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Avaliação escolar: o erro precisa levar ao fracasso?

School assessment: does error need to lead to failure?

Evaluación escolar: ¿el error necesita conducir al fracaso?

Resumo

Este trabalho apresenta resultados de pesquisa, tanto bibliográfica quanto empírica, sobre os efeitos da compreensão do erro na avaliação da aprendizagem e suas consequências nos processos de Ensino-aprendizagem. O objetivo é evidenciar a perspectiva de compreensão da avaliação como parte integrante do processo de aprendizagem, em contraposição à visão tradicional de julgamento e classificação. A pesquisa, realizada em uma escola da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, investigou como gestores, docentes e estudantes significam a avaliação e o erro, buscando compreender os impactos dessas concepções sobre as práticas pedagógicas e o bem-estar dos alunos. Os resultados indicam dificuldades em conciliar a busca por uma perspectiva formativa da avaliação com a tendência de condenar o erro como sinônimo de fracasso escolar.

Avaliação da Aprendizagem; Erro; Ensino-Aprendizagem; Fracasso Escolar; Prática Pedagógica

Abstract

This study presents both bibliographic and empirical research results on the effects of understanding errors in the assessment of learning and its consequences in the teaching-learning processes. The objective is to highlight the perspective of understanding assessment as an integral part of the learning process, as opposed to the traditional view of judgment and classification. The research was carried out in a school in the Municipal Education Network of Rio de Janeiro and investigated how managers, teachers, and students mean evaluation and error, seeking to understand the impacts of these conceptions on pedagogical practices and students’ well-being. The results indicate difficulties in reconciling the search for a formative assessment perspective with the tendency to condemn errors as synonymous with academic failure.

Learning Assessment; Error; Teaching-Learning; School Failure; Pedagogical Practice

Resumen

Este trabajo presenta resultados de investigación, tanto bibliográfica como empírica, sobre los efectos de comprender el error en la evaluación de los aprendizajes y sus consecuencias en los procesos de enseñanza-aprendizaje. Se busca destacar la perspectiva de entender la evaluación como parte integral del proceso de aprendizaje, en contraposición a la visión tradicional de juicio y clasificación. La investigación, realizada en una escuela de la Rede Municipal de Educação do Rio de Janeiro, indagó cómo gestores, docentes y estudiantes significan la evaluación y el error, buscando comprender los impactos de estas concepciones en las prácticas pedagógicas y el bienestar de los estudiantes. Los resultados indican dificultades para conciliar la búsqueda de una perspectiva formativa de la evaluación con la tendencia a condenar el error como sinónimo de fracaso escolar.

Evaluación del Aprendizaje; Error; Enseñanza-Aprendizaje; Fracaso Escolar; Práctica Pedagógica

1 Introdução

A avaliação da aprendizagem, frequentemente associada a notas e classificações, tem sido objeto de diversas pesquisas na área da Educação. Neste artigo, buscamos aprofundar a discussão sobre o papel do erro nesse processo, com foco em suas implicações para a trajetória escolar dos estudantes. O debate proposto resulta de uma pesquisa recente onde pretendeu-se defender a importância da avaliação da aprendizagem na formação dos estudantes e dos professores, compreendendo ambos como aprendentes no processo Ensino-aprendizagem (Freire, 2018). O contexto da pesquisa foram os anos finais do Ensino Fundamental, numa escola municipal do Rio de Janeiro, espaço-tempo escolhido em função da trajetória de uma das autoras/pesquisadora, muito ligada ao Ensino público, no qual se formou e atua como docente. Responderam aos questionários três gestores, cinco docentes e dez estudantes. Com esses últimos também foram realizadas conversas abertas.

O tema emerge de diálogos, observações e ações de/em cotidianos de escolas, da busca por melhor compreensão do quanto a avaliação é importante dentro do processo de escolarização, embora, de modo geral, não seja aproveitada como poderia, por ser usada hegemonicamente numa perspectiva de verificação. Quando pensamos sob a lógica do exame, presente nos processos de avaliação da aprendizagem, pensamos que “nota boa” significa sucesso e “nota ruim” fracasso, essa expectativa interfere nos propósitos educacionais de formação e uso diagnóstico da avaliação, o que nos incita a interrogar o erro e sua percepção na perspectiva de exame/verificação e de avaliação, o que desenvolveremos neste texto. Isso porque entendemos, com Esteban (2013)ESTEBAN, M. T. O que sabe quem erra? Reflexões sobre avaliação e fracasso escolar. Petrópolis: DP et alii, 2013., que mudanças na relação com o erro seriam necessárias para que um modelo mais democrático e pedagogicamente eficiente de avaliação pudesse ser usado.

Apesar da noção de avaliação, academicamente, transcender as lógicas dos exames e das classificações, os processos escolares de avaliação da aprendizagem seguem operando, prioritariamente, como uma atividade de verificação, julgamento e comparação entre alunos, apartando os que acertam e obtêm “sucesso” daqueles que erram e não o conseguem.

A inquietação que deu origem à pesquisa advém de uma vivência que aconteceu com uma das autoras que, aos 30 anos de idade, quando já trabalhava com Educação há mais de 5 anos, acreditava que “muito sabia” a respeito da prática e da vida. Naquele dia, estava confiante, participava da primeira reunião de condomínio do primeiro imóvel que comprou. Sentou-se confortavelmente ao lado dos poderosos vizinhos. Num certo momento, reconheceu a voz de um ex-colega de turma da 4ª série da Escola Municipal onde estudou na década de 1980.

