Resumo
Este artigo discute a possibilidade de uma teoria do capital esportivo a partir dos preceitos do que se pode denominar de um modelo disposicionalista no contexto dos esportes. Busca-se, portanto, elencar alguns aspectos teóricos que informam esse modelo e defendê-lo como um dos contributos da obra de Pierre Bourdieu para as áreas de educação física e ciências do esporte. Nesse sentido, são recuperados alguns elementos fundantes do programa de pesquisa disposicionalista demarcado no campo da sociologia francesa, mais especificamente em obras de Bourdieu e Lahire, para pensar o modo como as disposições esportivas, mais ou menos duradouras, são produzidas relacionalmente ao acúmulo de um capital esportivo. Foram revisitados alguns estudos que analisaram as trajetórias esportivas de atletas de diferentes modalidades e, em seguida, inferiu-se que elas endossam a necessidade de um modelo de socialização no domínio dos esportes que procure expandir a lógica de explicação das trajetórias esportivas que se assenta na herança familiar. Conclui-se a partir do artigo que: está devidamente demarcado um programa disposicionalista nas áreas de educação física e ciências do esporte no Brasil; a noção de “capital esportivo” ajuda a pensar as trajetórias biográficas dentro do campo dos esportes; e a família e a educação física escolar são espaços de socialização esportiva.
Pierre Bourdieu; Habitus; Capital esportivo; Educação física
Abstract
The current study aims at discussing a possible way to make up a sort of dispositionalist model that embodies sport as an unvaluable asset. In light of Pierre Bourdieu´s main ideas, such made up disposionalist model might shade light on the terrain of physical education and sport sciences as well. As such, on the ground of french sociology, whose dispositionalist constructs are in a sense recovered, we intend to single out how sportive dispositions (a somewhat durable achievement) are relational deduced from a cumulative ‘sports capital’. We reviewed some studies attached to distinct athletes and their sportive pathways; their modalities turn out to require an explanation as regard to these sportive pathways beyond uniform parenthood. Takeaways: a properly dispositionalist agenda within Brazilian physical education/sport sciences is offered; the so-called ‘sports capital’ enlarges personal achievements within the field of sports; both family and physical education proceeded in the school contribute to sports socialization.
Pierre Bourdieu; Habitus; Sports capital; Physical education
Introdução
Este artigo se propõe a discutir a possibilidade de uma teoria do capital esportivo a partir dos preceitos do que se pode denominar de um modelo disposicionalista no contexto dos esportes. Ao mesmo tempo, busca discutir alguns dos aspectos teóricos que informam esse modelo e defende-o como um dos contributos da obra de Pierre Bourdieu para as áreas de educação física e ciências do esporte. Por modelo teórico disposicionalista aplicado ao campo esportivo, entende-se aquele que busca explicar, para além do psicologismo, o modo como se produzem e se reproduzem disposições para a ação e comportamentos sociais no âmbito esportivo. Para tal, a teoria do encontro milagroso entre o habitus e o campo formulada por Bourdieu assume um lugar insofismável nessa agenda, afinal permite não só pensar relacionalmente influências e determinantes sociais que estruturam as trajetórias esportivas dos agentes, como também oferece um instrumental analítico que permite transcender às explicações pautadas, ora no determinismo econômico, ora nas motivações conscientes dos atores.
Na esteira dessa reconhecida contribuição teórica, propomos – a partir de um exercício de interlocução crítica, isto é, mediante o emprego da fórmula relacional do “com” e “contra” o autor, encorajada pelo próprio Bourdieu – uma abordagem da dinâmica de formação4 das disposições esportivas de crianças e jovens para além das influências assentes nos processos de socialização familiar. Nesse sentido, o que aqui está em tela é um esforço para recuperar alguns aspectos fundantes do programa de pesquisa disposicionalista de Bourdieu – em diálogo com a literatura acadêmica especializada do campo da educação física brasileira (BRASIL et al., 2020; JANUÁRIO; MORBI; MARQUES, 2019; MARCHI JÚNIOR, 2002; MARQUES; JANUÁRIO, 2018; MARQUES et al., 2018; SOUZA; MARCHI JÚNIOR, 2010, dentre outros) – e, em seguida, estendê-los de forma inventiva para pensar o modo como as disposições esportivas, mais ou menos duradouras, são produzidas relacionalmente ao acúmulo de um capital esportivo.
Nesse percurso, apresentaremos então inicialmente alguns dos fundamentos teóricos do programa disposicionalista que Bourdieu legou às áreas de educação, educação física e ciências do esporte, para imediatamente introduzir alguns dos desenvolvimentos mais recentes – e, talvez mesmo, mais inventivos – imputados a esse modus operandi no sentido de torná-lo mais sensível aos processos de individualização e construção de trajetórias biográficas na contemporaneidade, a saber, aqueles que foram conferidos por Lahire no corpo de sua produção. Importante notar que ambos os autores, em diferentes escalas de mediação que envolvem e combinam análise institucional com investigação empírica da formação de disposições para a ação (NOGUEIRA, 2013; SETTON, 2002, 2011), oferecem contributos teóricos significativos para compreender as relações postas entre herança familiar e as trajetórias de sucesso ou fracasso dos agentes no contexto esportivo.
