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O papel do problema nas questões sociocientíficas e na dinâmica discursiva da sala de aula

El papel del problema en las cuestiones sociocientíficas y en la dinámica discursiva del aula

The role of the problem in the socioscientific issues and in the discursive dynamics of the classroom

RESUMO:

Com base na teoria sócio-histórico-cultural da atividade e no programa de pesquisa das questões sociocientíficas, discute-se o papel do problema como elemento de continuidade e articulação entre atividades de uma sequência didática, a partir da análise do movimento discursivo da problematização e deslocamento de contextos com o fim de produzir significado aos conteúdos, bem como negociar motivos entre professores e estudantes. Para tanto, um conjunto de aulas executadas em uma sequência didática foi categorizado para identificar “atividades”, “conteúdos”, “problema” e a articulação dessas duas últimas categorias. Em seguida, foram analisadas estratégias discursivas mobilizadas por uma professora de Química e por seus estudantes em um episódio representativo do processo de compreensão e resolução do problema. Constata-se que a multidimensionalidade da abordagem problematizadora contribui para a negociação e o compartilhamento de motivos e tem potencial para expandir a influência do programa de pesquisa das questões sociocientíficas sobre outras esferas da sociedade além da própria escola.

Palavras-chave:
Atividade; contexto; interação discursiva; problematização; questões sociocientíficas

RESUMEN:

A partir de la teoría socio-histórico-cultural de la actividad y del programa de investigación de las cuestiones sociocientíficas, se discute el papel del problema como elemento de continuidad y articulación entre actividades de una secuencia didáctica, a partir del análisis del movimiento discursivo de problematización y desplazamiento de contextos con el fin de producir significado al contenido, así como negociar motivos entre profesores y estudiantes. Para ello, se categorizó un conjunto de clases realizadas en una secuencia didáctica para identificar “actividades”, “contenidos”, “problemas” y la articulación de estas dos últimas categorías. A continuación, se analizaron las estrategias discursivas movilizadas por una profesora de Química y sus alumnos en un episodio representativo del proceso de comprensión y resolución del problema. Parece que la multidimensionalidad del enfoque problematizador contribuye a la negociación y el intercambio de motivos y tiene el potencial de ampliar la influencia del programa de investigación sobre cuestiones sociocientíficas en otras esferas de la sociedad más allá de la escuela misma.

Palabras-clave:
Actividad; contexto; cuestiones sociocientíficas; interacción discursiva; problematización

ABSTRACT:

Based on socio-historical-cultural theory of activity and on the research program of the socio-scientific issues, the role of the problem as an element of continuity and articulation between activities of a didactic sequence is discussed, based on the analysis of the discursive movement of problematization and displacement of contexts to produce meaning to contents, as well as negotiate motives between teachers and students. To this end, a set of classes carried out in a didactic sequence was categorized to identify “activities”, “contents”, “problem” and the articulation of these last two categories. Next, discursive strategies mobilized by a Chemistry teacher and her students were analyzed in a representative episode of the process of understanding and solving the problem. It appears that the multidimensionality of the problematizing approach contributes to the negotiation and sharing of motives and has the potential to expand the influence of the research program on socio-scientific issues on other spheres of society beyond the school itself

Key words:
Activity; context; discursive interaction; problematization; socioscientific issues