Lembrava-se desse colega, porque ele sempre entregava as provas sem fazer e, quando fazia, tirava notas baixíssimas, inclusive zeros, o que era um destaque naquela escola que tinha professores e estudantes muito bons. Sua personalidade era marcante. Além de notas baixas, brigava e tinha comportamento impróprio ao ambiente escolar, e acabou sendo reprovado e saiu da escola. Daí o assombro quando olhou para trás e confirmou que era ele! Do alto da “sabedoria” que acreditava ter, era incompreensível que aquele colega estivesse ali como proprietário do imóvel semelhante ao dela – uma estudante considerada boa, aplicada.

O imóvel não era barato, comprei de fundos, no 2º andar que era mais em conta. Meu apartamento estava financiado em muitos anos para pagar com o meu trabalho e do meu marido. O que fazia ali o “Vicente” (vou chamá-lo assim), afinal? E ele mesmo me respondeu em sua apresentação na reunião: “Me chamo Vicente e sou o proprietário da cobertura”.

O Vicente naquele momento já era empresário, tinha uma família linda, mulher professora, era um trabalhador honesto que ajudava mãe e irmãos. Esse acontecimento gerou muitos questionamentos, inclusive sobre o quanto o sistema foi duro com ele e do quanto seu potencial foi subestimado ou incompreendido por quem deveria descobri-lo e valorizá-lo. Ela, que acreditava no poder do conhecimento que transforma vidas, não encontrou sentido no que presenciava, já que a escola era, para ela, a fonte desse conhecimento. O impacto do evento, e sua importância para a escolha do tema da pesquisa de mestrado1 1 A pesquisa de mestrado referida está na origem deste artigo (Ferreira, 2022). , segue perceptível na continuidade da narrativa.

“Claro que não queria mal ao Vicente!”. O fato era que nós morávamos em uma zona da cidade do Rio de Janeiro muito violenta, perigo para jovens que se desviavam. A escola era, para nós, além de fonte de conhecimento, um porto seguro. Com isso, senti uma imensa alegria ao ver que ele sobreviveu e perceber, dentro de mim, velhas crenças se diluindo por aquela história que me enchia de esperança nas pessoas.

Disso emergiu uma interrogação, como um “caminho sem volta”. “Não parei desde então de pensar: quantos Vicentes deixamos para trás, desacreditados e considerados incapazes simplesmente porque não tiram notas boas?”. De que modo a concepção de exame/verificação se sobrepõe à de avaliação concebida como processo de formação e é usada para apartar alunos, excluindo os tidos como fracos?

Ao formularmos este artigo, decidimos aprofundar a discussão sobre o erro e seu papel na avaliação e na escolarização, bem como na trajetória de estudantes e docentes, entendendo-o como parte do processo de aprendizagem e não como falha definitiva, a partir da discussão proposta por Esteban (2003)ESTEBAN, M. T. Dilemas para uma pesquisadora com o cotidiano. In: GARCIA, R. L. (org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 199-212., que defende a noção de que, aqueles que erram, possuem saberes, e que caberia examiná-los, antes de condenar o erro e seu autor, emergindo como grande vilão na condenação e exclusão de estudantes em virtude dos resultados nos exames. É o foco do fracasso e, para nós, do desperdício de potencial de Vicentes, em diferentes contextos escolares.

Repensar esse vilão soa indispensável! E para tal, discutimos a complexidade da questão, buscando a compreensão de suas várias faces: seu papel na exclusão escolar e social e outras possibilidades de percebê-lo e ao seu potencial na Educação. Queremos evitar que a concepção simplista que opõe erro e acerto, usando-os como padrão de julgamento e de classificação, desconsiderando a dinamicidade de ambos, já que a própria noção de aprendizagem como processo exige refletir sobre o tema assumindo essas características.

2 Avaliação da aprendizagem na escola

[...] Nunca tentado. Nunca falhado. Não importa. Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor

(Pra frente o pior, Companhia e outros textos. p. 65. Becket).

O conceito de erro que nos leva a pensar em algo definitivo emerge do pensamento moderno e de uma concepção de saber que só considera o sim ou não, negligenciando possibilidades inerentes ao fato da construção de conhecimentos e da aprendizagem serem processos, e as diferentes percepções possíveis de algo que é processual. Um erro médico algumas vezes é fatal, um erro técnico pode causar um desastre, um erro de cálculo pode derrubar uma edificação, ou seja, errar é, em algumas circunstâncias, muito perigoso. Porém, quando falamos em processo de escolarização, faz sentido tratar o erro da mesma forma? Não seria reduzir todo um processo a um resultado circunstancial, parcial, momentâneo? (Garcia, 2008GARCIA, R. L. A avaliação e suas implicações no fracasso/sucesso. In: ESTEBAN, M. T. (org.). Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Petrópolis: DP et Alii, 2008., p. 29).

O debate acadêmico em torno da temática da avaliação da aprendizagem é crescentemente rico e amplo, com concepções plurais e fundamentadas em diferentes compreensões da própria função da escola, seus objetivos e, consequentemente, do que é e de que objetivos possuiria a avaliação da aprendizagem. Refletir sobre os currículos e a avaliação, uma vez que os consideramos indissociáveis (Oliveira, 2016OLIVEIRA, I. B. Currículo como criação cotidiana. Petrópolis: DP et alii, 2016.), exige compreender a existência dessa articulação e, com base nela, identificar aquilo que diferentes processos e procedimentos de avaliação têm a ver com modelos de currículo, de escola e de sociedade e seus valores subjacentes.

Embora muitas sejam essas concepções, é patente a hegemonia da avaliação chamada somativa, associada ao modelo tradicional de escola, voltada à aprendizagem estrita dos conteúdos transmitidos verticalmente, produzidos fora da escola e a serem reproduzidos por docentes e alunos. Esta é a concepção conservadora e hegemônica de escola, de conhecimento e, consequentemente, de avaliação. Nela, a função da escola é promover a aprendizagem desses conteúdos, e o processo de avaliação deve se limitar à verificação da eficácia do modelo, corrigindo-se inputs quando necessário à melhoria dos outputs, sem que os processos internos de usos dos primeiros mereçam atenção (Oliveira, 2016OLIVEIRA, I. B. Currículo como criação cotidiana. Petrópolis: DP et alii, 2016.).

