificados como textos “literários”, o que permitiu em seguida que os críticos literários estudassem e classificassem os outros autores do teatro popular da época como “escola vicentina”, ignorando ou menosprezando o fato de que cadernos e folhas volantes revelam um contexto cultural radicalmente diferente, baseado na movência, que deveria ser o elemento básico da sua leitura e interpretação.

O caderno6 6 José Leite de Vasconcelos, o famoso etnólogo português de finais do século XIX, fala de “cadernos manuscriptos que passam de mão em mão, e de casa para casa”. Numa entrevista que tive com o poeta José Alves Sobrinho e em que falei desse fenômeno europeu, ele confirmou a existência dos cadernos manuscritos e a prática da sua troca permanente nas casas do Nordeste do século XIX e XX. é um fenômeno da primeira fase de transição da oralidade para a escrita e para a tipografia, quando as pessoas utilizam a tecnologia da escrita como suporte da memória e para melhor divulgar textos até lá memorizados. Só que o caderno manuscrito não era um texto definitivo, fechado; ele servia como um tipo de guião ou roteiro para as representações teatrais sucessivas. Cada vez que se preparava uma nova performance, o encenador adaptava-se e adaptava o texto às circunstâncias: o guião/roteiro podia servir tanto para preparar uma peça de teatro para crianças como para uma grande festa de casamento ou, como os autos até hoje em dia em Portugal, para a festa anual da aldeia. O auto da aldeia todos os anos é a mesma peça, mas todos os anos a peça vai ser também diferente, porque vai haver as alusões à vida da aldeia, aos eventos recentes, às fofocas, aos desastres naturais - tudo quanto foi interessante no ano passado entre a última encenação e a atual.

Essa tradição existe também no Nordeste do Brasil, onde se fazem peças, chamadas “de cordel”, e onde essas peças divulgam-se também escritas/transcritas em cadernos. Um exemplo interessante é a obra teatral de Lourdes Ramalho7 7 Preparo uma edição crítica, a ser publicada em fim de 2010, de duas peças da autora, a saber, A Feira e O trovador encantado, na série Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, Universidade da Corunha, Espanha. , que vive atualmente em Campina Grande, mas é originária do sertão, da Serra do Teixeira, terra famosa de grandes poetas improvisadores (Ramalho, 2002RAMALHO, Lourdes (2002). Raízes ibéricas, mouras e judaicas do Nordeste. João Pessoa: Editora Universitária.). A autora reivindica, explicitamente e com muita força e pertinência, as suas raízes ibéricas, a sua descendência do teatro de cordel ibérico e a sua missão de porta-voz das culturas nordestina e judaica. Ela tem mais de cem peças de teatro encenadas, não só no Brasil, como também em Portugal e na Espanha. Professora e mãe de família, a autora inventava e encenava originalmente peças para as festas da família, da comunidade do sertão e para o seu ensino. As peças tinham dois objetivos centrais, a saber, mostrar e criticar a realidade da vida nordestina e salvaguardar a memória da comunidade judaica, refugiada no sertão desde a época da Inquisição. “Escrever”, nesse contexto, era sempre e ao mesmo tempo, encenar e ensinar; o texto adaptava-se ao evento para o qual ele era inventado ou reinventado.

As peças de Lourdes Ramalho, inicialmente manuscritas/escritas para serem encenadas e muitas vezes, como foi o caso de Gil Vicente e de Baltazar Dias, de encomenda, são atualmente também publicadas em livros. Repete-se, no fundo, o que foi a história da obra de Gil Vicente : do texto manuscrito para ser encenado, passa-se a um texto publicado que vai ser lido e estudado como “literatura”. Passa-se daquela abertura do texto-roteiro para a fase em que o texto estará fixo, fechado e definitivo e lido em silêncio, como se fosse um texto literário.

Uma tradição - a reivindicada pela própria autora - tem de ser reinventada e nasce um conflito: alguém obriga a dramaturga-autoraencenadora a dar uma forma definitiva a um texto que ela vê como um roteiro aberto. Não é fixar, imobilizar que ela quer; o que ela quer é encenar! A tradição oral e manuscrita, cuja porta-voz é Lourdes Ramalho, entrou, na verdade, numa nova fase que vai ter consequências para o seu funcionamento e a sua compreensão, pois imprimir num livro não é só imprimir. Esse ato muda o conteúdo do texto oral encenado, faz com que perca a relação com o seu mundo de origem, que lhe dá a sua significação autêntica e profunda.

Cordel: tradição literária ou jornalística?

Quando Gutenberg inventa, em 1453, a imprensa, ela nasce como um instrumento e produto da elite e das pessoas que estão no poder, mas logo os poetas da oralidade se apropriam da nova tecnologia, utilizando-a para imprimir os seus textos cantados e declamados, com o objetivo de vender essas folhas volantes e ganhar dinheiro com a venda. Os textos serão os mesmos, serão cantados ou declamados como sempre, mas ao mesmo tempo a tradição da palavra falada muda, se refaz.