INTRODUÇÃO

Na área de Educação em Ciências, o papel dos problemas têm ganhado espaço no programa de pesquisa das Questões Sociocientíficas (QSC), sendo definidas como situações de interface entre a sociedade e a ciência que possuem caráter controverso por evocarem temas complexos de ampla repercussão social e por essa característica serem amplamente veiculadas pelos instrumentos de mídia, gerando divisão de opiniões e julgamentos de valor (Ratcliffe & Grace, 2003Ratcliffe, M., & Grace, M. (2003) Science Education for citizenship: teaching socio-scientific issues. Philadelphia: Open University Press .; Zeidler, 2003Zeidler, D. L., & Keefer, M. (2003) The role of moral reasoning and the status of socioscientific issues in Science Education: philosophical, psychological and pedagogical considerations. In Zeidler, D.L. (Ed). The role of moral reasoning on socioscientific issues and discourse in Science Education. (pp. 7-38) Dordrecht: Kluwer Academic Publishers .; Zeidler & Nichols, 2009Zeidler, D. L., & Nichols, B. H. (2009). Socioscientific issues: Theory and practice. Journal of Elementary Science Education, 21(2), 49-58. Recuperado dehttps://doi.org/10.1007/bf03173684
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; Santos, 2009Santos, W. L. P. D. (2009). Scientific literacy: A Freirean perspective as a radical view of humanistic science education. Science Education, 93(2), 361-382. Recuperado de https://doi.org/10.1002/sce.20301
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; Pedretti & Nazir, 2011Pedretti, E., & Nazir, J. (2011). Currents in STSE education: Mapping a complex field, 40 years on. Science Education, 95(4), 601-626. Recuperado de https://doi.org/10.1002/sce.20435
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; Martínez-Pérez, 2012Martínez-Pérez, L. F., & Carvalho, W. L. P. de. (2012). Contribuições e dificuldades da abordagem de questões sociocientíficas na prática de professores de ciências. Educação E Pesquisa, 38(3), 727-741. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S1517-97022012005000014
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; Martínez-Péres & Carvalho, 2012Martínez-Pérez, L. F. (2012) Questões sociocientíficas na prática docente: ideologia, autonomia e formação de professores. São Paulo, SP: Editora UNESP.). Em publicação recente sobre QSC, Conrado & Nunes-Neto (2018Conrado D. M., & Nunes-Neto, N. (Orgs.). (2018). Questões sociocientíficas : fundamentos, propostas de ensino e perspectivas para ações políticas. Salvador, BA: EDUFBA.) fornecem um panorama do interesse e atualidade deste programa de pesquisa no ensino de ciências sobre propostas de ensino, perspectivas e experiências de trabalho colaborativo em alguns países, sobretudo pelo enfoque crítico e emancipatório.

Segundo Martínez-Pérez e Parga Lozano (2013Martínez-Pérez, L. F., & Parga Lozano, D. L. (2013). La emergencia de las cuestiones sociocientíficas en el enfoque CTSA. Góndola, Enseñanza y Aprendizaje de las Ciencias, 8(1), 23-35. Recuperado dehttps://doi.org/10.14483/23464712.5021
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), o programa de pesquisa das QSC marca uma reconfiguração da educação Ciência Tecnologia Sociedade e Ambiente (CTSA). Pedretti e Nazir (2011Pedretti, E., & Nazir, J. (2011). Currents in STSE education: Mapping a complex field, 40 years on. Science Education, 95(4), 601-626. Recuperado de https://doi.org/10.1002/sce.20435
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) em uma revisão bibliográfica sobre o movimento CTSA no ensino de ciências colocam como ponto de inflexão o surgimento do estudo das QSC de modo a promover uma maior integração entre as diferentes esferas estudadas. Santos (2009Santos, W. L. P. D. (2009). Scientific literacy: A Freirean perspective as a radical view of humanistic science education. Science Education, 93(2), 361-382. Recuperado de https://doi.org/10.1002/sce.20301
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), em sua perspectiva Freireana para a educação científica, sugere o estudo de QSC para fomentar o questionamento da lógica capitalista e mercadológica de acesso à ciência e à tecnologia.

Também no escopo das QSC, Zeidler e colaboradores propõem um modelo para o ensino de ciências chamado de alfabetização científica funcional (Zeidler & Keefer, 2003Zeidler, D. L. (Ed.). (2003) The role of moral reasoning on socioscientific issues and discourse in Science Education. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.; Zeidler, Sadler, Simmons, & Howes, 2005Zeidler, D. L., Sadler, T. D., Simmons, M. L., & Howes, E. V. (2005). Beyond STS: A research-based framework for socioscientific issues education. Science Education, 89(3), 357-377. Recuperado dehttps://doi.org/10.1002/sce.
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). O modelo apresentado por Zeidler e Keefer (2003Zeidler, D. L., & Keefer, M. (2003) The role of moral reasoning and the status of socioscientific issues in Science Education: philosophical, psychological and pedagogical considerations. In Zeidler, D.L. (Ed). The role of moral reasoning on socioscientific issues and discourse in Science Education. (pp. 7-38) Dordrecht: Kluwer Academic Publishers .) inicia-se a partir dos objetivos da educação em geral, que seriam o desenvolvimento cognitivo e moral dos estudantes, a educação emocional e de suas crenças, e a educação moral para a formação de seu caráter. Para atingir a alfabetização científica funcional, os autores defendem que as QSC contemplem aspectos epistemológicos, discursivos, culturais e didáticos responsáveis por fazer a conexão entre os objetivos gerais da educação e os objetivos da educação científica.