Além de hegemônica socialmente, essa perspectiva segue onipresente em políticas públicas de currículo e de avaliação, inclusive as mais recentes, produzindo injustiça curricular (e avaliativa) (Ponce; Araujo, 2019PONCE, B.; ARAUJO, W. A justiça curricular em tempos de implementação da BNCC e de desprezo pelo PNE (2014-2024). Revista E-curriculum, São Paulo, v. 17, n. 3, p. 1045-1074, jul./set. 2019.). Ou seja, a riqueza da produção acadêmica no campo pouco se faz acompanhar de medidas efetivas e mudança nas propostas oficiais, com consequências sobre os cotidianos das escolas e os estudantes.

Desse modo, com a finalidade de expressar essa riqueza do debate já existente sobre avaliação, e de compreender os modos como, mesmo timidamente, algumas mudanças ocorrem em diferentes cotidianos, neste artigo são analisadas falas de alunos, professores e equipe de gestão da escola pesquisada e suas contribuições para a reflexão e o debate propostos. Entendemos que a pesquisa permitiu captar nessas narrativas, práticas e compreensões não tradicionais de avaliação, mesmo que imbricadas às conservadoras.

Autores que abordam o tema da avaliação e do erro, alguns clássicos e outros mais recentes, ajudam a compreender melhor os debates atuais, para além dos princípios e concepções conservadores próprias do modelo hegemônico de escola e, com isso, contribuem para a análise do material empírico da pesquisa. O objetivo é compreender percepções sobre o erro no processo educacional, focalizando sua presença no processo avaliativo e os riscos de sua transformação em fator de fracasso e exclusão. Por outro lado, nessa busca de compreensão, o apresentaremos, também, como potência, quando os julgamentos e ranqueamentos convertem-se em um olhar para os conhecimentos nele presentes, como propõe Esteban (2003ESTEBAN, M. T. Dilemas para uma pesquisadora com o cotidiano. In: GARCIA, R. L. (org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 199-212., p. 8), defendendo uma outra relação com o erro, com base na noção de tessitura de conhecimentos em rede, própria de cada sujeito e não padronizável (Alves, 2019ALVES, N. Tessituras de saberes: docência e pedagogia em educação presencial e a distância. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2019.).

Se o que se pretende é considerar os conhecimentos dos alunos como redes tecidas através de processos de aprendizagem singulares, múltiplos e imprevisíveis, na medida em que cada aluno incorpora as novas informações às suas próprias redes de modo diferente dos demais, é necessário que se procure desenvolver formas e instrumentos de avaliação compatíveis com essa pluralidade de pessoas, de saberes e de processos de aprendizagem.

Para adensar a discussão, a reflexão de Garcia (2008GARCIA, R. L. A avaliação e suas implicações no fracasso/sucesso. In: ESTEBAN, M. T. (org.). Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Petrópolis: DP et Alii, 2008., p. 28) abordando historicamente diferentes compreensões de conhecimento, a partir de Comenius e La Salle, aponta os seguidores de Comenius como os que se preocupam em melhor “compreender o compreender”, ou seja, o cotidiano dos processos Ensino/aprendizagem em sua complexidade, enquanto os seguidores de La Salle entendem a avaliação/exame como supervisão/controle das aprendizagens, onde o importante é aferir resultados. Tornam-se especialistas em testes de mensuração e, com isso, reduzem um processo complexo a uma perspectiva na qual um sujeito ensina e o outro aprende ou não. E isso se expressa nos resultados dos exames.

A autora conclui que o sistema de avaliação instituído no Brasil segue o modelo proposto por La Salle, o que não nos surpreende, considerando o quanto todo o modelo de escola hegemônico caminha nessa direção, em um roteiro que leva à competição, à classificação e à exclusão, comprometendo as chances de sucesso daqueles que erram mais e tiram notas baixas. Ela propõe, ainda, que, a partir de práticas cotidianas fundamentadas na realidade local, é possível elaborar estratégias pedagógicas válidas, em que o ambiente seja favorável ao (à) aluno(a) e aos seus processos próprios de aprendizagem.

Ao classificar os estudantes, usando como critério as notas que obtêm, abrem-se portas para a exclusão dos mais “fracos” – aqueles com piores notas – que, ao não alcançarem os padrões almejados são desmoralizados, considerados fracassados, maus aprendizes, num processo de culpabilização das vítimas de um sistema que não busca “compreender o compreender” desses alunos, relegando-os ao papel de coadjuvantes de uma escola que segue sem eles, ao selecionar os “bons” em função das notas obtidas em exames e excluir os considerados ruins.

Na contramão desse sistema, Garcia entende que a avaliação pode desempenhar um papel fundamental de ouvir as vozes dos sujeitos e grupos sociais historicamente silenciados, reconhecendo-os como sujeitos de conhecimento. A valorização dos saberes expressos nos chamados erros remete em questão a lógica hegemônica do exame, da oposição simplista e dual entre erro e acerto e da classificação. Pelo diálogo com os “erros” e busca de compreensão das lógicas e compreensões de mundo neles subjacentes, é possível revelar, desinvisibilizar a coexistência de diferentes lógicas presentes na sociedade e, por conseguinte, na escola (Garcia, 2008, p. 32).

