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BIODIVERSIDADES LOCAIS COMO ELEMENTOS INTERCULTURAIS: ANÁLISE DE MOVIMENTOS DISCURSIVOS NA FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE EM CIÊNCIAS

BIODIVERSIDADES LOCALES COMO ELEMENTOS INTERCULTURALES: ANÁLISIS DE MOVIMIENTOS DISCURSIVOS EN LA FORMACIÓN DOCENTE INICIAL EN CIENCIAS

LOCAL BIODIVERSITIES AS INTERCULTURAL ELEMENTS: ANALYSIS OF DISCURSIVE MOVEMENTS IN INITIAL TEACHING TRAINING IN SCIENCES

RESUMO

A pesquisa teve como objetivo analisar os posicionamentos discursivos de uma licencianda durante o desenvolvimento de uma oficina pedagógica intercultural (OPI) quando situações-problemas envolvendo as biodiversidades são enfatizadas. Orientados pela abordagem teórico metodológica da análise do discurso bakthiniana, os dados são provenientes da OPI realizada no curso de Licenciatura em Educação do Campo (ênfase em Ciências da Natureza). Como resultados principais observamos que as interações discursivas no primeiro momento da OPI desencadeou posicionamentos discursivos que respondem a uma cultura performática do que é ser professor(a) de ciências. No decorrer das discussões na atividade, alguns deslocamentos dessa performance provocou movimentos dialógicos que transitavam entre discursos, produzindo hibridações entre a Ciência Moderna e de outras Ciências, via conhecimentos populares. Esse fenômeno transcende a compartimentalização curricular, construindo uma perspectiva intercultural crítica que busca não esvaziar as contradições socioculturais que atravessam as relações dos sujeitos(as) e das biodiversidades locais

Palavras-chave:
Interculturalidade Crítica; Discurso; Educação do Campo; Educação ambiental

RESUMEN:

La investigación tuvo como objetivo analizar las posiciones discursivas de un estudiante de posgrado durante el desarrollo de un taller pedagógico intercultural (OPI) cuando se enfatizan situaciones-problema que involucran la biodiversidad. Guiados por el enfoque teórico metodológico del análisis del discurso baktiniano, los datos provienen del OPI realizado en la Licenciatura en Educación Rural (énfasis en Ciencias Naturales) en 2018. Como principales resultados observamos que las interacciones discursivas en el primer momento de la OPI desencadenó posiciones discursivas que responden a una cultura performativa. Durante las discusiones en la actividad, algunos desplazamientos de esta performance provocaron movimientos dialógicos que transitaron en discursos ambivalentes, produciendo hibridaciones entre discursos de la Ciencia Moderna y otras Ciencias, vía saberes populares. Este fenómeno trasciende la compartimentación curricular, construyendo una perspectiva intercultural crítica que busca no vaciar las contradicciones socioculturales que atraviesan las relaciones entre los sujetos y la biodiversidad local

Palabras-clave:
Interculturalidad crítica; Discurso; Educación Rural; Educación ambiental

ABSTRACT:

The research aimed to analyze the discursive positions of a postgraduate student during the development of an intercultural pedagogical workshop (OPI) when problem situations involving biodiversity are emphasized. Guided by the methodological theoretical approach of Baktinian discourse analysis, the data comes from the OPI carried out in the Bachelor of Rural Education (emphasis in Natural Sciences) in 2018. As main results, we observe that the discursive interactions in the first moment of the OPI triggered positions discursives that respond to a performative culture. During the discussions in the activity, some displacements of this performance provoked dialogic movements that transited in ambivalent discourses, producing hybridizations between discourses of Modern Science and other Sciences, via popular knowledge. This phenomenon transcends curricular compartmentalization, building a critical intercultural perspective that seeks not to empty the sociocultural contradictions that cross the relationships between subjects and local biodiversity

Key words:
Critical Interculturality; Speech; Rural Education; Environmental education

INTRODUÇÃO

As discussões em torno da biodiversidade evidenciam as disputas de sentidos sobre ela, estão cada vez mais articuladas a movimentações sociais, principalmente relacionada às questões socioambientais, econômicas e políticas. Por isso, têm se revelado um campo fértil por acampar disputas territoriais, culturais e dos recursos naturais, revelando que a biodiversidade não é apenas um espaço físico que simboliza essas disputas, mas é também um espaço discursivo.

Nessa perspectiva discursiva, concordamos quando Bakthin (1999BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 9a edição. São Paulo: Hucitec, 1999.) defende que o exercer da língua, em sua integridade concreta, se apoia não apenas no sistema de formas imutáveis da linguagem mas na atribuição infinita de sentidos que ela pode ter. Quando falamos em linguagem, não se refere apenas às formas verbais de comunicação entre humanos, mas as práticas, gestos, experiências que se dão no espaço e com os diversos componentes desse espaço. Assim, a biodiversidade é defendida aqui como um campo também discursivo porque perpassa os sentidos e significados construídos nas relações e interesses de grupos sociais e culturais, manifestam nas identidades, nos posicionamentos, nas compreensões de mundo que os(as) sujeitos(as) vão construindo sobre a biodiversidade a partir da linguagem.

As relações estabelecidas na e com a biodiversidade são retratos dos conjuntos de concepções e ideologias significadas de maneiras distintas pelos grupos culturais e coexistem na nossa sociedade, sendo importante analisar atentamente o que provoca e movimenta essas disputas. A exemplo disso, nos conflitos socioambientais que temos assistido, percebemos que a biodiversidade se tornou um importante objeto discursivo para massificar as relações dadas nas biodiversidades. Isso quer dizer impor, muitas das vezes, às biodiversidades, uma redução à característica universal, padronizando e provocando uma leitura sobre ela a partir de limites e discursos pré-estabelecidos. Essa discussão se aproxima do que o filósofo Mignolo (2003MIGNOLO, W. D.Histórias locais-projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Ed. ufmg, 2003.) tece sobre os processos de construção social moderna que impactou na organização globalizada do mundo, tal qual engendra histórias locais às lógicas de projetos globais. Esses projetos globais são fundamentados nos interesses dominantes que regem essa sociedade, cujo destaque está no modelo econômico capitalista que modificou nossas relações com/nas biodiversidades a partir de uma postura exploratória de seus recursos humanos e não humanos. Tendo em vista que os processo de dominação dos territórios se deu a partir de colonização dos recursos da natureza e tem atingido formas cada vez mais elaboradas de controle, ultrapassa aspectos físicos e geográficos e atua colonizando identidades e formas de conhecimento (Mignolo, 2003LYOTARD, J. F. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Minneapolis: University of Minnesota Press and Manchester: University of Manchester Press, 1984.; 2017MIGNOLO, W. D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade.Revista brasileira de ciências sociais, v. 32, 2017.).

As formas coloniais já vêm estabelecendo seus limites desde a maneira com que a biodiversidade é concebida no âmbito da construção do conhecimento científico. Nas Ciências da Natureza, cujo foco de estudo são os fenômenos observados no ambiente, nas relações entre biótico e abiótico, a biodiversidade é um tema estruturante da formação docente nessa área do conhecimento. O que antes era referido como diversidade biológica passou a ser denominado de biodiversidade em 1988 após a publicação dos artigos do National Forum on BioDiversity (Motokane; Kawasaki; Oliveira, 2010MOTOKANE, M. T.; KAWASAKI, C. S. & OLIVEIRA, L. B. Por que biodiversidade pode ser um tema para o ensino de ciências? In: MARANDINO, M. Olhares sobre os diferentes contextos da biodiversidade: pesquisa, divulgação e educação. São Paulo: GEENF/FEUSP/INCTTOX, 2010, p. 30-60.).