Conrado e Nunes-Neto (2018Conrado D. M., & Nunes-Neto, N. (Orgs.). (2018). Questões sociocientíficas : fundamentos, propostas de ensino e perspectivas para ações políticas. Salvador, BA: EDUFBA., p. 87-8) definem QSC como problemas ou situações controversos, considerando tanto os conhecimentos científicos quanto os conhecimentos históricos e filosóficos como fundamentais para sua compreensão e solução. Da perspectiva destes autores, destacamos também os aspectos afetivos e contextualizadores como fatores de engajamento dos estudantes de modo a torná-los sujeitos ativos e responsáveis por suas atitudes e decisões. Nesta coletânea, diversas perspectivas de planejamento didático tomam as QSC como elemento de articulação das atividades de ensino, seja na forma de casos específicos ou projetos mais amplos.

Os interesses da pesquisa sobre QSC são amplos e diversificados e neste trabalho iremos destacar um elemento que nos parece central e está na própria origem da terminologia: socioscientific issues denota em primeiro lugar a aproximação entre ciência e sociedade a partir da junção dos termos ciência e sociedade, e indica, portanto, uma aproximação entre o empreendimento científico e o que genericamente encontra-se no escopo de outras instâncias da sociedade, como política, economia, direito, ética, religião etc. Admitimos que esta aproximação é problemática em um sentido de que dela derivam conflitos, tensões e contradições, que merecem em si atenção para promover o que tem sido chamado de letramento científico para compreensão pública da ciência (Shen, 1975Shen, B. S. P. (1975). Science Literacy: Public understanding of science is becoming vitally needed in developing and industrialized countries alike. American Scientist, 63(3), 265-268. Recuperado de http://www.jstor.org/stable/27845461
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). Consideramos limitada a perspectiva baseada na primazia do empreendimento científico para a sociedade, seja em seus conhecimentos ou produtos, ou em aspectos controversos da história e da filosofia da ciência como determinantes da seleção e didatização de temas, pois esta perspectiva privilegia o empreendimento científico em detrimento de outras práticas humanas que caracterizam as complexas relações entre ciência e sociedade. Esta relações devem ganhar um caráter problematizador na direção de promover o letramento científico que tome as relações e contradições entre ciência e sociedade em suas múltiplas dimensões.

A controvérsia também está na forma como o termo issues foi traduzido para as línguas latinas nas quais se têm utilizado o vocábulo questões. Dicionários da língua inglesa atribuem sentidos múltiplos para este termo que variam de tópico de discussão a assunto/tema ou problema em debate. Normalmente, o sentido atribuído a problema tem um caráter negativo, próximo à preocupação ou desentendimento. Já o sentido mais próximo a tema ou assunto imprime o caráter de relevância, importância ou mesmo sobre aquilo que está em discussão1 1 Os significados foram extraídos dos dicionários online Cambridge Dictionary (https://dictionary.cambridge.org/) e Oxford English Dictionary (https://www.oed.com/). . Admitimos que o termo questões não tipifica nem a complexidade das relações entre ciência e sociedade, nem mesmo engloba a dimensão contextual associada a um tema ou problema passível de didatização.

Dada a centralidade do conceito de problema para a Ciência e também para o desenvolvimento humano, tendo em vista que a transformação do ambiente natural para satisfazer necessidades comporta relações de conflito e interesse tanto em relação à dinâmica da interação entre espécies e seus meios de sobrevivência como em relação à própria dinâmica da interação social entre humanos, buscamos neste artigo recuperá-lo e redimensioná-lo enfocando uma das faces menos exploradas, qual seja, como o problema sociocientífico é trabalhado nas atividades de ensino e aprendizagem. Em nossa abordagem, sugerimos que a compreensão e a resolução de problemas se configuram em uma metodologia de ensino a instaurar movimentos discursivos por meio dos quais os estudantes apreendem conteúdos e refletem criticamente sobre as permanentes tensões entre ciência-sociedade-escola a fim de que se crie a motivação tanto para o seu estudo como também para transferir os conhecimentos, práticas e valores para sua vivência ampliada.