O reconhecimento da complexidade e do dinamismo dos processos de aprendizagem leva a entender o erro como parte integrante do processo pois não se passa da ignorância ao saber como um saltar de vala de um lado para o outro (Pinto, 2019PINTO, J. Avaliação formativa. In: ORTIGÃO, M., et al. (coords.). Avaliar para aprender no Brasil e em Portugal: perspectivas teóricas, práticas e de desenvolvimento. Curitiba: CRV Editores, 2019. p. 19-45., p. 3) e não há um só tipo de saber nem de ignorância (Freire, 2017FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.). Assim, é importante perceber que a concepção moderna hegemônica de conhecimento nos legou uma compreensão de verdade única, cientificamente construída, que termina por desconsiderar nuances e possibilidades de diferentes modos de conhecer (Santos, 2019SANTOS, B. S. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.), e se reflete sobre o modelo de escola, de currículo e avaliação escolar, que, na esteira dessa noção de verdade única, atua na perspectiva da oposição certo x errado como algo definitivo e estático, a ser aprendido e repetido sem que o sujeito que aprende reflita ou questione o saber único e definitivo que aprende na escola.

Relacionando a noção de formação para o pensamento crítico com a avaliação escolar, Hooks (2020HOOKS, B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020., p. 35) ressalta que a maioria dos estudantes resiste a essa formação, mostrando-se mais à vontade com o aprendizado que lhes permite permanecer passivos, evitando os riscos do erro e da autenticidade que foge aos padrões e traz riscos de não aceitação, da exclusão. A autora busca animar estudantes a não desistir, entendendo que quando o estudante desenvolve esse pensamento, a experiência é verdadeiramente recompensadora, para ele e seus professores e chama a atenção, ainda, para a necessidade de os professores darem o exemplo, mostrarem que seu pensamento está em ação, e que os conhecimentos estão em constante mudança.

Manter a mente aberta é uma exigência essencial do pensamento crítico. Com frequência, falo de abertura radical, porque ficou nítido para mim, depois de anos em espaços acadêmicos, que é fácil demais se apegar a um ponto de vista e protegê-lo, descartando outras perspectivas (Hooks, 2020HOOKS, B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020., p. 35).

Qual seria esse papel essencial ao qual se refere a autora? Ela mesma explica que, quando professores e estudantes reconhecem que são responsáveis por criar juntos uma comunidade de aprendizagem, o aprendizado atinge o máximo de sentido. Em uma comunidade de aprendizagem assim, não há fracasso e, nessa perspectiva, o erro faz parte do processo, que é coletivo e compartilhado. A criticidade depende, portanto, da construção de outra relação com o erro, que não seja a de condenação. Exercer a criticidade exige que não haja um certo já imposto a priori, e o reconhecimento de que a reflexão intelectual exige aceitar o risco do erro como inerente ao processo de construção do conhecimento (Oliveira, Pacheco, 2006).

É, também, uma necessidade crescente na atualidade, em função dos inúmeros desafios e problemas que habitam nossa sociedade. As múltiplas influências recebidas de um mundo cuja pluralidade salta crescentemente aos olhos são um risco maior para aqueles que não desenvolverem o pensamento crítico, que não estiverem preparados para interrogar as mensagens que chegam e atribuir sentidos coerentes a elas. Como preparar os jovens para se defenderem de tantas informações que os atingem o tempo todo, para a enorme possibilidade de escolhas, para adaptar-se às mais diferentes situações que possam ser impostas pela vida? E de que modo uma avaliação mais crítica e menos formalista pode contribuir com essa formação?

Em outra pesquisa recentemente publicada, Fernandes e Gomes (2020)FERNANDES, A. O; GOMES, S. S. Entre o discurso e a prática docente: interfaces do Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar (PAAE). Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Edcuação, Rio de Janeiro, v. 28, n. 107, p. 386-406, abr./jun. 2020. https://doi.org/10.1590/S0104-40362020002801613
https://doi.org/10.1590/S0104-4036202000...
analisam a implementação do Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar (Paae) na Rede Pública Estadual de Ensino de Minas Gerais, entre 2005 e 2016, que possuía objetivos de mudança em relação ao papel hegemônico da avaliação, investindo em uma avaliação formativa. As autoras concluem que “os dados da pesquisa evidenciam um descompasso entre as intenções do programa e as práticas de avaliação nas escolas” (p. 597). Apontam que, para os docentes envolvidos, o Programa não produz o que pretende: assumir a função de avaliação formativa, mantendo-se mais efetivamente na perspectiva atualmente hegemônica, da avaliação como verificação.

As autoras (2020) prosseguem no texto propondo um debate sobre o caráter múltiplo das concepções de avaliação formativa, aquela que poderia se utilizar do erro como elemento de valorização do processo e não como resultado final,

Na visão de Gomes (2014), esse conceito demanda o reconhecimento da avaliação interna realizada pelo professor no âmbito da sala de aula, a partir das lacunas no desenvolvimento dos alunos. Em Luckesi (2011), a avaliação formativa tem função diagnóstica, pois constitui-se num momento dialético do processo de avançar o desenvolvimento da ação, do crescimento para a autonomia e do crescimento para a competência. (...) Coerente com essa perspectiva, Afonso (2009) e Fernandes (2006) destacaram a complexidade do conceito de avaliação formativa, que não se limita à intenção de alcançar o sucesso por meio de testes padronizados, ou à discussão de gestão de aprendizagens a partir de matrizes curriculares prescritas, elaboradas fora do contexto escolar, conforme ocorre com o Paae (Fernandes, Gomes, 2020, p. 597).

Apontam, finalmente, que os professores participantes da pesquisa que analisam “não têm se apropriado dos resultados das avaliações para o planejamento das atividades docentes”, limitando-se a registrá-los. Com isso, concluem que nas salas de aula estudadas, ainda predomina o modelo tradicional de avaliação “representado pela valorização dos resultados da aprendizagem em detrimento do processo de Ensino-aprendizagem” (p. 597), e em acordo com as políticas educacionais atuais, que assumem a perspectiva de exame e verificação como padrão para a avaliação da aprendizagem.