No rol curricular dos conteúdos escolares e da formação em Ciências da Natureza o objetivo da biodiversidade é apresentar o repertório científico sobre a diversidade biológica e a relação entre os seres vivos (Wilson, 1992). Apresenta-se a partir da organização e interação dos diversos mecanismos de vida expressos em conceitos disciplinarizados que, por vezes, podem estar distanciados das relações de vida que habitam o espaço educativo. Como resultado, esses conceitos que constroem a ideia de biodiversidade podem produzir formas objetificadas da vida em suas dimensões e transformações.

Nessas reflexões, Thiemann e Oliveira (2013THIEMANN, F. T.; OLIVEIRA, H. T de. Biodiversidade: sentidos atribuídos e as contribuições do tema para uma educação ambiental crítica.Pesquisa em educação ambiental, v. 8, n. 1, p. 114-128, 2013.) constroem sentidos atribuídos à biodiversidade a partir do que nomeiam de “conversação estruturada” com pesquisadores de um projeto e egressos do curso de licenciatura e bacharelado em Ciências Biológicas de uma universidade. Nos resultados, evidenciam algumas categorias emergentes para os sentidos atribuídos pelos participantes e construídos nas pesquisas, os quais foram nomeados de Concretude, Simbólico, Conhecimento, Holismo, Caleidoscópio, Oculta, Ameaçada, Inclusiva e Exclusiva/Excludente. Essas dimensões são postas em análise defendendo contribuições para a educação ambiental (EA) crítica. Nessa mesma articulação com a EA, Santos e Boccardo (2021SANTOS, L. A.; BOCCARDO, L. O conceito de biodiversidade em artigos de educação ambiental no Brasil / The concept of biodiversity in environmental education articles in Brazil.Brazilian Journal of Development,[S. l.], v. 7, n. 7, p. 66786-66804, 2021. DOI: 10.34117/bjdv7n7-111. Disponível em:Disponível em:https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BRJD/article/view/32477 . Acesso em: 14 jul. 2024.
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) apresentam análise do conceito de biodiversidade nos artigos em Educação Ambiental do Brasil. Apontam que o conceito normalmente é apresentado de forma restrita, isto é, com certa incompletude da sua compreensão ou referido sem maiores apresentações, como se fosse um ideia já dada e universal.

Se a biodiversidade pode ser atribuída a uma estética universal ao ser narrada na linguagem da ciência moderna, como é possível estabelecer uma relação de aprendizagem com esse conteúdo a partir das relações da(s) biodiversidade(s) que se fazem presente nas trajetórias desses sujeitos(as) envolvidos(as)? Ou seja, que sentidos a biodiversidade universalizada produz quando não se considera as relações nas quais nós, seres humanos, interagimos e construímos nela? Conceber a biodiversidade sem acessar as nossas formas de ser e estar nesse mundo esteriliza esse conceito das contradições vivenciadas por cada um de nós, homogeneizando nossas relações nesses espaços. Além disso, contribui ainda para manutenção das relações entre ser humano e natureza de maneira distanciada, sendo a biodiversidade o local “natural” de onde provém matéria prima para servir a sociedade. Esse modelo dicotômico entre sociedade e ambiente viabilizou modos exploratórios das biodiversidades, financiado pelo modelo das sociedades modernas capitalistas (Lima, 1999LIMA, G. da Costa. Questão ambiental e educação: contribuições para o debate.Ambiente & sociedade, n. 5, p. 135-153, 1999.; Leff, 2009LEFF, E. Complexidade, racionalidade ambiental e diálogo de saberes. Educação e Realidade, v. 34, n. 3, p. 17-24, 2009.; Loureiro, 2019LOUREIRO, C. F. B. Educação Ambiental: questões de vida. Editora: Cortez. 2019.). Essas transformações acabaram por forjar formas de sucateamento das atividades e conhecimentos que algumas culturas construíram ao longo do tempo nas e com as biodiversidades.

Dada a essa inclinação disciplinar em que a biodiversidade é tomada no processo formativo, alguns movimentos da literatura, tais como, Levequê (1999LÉVÊQUE, C. A biodiversidade. Bauru, SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, EDUSC, 1999.), Weelie e Wals (2002WEELIE, D.V; &WALS, A. Making biodiversity meaning ful through environmental education. International Journal of Science Education, 24, 1143-1156. 2002.), Santos (2005SANTOS, B. S. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 501. Reinventar a emancipação social: para novos manifestos; v. 4. 2005.) e Grandi; Castro; Motokane e Kato (2014GRANDI, L. A; de Castro, R. G; Motokane, M. T & Kato, D. S. Concepções de monitores e alunos sobre o conceito de biodiversidade em uma atividade de trabalho de campo.Cadernos Cimeac, v. 4, n. 1, p. 5-21, 2014.), provocaram para a compreensão da biodiversidade enquanto uma discussão atravessada também por dimensões éticas, políticas, sociais, culturais e econômicas específicas. Assim, pensar em outras formas possíveis de desenvolver a formação nesse campo de conhecimento requer questionar quais discursos são priorizados e como, ou se, estão em diálogos com as relações existênciais da diversidade cultural dos estudantes que acessam esses conhecimentos.

Ao refletir sobre o tom que os discursos sobre a biodiversidade chegam aos processos educativos fomos instigados a pensar no potencial da formação inicial docente em Ciências da Natureza no que tange a esses debates e controvérsias sobre a biodiversidade. Delimitamos, ainda, o contexto da Licenciatura em Educação do Campo, tendo em vista que o perfil da formação e dos(as) estudantes e também das lutas de movimentos do campo. Esse perfil de docentes em formação inicial tem uma especificadade que trás à tona questões sobre a biodiversidade, como o movimento de luta e conquista da terra, além disso, muitos desses estudantes só tiveram possibilidade de acessar a universidade pela característica desse curso pois nele busca-se operar em diálogo com o campo e as lutas dos diferentes grupos que se estabelecem nestes espaços.

O histórico do curso de Licenciatura em Educação do Campo vêm da trajetória de lutas sociais surgiram na década de 70 com a finalidade de resgatar os direitos cassados na década anterior - com a expansão do capitalismo após a ditadura - momento que possibilitou que vários movimentos sociais sobressaíssem (Gohn, 2001GOHN, M. da G. M. Reformas educacionales en brasil: actores y procesos participantes en San Paulo (1995-2000). In:Ponencia presentada para el XXIII Congreso Internacional de Latin America Studies Association, Washington. 2001.; Queiroz, 2004QUEIROZ, J. B. P. de. A educação do campo no Brasil e a construção das escolas do campo.Nera, Presidente Prudente, v. 18, n. 14, p.37-46, jan. 2011.). Na educação, destacaram-se iniciativas de educação popular por meio da educação política e da alfabetização de jovens e adultos, tendo o progressista Paulo Freire como referência e engajamento nesse âmbito e também as Escola Família Agrícola de Ensino Médio (EFAs de EM). Assim, necessidades das escolas do campo começam a ser visualizadas e reinvindicada, sendo que um dos aspectos dessa demanda é a formação de professores cujo enfoque dialogue com esse cenário.