Em termos de diálogo com a literatura especializada, o que nos aprouve aqui fazer foi revisitar alguns estudos que se propuseram a analisar as trajetórias esportivas de atletas de diferentes modalidades e, na sequência, extrair algumas conclusões que permitissem não só sustentar nossas reflexões, mas também justificar o exercício de aproximação teórica em tela no intuito de defender a possibilidade – e mesmo viabilidade – de um modelo de socialização no domínio dos esportes que procure expandir a lógica de explicação das trajetórias esportivas assente na noção de herança familiar e passe relacionalmente a considerar as múltiplas instâncias formativas na construção das disposições nesse contexto. Ao eleger esse caminho, procuramos não só sugerir uma perspectiva de ampliação do programa disposicionalista bourdieusiano a partir da ideia de socialização plural dos atores, mas também recuperar um modelo de estratificação do capital esportivo em deferência à relativa autonomia deste domínio da atividade humana, tendo como base a própria subdivisão que Bourdieu estabelece para a noção de capital cultural.
Os resultados desse investimento teórico é que estão em pauta neste texto. Para tanto, iremos preliminarmente apresentar alguns conceitos que se situam no centro dos modelos teóricos de Bourdieu e Lahire, dando maior ênfase ao modo como abordaram a lógica de formação de disposições para a ação em sua relação com a dinâmica de socialização familiar. Esse debate, por sua vez, constituirá o pano de fundo da discussão levada a efeito nas seções seguintes do manuscrito. Ambiciona-se aqui, de forma introdutória e ensaística, identificar um modelo de estratificação do capital esportivo que considera e problematiza os prolongamentos das socializações ocorridas no seio familiar, sem, no entanto, se restringir a elas.
Escolarização e socialização familiar em Bourdieu e Lahire
Não há como negar que Bourdieu e Passeron (2014) formularam uma resposta original para a falsa ideia de que a escolarização seria a chave para o sucesso pessoal e crescimento econômico de uma nação. Defendendo que o indivíduo se caracteriza como herdeiro de uma bagagem social familiar a partir da apreensão de determinados tipos de capitais, Bourdieu acreditava que a escola reproduziria códigos (relacionados à estrutura e ao funcionamento do sistema de ensino) que estariam ligados mais a um tipo de capital cultural constituído no seio familiar.
O importante para Bourdieu e Passeron (2014) é a posição social ocupada pelo aluno. Neste sentido, os alunos que se beneficiaram de uma melhor estrutura de distribuição de capitais culturais teriam a possibilidade de se tornarem afortunados no percurso escolar. Bourdieu (2012) argumentava, nos idos dos anos 1960, que o sistema de ensino escolar, ao ter como base os conhecimentos das culturas dominantes, desfavorecia os estudantes das classes populares, menos ambientados a esses códigos culturais em sua socialização familiar. Assim, a trajetória escolar, para o autor, estaria profundamente ligada à herança cultural familiar. Deste modo, os estudantes que partilham da cultura “legítima” (que a escola privilegia) e de maior acesso a bens culturais estão mais dispostos a seguirem, com sucesso, o percurso escolar. Nessa esteira, a noção de arbitrário cultural emerge como decisiva, sobretudo por permitir explicar os mecanismos subjacentes à fabricação da cultura tida como “legítima”. Para Bourdieu, não é plausível falar em culturas a partir da ideia de hierarquização, ou seja, com a pretensão de definir uma cultura como superior (ou melhor) do que outras. Essas afirmações que determinam graus de hierarquização culturais são, então, arbitrárias.
A desigualdade gerada diante desse processo remete, por seu turno, a outra questão importante: os estudantes muitas vezes passam a se culpabilizar pelas suas performances escolares mediante a ideologia do dom, quando, na verdade, o habitus de classe por via do capital cultural é o principal mecanismo orquestrador das trajetórias de sucesso ou insucesso no sistema educacional. Daí a centralidade da noção de capital cultural no empreendimento de Bourdieu. De acordo com o sociólogo francês, o capital cultural se manifesta nos estados incorporado, objetivado e institucionalizado. Para Bourdieu (2012), o estado incorporado é aquele que, como o próprio nome sugere, se traduz como uma moeda inscrita corporalmente. A acumulação desse capital necessita de tempo e de investimento pessoal. Deste modo, o indivíduo acaba somatizando tudo aquilo que, sem o saber, lhe outorga competência e notoriedade. Expressa, assim, o capital cultural no corpo e, na maior parte das vezes, não é cônscio de tal condição.
Por sua vez, o capital cultural em estado objetivado se refere ao uso e posse de bens culturais, a exemplo dos livros, quadros, objetos de valor etc. É a partir destes bens que ele é transmitido. Essa transmissão pode ocorrer tanto no plano econômico (capital econômico) pela simples transmissão do objeto físico, como no plano simbólico. Nesse sentido, ao pensarmos o espaço educacional, podemos dizer que, para possuir um livro, basta que o indivíduo tenha capital econômico, muito embora para se apropriar dele e utilizá-lo de modo específico seja preciso ter, antes, um tipo de capital incorporado. Os dominantes nessa lógica, então, parecem possuir tanto o capital econômico quanto o cultural.