Avançando no debate, Braga e Miranda (2023BRAGA, D. S.; MIRANDA, C. C. Escolas invisibilizadas: desigualdades nas condições de oferta e limites dos instrumentos de políticas públicas. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Edcuação, Rio de Janeiro, v. 31, n. 120, p. 1-22, jul./set. 2023. https://doi.org/10.1590/S0104-40362023003103515
https://doi.org/10.1590/S0104-4036202300...
, p. 16) expressam com precisão o que se percebe hoje em dia nas políticas de avaliação, nacionais e internacionais, ao analisarem o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e algumas de suas lacunas.

A Educação tem sido, cada vez mais, pensada a partir de avaliações dos seus sistemas. Portanto, o Saeb, como instrumento, produz lógicas próprias de articulação entre os diversos atores educacionais, construindo uma noção de qualidade baseada em resultados nos testes padronizados, aferidos, difundidos e, publicamente, controlados por índices estatísticos. Todas as demais políticas, a partir de então, são orientadas e balizadas pelas repercussões que podem (ou poderão) incidir nos resultados do índice.

Na contramão dessas políticas, defendemos, com Esteban (2003ESTEBAN, M. T. Dilemas para uma pesquisadora com o cotidiano. In: GARCIA, R. L. (org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 199-212.; 2013) uma avaliação inserida em um processo democrático, imersa em uma pedagogia da inclusão, numa substituição da lógica que se baseia na homogeneidade inexistente, idealizada no modelo hegemônico, pela lógica da heterogeneidade real. Como alcançar esse objetivo na política do “certo x errado”? É possível trabalhar com a lógica da heterogeneidade sem disposição para compreender “o que sabe quem erra”, (Esteban 2003ESTEBAN, M. T. Dilemas para uma pesquisadora com o cotidiano. In: GARCIA, R. L. (org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 199-212.)? A negação da legitimidade de conhecimentos e modos de estar no mundo não hegemônicos, silenciados, portanto, na maior parte dos currículos e das avaliações acaba por resultar em um grande desperdício de potencial humano, já que é a avaliação da aprendizagem que condiciona a prática educativa, e é agravada pela política de avaliações de larga escala, que promove, simultaneamente, uma homogeneização curricular e a produção de instrumentos de avaliação padronizados e esvaziados de sentido. Quando só se estuda para “se dar bem nas provas”, para “passar de ano”, perde-se o prazer de aprender, os espaços da criatividade, da coletividade, da transformação, e da criticidade, tão necessários à formação dos sujeitos.

3 Na escola

A dimensão empírica da pesquisa foi realizada em um período de três meses. O acompanhamento compreendeu os momentos antes, durante e depois da realização de provas, instrumento utilizado na escola para a avaliação da aprendizagem. Nas falas dos alunos, emergem tensão, medo, falta de credibilidade no instrumento e baixa autoestima de muitos em função dos resultados. Foi visível que o processo já era conhecido, e foi notório que pouca coisa mudou na avaliação escolar, apesar das preocupações com a mudança explicitadas por docentes e gestores. Percebemos professores se movimentando com propostas interessantes e diferentes do padrão, mas o clima gerado é o mesmo; a forma como se usa o instrumento de avaliação ainda não modifica a percepção do processo pelos estudantes, que seguem com sentimentos negativos em relação às avaliações.

O problema parece estar muito além do formato do instrumento, chegando à forma como o avaliador cria ou segue os objetivos a serem atingidos e, por conseguinte, como compreende e vivencia o processo, buscando mudanças ao mesmo tempo em que não se serve da avaliação como parte da formação integral dos educandos, conforme denuncia Freire (2018, p. 113).

A desconsideração total pela formação integral do ser humano e sua redução a puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo, à qual falta, por isso mesmo, a intenção de sua democratização no falar com.

Além dessa passagem importante, que demonstra os riscos de uma Educação mecanicista, conteudista e focada na filosofia do exame, Freire (2018) aborda o quanto é importante compreendermos, como professores, a necessidade de uma reflexão crítica permanente sobre a prática, e anima a pensar sobre a possibilidade de o educando participar da criação da avaliação, entendendo que esta seria uma forma de respeitar a dignidade do educando, oferecer-lhe protagonismo, valorizar suas tentativas, desenvolver a autonomia e reconhecer sua identidade em processo. Onde “processo” é a palavra-chave, como julgar e considerar definitivo o erro de estudantes em uma avaliação somativa? Ao contrário disso, é possível perguntar: o que o erro cometido diz sobre o seu autor e seus conhecimentos?

A falta de flexibilidade na abordagem do erro, que bloqueia a compreensão da perspectiva processual da aprendizagem, além de criar uma relação vertical e silenciadora, pode colocar um ponto final no diálogo permanente que deve existir entre professor e aluno. Para esse caso, Freire (2018, p. 58) comenta:

[...] o professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha no seu lugar” ao mais tênue sinal de rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à sua liberdade, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios éticos na nossa existência.

Freire (2018) afirma ainda que, onde há vida, há inacabamento, e que aprender criticamente e, com isso, desenvolver a criticidade, é possível sem que o professor abra mão da rigorosidade metódica, o que não tem nada a ver com o discurso “bancário”, mas sim com a presença de educadores e educandos criadores, investigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes (p. 28). São muitos os caminhos possíveis. É importante pensar nos que são válidos e avançar por eles, conscientes de que não há um modelo a ser seguido e que o movimento da busca pode trazer muitos benefícios na busca por uma Educação mais humanizada e progressista.