A Licenciatura em Educação do Campo foi concebida como modalidade de ensino a partir do Decreto nº 7.352/2010 em que se instituiu uma Política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), nesses programas, inicialmente, foram feitas ações de alfabetização e formação de professores nos assentamentos. Posteriormente, houve a alfabetização para os anos finais do ensino fundamental II, ensino médio e ensino para jovens e adultos (EJA); por último, demandas de ensino técnicos profissionalizantes foram sendo incluídas (Molina; Antunes-Rocha, 2014MOLINA, M., & ANTUNES-ROCHA, M. I. Educação do campo: história, práticas e desafios no âmbito das políticas de formação de educadores: reflexões sobre o pronera e o procampo. Revista Reflexão e Ação, 2014.). Mais tarde, as ações desenvolvidas no PRONERA juntamente com apoio de movimentos sociais, subsidiaram as diretrizes de criação do Programa Nacional de Educação do Campo (PROCAMPO) destinado ao desenvolvimento de ações educativas para grupos do campo e quilombola. Foi o PROCAMPO, a partir de sua perspectiva de superar as rupturas e cisões desse cenário, e descaso com o contexto do campo, que possibilitou com apoio do PRONERA a abertura de licenciaturas com enfoque na educação do campo em universidades federais (Souza; Kato; Pinto, 2017SOUZA, D. C.; KATO, D. S. & PINTO, T. H. O. A licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal do Triângulo Mineiro: território de contradições.Revista Brasileira de Educação do Campo, [S.l.], v. 2, n. 1, p. 411-435, jun. 2017. ISSN 2525-4863.).

O reconhecimento da modalidade ocorreu após lutas sociais para que as culturas do campo e quilombola não fossem silenciadas. Dado esse histórico e as lutas que ainda estão em andamento, compreendemos que os posicionamento dos(as) licenciandos(as) deste processo inicial de formação docente pode oferecer diálogos que reverberem as relações das biodiversidades para além de um discurso universal. A Licenciatura em Educação do Campo nasce das contradições das/nas biodiversidades, questiona formas de acesso à universidade e reinvindica uma pluralidade de identidades e conhecimentos nesse espaço de formação. Por isso, se mostra um interessante contexto para investigar diferentes construções de redes de significações das Ciências Biológica escolar e de relações socioculturais que esses(as) estudantes trazem de suas relações nas biodiversidades, o que ainda pode indicar movimentos que flertam com processos de educação ambiental.

Tomamos como ponto de partida a biodiversidade como um espaço variável, questionável e que não remete a um local fixo (Weelie; Wals, 2002WEELIE, D.V; &WALS, A. Making biodiversity meaning ful through environmental education. International Journal of Science Education, 24, 1143-1156. 2002.), por isso, nos leva a conceber esse debate a partir da perspectiva da biodiversidade local por não se restringir apenas a um lugar territorial e geográfico fixo, mas discursivo. Essa maneira de definir biodiversidade local leva em conta o que Freire (2005FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, 42.ª edição.) nomeia de relações existenciais, situações íntimas que constituem os sujeitos(as) e suas identidades, são forjadas nos espaços em que os sujeitos(as) vivenciam e atravessadas pelas questões sociais, históricas e culturais. E ainda, se alimenta de perspectivas de pertencimento de bell hooks (2022), que está relacionada às formas que as relações geográficas e os modos de conexão com a terra - biodiversidade - imprimem nas identidades, habitos e psique dos(as) sujeitos(as).

As características das biodiversidades e as práticas desenvolvidas nelas ou atribuídas a elas manifestam nas identidades dos(as) sujeitos(as) e que, inclusive, são acirradas na formação inicial de professors com foco nas Ciências da Natureza. A biodiversidade local é construída nas interações socioculturais com os territórios e biomas manifestando-se em uma construção discursiva própria de quem enuncia. Ainda que os indivíduos saiam geograficamente dos limites dessa biodiversidade, suas referências, memórias e concepções são estabelecidas em diálogos com essas vivências, por relações existenciais (Rédua, 2019RÉDUA, L. de S. Interculturalidade crítica na formação inicial de professores de Ciências: saberes sobre a biodiversidade local. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Triângulo Mineiro. 2019.).

Nas leituras de bell hooks (2022, p.39) é narrado que “as diferenças que a localização geográfica imprimiu em minha psique e em meus hábitos se tornaram mais evidentes longe de casa”. A autora constrói como a ideia de pertencer a um local foram notadas por ela em sua trajetória e como está relacionado aos espaços geográficos por onde estabeleceu algum tipo de vínculo. Esses espaços são descritos por ela pela relação com a terra, ou mesmo a desconexão com os modos de viver com e na terra que ela sentiu ao sair de casa. Essa leitura traz ainda uma reflexão sobre como a geografia do lugar, ou seja, o território, a cultura, a biodiversidade, sugerem nas territorialidades representações de leitura e escrita sobre a “terra”. A menção feita por bell hooks nos leva a refletir também sobre a terra enquanto as biodiversidades e suas as “geo-grafias”.

Essa característica que bell hooks traz de sua trajetória é predominante nos cursos de Licenciatura em Educação do campo porque não são todas as universidades que ofertam essa formação e também pelo motivo da estrutura da formação que considera em seu desenvolvimento a vivência nas comunidades que normalmente estão em diferentes territórios, em biodiversidades locais diversas. Todos esses elementos que a autora vai agregando nos ajudam a representar a ideia da biodiversidade local, pelo geográfico e discursivo, apostando na memória e pertencimento como conexão para o sentido de local.

Como já mencionado, na formação inicial de professores(as) de Ciências esses aspectos podem ser mais provocativos pois, a natureza, relações dos seres vivos e elementos não vivos são acessados nessa formação a partir da estrutura científica moderna. Para esse processo, ainda que se tenha ideias dominantes sobre essas relações na biodiversidade, os(as) sujeitos(as) não apagam essas identidades, concebidas também pelas relações estabelecidas nas biodiversidades locais, para compreenderem esses conhecimentos científicos sobre ela. Nesse movimento dialógico e de alteridade que se manifesta de forma atemporal e não cíclica das experiências (Larrosa, 2017LARROSA, J.Tremores: escritos sobre experiência. Autêntica, 2017.) é que a biodiversidade pode se desprender do discurso universal e ser narrada a partir dessa relação local e experienciada de forma íntima pelos sujeitos(as). Pela alteridade, isto é, modos de relação entre eu-outro que alteram dimensões simbólicas e identitárias, cria uma relação intersubjetiva (Volóchinov, 2017VOLOSHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9.ed.São Paulo: Hucitec, 2017.).

A biodiversidade local emerge nessa pesquisa como aposta intercultural crítica como fundamento para a formação docente, pois não se reduz a fixar discursos sobre a biodiversidade mas construir insterstícios (Bhabha, 1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.), interconhecimentos (Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes., Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, 3-46.2007b. DOI : 10.1590/S0101-33002007000300004) ou discursos híbridos (García Canclini, 2008GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; tradução da introdução Gênese Andrade. 3. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.) que levam a refletir sobre processos de dominação que se instalam desde os territórios e biodiversidades até as culturas e identidades. O que pode estimular que o sujeito transite em discursos que possuem expressão e reconhecimento sociocultural da biodiversidade. A perspectiva intercultural crítica se difere ainda das ideias multiculturais porque nessa ideia, há uma justaposição da diferença cultural que povoa nossas relações socioculturais, enquanto que pelo caminho da interculturalidade crítica a intenção não é apenas analisar e assumir essas relações como desiguais, mas também como assimétricas em uma análise radical de suas projeções (Walsh, 2005WALSH, C. Interculturalidad, conocimientos y descolonialidad. Signo y Pensamiento. Bogotá, vol. 24, n. 46, p. 39-50, enero/jun. 2005.; 2010WALSH, C. Estudios (inter)culturalesen clave decolonial. Tabula Rasa, n. 12, p. 209-277, 2010.; Candau, 2008CANDAU, V. M. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação. v 13, n 37,jan./abr. 2008; 2020CANDAU, V. M. F. Didática, Interculturalidade e Formação de professores: desafios atuais.Revista Cocar, n. 8, p. 28-44, 2020.).

A fim de aprofundar nessas problematizações sobre a biodiversidade local bem como seu desdobramento para o campo da formação inicial de professores de Ciências, esse artigo tem como objetivo principal analisar os posicionamentos discursivos de uma licencianda durante o desenvolvimento de uma oficina pedagógica intercultural (OPI) quando situações-problemas envolvendo as biodiversidades são enfatizadas.