Na sequência, tem-se o capital cultural institucionalizado que se apresenta como a objetivação do capital incorporado por meio dos títulos ou diplomas adquiridos no percurso escolar. Nesse sentido, quanto mais se investe na carreira escolar, mais retorno se tem com o título a ser obtido. Se o capital cultural é institucionalizado, ele é reconhecido e legalizado socialmente. Nesses termos, pode-se dizer que não só o capital cultural é relacional à organização familiar como também que a própria trajetória a ser construída pelas crianças dentro da escola depende de como sua família5 investiu o capital econômico, simbólico e social.
Em relação ao investimento na educação, Bourdieu é enfático ao dizer que cada “classe” deposita suas expectativas na escola de maneira diferente (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009). Os grupos mais populares, por terem menor capital econômico (e social) e por acumularem experiências de fracasso escolar, acabam construindo representações de que investir na escola é algo incerto e caro. Por outro lado, os grupos mais bem localizados na hierarquia social, por possuírem um volume de capital econômico e social suficientemente representativo, investem na escola de maneira desinteressada, uma vez que suas experiências anteriores de sucesso asseguram uma trajetória de riscos mínimos e bem definida no âmbito educacional.
Além disso, para Bourdieu (1998), a classe média de uma maneira geral parece ser a que mais se interessa com o investimento escolar, sobretudo porque possui algum capital econômico (e social), além de levar bastante a sério as experiências anteriores de sucesso no seu meio social que fizeram ascender indivíduos rumo aos estratos mais elitizados. Nesse sentido, a família realiza diversos sacrifícios para que seus filhos consigam prosseguir nos estudos, ou seja, todo investimento (cursos avulsos, professores particulares etc.) se volta para a formação, visando, em última instância, o êxito na trajetória escolar. Sob esse ponto de vista, quanto mais capital cultural familiar herdado, maiores as chances de sucesso escolar.
Na tentativa de matizar essa abordagem à luz dos pressupostos de Lahire (1997, 2002, 2006), cabe primeiramente lembrar que, ao mobilizar a noção de capital cultural e articulá-la as trajetórias de sucesso ou fracasso, Lahire (1997) propõe novas condições de uso para esse tipo de capital, acreditando ser importante pensar em quais situações é acionado. Nesse sentido, ele se pergunta como é possível que, no meio popular, existam sucessos escolares que, até então, eram considerados improváveis. Por meio de pesquisa empírica, ele concluiu que entre a família e a escola há uma estreita relação de interdependência, sendo ambos espaços de socialização semelhantes: a fórmula do sucesso escolar seria uma somatória de fatores combinados entre a família e a escola. Lahire (1997) acredita que é por meio de quatro maneiras que as famílias impactam na escolarização das crianças (para além da leitura e da escrita): 1) disposições econômicas; 2) ordem moral doméstica; 3) tipo de autoridade exercida; e 4) investimento pedagógico familiar.
Em relação às disposições econômicas, Lahire (1997) afirma que uma família estável economicamente, mesmo sem usufruto de bens materiais, oportuniza certa tranquilidade educacional aos seus filhos, colocando-os em uma posição melhor se comparada às famílias que passam por dificuldades financeiras. Para o autor, a ordem moral e autoridade estabelecida no seio das famílias quando relacionadas à obediência, à disciplina e ao respeito diante da autoridade paterna e/ou materna acabam refletindo de maneira positiva na trajetória escolar das crianças, uma vez que a escola também trabalha a partir destes tipos de organização.
Já em relação ao investimento pedagógico, Lahire (1997) é enfático ao afirmar que quando as famílias se empenham para matricular seus filhos nas melhores escolas possíveis, quando valorizam o trabalho realizado por essas instituições e/ou quando disponibilizam seu tempo para auxiliar seus filhos em questões escolares estão, mesmo que subjetivamente, criando estratégias de favorecimento ao sucesso escolar de suas crianças.
Vale destacar que as configurações familiares, para Lahire (1997), são heterogêneas. Ou seja, as famílias são diferentes pelas suas diversas aquisições de capitais, mas também dentro de uma única família há heterogeneidades que podem envolver questões como os diferentes níveis de escolaridade dos seus membros e as definições (ou não) dos papéis assumidos pelos parentes (próximos ou distantes) no que tange à socialização da criança.
Em síntese, pode-se dizer que se, para Bourdieu, a família funciona como epicentro da transmissão da cultura de classe por via do habitus primário, em Lahire, por seu turno, a pergunta sociológica às trajetórias de sucesso/insucesso dos atores, ao ser elaborada em escala individual, preconiza que no seio da família em que os indivíduos nascem e crescem há diversos arranjos heterogêneos que impactam em várias formas de socializações primárias. De qualquer modo, para ambos os autores, o arranjo familiar é decisivo na construção das trajetórias de crianças e adolescentes nos espaços escolares e, portanto, no modo como acessam e constroem experiências no mundo social. Considerando a força dessa abordagem disposicionalista e, ao mesmo tempo, reconhecendo a importância de não pensar a socialização esportiva como se fosse tão somente coextensiva a essas dinâmicas, discorreremos sobre um potencial modelo de socialização de crianças e adolescentes no contexto esportivo que não prescinda da lógica de socialização familiar, mas também ultrapasse.