Dessa forma, a questão central desta pesquisa é como se desenvolve o problema sociocientífico em meio à dinâmica discursiva da sala de aula? Para respondê-la, apresentamos duas proposições: 1) que o problema é o elemento de continuidade e articulação entre atividades quando elas são planejadas para compreendê-lo e resolvê-lo, e 2) que o movimento discursivo da problematização se realiza pelo deslocamento de contextos evocados na sala de aula com o fim de produzir significado aos conteúdos, bem como para negociar os motivos de professores e estudantes. Para isso analisamos as estratégias discursivas mobilizadas em uma sala de aula sobre saneamento básico e qualidade de água de um córrego próximo à escola.

REFERENCIAIS TEÓRICOS

Modelo Topológico de Ensino

Um conceito central na teoria sócio-histórica-cultural é a mediação, isto é, o processo pelo qual ocorre a interposição de um terceiro elemento entre o sujeito e o objeto da atividade, elemento este que é responsável por estruturar a ação dos sujeitos orientada ao objeto. A partir de um estudo aprofundado sobre a obra de Vigotski, Wertsch (1991Wertsch, J. V. (1991) Voices of the mind. Cambridge, USA: Harvard University Press., 1998Wertsch, J. V. (1998) Mind as action. New York: Oxford University Press.) apresenta contribuições ao conceito de mediação ao reunir ferramentas instrumentais de mediação, ferramentas semióticas e ferramentas de pensamento em uma única categoria denominada “ferramenta cultural”, a qual está associada à tensão irredutível “agentes-agindo-com-ferramentas-culturais”, que se aproxima conceitualmente da tríade (sujeito)-(ferramenta cultural)-(objeto) originária da definição de atividade.

A partir dos estudos de Wertsch, Giordan (2013Giordan, M. (2013) Computadores e linguagens nas aulas de Ciências. (reimp.) Ijuí, RS: Editora Unijuí.) propõe uma adaptação da tensão irredutível direcionada às atividades de ensino e aprendizagem de Ciências, desenvolvendo o Modelo Topológico de Ensino (MTE). Admitindo-se que o ensino e a aprendizagem correspondem a um conjunto articulado de ações mediadas organizadas espacial e temporalmente com o propósito de se apropriar do objeto da atividade, o autor sugere três eixos estruturantes para organizar as ações didáticas: tema sociocientífico, atividades e conteúdos, os quais são articulados por um quarto elemento, o problema. O tema sociocientífico está situado na intersecção entre as esferas científica e social que constituem o cenário geral sobre o qual as atividades didáticas e os conteúdos são articulados. Ele funciona como o pano de fundo, ou uma fonte situacional, sobre a qual se criam os contextos de onde se engendra o problema sociocientífico para o qual convergem os motivos negociados e mobilizados pelo professor e pelos estudantes ao longo de uma sequência didática (SD). Em resumo, o MTE é um modelo didático baseado na teoria sócio-histórico-cultural e na práxis educativa, no qual professores e estudantes engendram problemas a partir de temas sociocientíficos, constroem soluções, negociam motivos e se apropriam de ferramentas culturais no sentido de se desenvolverem em múltiplas dimensões humanas.

Uma função importante do tema sociocientífico é subsidiar a produção de significados a partir do que podemos considerar como lentes que focam a realidade sob diferentes perspectivas (Burke, 1973Burke, K. (1973) The philosophy of literary form. Berkeley: University of California Press. apud Wertsch, 1998Wertsch, J. V. (1998) Mind as action. New York: Oxford University Press.), sejam elas científicas ou sociais. Essas lentes podem ser ajustadas por prismas mais ou menos colimados por arranjos epistêmicos e práticos que se consolidam em campos de conhecimento como a Ciência de modo geral, mas também podem sofrer ajustes para destacar os fenômenos em um determinado quadro histórico e cultural de modo a influenciar na aprendizagem e no desenvolvimento dos estudantes. Esta concertação de focos sobre a realidade amplia o potencial temático tanto para mobilizar interesses e necessidades de professores e estudantes, como para imergi-los na complexidade dos fenômenos em suas bases epistêmicas e axiológicas.