Efetivamente, na escola pesquisada, foram vivenciados momentos muito ricos de partilha, sobretudo na sala dos professores, apesar de apenas metade dos docentes terem aceitado preencher o questionário ou participar da conversa, provável produto do histórico com pesquisas que responsabilizam e criticam docentes em relação ao seu trabalho com base em idealizações em torno de um modelo de escola que nunca correspondeu a escolas reais (Oliveira, 2020OLIVEIRA, I. B. Conhecimento e democracia: possibilidades emancipatórias em contextos educacionais, sociais, políticos e epistêmicos plurais In: CRUZ, G. B.; FERNANDES, C.; FONTOURA, H. A.; MESQUITA, S. (Orgs.). Didática(s) entre diálogos, insurgências e políticas. Petrópolis: DP et Alii, 2020. p. 362-380.).

Alunos e alunas participaram, por três semanas, das rodas de conversa e do preenchimento dos questionários. Eles e elas demonstraram muito interesse, mas a entrega da documentação de autorização e responsabilidade pela pesquisa trouxe dificuldades, em função de os participantes serem menores de idade. Ao todo, onze alunos e alunas contribuíram com respostas aos questionários e participação na conversa sobre avaliação. A escola está localizada na zona sul do Rio de Janeiro, área nobre do município e o critério dessa escolha foi o de ser uma escola que estivesse em pleno funcionamento, sem intercorrências de violência ou outros efeitos externos que poderiam implicar no processo educativo. Conforme planejado, realizamos conversas, fizemos perguntas de resposta livre e aplicamos questionários com perguntas objetivas, com opção NRA a ser justificada. Havia também, duas questões abertas, abordando questões do cotidiano escolar e da avaliação. Como optamos pela discussão da questão do erro, fizemos um recorte dos resultados obtidos, considerando para este artigo apenas a análise das respostas que se referiam à questão dos erros dos alunos nas avaliações da aprendizagem.

4 Gestores e professores pensando a avaliação

Primeiramente, o questionário aplicado ao grupo de gestores se referia à contestação de resultados pelos alunos, um importante exercício quando a avaliação é encarada como um instrumento de diálogo e exercício de criticidade. Nas respostas, percebemos diversidade nas opiniões. Dois dos três gestores evidenciaram consciência da importância do desenvolvimento do espírito crítico dos alunos. Um deles acredita que a não contestação repousa sobre a aceitação das regras e dos resultados, sem suspeitar dos problemas inerentes a essa crença. Entendemos que o estímulo dessa criticidade contribui para o crescimento de todos e que o diálogo entre professores e alunos sobre o processo Ensino-aprendizagem e a avaliação está no cerne dessa possibilidade.

Quando perguntados sobre a função da avaliação (“Para que serve a avaliação?”), eles responderam: 1) Feedback da comunidade escolar, para o crescimento do aluno, é um momento de reflexão sobre o processo de Ensino e aprendizagem e que ela 2) serve para avaliar o processo de Ensino e aprendizagem. Outra pergunta foi: “Você acredita que a avaliação colabora para melhorias na prática dos professores e no desenvolvimento dos estudantes?”. Eles responderam: 1) Pela minha prática escolar, sim. Totalmente. 2) Sim, acho fundamental. E 3) Na minha opinião, a avaliação não pode ser punitiva; ela deve ter o intuito de diagnosticar a aprendizagem dos alunos.

Os gestores demonstram uma visão interessante sobre o diálogo a ser provocado no momento da avaliação. Porém, fica evidente também a dissonância entre duas visões mais progressistas e uma mais conservadora, que chama de diagnóstico aquilo que é verificação. No entanto, mesmo nessa última perspectiva, não há percepção da avaliação como mero julgamento.

O grupo de professores que participou da pesquisa tinha boa formação e se mostrou interessado em compartilhar suas vivências com a avaliação. Quando perguntados sobre o preparo da avaliação, foi possível perceber nas respostas a consciência da importância do diálogo entre instrumento e processo Ensino-aprendizagem, com uma voz dissonante, mais focada na função tradicional da avaliação, de verificação. Sobre o que preparavam para as avaliações, a maioria dos professores afirmou priorizar sua liberdade na escolha do tipo de instrumento que usavam. Emergiu também uma preocupação em relação às avaliações de larga escala, por sua importância na aferição de dados para os índices de alunos e da escola, ou para o acesso a outras unidades de Ensino, e a impossibilidade de seu uso em perspectiva dialógica, uma vez que o sistema de ranqueamento pressuposto pelas avaliações de larga escala é uma ameaça à busca por instrumentos e processos avaliativos que valorizem os processos de Ensino-aprendizagem, o desenvolvimento da criticidade e a provisoriedade dos resultados.

Quando perguntados sobre o que percebiam nas notas dos alunos, as respostas evidenciaram a pluralidade de percepções no grupo. Alguns apontaram que o professor é, entre outras coisas, um investigador. Outros, que não encontraram nas opções fornecidas uma resposta satisfatória, trouxeram suas opiniões. Um deles entende que “a nota é uma questão do aluno e só”. Outro, busca “investigar cada caso, dependendo do grupo”. E ainda: “não vejo a nota como parâmetro para identificar o potencial do aluno”.

Apesar de visões distintas, a maioria dos professores identifica a nota como produto do processo Ensino-aprendizagem. Numa cultura onde os desempenhos são tidos como primordiais, é fácil que sua medida se torne o principal propósito da avaliação, pois aparece como garantia de qualidade (Pinto, 2019PINTO, J. Avaliação formativa. In: ORTIGÃO, M., et al. (coords.). Avaliar para aprender no Brasil e em Portugal: perspectivas teóricas, práticas e de desenvolvimento. Curitiba: CRV Editores, 2019. p. 19-45., p. 1).