Os poetas nômades que percorriam os países e as regiões do mundo medieval ganhavam a vida contando as novidades, as notícias, as histórias, e transmitindo os conhecimentos adquiridos nos lugares pelos quais já passaram, guardados na memória ou em cadernos manuscritos. De repente, a nova tecnologia lhes permitiu ditar os seus textos, imprimilos, levá-los na mala ou maleta de mascate, e, ao cantar ou declamá-los nas praças das aldeias, nas casas, nas albergues, tentar vender esses e outros“ cadernos volantes” que contavam as histórias que eles vieram declamar.

Essa folha volante impressa foi, antes de mais nada, uma fonte de renda e é muito importante se dar conta do fato de que foram os próprios poetas que inventaram essa utilização da nova tecnologia; foram eles que reinventaram, refizeram a sua tradição oral. Foram eles que começaram a criar esse “papel”, objeto econômico, que lhes permitiu participar de maneira “moderna” do mundo moderno europeu. Ainda em finais do século XIX e inícios do século XX, essa tradição dos “papéis” continuava viva, como canta o Calafate (1901CALAFATE, António Eusébio (1901). Tudo e nada: versos pelo cantador de Setúbal. Prefácio de Guerra Junqueiro. Lisboa, s.ed.), o poeta cantador de Setúbal, António Eusébio, citado em 1901 por Guerra Junqueiro:

Alguns sem saberem ler
também me compram papéis.
Dão-me um vintém ou dez réis
p’ra m’ajudarem a viver.

Quatrocentos e cinquenta anos depois da invenção/reinvenção da tradição oral ocasionada pela introdução da imprensa, essa folha e esse caderno volantes, naquelas comunidades europeias dos inícios do século XX, quando ainda há muitos analfabetos e semialfabetizados, continuam a exercer a sua função como suportes da profissão que nelas exerciam os poetas: divulgar as novidades e as notícias. Na Alemanha, o termo notícia é Zeitung; os poetas chamavam-se cantadores de notícias (Zeitungssinger). Quer dizer: a folha volante, era, antes de mais nada, Zeitung, que é, até hoje em dia, a palavra alemã para dizer “jornal”; os poetas nômades eram os “jornalistas” das civilizações da oralidade (Lemaire, no prelo______ (no prelo). “Pensar o suporte, resgatar o patimônio”. In: MENDES, Simone (org.). Pensar o suporte do cordel. Belo Horizonte: UFMG.).

Jornal do povo/jornal moderno

Nesse sentido, o jornal moderno em prosa, quando é inventado, será uma imitação, pela elite urbana, desse primeiro “jornal” do povo, a folha volante que criaram os poetas nômades da Europa. O primeiro jornal no sentido e formato modernos, nasce cento e cinquenta anos depois da invenção da tipografia, quando o jornal do povo, a folha volante, já existia havia mais de cem anos. Só em 1609 sai a primeira Zeitung-jornal, na Alemanha, onde o folheto mais antigo conservado data de 1496.

Esse jornal novo, moderno, imita em vários sentidos a folha volante dos poetas nômades. Imprime-se no mesmo papel barato e apresenta as notícias em colunas. Como a folha volante que tinha duas ou três colunas de versos, o jornal terá cinco em prosa. A concorrência com a folha e o caderno volantes que falavam a língua do povo foi difícil para esse novo noticiário, que falava em prosa e na língua da cidade, mas lenta e progressivamente o jornal moderno foi conquistando o seu espaço: da palavra do povo produzida pelo povo, passou-se à palavra para o povo, quer dizer, para uma palavra produzida, definida, controlada por uma classe social que não era a das pessoas para as quais ela era destinada.

Conclusão

A concorrência, a rivalidade e a luta pelo poder entre a cultura da elite e a cultura do povo que estão na base da história europeia das tecnologias da informação e da comunicação ainda estão muito mal estudadas neste início do século XXI (Burke, 1978BURKE, Peter (1978). Popular cultura in early modern Europe. Londres: Temple Smith.). A doutrina oficial é a da lenta e progressiva, e sobretudo harmoniosa, ascenção ao progresso e à civilização de todas as camadas sociais, contentes e felizes por terem acesso ao mundo civilizado. As humilhações, os desprezos, as exclusões e as perseguições das línguas e culturas populares não fazem parte da história oficial, ensinada na Academia e divulgada através do ensino pelos professores que ela formou. Não se fala do perigo e da ameaça que constituía, para as elites dos Estados-Nações europeus, não se fala do medo que tinha a burguesia dessa voz diferente e rebelde do povo, que voava pelo mundo nas folhas volantes e dava medo a uma classe social pouco segura no seu poder.

Esse medo está presente também no novo discurso que nasce no Brasil, quando os poetas inventam o folheto de cordel. Sílvio Romero, quando descreve o fenômeno recém-nascido, como as elites europeias, só pode vê-lo fadado à morte. Anuncia imediatamente a sua morte iminente com a explicação de que esse folheto vai ser substituído dali em breve pelo jornal! As palavras de Sílvio Romero revelam, na verdade, dois fatos que são importantes para compreender o fenômeno do cordel no Brasil e o discurso elaborado pelos eruditos sobre ele.