O tema sociocientífico atua como uma fonte conjuntural para a proposição do problema que tensionará, por um lado, os motivos de ensino e aprendizagem negociados por professores e estudantes, o que se dá pela disputa em torno de porque, como, quando e onde focar as múltiplas lentes, e por outro lado, pelo engendramento de elementos epistêmicos, axiológicos e práticos relativos ao conhecimento científico e ao contorno social que circunscrevem o tema no ambiente escolar. Fruto da negociação de motivos derivada das necessidades criadas pelo exame preliminar e engajador da realidade representada no tema, o problema sociocientífico se constitui em um elemento de articulação entre o planejamento e a ação didática. As necessidades de ensino e de aprendizagem negociadas em torno do tema sociocientífico afetam diretamente a vivência dos estudantes e dizem respeito ao valor que professores e estudantes atribuem à atividade escolar, conferindo ao problema um caráter motivacional e objetal (Leontiev, 2021Leontiev, A. N. (2021) Atividade, consciência e personalidade. Bauru SP: Mireveja Editora.).

Decorrentes do e articuladas ao problema, as aulas da SD são organizadas em diferentes atividades de ensino e aprendizagem cujos propósitos específicos são orientados para a compreensão e resolução do problema. É nas atividades didáticas definidas como ações mediadas por ferramentas culturais que se expressam os motivos que estão involucrados no problema sociocientífico, ou seja, os motivos negociados em torno do problema devem estar representados nos propósitos das atividades didáticas. No MTE, problema sociocientífico e motivo, assim como atividade didática e propósito são pares dialéticos constitutivos do planejamento curricular, o que implica articular ou ainda estabelecer uma tensão irredutível entre esses pares tanto para elaboração da SD como para sua execução. A problematização é o processo didático de compreensão e resolução de um problema sociocientífico inicialmente projetado no planejamento e posteriormente executado nas atividades de ensino e aprendizagem com a finalidade de engajar os estudantes em sua compreensão e resolução, de modo que eles se apropriem das ferramentas culturais e das formas de agir necessárias para suprir suas necessidades e para constituir seus motivos.

As dimensões epistêmica, prática, axiológica e afetiva do problema sociocientífico e o caráter mediador dos conteúdos implicam expandir seus limites para além da zona conceitual normalmente lastreada nos componentes curriculares ou disciplinas escolares. Os conteúdos escolares são ferramentas culturais empregadas por professores e estudantes para mediar suas formas de agir que, face à complexidade do mundo, estabelecem mediações epistêmicas, práticas, de valor, afetivas e mesmo estéticas com o objeto didático representado no problema sociocientífico. Os conteúdos desempenham a função central no desenvolvimento humano de mediar a transformação dialética que opera no sujeito e no mundo, ou seja, enquanto o sujeito transforma o mundo por meio de suas mediações, ele se transforma e se apropria das ferramentas culturais e de suas formas de mediação. A partir da perspectiva dialética, compreende-se o fato de o motivo que mobiliza os sujeitos nas atividades ter caráter multifacetado e negociado a partir das necessidades individuais e coletivas, pois ao mesmo tempo que serve para impulsionar e engajar os sujeitos, a amplitude de referências, interesses e valores atribuídos ao objeto da atividade instaura diferenças, disputas e tensões a serem compatibilizadas.

Outra fonte de variação dos conteúdos diz respeito aos suportes que os veiculam, ou seja, os meios empregados para expressar os modos semióticos ou de comunicação (Mortimer, Moro, & Sá, 2018Mortimer, E. F., Moro, L., & Sá, E. F. (2018) Referenciais teóricos utilizados na pesquisa: discurso, semiótica social e multimodalidade. In Mortimer, E. F., & Quadros, A. L. (Orgs.) Multimodalidade no Ensino Superior. (pp. 17-54) Ijuí, RS: Editora Unijuí .), classificados como incorporados e não incorporados. Fala, gesto e olhar são exemplos de modos de comunicação incorporados, enquanto escrita, imagem e leiaute são classificados como modos não incorporados (Norris, 2004Norris, S. (2004) Analyzing multimodal interactions: a methodological framework. New York: Routledge .). O papel central da mediação das ferramentas culturais no desenvolvimento humano está em reconhecê-las como constitutivas da linguagem, as quais ampliam as formas de agir no mundo e por conseguinte expandem as possibilidades de engendrar os problemas sociocientíficos, potencializando-os como objetos de atividades criativas porque diversificam os suportes e as formas de comunicação da sala de aula.

O MTE propõe um vínculo intencional entre o planejamento didático e as ações de ensino e aprendizagem por meio da problematização. No caso do planejamento, o processo de problematização inicia-se pela identificação de um objeto comum que mobilize professores e estudantes a partir de um tema sociocientífico circunscrito aos seus interesses e motivos, enquanto as ações executadas para a compreensão e resolução do problema desencadeiam a problematização por meio de um movimento discursivo que expresse as tensões, conflitos e contradições entre seus interesses e motivos, como também aqueles que se materializam nas disputas entre os diversos grupos sociais envolvidos na temática.