Para além da socialização familiar: possibilidades para um modelo de estratificação do capital esportivo
Na tentativa de avançar na proposição de um modelo preliminar para estudar as trajetórias esportivas assim como a formação de disposições no contexto dos esportes é de suma importância, conforme discutido por Marques et al. (2018), levar em consideração a herança familiar, de modo a conferir um devido trato analítico ao passado incorporado das crianças e jovens no processo de aprendizagem e desenvolvimento das habilidades esportivas. De acordo com Januário, Morbi e Marques (2019), Marques et al. (2018) e Marques e Januário (2018), o campo esportivo é um espaço no qual os acúmulos desiguais de capitais são definidos a partir de lucros esportivos herdados, premiando, deste modo, aqueles que “a premiação herdada já deliberava premiar” (JANUÁRIO; MORBI; MARQUES, 2019, p. 148).
Na esteira desses estudos supracitados, três questões se revelam fundamentais para dar prosseguimento ao exercício teórico em tela e, portanto, pensar os processos de iniciação e de especialização esportiva, a saber: 1) que fatores poderiam explicar as trajetórias de fracasso de indivíduos advindos de famílias que detêm “capital esportivo”? 2) O que leva crianças e adolescentes provenientes de famílias sem qualquer “capital esportivo” prévio, a trajetórias de sucesso esportivo até então consideradas improváveis? 3) Como as famílias investem na formação esportiva de seus filhos?
Antes de responder tais perguntas gostaríamos de definir o que entendemos por “capital esportivo”. Apesar de o termo aparecer em publicações científicas da área de educação física no Brasil (CANAN; CALEGARI, 2006; MARCHI JÚNIOR, 2005; ZARDO; SOUZA; STAREPRAVO, 2018), não encontramos nessas produções uma definição mais precisa desta noção. Em esforço complementar, compreendemos aqui “capital esportivo” como um tipo de moeda que orienta objetivamente as relações no universo dos esportes, quer dizer, uma competência socialmente adquirida que permite praticar modalidades esportivas e consumir produtos esportivos. Estamos cientes que os determinados tipos de capitais já existentes (econômico, cultural, social e simbólico) têm diferentes impactos nas trajetórias esportivas. Contudo, quando olhamos para o campo esportivo de maneira específica, parece fazer sentido falar em “capital esportivo”, sobretudo, porque ele se relaciona com os modos de socialização situados inicialmente dentro das famílias, porém, posteriormente, não com exclusividade a elas. Deste modo, se a noção de capital cultural foi uma categoria teórica decisiva para Bourdieu (2012), explicar a desigualdade de desempenho escolar rompendo com visões substancialistas relativas às aptidões naturais e à teoria do capital humano, propõe-se a assumir aqui, em conversação com o que apontaram Marques e Januário (2018), a noção de “capital esportivo” como instrumental analítico potente para abordar as trajetórias esportivas.
Como esse capital esportivo é produzido e transmitido? Essa é uma questão central, sobretudo no intuito de refletir as possibilidades de conquistas do capital esportivo em suas relações com a transmissão de uma disposição (habitus). Nesse sentido, é que inicialmente conjecturamos que cada agente possui determinadas referências e elementos apropriados historicamente que vão formando suas relações diante do campo esportivo. Como bem apontam Marques e Januário (2018, p. 85), diversas pesquisas com atletas têm demonstrado que o sucesso esportivo é construído de maneira dialética entre “a aquisição de capitais advindos do acesso a oportunidades e meios de aprendizagem” diante do contexto esportivo no qual eles participam.
De tal modo, o processo de incorporação esportivo “é constituído pelo engendramento do habitus e a incorporação de capitais que, por meio do acesso a bens e meios de aprendizagem diversos ao longo da formação do indivíduo, constituem a sua hexis […]” (MARQUES; JANUÁRIO, 2018, p. 90). Sem dúvida, o acesso a um conjunto de experiências ainda na infância pode oferecer vantagens diante de alguma prática esportiva. Assim, o capital esportivo é adquirido com o tempo e determina, de maneira desigual, as diferenças dos indivíduos dentro do campo esportivo. Endossamos, portanto, Souza e Marchi Júnior (2017) quando nos lembram que o esporte pode ser pensado como um lócus dotado de relativa autonomia, distribuindo capitais de maneiras desiguais. Consideramos aqui que existem três estados do capital esportivo: 1) estado incorporado; 2) estado institucionalizado; e 3) estado clientelizado.
O estado incorporado está, sobretudo, relacionado à incorporação das experiências esportivas e aos conhecimentos advindos das ciências do esporte e da educação física. É um tipo de capital que necessita de tempo e investimento pessoal na medida em que o indivíduo ao longo de sua trajetória biográfica vai acumulando corporalmente tudo que uma prática esportiva disponibiliza em relação ao contexto prático do jogo. Este tipo de capital é, então, impresso no corpo, mas o indivíduo que o detém não necessariamente tem consciência disso. Sua ocorrência acontece, de modo mais claro, em (ex)atletas profissionais e de alto rendimento, porém, também se apresenta nos indivíduos que, ao longo de suas vidas, se apropriaram como praticantes de algum tipo de esporte. Por exemplo, Januário (2017), ao investigar a presença da herança familiar na trajetória esportiva de doze jogadores de alto rendimento de xadrez, demonstrou que a família esteve presente no início dos processos de socialização desses jogadores. Assim, o xadrez se apresentou como uma modalidade esportiva presente na transmissão familiar por meio da vivência com a prática enxadrística desde a infância, oferecida por familiares que já tinham realizado contato prévio com esta modalidade.