Ainda sobre a construção da avaliação, a preocupação com o contexto aparece entre os docentes, que dizem buscar a adequação do instrumento a cada momento. E quase a mesma quantidade de professores acredita na importância da diversificação dos instrumentos de avaliação. Nenhum afirmou trabalhar com modelos fechados e sistematizados dentro de sua disciplina, apesar do que dizem os alunos e do fato de que os instrumentos não fogem à função de informar o que o aluno sabe daquilo que lhe foi ensinado. O feedback dos professores para os alunos é baixo ou inexistente, conforme se percebe nas respostas seguintes, sobre a correção das avaliações, seria um momento importante do ato de avaliar dialogicamente. Há ainda aqueles que separam os que sabem dos que não sabem, evidenciando uma visão conservadora do papel da avaliação. Esteban (2013ESTEBAN, M. T. O que sabe quem erra? Reflexões sobre avaliação e fracasso escolar. Petrópolis: DP et alii, 2013., p. 165) elenca ações que podem transformar a avaliação de uma prática de classificação em um processo de investigação:

A análise da prática pedagógica assinala que classificar as respostas dos/as alunos/as em erros ou acertos não basta. [...] A avaliação impregnada da ideia de investigação constitui uma alternativa: o que significa a resposta do/a aluno/a? Que informações pode dar ao/à professor/a sobre seu processo de aprendizagem/desenvolvimento? Quais conhecimentos estão presentes na resposta? Há diferenças entre a sua produção individual e coletiva? Que conhecimentos demonstra? Que conhecimentos estão sendo esboçados? Que tipo de ação deve ter o/a professor/a para auxiliar a aprendizagem?

A autora reitera que a avaliação como processo de classificação está presa à homogeneidade. Como prática de investigação, abre espaço para a heterogeneidade, o múltiplo, o desconhecido. Ainda acrescenta que, assim, as respostas predeterminadas cedem lugar a respostas em constante construção e reconstrução. Essa ideia é libertadora para professores e alunos e imprime o necessário caráter processual à avaliação.

Em outra questão, que indagava a forma de correção, a maioria dos professores respondeu que se sente satisfeita com o instrumento que usa porque valoriza os saberes dos estudantes e fornece dados importantes sobre eles e sobre a prática. Aparece também a escolha pela não atribuição de importância aos dados das avaliações e preocupações com a aferição de resultados com o intuito de “medir” o conhecimento (Esteban, 2013ESTEBAN, M. T. O que sabe quem erra? Reflexões sobre avaliação e fracasso escolar. Petrópolis: DP et alii, 2013.). A pluralidade de percepções ressurge nessas falas e leva a refletir sobre a coerência entre discursos e práticas, sem permitir conclusões, mas buscando ampliar a compreensão desses discursos. Sobre o “depois” das avaliações, encontra-se unanimidade na resposta: todos expressam que o dia da entrega também é um dia de autoavaliação. Essa resposta permite identificar coerência com a percepção de um dos gestores, que reconhece o processo de avaliação da escola como “em transição” em direção a um uso mais edificante.

Ou seja, a avaliação da aprendizagem está viva na unidade. Além de estar em pauta na comunidade educativa e em seus documentos, seus professores, em geral, estão participando da busca pelo abandono de modelos tradicionais e incorporando a avaliação da aprendizagem como processual e permanente.

5 Conversando com alunos e alunas

Há um abismo entre a intencionalidade inovadora e a realidade conservadora, essa foi a nossa dura percepção. As falas revelaram o descompasso entre o que esperam de um sistema de avaliação e o que de fato ocorre no cotidiano escolar. Afirmaram que os instrumentos utilizados não são capazes de “medir” a aprendizagem; segundo eles e elas só servem para causar tensão, evidenciando uma compreensão de que a avaliação é usada como verificação. Eles pedem mudanças, querem entender o processo e participar dele, exercer seu protagonismo.

Nas reuniões para preencher o questionário, muitas revelações e curiosidades ganharam voz. Quando perguntados o que pensam sobre provas e testes, prevaleceu a resposta: “Já sei que vou me dar mal”. A segunda opção na mesma pergunta foi: “Chegou a hora de saber o que vai bem e o que vai mal”. A percepção majoritária dos alunos não parece ser a de quem está participando de um processo dialógico, de aproximação entre professor e aluno, tampouco da compreensão da heterogeneidade do grupo e da especificidade da aprendizagem de cada um deles. Para a opção NRA, tivemos duas justificativas: 1) Fico tenso. 2) Fico preocupado, principalmente se for de História. Eu entendo que os professores querem saber se aprendemos, mas acho que a nota nos deixa apreensivos. Acho que os professores devem se adaptar conforme os alunos. Se os alunos tirarem nota baixa em uma avaliação, quer dizer que ainda estão em aprendizado, e está tudo bem. Acho mais importante aprender do que ser aprovado. Explicita-se, assim, uma forte consciência da função da escola em suas vidas.

Esteban (2008)ESTEBAN, M. T. A avaliação no cotidiano escolar. In: ESTEBAN, M. T. (org.). Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Petrópolis: DP et Alii, 2008. explica essa visão deles e delas ao afirmar que o tipo de avaliação relatada “impede a expressão de determinadas vozes, sendo uma prática de exclusão na medida em que vai selecionando o que pode ser aceito na escola”. E segue sinalizando que, com isso, se perde a riqueza da diversidade de caminhos encontrados pelos alunos em busca da aprendizagem, da sua forma de aprender, da sua autonomia. A solução estaria no que a autora chama de construção de uma avaliação democrática, perspectiva que implica numa mudança radical na lógica que conduz as práticas de avaliação vigentes.

Na pergunta: “Como seria a escola sem a prova?”, percebemos um sinal de como os alunos a veem: como disciplinadora, como rompimento com a alegria no ambiente escolar. A opção menos escolhida a relacionava à aprendizagem. Dois entrevistados justificaram de modo antagônico suas percepções, um afirmando que “não seria escola” e o outro dizendo que “sem prova a escola continuaria a mesma”. Merece destaque a justificativa de um terceiro aluno: “Sem a pressão desnecessária, cada um poderia melhorar no que faz de melhor, sem determinar quem é ‘burro’ e quem é ‘inteligente”. Este é um sinal de que a avaliação da aprendizagem ainda representa um caminho para discriminação e exclusão.