Contexto e Continuidade

É importante que o problema sociocientífico seja intencional e contextualmente situado. Circunscrever intencionalmente o problema a contextos significa especificar sua origem e motivação para desenvolvê-lo como um processo dinâmico de construção crítica e criativa de conhecimento. Também diz respeito a enunciar as características sociais, culturais e históricas relativas ao tema, de modo a produzir contextos potencialmente significativos, ou seja, explicitar interesses e motivos que impulsionam outros grupos sociais a lidar com o tema, de maneira que os estudantes identifiquem seus próprios motivos e necessidades a partir dessas experiências. Esse movimento de aproximar estudantes de motivos e interesses de outros grupos sociais - comunidades científicas, povos originários, artesãos, camponeses, trabalhadores, políticos etc. - está ancorado no processo didático da problematização. Para se apropriar das práticas, valores e conhecimentos de outros grupos sociais é necessário identificar e compartilhar os motivos que os levam a resolver seus problemas, o que ocorre por situar o problema em contextos, que podem estar próximos ou distantes da realidade dos estudantes.

Temas potentes para aprender ciências são aqueles que inserem estudantes e professores em movimentos de alternância entre o próximo e o distante, entre a descrição e a generalização, entre o dado e a conclusão, entre a previsão e a decisão, entre a pergunta e a resposta, e que servem à compreensão e solução de problemas circunscritos às condições de trabalho da sala de aula. Por meio da produção de contextos potencialmente significativos, o problema sociocientífico aproxima estudantes de aspectos que lhes são desconhecidos e os distancia de outros aspectos que lhes são familiares. Esse movimento de aproximação e distanciamento é intencionalmente realizado pelo processo didático de deslocamento contextuais, executado na sala de aula por meio da problematização.

Uma particularidade do MTE é a “topologia” que se cria em uma SD planejada a partir de um problema. Em um determinado espaço físico podem existir diferentes regiões que podem ser ocupadas, bem como um agrupamento de regiões que compartilham semelhanças ou diferenças entre si. Tal qual podemos percorrer as diferentes regiões de um espaço, professores e estudantes podem propor, habitar e compartilhar diferentes contextos de ensino e aprendizagem que são suscitados ao longo do tempo de modo a criar sentido para aquilo que os mobiliza a compreender e resolver problemas. A topologia do MTE diz respeito ao fluxo das relações espaço-temporais estabelecidas entre os sujeitos nas atividades de ensino e aprendizagem quando eles produzem e compartilham contextos potencialmente significativos. Assim, é necessário definir contexto no sentido de interpretar como professores e estudantes desenvolvem o movimento discursivo de compreensão e resolução do problema ao longo de uma SD.

Edwards e Mercer (1987Edwards, D., & Mercer, N. (1987). Common knowledge: the development of understanding in the classroom. New York: Routledge.) apresentam o conceito de contexto que engloba os diferentes cenários físico, discursivo e mental que podem ser construídos e compartilhados na sala de aula. Os autores dividem o contexto em três variantes que são denominadas contexto situacional, contexto linguístico ou comunicacional e contexto mental. O contexto situacional diz respeito ao entorno material das ações pedagógicas, ou seja, o espaço físico em que elas ocorrem, a forma como os sujeitos se organizam e interagem com os objetos ali dispostos. O contexto comunicacional diz respeito ao movimento discursivo da sala de aula, em termos das interações entre os sujeitos envolvidos nas atividades e do conteúdo que circula, sejam as interações conduzidas pelo professor ou entre os estudantes. É também nessa variante do contexto que podemos perceber qual tipo de conteúdo será privilegiado, isto é, se aspectos exclusivamente associados à Ciência serão evocados ou se conteúdos de outras áreas também serão considerados, ou ainda os aspectos afetivos, de valor ou de procedimento.

O contexto mental diz respeito às ideias que são colocadas em circulação pelo professor e pelos estudantes na atividade na qual estão engajados. A ideia de contexto mental reflete os princípios sócio-histórico-culturais aplicados à sala de aula, pois, de forma tácita, esta tipologia contextual envolve os construtos mentais que estão em interação e, portanto, são compartilhados pelos sujeitos em suas circunstâncias materiais, históricas e culturais. O que se inicia em um contexto situacional de uma atividade conjunta, mais tarde se torna contexto mental compartilhado de uma experiência, permitindo que professor e estudantes continuem o processo de elaboração de ideias por meio da comunicação multimodal.