Ferreira e Moraes (2012, p. 47), por seu turno, analisaram a influência da família diante da primeira fase do desenvolvimento da carreira de nadadores olímpicos. Dos oito atletas entrevistados, cinco deles relataram que o início da prática, ainda na infância, se deu por influência familiar, uma vez que os “pais os incentivaram por serem igualmente praticantes de modalidades desportivas”, mais precisamente, os pais eram também nadadores. Não podemos esquecer, na esteira de Bourdieu (2012, p. 76), que o capital cultural incorporado também é objeto de uma transmissão hereditária e ocorre de maneira dissimulada. A partir dos exemplos supracitados, a mesma situação parece ocorrer com o capital esportivo em seu estado incorporado, sobretudo em virtude da precocidade “do início do empreendimento de transmissão e de acumulação” de determinada prática esportiva.
De todo modo, não se pode esquecer que o capital esportivo incorporado também se explica em função do conjunto de conhecimentos que confere especificidade disciplinar às ciências do esporte e à educação física. Nesse sentido, para além da herança familiar, a produção de conhecimento no âmbito das áreas supracitadas tem exercido papel fundamental na apropriação, por parte dos agentes, de capitais esportivos em seu estado incorporado mediante uma lógica que reflete a legitimidade social assumida pelo esporte em virtude da construção de metodologias de treinamentos físicos, técnicos e táticos, assim como de sua difusão midiática e virtual no mercado de bens simbólicos. Tais elementos, por seu turno, auxiliam na incorporação de disposições para a ação, uma vez que aparecem traduzidos tanto nas diversas práticas sociais como também naquelas referentes aos atributos de natureza técnico-táticas inerentes à própria dinâmica esportiva, trate-se do esporte realizado em clubes, academias, projetos sociais e assim por diante.
Essa incorporação, então, se dá a partir dos treinamentos realizados no dia a dia, ou seja, a partir de uma pedagogia do treino (GARCIA, 2015). Nesse sentido, a cada treinamento o praticante passa a incorporar novos movimentos e novos habitus necessários à realização dos fundamentos técnico-táticos de sua modalidade, de tal modo que quanto maior for a qualidade do treino resultando na aquisição de novos elementos de aprendizagem, maior será a ampliação de seu repertório motor e a possibilidade de se distinguir, por meio dessas incorporações, de seus pares. Assim, a procura por melhores metodologias de treinamento e orientações profissionais específicas e personalizadas sobre os subcampos esportivos também passa a constituir elemento importante na aquisição de capitais esportivos incorporados.
Vale a pena ressaltar que este tipo de capital incorporado é diferente daquele “capital corporal” definido por Wacquant (2002), pois, para ele, há uma especificidade no capital corporal, uma vez que este, ao depender exclusivamente do corpo, vai se extinguindo ao longo da vida do esportista. A nossa concepção de capital esportivo no estado incorporado defende que o agente, ao longo da vida, vai preservando seu capital, sobretudo pelo fato de que quem o detém, nunca o perde, especialmente porque esse tipo de capital acompanha os agentes em seus diferentes tempos de socialização no universo esportivo, seja na iniciação esportiva, no universo amador, profissional, de lazer, de aposentadoria etc.
Já o capital esportivo em seu estado clientelizado diz respeito à maneira como os indivíduos consomem determinados esportes no que se refere à aquisição de bens, materiais, serviços e treinamentos esportivos pelas mais diferentes plataformas e formas de assessoria. Este capital pode ser considerado o mais volátil, uma vez que não tem a experiência esportiva do indivíduo como pré-requisito. Se realizarmos uma associação com o exemplo que Bourdieu (2012) nos traz sobre as coleções de quadros no seio do capital cultural em seu estado objetivado, podemos afirmar que uma coleção de chuteiras ou acessórios esportivos nem sempre é transmitida na sua apropriação específica, uma vez que para obter esses objetos basta possuir capital econômico. Todavia, para apropriar-se simbolicamente deles é preciso decifrar e possuir seus códigos. Contudo, o capital esportivo em seu estado “clientelizado” também utiliza a educação física como elemento importante na medida em que reconhece nessa profissão possibilidades de aquisição de serviços relacionados ao mundo esportivo, tal como a contratação de profissionais para atuarem como treinadores particulares que, além de auxiliarem na escolha das melhores formas de consumir bens e materiais, também contribuem para a apropriação de determinados esportes a partir do momento em que permitem ao “cliente” decifrar os códigos, ou seja, incorporar uma determinada prática. Em outras palavras, é necessário possuir o capital esportivo incorporado, caso contrário, este tipo de capital tem sua eficácia comprometida, daí a importância da educação física.