Sobre como se sentem antes das provas, mais uma vez aparecem nas falas sentimentos negativos como medo, insegurança, ansiedade, entre outros. A opção “normal” foi a menos escolhida, e a opção “sério” não foi eleita por nenhum dos entrevistados, evidenciando uma permanente sobrecarga emocional relacionada à avaliação. Interrogados sobre o momento da prova, a opção mais escolhida foi a que coloca a nota acima de todo o processo. A nota é o principal objetivo da maioria dos alunos e das alunas entrevistados (as) ou seja, o importante é não errar: “Eu consigo fazer, mas tenho medo de errar”. Alguns disseram que se sentem tranquilos e relacionam bem as provas com as aulas; outros optaram pelas respostas: “Nunca sei o que querem que eu saiba”, e um aluno disse: “Não vejo sentido no que é pedido”. A diversidade de ideias sobre avaliação que transitam dentro de uma escola a respeito de seus processos fica aqui patente.

Encontramos muitos traços de uma perspectiva de verificação nas respostas dos alunos e das alunas. Na primeira pergunta aberta, “Para que serve a avaliação?”, obtivemos as respostas: “Para testarmos nosso conhecimento”; “Pra você passar no sistema”; “Para mim, a avaliação serve para ver no que você tem que melhorar”; “Testar o QI”; “Para ver os nossos erros e consertá-los”; “Para melhorar nossos erros”; “Pra gente melhorar a nota”. São percepções pouco animadoras, focadas no binômio erro x acerto, afastando-os do debate sobre o erro como expressão pontual do conhecimento do aluno, que não deveria ser percebido como definitivo. A meta dos alunos é errar menos, corrigir os erros ou apenas fazer o certo, abdicando da aprendizagem crítica, como denuncia Hooks (2020)HOOKS, B. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. São Paulo: Elefante, 2020..

Essa compreensão precária da avaliação da aprendizagem pode causar danos graves, como já discutido neste texto. Alunos e alunas que acreditam que não são capazes de atender ao solicitado pela escola tendem a desenvolver baixa autoestima. A supremacia das notas e a hierarquização dos alunos com base nelas realimentam competições danosas à formação cidadã e geram mal-estar no ambiente escolar, entre outras consequências. O fato é que, nas respostas dos alunos e das alunas, percebe-se que os esforços docentes ainda não surtem efeito na relação dos discentes com a avaliação da aprendizagem, mantendo-se a percepção do erro como definidor de quem eles são, e não como parte do seu processo de aprendizagem.

6 Considerações finais

Este estudo começa relatando como surgiu a pesquisa sobre a avaliação da aprendizagem, destacando a questão do erro nas avaliações e os modos como sua percepção opera nos cotidianos escolares, na formação e na autoestima dos estudantes. Constata a distância entre as intenções inovadoras e os discursos de gestores e docentes em relação às percepções dos estudantes, identificando nisso um problema para a busca de mudanças nos processos avaliativos, sob o peso da compreensão e uso hegemônico dos instrumentos de avaliação das aprendizagens.

Em defesa de sua opção teórica, argumenta-se que o reconhecimento do erro como parte do processo de Ensino-aprendizagem traria benefícios para alunos, professores e para o próprio processo educativo. Sem o medo de julgamentos que os congelem em um momento específico de um saber/não saber que é sempre processual, alunos e professores podem usar os erros a favor de melhores aprendizagens, e não como ponto final de uma trajetória. O erro configura-se, nessa perspectiva, apenas como um momento do processo, algo que o aluno “ainda não sabe”, mas pode vir a saber (Esteban, 2013ESTEBAN, M. T. O que sabe quem erra? Reflexões sobre avaliação e fracasso escolar. Petrópolis: DP et alii, 2013.).

Ressalta-se, finalmente, que escrever um texto sobre como avaliar é bem mais simples do que elaborar instrumentos de avaliação que levem em conta o caráter reticular e processual dos processos de aprendizagem (Oliveira, Pacheco, 2006). Mas, exatamente por ser importante ser capaz de fazê-lo, é necessário encontrar novos instrumentos, fundamentados não apenas nos conteúdos ensinados-aprendidos, mas também na processualidade das aprendizagens e nos objetivos da escolarização.

Fica aqui a proposta de seguir questionando, tentando, experimentando e inovando. Fomentando a discussão sobre a concepção do erro e sendo conscientes de que é tão fundamental conhecer o conhecimento já existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção de conhecimento ainda não existente (Freire, 2018, p. 30), ou outros saberes silenciados, com o objetivo sempre de ampliar as possibilidades de construção do conhecimento por nossos alunos. Fica, portanto, a proposta de seguir...

Referências

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  • 1
    A pesquisa de mestrado referida está na origem deste artigo (Ferreira, 2022FERREIRA, C. M. F. Para que serve a avaliação no ensino fundamental das escolas do município do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em 2022) - Programa de pós-graduação em Educação, Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 2022.).
  • Dados:

    Os dados serão disponibilizados no seguinte endereço: ID persistente do conjunto de dados: DOI: 10.48331/scielodata.NB39BS
  • Financiamentos:

    A segunda autora é bolsista de produtividade em pesquisa 1B do CNPq. Cientista do Nosso Estado Faperj.

Disponibilidade de dados

Os dados serão disponibilizados no seguinte endereço: ID persistente do conjunto de dados: DOI: 10.48331/scielodata.NB39BS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2024
  • Aceito
    30 Ago 2024
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