Do contexto da pesquisa: perspectivas teórico-metodológicas e procedimentos de investigação

Orientados pela perspectiva intercultural crítica e do dialogismo bakthiniano, esse trabalho teve como construção metodológica uma oficina pedagógica intercultural realizada em uma turma de Licenciatura em Educação do Campo. Os dados desse contexto pedagógico são frutos de uma dissertação defendida no início de 2019. A partir dos principais resultados dessa pesquisa, optamos nesta realizar o recorte da análise do posicionamento de uma licencianda com objetivo de aprofundar nas análises discursivas dessa estudante, cuja participação se mostrou intensa, contraditória e potente no que tange aos processos formativos/educativos a partir da biodiversidade. Esse processo motivou o desenvolvimento de uma pesquisa de doutorado passando a olhar para a educação ambiental, sendo que essas leituras contruibuíram na (re)construção dos aportes e fundamentações analíticas.

A partir de observações e vivências em atividades no curso, as situações-problemas foram contruídas a fim de causar instabilidades intencionais a respeito de aspectos da biodiversidade e gerar nas interações dos(as) participantes posicionamentos frente as contradições anunciadas e as vividas pelos contextos dos próprios estudantes. As abordagens das situações-problemas podem ser visualizadas a seguir:

Quadro 1:
Temas das situações-problemas construídas para as oficinas pedagógicas interculturais.

A oficina pedagógica intercultural foi a estratégia pedagógica construída a partir da possibilidade e liberdade de fala, exteriorização das multiplicidades de vozes dos sujeitos e sujeitas frente uma formação intercultural em Ciências (Rédua, 2019RÉDUA, L. de S. Interculturalidade crítica na formação inicial de professores de Ciências: saberes sobre a biodiversidade local. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Triângulo Mineiro. 2019.). Em todas as situações-problemas era colocada uma pergunta que provocasse um posicionamento dos grupos de licenciandas e licenciandos. Antes da condução da OPI, os interesses de pesquisa foram explicados e os(as) licenciandos(as) puderam escolher participar da atividade, essa formalização ocorreu também pelo acesso e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), aprovado pelo comitê de ética da universidade onde a pesquisa se desenvolveu. Assim, foi também explicitada a necessidade da gravação em áudio da atividade como forma de registro para as análises posteriores.

A sistematização da atividade contou com um breve momento da pesquisadora e do pesquisador com as turmas, demonstrando o contexto da atividade e o objetivo de discutir e socializar sobre alguns temas que permeiam as relações escolares e que possivelmente poderíamos nos deparar enquanto professores(as). Com isso, a turma foi separada em cinco grupos, aonde cada agrupamento recebia uma situação-problema. Os(as) estudantes foram orientados(as) a discutir dentro do grupo e construir um posicionamento que expressassem o que pensam sobre a situação colocada. Dado o tempo para que os grupos fizessem isso, formamos uma assembleia de discussão sobre as situações, cada grupo apresentava a situação-problema discutida e se posicionavam frente a problemática. Discussões e análises com foco metodológico desse processo e das projeções das OPI na formação de professores foram desenvolvidas em outro trabalho e podem ser acessadas em Rédua (2019RÉDUA, L. de S. Interculturalidade crítica na formação inicial de professores de Ciências: saberes sobre a biodiversidade local. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Triângulo Mineiro. 2019.).

Todas as interações da atividade foram gravadas em áudio e transcritas registrando, na íntegra, os detalhes das falas de cada participante. Os(as) licenciandos(as) foram denominados por pseudônimos representados pela ordem das letras do alfabeto, relacionando à ordem em que apareceram nas interações. Os critérios de seleção das interações e discussões analisadas nos resultados tiveram como base a intensidade e as contradições que os posicionamentos provocavam no desenvolvimento da OPI. O que também se somou à ordem das falas e participações na atividade. Por isso, a primeira estudante a romper o silêncio e dialogar com os questões que foram sendo postas na condução, também foi a pessoa que movimentou, tensionou e provocou os caminhos das interações. Por esses motivos, os recortes das interações centralizam também a análise do papel dessa estudante na proposta.

A análise do discurso dos posicionamentos da estudante, que será designada pelo pseudônimo “A”, se faz interessante, pois, parte do pressuposto de que a linguagem não é pura e neutra, mas atravessada pelas interações históricas e sociais onde e por quem a expressa “em forma de enunciados (orais ou escritos) concretos e únicos” (Bakthin, 2011, p. 261-262). Assim, esses enunciados da licencianda que foram emblemáticos no desenvolvimento da OPI mobilizam diferentes significados e sentidos que são denotados a partir do contexto verbal e extraverbal em que são enunciados, e expressa o perfil identitário da estudante. Poderá aparecer outros participantes que protagonizaram junto à licencianda alguns posicionamentos, esses também serão chamados por pseudônimos.

Sobre a licencianda, estamos falando de uma mulher, estudante do curso de Licenciatura em Educação do Campo, com idade acima dos 50 anos, mãe, avó e que já exerceu outras profissões antes de iniciar o curso de licenciatura, como ela mesma vai dizer no decorrer da OPI. É importante salientar que essa licencianda optou por um curso de perfil formativo em pedagogia da alternância, o que a coloca em um movimento formativo com um espaço-tempo diferente: o tempo escola e o tempo comunidade. Isso significa que os estudantes que são atraídos para essa formação têm, muitas vezes, relações com os territórios a partir de perfis culturais que tem resistido às hegemonias modernas, tais como povos do campo, ribeirinhos e indígenas. Normalmente os cursos de alternância reúnem pessoas de territórios muito diversos pelo fato de nem toda universidade pública oferecer essa perspectiva de formação.

Esse contexto extraverbal onde a OPI foi desenvolvida mobiliza e exterioriza elementos que demarcam encontros de biodiversidades locais em um espaço-tempo comum, isto é, a universidade e em um curso de formação de professors(as) que pode, ainda, estar localizado em um outro contexto de biodiversidade local.

Dado esse contexto e objetivo de pesquisa, optamos pela lente analítica discursiva bakhtiniana, pautada do materialismo histórico dialético, como fundamento para as dimensões dos significados e sentidos no enunciados e a interculturalidade crítica, anunciada a partir das bases dos estudos culturais. Apesar de reconhecer o foco em objetos distintos desses fundamentos, podem articular-se no neste trabalho quando essa licencianda enuncia sobre a biodiversidade local, analisando desde as referências das discussões interculturais os aspectos dos dialogismos e das ideologias na materialidade discursiva.

Performances discursivas e movimentos dialógicos a partir da biodiversidade local

Para iniciar os resultados é importante considerar os sentidos universalizados sobre a biodiversidade produzidos quando não se considera as relações nas quais nós, seres humanos, interagimos e construímos nela. Essa foi uma das reflexões lançadas no início desse texto e que em certa medida fundamentou as situações-problemas que foram discutidas no decorrer das OPIs trazendo questões emblemáticas que cercam as biodiversidades, mas que raramente compõe a abordagem desse tema. Embora muitos dados interessantes tenham sido observados e discutidos no âmbito da dissertação de mestrado (Rédua, 2019RÉDUA, L. de S. Interculturalidade crítica na formação inicial de professores de Ciências: saberes sobre a biodiversidade local. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Triângulo Mineiro. 2019.), nos chamou a atenção destacar como uma participante, em especial, mobilizou seu posicionamento no decorrer desse espaço formativo proposto. Trataremos dos momentos em que esses discursos e posicionamentos dela desencadearam movimentos dialógicos tanto com os outros participantes da assembleia da OPI quanto com suas experiências mais íntimas e que refletem aspectos da biodiversidade local que pertence.