Na sequência de apresentação desse modelo de estratificação do capital esportivo, tem-se o estado institucionalizado que, por sua vez, se apresenta na forma de títulos ou diplomas adquiridos no percurso escolar e/ou dentro de determinado subcampo esportivo (MARQUES et al., 2018), incluindo troféus, medalhas e condecorações derivadas do sucesso esportivo. Este tipo de capital não se refere apenas aos diplomas de graduação em áreas que possuem o esporte como um dos seus objetos (como educação física e ciências do esporte) e, também, cursos oficiais de treinadores e gestores esportivos (desde que reconhecidos e legalizados socialmente) e aquelas graduações que se dão no interior de determinados subcampos esportivos, a exemplo do subcampo das lutas (na aquisição da faixa preta). Além disso, o estado institucionalizado do capital esportivo também parece explicar a transmissão de certa “herança” no sentido de proporcionar um conhecimento das lógicas e meandros dentro de subcampos esportivos que é decisivo para que ex-atletas, com frequência, acabem se convertendo nos atuais técnicos.
Nesses termos, a questão que imediatamente decorre é: ser ex-atleta profissional e/ou possuir determinado tipo de condição hierárquica dentro de algum subcampo esportivo pode fazer as vezes de “diploma” ou “título”? De forma relacional, pode-se dizer que sim e sugere-se que esse capital esportivo incorporado interfere consideravelmente nas disputas ocorridas no interior de qualquer subcampo esportivo. Como exemplo do que está sendo dito, convém observarmos dois exemplos: 1) o rol de técnicos dos clubes que disputaram a série A do Campeonato Brasileiro de Futebol do ano de 2020. Deste, apenas três treinadores não eram atletas profissionais (Paulo Autuori, Guto Ferreira e Mano Menezes), ao passo que os outros dezessete técnicos foram jogadores de futebol de alto rendimento e, em sua maioria, não possuíam formação acadêmica ou diplomas quando ingressaram nas carreiras6; e 2) o subcampo do jiu-jitsu, no qual só os praticantes que possuem a faixa preta podem dar aulas. Nesse sentido, possuir ou não o diploma de graduação em educação física não se apresenta como fator determinístico para atuação nesse contexto. Nota-se, portanto, que determinados redutos esportivos, a exemplo do futebol e do jiu-jitsu, são, de fato, reservados a determinadas formas de institucionalização de capitais esportivos específicos a cada subcampo.
Nesse sentido, vale a pena indagar: se qualquer profissional da área de educação física poderia ocupar esses lugares concorridos desde que estudasse, se esforçasse e construísse a competência técnica correspondente? Há, como fica explícito, toda uma lei estrutural de herança que orienta essas transições de posições no campo esportivo a partir das diferentes posições ocupadas pelos agentes. Não por acaso, um estudo realizado por Morbi, Januário e Marques (2018) com treinadores de futsal demonstrou que, embora houvesse influência da herança cultural familiar, o que determinou as posições dos treinadores pesquisados foi a rede de relacionamentos construídas por eles. Nesse sentido, uma vez que os agentes não se apresentam como herdeiros, é necessário que eles, além de dispor de capital esportivo institucionalizado, também façam uso do capital social, pois, de acordo com Januário, Morbi e Marques (2019, p. 158), a força do discurso é algo inerente à posição ocupada pelos treinadores, já que “elencam a importância da convivência com agentes de já destacado êxito na modalidade em aspectos como, por exemplo, a posterior decisão em se tornarem, do futsal, futuros treinadores”.
Diante do exposto e à luz do que aponta Bourdieu (2012), pode-se afirmar que os agentes do campo esportivo acionam em suas trajetórias não apenas os capitais econômicos, culturais e sociais. Nisso, o capital esportivo se revela um componente estrutural importante e demarca sua potencialidade teórica para analisar as trajetórias esportivas, uma vez que elas não são apenas resultado da organização familiar e do modo que a família se relaciona com o campo esportivo, mas também vê sua dinâmica de transmissão de disposições esportivas sofrer forte influência da educação física como sistema de conhecimento com lugar na escola e em outros espaços de intervenção. Assim, as trajetórias que crianças, adolescentes e jovens terão dentro do esporte dependem naturalmente do investimento familiar, mas não só dele. A educação física como um sistema de conhecimento apresentado desde tenra idade às crianças configura uma pedagogia que concorre para a construção de capitais esportivos, seja na forma incorporada, clientelizada e/ou institucionalizada.
Além disso, não se pode esquecer que as relações e interdependências entre a família e o campo esportivo são plurais e complexas, engendrando formas de socialização que ora se prolongam mais, ora se prolongam menos, sendo então necessária a realização de pesquisas empíricas para se tecer considerações mais conclusivas e peremptórias. De modo preliminar, pode-se dizer, a partir de Lahire (1997), que os modelos de socialização familiar impactam na formação esportiva a partir de quatro vias complementares: 1) ordem moral meritocrática; 2) investimento “interessado” no esporte; 3) contato com experiências motrizes heterogêneas; e 4) ordem econômica. Esses aspectos sempre devem ser observados de maneira conjunta.
A ordem moral meritocrática diz respeito ao estabelecimento de um processo de inculcação familiar relacionado à disciplina (com as tarefas domésticas e com horários), ao reconhecimento da autoridade familiar (que pode ser atribuída aos pais ou a um irmão mais velho) e ao processo educativo diário que tem na meritocracia e na lógica empreendedora sua base. Beneli (2018) realizou pesquisas com atletas de alto rendimento de basquetebol no intuito de compreender suas trajetórias esportivas. O autor constatou que o apoio da família é determinante para a continuidade do desenvolvimento esportivo dos atletas durante suas trajetórias, principalmente no que tange ao incentivo moral para que eles continuassem disciplinados e não desistissem dos treinos e das tarefas cotidianas referentes ao basquetebol.