Em primeiro lugar, elas confirmam o fato de que, inicialmente, o folheto brasileiro não era literatura, mas noticiário. Sílvio Romero o apresenta explicitamente como concorrente do jornal, o que confirma o nome que muitos poetas já deram ao folheto, ao chamá-lo “jornal do povo”.

Em segundo lugar, trai-se nas palavras de Romero esse medo obsessivo que foi o das elites europeias: medo da voz do povo e desejo - consciente ou inconsciente - que essa voz e esse novo suporte que ela inventou desapareçam o mais rápido possível: anuncia-se, no Brasil como na Europa, a morte iminente do cordel, que será um tema obsessivo do discurso erudito até hoje.

No sentido das tradições que se fazem e refazem, o folheto de cordel, quando nasce em finais do século XIX no Nordeste, já constitui a terceira fase da tradição poética da oralidade que se refaz a partir da tradição oral inicial dos poetas nômades e através da fase do caderno manuscrito, para chegar a era da imprensa e ter de se reinventar de novo. Terceira tradição e ao mesmo tempo terceira vez que a mesma tradição se refaz e reinventa, como ela se reinventa hoje em dia pela quarta vez com a introdução de novas tecnologias: Internet, Messenger, Skype. De novo, hoje em dia, os poetas dos folhetos conseguem apropriar-se dessas novas tecnologias: fazem agora os seus repentes, as suas cantorias e as suas pelejas virtuais pela Internet; produzem e divulgam seus folhetos na Internet. Mais uma vez, uma tradição se refaz e mostra a imensa vitalidade e dinamismo de uma tradição poética que veio das civilizações da oralidade, se manteve e se mantém, apesar de um discurso acadêmico que já a declarou morta há mais de cem anos.

Referências bibliográficas

  • ANDERSON, Benedict (1983). Imagined communities. Londres: Verso.
  • BURKE, Peter (1978). Popular cultura in early modern Europe. Londres: Temple Smith.
  • CALAFATE, António Eusébio (1901). Tudo e nada: versos pelo cantador de Setúbal. Prefácio de Guerra Junqueiro. Lisboa, s.ed.
  • GOODY, Jack (1977). The domestication of the savage mind. Cambridge: Cambridge University Press.
  • HAVELOCK, Eric (1988). A musa aprende a escrever. Lisboa, Gravida.
  • HOBSBAWM, Eric (1990). Nações e nacionalismo desde 1789: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • LEMAIRE, Ria (2007). “Para o povo ver e ouvir/Pour que les gens voient et entendent - La présence de la voix dans les folhetos de la littérature de cordel brésilienne”. In: PRISMA, CESCM, Poitiers. Tomo XXIII, n. 45-6, p. 123-73.
  • ______ (no prelo). “Pensar o suporte, resgatar o patimônio”. In: MENDES, Simone (org.). Pensar o suporte do cordel. Belo Horizonte: UFMG.
  • RAMALHO, Lourdes (2002). Raízes ibéricas, mouras e judaicas do Nordeste. João Pessoa: Editora Universitária.
  • VANTOURA, Suzanne Haïk (1978). La musique de la Bible révélée: une notation millénaire décryptée. Paris: Dessain et Tolra.
  • ZUMTHOR, Paul (1983). Introduction à la poésie orale. Paris: Seuil.
  • ______ (1987). La lettre et la voix-de la littérature médiévale. Paris: Seuil.
  • 1
    A Bélgica, por exemplo, nasce em 1830, a Itália em 1869 e a Alemanha em 1870.
  • 2
    Nação no sentido original, social e cultural, da palavra: comunidade, região geográfica, língua, cultura, memória e tradição em que a pessoa nasceu e viveu a vida toda e com a qual ela se identifica, base da sua identidade. Como a define o poeta Patativa do Assaré: “a nossa vida, a nossa terra, a nossa gente”. É a Revolução Francesa que dará à palavra o seu sentido político de ¨entidade política constituída pelo povo autônomo”.
  • 3
    O primeiro departamento de história nacional foi fundado na Sorbonne, em Paris, em 1810; o segundo, em 1812, na Universidade de Berlim.
  • 4
    É esse o termo que os teóricos que estudaram a transição da civilização da oralidade para a escrita utilizam para sublinhar que essa transição é lenta e progressiva, não foi uma revolução, como se acredita convencionalmente; a introdução da escrita só iniciou uma evolução secular que, no fundo, até hoje continua.
  • 5
    Contra a longa tradição oficial que traduz a Bíblia nas línguas modernas a partir da tradução grega, chamada Vulgata.
  • 6
    José Leite de Vasconcelos, o famoso etnólogo português de finais do século XIX, fala de “cadernos manuscriptos que passam de mão em mão, e de casa para casa”. Numa entrevista que tive com o poeta José Alves Sobrinho e em que falei desse fenômeno europeu, ele confirmou a existência dos cadernos manuscritos e a prática da sua troca permanente nas casas do Nordeste do século XIX e XX.
  • 7
    Preparo uma edição crítica, a ser publicada em fim de 2010, de duas peças da autora, a saber, A Feira e O trovador encantado, na série Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, Universidade da Corunha, Espanha.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    Maio 2019
  • Aceito
    Maio 2019
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com