As OPIs tiveram um formato pedagógico inicial que obedece ao estilo de aula com estratégia metodológica muito bem familiarizada por nós que vivenciamos espaços de formação. Tendo em vista que esse formato didático já ocorre de uma maneira muito espontânea em atividades formativas Ball (2010BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa.Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 37-55, 2010.) faz muitas ponderações a respeito dessa rotina já institucionalizadas e rapidamente reconhecida pelos(as) sujeitos(as) que participam desses espaços educativos. O autor tem contribuído nos estudos do currículo trazendo a perspectiva da cultura da performatividade e, nesse sentido, discute que as dinâmicas que operam as organizações educacionais e os processos educativos normalmente se estruturam em rituais que preveem formas de controle, generalizações e naturalizações. Esses rituais podem ser entendidos no nosso contexto de pesquisa como a própria metodologia de oficina pedagógica, pois implica em rotinas que vão sugerir produtos próprios desses rituais e que endereçam formas de identidades que representam o que o autor chama de discursos e cultura de performatividade (BALL, 2010BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa.Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 37-55, 2010.).

Esse formato de oficina pedagógica já é ritualizado e a estrutura de debate pode provocar rotinas orientadas pela expectativa dos participantes em responder a esses elementos das discussões a partir de ideias estáveis entre o que é certo e errado no âmbito do argumento posto e do processo formativo. Em outras palavras, há uma busca em (cor)responder sobre “o que o(a) pesquisador(a) deseja ouvir” com a dinâmica proposta. Essa organização pode então prever uma performance já assimilada e diluída nesses espaços formativos e que vão encaminhar as idealizações de excelência ou não nessas atividades por parte de quem participa e de quem propõe.

Outro formato performático muito bem assimilado e reproduzido sobre os conteúdos e abordagens que encaminham os processos formativos após serem instrumentalizados em aulas ou outros espaços de aprendizagens é a prova dessa aprendizagem. Ou seja, utilizamos de avaliações para validar ou não a aprendizagem. E normalmente, essa aprendizagem é conferida se repetimos esses conteúdos a partir do parâmetro científico. Não temos como intenção discutir se esse modelo de aprendizagem e avaliação é ou não o mais adequado, no entanto, nos cabe refletir se essa dinâmica é suficiente para que professores(as) em formação inicial estejam preparados para lidar com todos os elementos que atravessam o espaço de sala de aula. E ainda, se apreender os conteúdos e competências do campo das Ciências da Natureza para as questões das biodiversidades está reduzido a reproduzir o modelo científico de forma neutra, sem considerar os sujeitos e sujeitas, suas histórias e memórias de grupos e culturas às quais pertencem.

Mesmo compreendendo essa logística, a perspectiva da oficina pedagógica marcada pelo adjetivo intercultural atua justamente em transgredir essas estruturas a partir dos diálogos inaugurados pelas controvérsias que envolvem esses sujeitos(as), cujo recorte é delimitado pelas relações nas/das biodiversidades locais. Para criar um espaço aberto ao processo de diálogo e que considere a diversidade cultural é que essa pesquisa teve as OPI como iniciativa que viabilizou o posicionamento dos estudantes. Por isso, a mediação estimulou os(as) participantes a ocuparem a dinâmica da OPI provocando-os(as) para posicionamentos perante as situações-problemas, buscando outras possibilidades de interação e diálogos entre mediador(a)-participante e participante-participante para além dos discursos de performatividade.

Embora o planejamento da OPI tivesse essa intenção, as fases mais iniciais das discussões de cada situação-problema ficaram marcadas pelos posicionamentos de maiores performances pedagógicas. Ball (2010BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa.Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 37-55, 2010., p.40) explora que a performatividade ocorre em dois sentidos, de dentro para fora e de fora para dentro, sendo que, no primeiro caso as

[...] performances objetivam, por um lado, a construção cultural, a instilação do orgulho, a identificação. [...] De outro lado, avaliações e classificações, postas dentro da competição entre grupos dentro das instituições, podem engendrar sentimentos individuais de orgulho, de culpa, de vergonha e de inveja - que tem uma dimensão emocional (status), assim como (a aparência de) racionalidade e objetividade.

No caso de ocorrerem de fora para dentro“[...] lida com o regime britânico das inspeções escolares e que examina a experiência dos professores dessas inspeções como sendo um conflito de valores, uma colonização de suas vidas e a desprofissionalização de seus papéis” (Ball, 2010BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa.Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 37-55, 2010., p.40).

Em termos concretos, havia sempre a busca incorporação dos discursos oficiais que são postos nas dinâmicas de aprendizagens para professores(as) em formação inicial, tais como, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que estava no início de sua implementação impositiva. Muitas críticas acerca dessa implementação foram debatidas como, por exemplo, nos textos de Franco e Munfor (2018FRANCO, L.G & MUNFORD, D. Reflexões sobre a Base Nacional Comum Curricular: um olhar da área de Ciências da Natureza.Horizontes, v. 36, n. 1, p. 158-171, 2018.) e Filipe; Silva e Costa (2021FILIPE, F. A.; SILVA, D. dos S & COSTA, Áurea de Carvalho. Uma base comum na escola: análise do projeto educativo da Base Nacional Comum Curricular.Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, v. 29, p. 783-803, 2021.), porém, essa imposição de execução desse currículo comum na educação básica também chega de maneira prescritiva na formação docente. Nesses processos impositivos, prescritivos e imperativos colocou-se em voga o discurso da ciência moderna como o norteador desses discursos oficiais e dos elementos que devem compor a formação educativa. Há que se pensar que a produção de conhecimento científico que aprendemos e que construímos é nomeada de ciência moderna, modo do fazer científico concebido no espaço-tempo da modernidade e que disseminou, expandiu e utilizou dos achados da ciência para atender um projeto de sociedade (Mignolo, 2003MIGNOLO, W. D.Histórias locais-projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Ed. ufmg, 2003.; Santos, 2007WALSH, C. Estudios (inter)culturalesen clave decolonial. Tabula Rasa, n. 12, p. 209-277, 2010.). Assim, o nortear põe em centralidade o modelo de pensamento do norte global (berço da modernidade e dessa produção de ciência) nas orientações formativas (Santos, 2007WALSH, C. Estudios (inter)culturalesen clave decolonial. Tabula Rasa, n. 12, p. 209-277, 2010.). À vista disso, o discurso da ciência moderna se torna o parâmetro para validar o que é ou não conhecimento, modelo que se expressa, também, em discursos oficiais da educação.

Essa conjuntura aparece em algumas interações evidenciando tensões do posicionamento performático quando foi posto em debate o contexto fictício de um professor que anuncia durante uma reunião pedagógica sobre a pluralidade cultural sugerida no currículo vigente. Nessa situação-problema o professor diz:

“Nossa escola está situada em um centro urbano, não atendemos regiões rurais, não temos alunos destas nem de outras origens. Promover um espaço em que esses diferentes conhecimentos culturais dialoguem só é possível onde é evidente a pluralidade cultural. Com minha bagagem de professor de biologia, não tenho competências necessárias para falar de várias culturas, que não seja a nossa. ” (excerto da situação-problema utilizada na OPI, grifos dos autores)

O grupo que discutiu no primeiro momento da OPI sobre esse caso tinha a nossa participante como uma das integrantes e quando socializaram as reflexões e posicionamentos sobre essa declaração, ela protagonizou o seguinte diálogo com outro participante:

A: Esse é um professor de zona urbana né?

B: É, o professor da escola no geral, menos nos parâmetros curriculares nacionais...