De acordo com Lahire (1997), a ordem moral que instaura classificações nada mais é do que um tipo de disposição que é capaz de ser apreendida nos espaços de socialização. No contexto esportivo essa ordem moral apreendida primariamente na família se reflete tanto na perspectiva de aceitação e cumprimento das regras, quanto na quebra delas. Saber, no entanto, como essa ordem moral familiar se faz ou não manifestar no contexto esportivo trata-se de matéria empírica. A título ilustrativo e sem nenhuma pretensão de generalização, cita-se o estudo realizado por Marques e Samulski (2009) com 186 jogadores de futebol da categoria de base de clubes que disputaram a série A do Campeonato Brasileiro de Futebol em 2007. De acordo com os autores, 56,5% da amostragem do estudo declarou encontrar na figura do pai a principal relação de suporte e de aconselhamento na gestão de suas carreiras, surgindo, na sequência, a figura do empresário e depois do técnico. Isso demonstra o quanto as relações entre família e esporte são complexas e tênues, sendo necessário investigar o prolongamento de disposições de uma esfera à outra.
A segunda forma de impacto familiar na trajetória esportiva das crianças refere-se ao investimento “interessado” no esporte. Este tem estreita relação com a ordem econômica. De acordo com a relação existente diante dos esportes é que os membros das famílias irão lançar mão das suas estratégias de ação. Nesse sentido, as famílias detentoras de uma ordem econômica estável investiriam na esportivização de seus filhos de forma mais “direcionada”, sobretudo pelo fato de suas condições econômicas e sociais permitirem relacionamentos com o esporte de uma maneira mais direta. Esse investimento “interessado” procura reduzir a pressão esportiva sobre as crianças, dando mais chances a elas de incorporarem capitais esportivos, em que pese uma série de intervenientes de ordem individual, motivacional e pedagógica atuando sobre essa dinâmica. Um dos atletas entrevistados por Marques e Samulski (2009, p. 111) disse sobre sua família: “[…] estou aqui por causa deles, e por mim também, pois sempre gostei de futebol, e eles me apoiaram em tudo, tanto em transporte, em tudo que eles puderam me ajudar até hoje eles sempre me ajudam”. Fundamentados em Lahire (1997), podemos afirmar que a família vai criando “estratégias” que concedem tempo para que o filho se dedique ao esporte. Esses aspectos não estão necessariamente atrelados a uma alta aquisição de capital econômico, já que uma família que consegue viver afastada das mazelas de sobrevivência materiais já teria condições de disponibilizar um investimento “interessado” aos seus filhos.
Outra forma importante de interdependência entre família e esporte está ligada à heterogeneidade das experiências motoras. Os universos familiares que enxergam as práticas motrizes como elemento constitutivo da cultura e incentivam seus filhos a experimentarem diversas práticas, estão, mesmo que subjetivamente, criando estratégias de favorecimento ao sucesso esportivo de suas crianças, uma vez que nessa interdependência ocorre a ampliação do repertório corporal, técnico e motor da criança. Na esteira de Lahire (2011), podemos considerar que quando o universo familiar se constitui como espaço esportivamente instigador, oferecendo e envolvendo a criança em atividades que propiciem a heterogeneidade das experiências motoras, então as crianças podem apresentar condições ideais para a formação de competências e gostos pelas práticas esportivas. Um dos nadadores olímpicos entrevistados por Ferreira e Moraes (2012) ressaltou o fato de que, na sua infância, seus pais o matricularam não apenas em uma escola de natação, mas também de judô. Só posteriormente, quando passou a alcançar resultados expressivos na natação, é que este atleta relatou que começou a se dedicar exclusivamente a uma única modalidade. Tal exemplo, por sua vez, sem pretensão generalizante, sugere que a heterogeneidade das experiências motrizes é um elemento que faz com que as crianças tomem gosto pela prática esportiva.
Daí nosso entendimento de que, no caso de famílias que proporcionam às crianças e adolescentes menos experiências motrizes sistemáticas, a educação física escolar deverá ser capaz de oferecer aquilo que parcial e inicialmente foi feito no cotidiano doméstico em relação à ampliação do repertório motor. Deste modo, a educação física escolar é responsável por esse domínio do desenvolvimento humano, afinal, os estudantes, conforme aponta Lahire (2011, p. 17), “muitas vezes só têm o tempo gasto dentro dos muros da escola para entrar na cultura escolar e apropriá-la”. Ademais, nenhum esporte consegue sozinho apreender todas as capacidades coordenativas, técnicas e táticas, condição que mais uma vez reforça que as aulas de educação física podem atuar com uma movência esportivamente exercida que seja plural, prazerosa, respeitosa, durável e constituinte das biografias dos indivíduos (SOUZA, 2021).
Em suma, o modelo relacional de análise aqui oferecido permite não só considerar que o capital esportivo adquirido inicialmente no seio familiar é condição importante para uma trajetória de sucesso esportivo, como também elucida que as diferentes formas de disposições que a criança recebe dentro do contexto familiar se assemelham àquelas que ela irá acionar no contexto da formação inicial esportiva de tal modo que suas chances de sucesso ou fracasso também podem ser examinadas sociologicamente.
Considerações finais
O objetivo deste ensaio é oferecer algumas chaves alternativas de leitura ao debate sobre as trajetórias esportivas de crianças e jovens, de modo a considerar não só o peso das influências assentes nos processos de socialização familiar como também a existência de uma série de outros intervenientes que moldam as competências motrizes e esportivas dos agentes. Acreditamos, portanto, ser válido problematizar os usos das disposições esportivas que guiam os indivíduos dentro do contexto familiar, já que a heterogeneidade das famílias e dos espaços socializadores frequentados pelos indivíduos podem fazer com que esses usos enfraqueçam ou então que os agentes mudem ou abandonem uma “disposição esportiva”.
Nossa tentativa aqui foi a de averiguar as formas de transmissão de capital esportivo mediante a articulação de aspectos do programa disposicionalista de Bourdieu e Lahire. Nesse sentido, as teorias evocadas somadas à literatura nacional que já se debruça sobre a temática sugerem três aspectos importantes: 1) o surgimento de um programa disposicionalista no campo da educação física brasileira; 2) a força da noção de “capital esportivo” no que tange à influência nas trajetórias biográficas dentro do campo dos esportes; e 3) a importância da família e da educação física enquanto espaços de socialização esportiva.
No que diz respeito ao surgimento de um programa disposicionalista no âmbito da educação física brasileira, notou-se que a produção científica deste campo tem realizado diversos avanços na tentativa de operacionalizar as teorias de Bourdieu em correlação com as dinâmicas próprias ao campo esportivo. Em adição, também nota-se que, apesar de figurar numa escala teórica menos mobilizada nos estudos, Lahire oferece contribuições decisivas à apreciação desse tema e que precisam, em futuras pesquisas, ser consideradas.
Em relação à força da noção de “capital esportivo”, defendemos suas tipologias na medida em que elas apresentam elementos que não só influem nas posições dos agentes que se inserem no campo esportivo, mas também interferem em suas trajetórias. Assim, a noção de capital esportivo nos ajuda a entender que, para além das valências físicas, os agentes também podem possuir condições econômicas, sociais, culturais e esportivas para atuarem e se inserirem no campo. Deste modo, quem acumula capital esportivo detém poder dentro do seu subespaço esportivo, quer como atleta, quer como técnico.
Ademais, também percebemos que a família continua sendo um importante espaço de socialização esportiva, seja a partir da herança cultural (Bourdieu), seja a partir de uma ótica heterogênea (Lahire). Contudo, notamos que as trajetórias esportivas não se ancoram apenas nesse espaço de socialização, senão também em uma forma de socialização que é garantida pela própria educação física e pelas ciências do esporte, sistemas de conhecimento decisivos na lógica de transmissão de disposições esportivas e, portanto, da formação de um capital esportivo em seus três estados, conforme foi discorrido ao longo do texto.
Em outras palavras, é possível argumentar em parâmetros de interdependência entre família, educação física e campo esportivo, sobretudo ao se levar em conta as homologias e interconexões que se estabelecem entre esses espaços de socialização. Assim, a família e a educação física como sistema de conhecimento institucionalizado em vários espaços erguem-se como instâncias capazes de oferecer, de modo dissimulado ou não, condições objetivas e subjetivas para que os agentes possam ter trajetórias de (in)sucesso no campo esportivo. Sob esse ponto de vista, inclusive, é que se aventa a possibilidade de uma família possuir pouco capital esportivo, mas ainda assim incentivar práticas esportivas e experiências motrizes que podem concretizar sucessos improváveis dentro do esporte.
À guisa de fechamento, aponta-se que o modelo de análise recuperado a partir da abordagem disposicionalista de Bourdieu e Lahire permite pensar as trajetórias esportivas dos agentes em referência ao próprio processo de autonomização do campo dos esportes, isto é, em deferência à própria história de produção de uma variante de capital íntima a esse espaço é que é transmitida muito em virtude ao modus operandi das áreas de educação física e ciências do esporte. Nesse sentido, afirma-se que o modelo teórico disposicionalista aqui acionado, em especial o quadro teórico-metodológico elaborado por Bourdieu, não só está no centro dessa agenda investigativa, como também constitui importante contributo ao campo da educação física internacional para pensar o esporte e as trajetórias de fracasso e sucesso no campo esportivo.
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4
- Ao longo do texto, o processo de formação esportiva é referido como aquele que engloba tanto a etapa de iniciação quanto de especialização. Entende-se, portanto, o esporte como fenômeno amplamente formativo e que conta com vários modelos pedagógicos para esse desígnio.
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5
- O conceito de família com o qual trabalhamos neste texto leva em conta a ressignificação do alcance e uso dessa noção na modernidade tardia. Em outras palavras, entendemos que família não constitui uma entidade homogênea, abrangendo diferentes configurações nas sociedades diferenciadas do tempo em que vivemos.
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6
- Dados retirados do site da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) referente ao início do campeonato brasileiro de futebol profissional da série A de 2020. Disponível em: https://www.cbf.com.br/.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Set 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
07 Jun 2021 -
Revisado
16 Maio 2022 -
Aceito
06 Jun 2022