A: Ele tem essa experiência. Agora nós como os professores, educadores do campo, nós já temos uma visão diferente né ao termo que esse professor respondeu. Podemos concluir que segundo esse professor, não tem interesse nenhum né, sobre a cultura do homem, ele se fechou naquela hipótese que ele acredita. Um professor limitado aos seus conhecimentos, criando para si próprio a barreira e ao mesmo tempo ele supõe que não tem experiência, não tem convivência com regiões rurais e nem outras origens.

Percebemos que nesses momentos, com o exemplo do diálogo acima, à medida em que os(as) participantes interagiam a partir de algumas tensões entre o discurso oficial do conhecimento científico e pedagógico, outras construções que fugiam desse parâmetro apareciam. Quando a participante A lança o questionamento se esse é um professor de zona urbana é provocando um olhar para hegemonia que o lugar da cidade ocupa, enquanto uma ordenação social e cultural que reflete em uma relação própria e universal com a biodiversidade. Essa é uma reflexão base do curso de Licenciatura em Educação do Campo, sendo assim, esse questionamento retoma a discussão de que normalmente os contextos urbanos são o foco da formação docente, portanto o processo de formação para atuar nele é urbanocêntrico e que corresponde a uma cultura única.

No entanto, quando B responde a essa pergunta e diz que é “um professor da escola no geral”, houve um esforço de amenizar essas contradições e tensões que a pergunta da participante A está ancorada e pretendia problematizar dado o contexto de formação em que está participando e a segregação (intencional) entre campo-cidade que a própria situação evidencia. A fala de B pode ter sido motivada pelas próprias representações genéricas de professor que é construída no campo da formação docente, uma espécie de performance pois atua “como um sistema de medidas e indicadores (signos) e jogo de relações” (Ball, 2010BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa.Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 37-55, 2010., p.41).

A performatividade para Ball (2010BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa.Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 37-55, 2010.) é fundamentada em dois autores, Layotard e Butler, ainda que essa discussão seja feita em dimensões e contextos diferentes de pesquisa. Porém, esses autores ajudam a construir a ideia da performatividade pois concebe como um modo de encenação (Butler, 1990BUTLER, J. Gender Trouble. Londes: Routledge, 1990) e de mecanismo que maximiza aquilo que sai, que é expresso, e minimiza o que entra (Layotard, 1984), ou seja, poderia ser a própria reflexão e contradição a respeito do discurso que está pauta. Então a resposta que delimita uma encenação de lugares e expectativas é mais importante e impõe limites a expor as contradições do que foi apreendido. Ball então diz que “essa forma perversa de resposta/resistência e acomodação à performatividade, que eu chamo de fabricação” (2010, p.41).

Nessa dinâmica em que a performatividade, ainda que sutil nesse dado, pode ser reflexo de fabricações que estão constituindo esse processo de formação, a estudante A é mais enfática sobre o que a pergunta anterior feita gostaria de ter suscitado. Assim ela diz “Agora nós como os professores, educadores do campo”, demarcando uma identidade que não corresponde à generalização profissional do professor forjado por uma formação urbanocêntrica. Ela ainda continua com “Podemos concluir que segundo esse professor, não tem interesse nenhum [...] limitado aos seus conhecimentos, criando para si próprio a barreira e ao mesmo tempo ele supõe que não tem experiência”. O posicionamento da estudante teve um papel importante frente ao ritual performático do lugar e identidade docente, ela chama a responsabilidade para o grupo de estudantes apresentando as assimetrias que essa situação-problema apresenta frente a própria formação docente. Além do próprio curso de Licenciatura em Educação do Campo enfrentar em termos de resistência a essas projeções das fabricação e performance docente distanciada das relações socioculturais e, consequentemente, das relações nas diferentes biodiversidades.

Se esse primeiro momento demarca questões de performatividade, percebemos que o tom das interações foram mudando e tensionando esse modelo de fabricações na economia educacional, conforme intitula Ball (2010BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa.Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 37-55, 2010.). Uma outra interação da licencianda A se desponta durante a discussão de outra situação-problema quando incitados sobre o que é verdade em relação à validade dos saberes, as indagações sobre o método de comprovação e a utilização ao longo de gerações e seus efeitos. Foi um consenso validar as formas de conhecimentos produzidos por culturas ao longo de gerações, no entanto, há um debate que se volta para o pensamento geral da epistemologia colonizadora, em que o selo do que é notório vem da ciência moderna.

O mesmo participante B volta a participar dizendo que “[...]falta... vamos dizer rótulo, é quase que rotular mesmo. Comprovado é, falta um rótulo, um CPF, a identidade do produto, que é cientifico! É o meu ponto de vista.”. É reafirmado pelos posicionamentos desse estudante em a partir da mediação do(a) pesquisador(a) que os elementos discursivos que não correspondem à ordem de linguagem e método científico - ciência moderna -, não são legitimados, o que Bhabha (1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.) nomearia estes estando fora da sentença, mesmo sendo emergente nas experiências dos sujeitos. Ainda que tenha essa convicção nesse posicionamento, não são personificadas as experiências íntimas dos sujeitos que remetam a essa biodiversidade local, ficando somente presa a questões mais amplas. Dá-se a ideia de segregação entre o discurso científico e as questões experienciais, sendo que essa dicotomia é demarcada por um limite, linha abissal (Santos, 2007WALSH, C. Estudios (inter)culturalesen clave decolonial. Tabula Rasa, n. 12, p. 209-277, 2010.), que marca, aparentemente, a emergência dos posicionamentos performáticos e as fabricações dos discursos tensionados por esses lugares das experiências nas biodiversidades locais que também são discursivos.

Esse limite abranda esses dois discursos que podem ser contraditórios entre si, e a linguagem que ameniza essas contradições guardam gestos performáticos e mantém esses discursos de forma segregadas já que não são consensuais. A aposta na interculturalidade crítica está no processo inverso ao de segregação, na ruptura da racionalização ocidentalizada que evita o diálogo de conhecimentos epistemológicos e o agir cotidiano cultural (Walsh, 2005WALSH, C. Interculturalidad, conocimientos y descolonialidad. Signo y Pensamiento. Bogotá, vol. 24, n. 46, p. 39-50, enero/jun. 2005.; Santos, 2007WALSH, C. Estudios (inter)culturalesen clave decolonial. Tabula Rasa, n. 12, p. 209-277, 2010.; Candau, 2020CANDAU, V. M. F. Didática, Interculturalidade e Formação de professores: desafios atuais.Revista Cocar, n. 8, p. 28-44, 2020.) na construção de outros conhecimentos que são manifestados discursivamente. Nas contradições preexistentes entre eles, o diálogo não atravessa esse limite performático, tende a ser separado em compartimentos ora do que cientificamente é esperado que fosse dito, ora em momentos em que o sujeito pode aparecer com suas opiniões apenas.

O contexto desse diálogo despertou interações mais íntimas da licencianda que traz a comparação da medicina e os curandeiros. Nesse momento, a sujeita traz algumas de suas questões vivenciadas, relacionado à verdade de comprovação por meio da utilização e seus efeitos como os curandeiros faziam.

A: “Isso conclui tanto que a medicina tomou o lugar dos curandeiros porque antes eles tinham os remédios próprios e as garrafadas né e as pessoas curavam, existia as parteiras... minha mãe teve 8 filhos, nascemos de parteiras, foi a parteira que fez o partos da minha mãe. As mulheres antigamente tinham 16 filhos, tinha as parteiras que faziam os filhos, e as doenças, um corte que você levava na perna, fazia um salmoura forte assim jogava na perna, fazia um torniquete, no outro dia tava sequinho, a cicatriz. Hoje uma pessoa leva um corte, corre lá pro pronto socorro pra suturar.”

Mediador:“Aí chega la no pronto socorro e pega infecção.”

A: “Pega infecção aí o trem complica mais. Se tomava um tiro a pessoa ia e retirava a bala, hoje...Não... uma pneumonia você se curava em casa, até hoje, se for pra mim fazer um remédio pra mim tomar, eu corro de injeção, vou no hospital de jeito nenhum. [...] Então eu sou filha de mandingueiro sabe (risos), tem que fazer, tem que tomar mesmo a xaropada, e eu não troco as raízes por medicação não, nem pros meus filhos eu dou. Meus filhos foi criado assim ó, fazia uma garrafada de mamadeira com gema, colocava folha de alfavaca folha de.. como chama aquela outra folha... hortelã e ali menino expectorava tudo, não internava eles com pneumonia não, era remédio caseiro. É... ixi... assim foi muitos remédios, diarreia ia la no mato pegava aquelas folhas , broto de abobora, esses trem, pegava broto de goiaba, esfregava e eles faziam careta e bebiam (risos), sarava. E minha filha vai levar meus netos no médico eu dano com ela: Não vai não, a vó vai fazer um remédio bom pra você.”(A2)

Mediador:“E a senhora trabalhou no hospital.”

A:“E eu trabalhei no hospital (risos) vinte e oito anos e você sabe o que acontecia, lá é obrigado a tomar vacina né, lá não trabalha sem tomar vacina, aí e eu trabalhei lá muitos anos e sempre tive que mostrar o cartão, eu mostrei o cartão duas vezes só. [...] Não deixo morrer esse conhecimento popular de jeito nenhum. [...] Eles lançam uma bactéria lá no laboratório lá pra matar a superbactéria e brota outra maior ainda e ainda come aquela bactéria. Então é difícil, você tem que controlar os dois, você tem que tomar o remédio caseiro e tem que ir no médico, você não descarta a medicina, entendeu, mas eu não vou no médico. Eu fui três vezes pra mim ganhar neném porque hoje em dia não tem parteira mas meus meninos foi parto cesárea.”

Nesse posicionamento a estudante passa da relação genérica sobre relações entre a cultura científica e popular para um universo simbólico sobre a biodiversidade de onde se constitui e representa. Esse universo é caracterizado quando se remete a experiências e conhecimentos compartilhados pela oralidade e tradição, que se perpetuam em seu pensar na relação das plantas medicinais e medicina/farmácia ocidental. Os elementos como a xaropada de raízes, mamadeira de gema, alfavaca e hortelã, que eram administrados em casos de pneumonia, ou mesmo as folhas, broto de abóbora e de goiaba para diarreia, são artefatos relacionados à biodiversidade que facilmente seriam abordados e categorizados na diversidade da flora enquanto conteúdo disciplinar dos cursos formadores de professores em Ciências da Natureza. No entanto, a forma como o posicionamento emerge carrega símbolos não somente demarcados pelo conteúdo curricular, mas com sentidos vivenciados numa íntima relação dessa sujeita, de uma relação na biodiversidade local e que inauguram um outro olhar sobre as relações nas biodiversidades.

Percebemos, portanto, que há um discurso que versa sobre os conhecimentos das Ciências Naturais, mas que produz sentidos singulares da estudante, por fazer fronteira com artefatos socioculturais oriundos de sua biodiversidade local. Essa relação não significa uma mescla ou junção dessas construções de pensamentos, mas uma coexistência pela alteridade de modo que a sujeita discerne e concebe ambos os saberes, projetando-os, mediantes ao contexto, em um híbrido cultural (Bhabha, 1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.; Santos, 2007SANTOS, L. A.; BOCCARDO, L. O conceito de biodiversidade em artigos de educação ambiental no Brasil / The concept of biodiversity in environmental education articles in Brazil.Brazilian Journal of Development,[S. l.], v. 7, n. 7, p. 66786-66804, 2021. DOI: 10.34117/bjdv7n7-111. Disponível em:Disponível em:https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BRJD/article/view/32477 . Acesso em: 14 jul. 2024.
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).

O antropólogo García Canclini é um aporte importante para a análise da construção do híbrido defendido aqui. O autor desenvolve em seu livro sobre cultura híbrida (2008) a partir da reflexão sobre como o mundo multicultural decorrente do processo de globalização implicou na justaposição das diferenças culturais que, por sua vez, contribuem para homogeneizar as relações culturais. Assim, parte do princípio que tudo que se busca caracterizar de modo puro, ou seja, critérios que vão segregando espaços, sujeitos(as), conhecimentos, há uma tendência de impor processos de dominação. Nesse sentido a cultura híbrida é constituída por discursos que não são dados a partir de bricolagens da diferença cultural, mas de combinações que resultam em recombinações, novos sentidos e ressemantização da diferença (García Canclini, 2008GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; tradução da introdução Gênese Andrade. 3. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.).

Uma representação desse movimento é quando a licencianda A, mulher negra, de uma cidade marcada pelas relações agrárias (e que faz fronteira geograficamente com a cidade em que cursa a licencitura, sendo um cenário convergente aos dois contextos), mãe, funcionária aposentada de um posto de saúde, estando nesse lugar de estudante da licenciatura em educação do campo se posiciona acionando vários sentidos construídos desses lugares em que transita ou transitou. Esse posicionamento ecoa não de uma maneira pura e performática do que se espera de uma licencianda, pelo contrário, é muito contraditório porque ultrapassa os limites do discurso da performatividade e a expõe pelas contradições que atravessam suas relações na biodiversidade local.

A relação de raizeiros nesse contexto é importante pois apesar de pouco ser falado, há um modo de operar desses sujeitos(as) que resistem à lógica de dizimação das práticas de curas pelas plantas ditas medicinais frente a alopatia como método universal de cura. Mesmo com as recusar dessas práticas populares conforme Castro (2000CASTRO, D. E. Entre o saber médico popular e a alopatia: astúcias e persistências-Uberabinha (1900-1930). 2000.) analisa neste contexto geográfico do qual a licencianda fala e vive, é possível observar bancas de raízes perto dos hospitais mais procurados dessas cidades em que a licencianda circula.

Por isso, ela atribui sentidos particulares e cognitivos - importantes para a formação -, à construção do posicionamento/discurso que não são caracterizados apenas por uma delimitação geográfica e epistemológica, mas promove trânsitos a partir do que Bhabha (1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.) chama de interstício. Isso quer dizer que o interstício é o lugar discursivo que subverte a lógica de purificação que sedimenta os discursos que constituem as culturas, identidades, conhecimentos.

A biodiversidade local por ser um espaço também discursivo possibilita a emergência de novos espaços narrativos fora da linearidade postulada historicamente, tal qual corrompe esses sentidos individuais visando um processo de homogeneização (Bhabha, 1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.). O rompimento serial dentro da temporalidade histórica ocidental evidencia a contingência histórica do sujeito, conceito discutido por Bhabha (1998) que diz sobre a condição das recordações e gestos revisitados contidos no sujeito. As relações dadas na biodiversidade local estão contidas no sujeito e, nesse caso, foi exteriorizada no discurso que uniu vários sentidos, significados e símbolos que remetem ao que está compreendido na atribuição de valores simbólico desse lugar de fala da participante.

Assim, ela constrói seu posicionamento deslocando os discursos de performance e se posiciona a partir dos elementos que são particulares de suas vivências e que são caros à perspectiva do lugar da futura professora de Ciências. Nessa construção do posicionamento nota-se a identidade sociocultural e de futura professora da sujeita. Assim, a posição interlocutora da sujeita manifestou-se em um posicionamento sobre o universo de sua biodiversidade local. Em segundo, olhando para esse contexto de formação, que traz as alusões da biodiversidade local normalmente está fora da sentença (Bhabha, 1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.), há um discurso híbrido (García Canclini, 2008GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; tradução da introdução Gênese Andrade. 3. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.) constituídos da identidade sociocultural e de professora em formação, não sendo nem um, nem outro, mas ambos.

A sujeita em formação inicial defende o uso da medicina ocidental juntamente com a medicina dita como alternativa ou popular, mas logo em seguida afirma que ela não aceita, para ela, os fármacos processados pelas técnicas ocidentais. Portanto, esses elementos que estão presentes na biodiversidade concreta e geográfica possuem significados e sentidos enunciativos que constituem a identidade dessa sujeita, seja em qualquer posição que ocupar. Por isso manifesta o fenômeno da hibridação, não justapõe as controvérsias dos discursos, ao contrário disso, evidencia essa construção como assimétrica.

O contexto extraverbal da formação docente em que as memórias da sujeita foram proferidas subverte os rituais, performances e fabricações que estruturam a economia educacional, conforme Ball (2010BALL, S. J. Performatividades e fabricações na economia educacional: rumo a uma sociedade performativa.Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 37-55, 2010.) nos apresenta. Esses elementos são artefatos que podem articular o diálogo entre as culturas. Para Volóchinov (2017VOLOSHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9.ed.São Paulo: Hucitec, 2017.), a compreensão dos discursos se produz sempre na relação onde ele está inserido. Por isso, ao se falar das raízes, plantas como administração de doenças, há toda uma discussão científica que se opõe a esse discurso, mas que ao mesmo tempo, tem sua base nele, como foi mencionado no início das discussões. Ao passo que quando é trazido a não utilização de medicamentos industrializados no lugar de raízes, mas ao mesmo tempo, que se necessário é preciso utilizar os dois, mesmo que para o sujeito isso não seja aceitável. Isso porque as defesas sobre visões a respeito de recursos com fins medicinais que extrapolam a medicina ou farmácia ocidental não podem ser postas à validação como certas nem erradas a partir dos critérios das linhas abissais formalizados pois correspondem a outra ordem de conhecimento (Santos, 2007SANTOS, L. A.; BOCCARDO, L. O conceito de biodiversidade em artigos de educação ambiental no Brasil / The concept of biodiversity in environmental education articles in Brazil.Brazilian Journal of Development,[S. l.], v. 7, n. 7, p. 66786-66804, 2021. DOI: 10.34117/bjdv7n7-111. Disponível em:Disponível em:https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BRJD/article/view/32477 . Acesso em: 14 jul. 2024.
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).

Esse fenômeno que o discurso da licencianda demonstra transcendem a compartimentalização curricular, construindo possíveis pontes interculturais, negociações de sentidos sem promover invasão cultural. O ensino de Ciências e a formação inicial de professor(a) do campo se revelaram como um espaço interessante para negociação de sentidos e significados quando o foco das constradições são visualizadas em um espaço híbrido. Apesar das contradições que surgem nessas negociações, se pretende garantir a ampliação dos discursos, pluralizando os discursos circulantes na formação é possível construer espaços interculturais (Walsh, 2005WALSH, C. Interculturalidad, conocimientos y descolonialidad. Signo y Pensamiento. Bogotá, vol. 24, n. 46, p. 39-50, enero/jun. 2005.). Esse diálogo pode acontecer por pontos de sutura, pontos de encontro que mobilizam diferentes perspectivas de pensamento por consensos e dissensos (Aikenhead, 2009AIKENHEAD, G. S. Educação científica para todos. Tradução de Maria Teresa Oliveira. Mangulade: Edições Pedago, 2009.) sem esvaziar o currículo das contradições socioculturais que atravessam as relações dos sujeitos(as) e das biodiversidades locais.

Por fim, vale lembrar que essa negociação do discurso não é apostar ou permitir um olhar negacionista da ciência moderna. Não negamos a ciência! Reconhecemos o discurso da ciência moderna como importante para nossas histórias e sociedades, porém reinvidicamos o fato dela não reconhecer as outras ciências, conhecimentos tradicionais historicamente legitimados pelas relações socioculturais nas biodiversidades. Além disso, estamos atentos, refletindo e questionando quando esse conhecimento científico moderno é vendido às lógicas de dominação em que a nossa sociedade foi fundada e que a mantém. É fundamental para a formação docente compreender como as desigualdades nas formas de conceber as diferentes ciências podem atuar na manutenção de dominações a partir da colonização dos conhecimentos que são reduzidos a performances de discursos hegemônicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A biodiversidade local se constitui como um elemento intercultural pois é construída por gestos e oralidades que denotam discursos sobre as relações nas biodiversidades. Nesse sentido, é importante analisar como os discursos sobre a biodiversidade tem atuado no processo de formação docente bem como buscar saídas que enfrentem as possíveis homogeneizações.

Vimos nos resultados que, por um lado, há um movimento que tensiona a aposta de uma perspectiva universal que busca uma hegemonia das leituras sobre a biodiversidade culminando em posicionamentos de uma cultura performática. O que quer dizer endossos à redução conceitual e generalizada da biodiversidade. Por outro lado, foi observada, a partir das relações íntimas desses(as) futuros(as) professores(as), uma construção discursiva de negociação dos discursos que analisamos mediados pela interculturalidade crítica. O trânsito entre os discursos, bem como as contradições deles, são considerados parte do processo formativo que podem provocar negociações de sentidos sobre a biodiversidade local.

Esses principais aspectos foram analisados e discutidos frente aos movimentos discursivos que a licencianda A fez nas interações da OPI. Essa dinâmica que tensiona os posicionamentos performáticos sobre a biodiversidade expressa algumas referências da interculturalidade crítica como fundamentação teórico-metodológica para a formação docente em Ciências e da Licenciatura em Educação do Campo. Ainda ressaltamos que o estudante B foi um interlocutor importante para análise desses movimentos dialógicos dos discursos da estudante, que ora foi em resposta aos posicionamentos dele, ora em contrapalavra - no sentido bakthiniano - a um contexto extraverbal mais amplo da formação docente ou das próprias vivências socioculturais da estudante A. Essa característica pode ter sido um potencial provocador dos movimentos discursivos deste momento de formação, guarda interesses anunciados pela interculturalidade crítica e aponta para outras performances e outros sentidos desde e da(s) a biodiversidade(s) local(is).

Assim, é importante dizer que quando falamos em formação intercultural, normalmente se espera referenciar as modalidades formativas cujo foco são grupos “socialmente diferenciados”, sendo a Licenciatura em Educação do Campo um exemplo. Embora nesses cursos sejam construídos com preocupações mais agudas para garantir o foco em questões socioculturais específicas, o desafio é pensar desdobramentos para todos os modelos de formação docente. Aqueles cursos reconhecidos como “regulares” necessitam, sobretudo, passar por desnaturalizações socioculturais e sair do lugar “acultural”. Portanto, ainda que esses fundamentos e reflexões interculturais tenham sido exemplificados em uma licenciatura cuja modalidade não é reconhecida como “regular”, esses desdobramentos não se tratam de limitar as potencialidades das OPI e do próprio fundamental intercultural apenas para essas formações.

É nesse sentido que a interculturalidade crítica é apostada e analisada desde o contexto metodológico da OPI como modo constitutivo de se pensar mobilizações dos desejos, subjetividades, conteúdos, currículos, metodologias, saberes, performances e geo-grafias da e na formação docente. Sendo defendido aqui como ainda mais fundamental para o foco na formação em Ciências da Natureza, pois a biodiversidade se configura como ponto de partida das especificações em que esse campo de conhecimento se debruça.

Agradecimentos

Agradecemos a Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio concedido a essa pesquisa e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais(FAPEMIG - Processo: BPG-00137-22) pela continuidade dos estudos que contribuíram para a publicação dessa investigação.

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  • O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à Universidade Federal de Ouro Preto pela verba para editoração do artigo.

Editado por

Editora responsável: Rosana Louro Ferreira Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2023
  • Aceito
    06 Ago 2024
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