O contexto mental apresenta uma face retrospectiva que influencia o encadeamento de diferentes ideias que se produzem ao longo do tempo. Edwards e Mercer (1987Edwards, D., & Mercer, N. (1987). Common knowledge: the development of understanding in the classroom. New York: Routledge.) chamam essa face de continuidade, que pode ser definida como a articulação de diferentes contextos que criam um fluxo de ideias concatenadas que auxiliam os estudantes a atribuir sentido àquilo que aprendem. Giordan (2013Giordan, M. (2013) Computadores e linguagens nas aulas de Ciências. (reimp.) Ijuí, RS: Editora Unijuí.) aponta que a continuidade é observada nas atividades a partir de deslocamentos contextuais que ocorrem ao longo do tempo. Os contextos situacional e comunicacional vivenciados em uma determinada atividade são retomados em outra atividade na forma de contexto mental para dar ritmo e encadear ideias dentro do movimento discursivo da sala de aula. Além de ser expresso nas situações, pensamentos e formas de comunicação, o contexto agrega o caráter dinâmico atinente à atividade humana.

Movimento Discursivo e Abordagem Comunicativa

A consecução e o encadeamento de atividades para a compreensão e resolução do problema ocorrem no fluxo temporal das interações entre os sujeitos e deles com os objetos dispostos no espaço, o que suscita a mobilização de conteúdos orientados a estas atividades. Esse movimento é pautado na construção e retomada de diferentes contextos mentais, situacionais e comunicacionais que são articulados ao longo do tempo pelo professor para conduzir os estudantes na compreensão e resolução do problema e ao mesmo tempo fazê-los se apropriar dos conteúdos como ferramentas culturais de mediação das atividades. Essa articulação do professor é realizada de forma discursiva, com a adoção de estratégias enunciativas ou discursivas (Silva e Mortimer, 2013Silva, A. da C., & Mortimer, E. F. (2013). Contrastando professores de estilos diferentes: uma análise das estratégias enunciativas desenvolvidas em salas de aulas de Química. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias. 12(3), 524-552. Recuperado dehttp://reec.uvigo.es/volumenes/volumen12/REEC_12_3_8_ex758.pdf
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), mobilizando majoritariamente a fala como instrumento de comunicação das ideias que circulam no contexto mental produzido na interação com os estudantes.

Mortimer e Scott (2003Mortimer, E. F., & Scott, P. H. (2003) Meaning making in secondary Science classrooms. Philadelphia: Open University Press.) desenvolveram um quadro analítico para interpretar o movimento discursivo da sala de aula, onde sugerem analisá-lo a partir de cinco aspectos, quais sejam: 1) as intenções do professor; 2) o conteúdo que circula pela sala de aula; 3) a abordagem comunicativa; 4) o padrão de interação; e 5) as intervenções do professor. No primeiro aspecto, as intenções do professor, levam em consideração sua ‘performance pública’ no sentido de explorar conhecimentos prévios dos estudantes, apresentar ideias científicas ou auxiliá-los a aplicar e internalizar os conceitos ensinados. No aspecto do conteúdo que circula em sala de aula, os autores consideram duas diferentes dimensões de conteúdo: numa dimensão referencial, caracterizam o conteúdo como cotidiano ou científico, relacionados à linguagem de senso comum ou científica. A dimensão epistêmica caracteriza o conteúdo como descrição, explicação e generalização de fenômenos. Ainda nessa dimensão, diferenciam os aspectos ditos empíricos, quando relacionados à fenomenologia dos eventos, ou teóricos, quando relacionados ao corpo conceitual científico.

Dentre os aspectos sugeridos por Mortimer e Scott (2003Mortimer, E. F., & Scott, P. H. (2003) Meaning making in secondary Science classrooms. Philadelphia: Open University Press.), destacamos como relevante para a compreensão da problematização como movimento discursivo, o terceiro aspecto, ou seja, as quatro classes de abordagens comunicativas: Interativa/De autoridade, Interativa/Dialógica, Não-interativa/De autoridade e Não-interativa/Dialógica. Os autores sugerem que o discurso da sala de aula ocupa duas dimensões: a dimensão Interativa/Não-Interativa, caracterizando como Interativo quando se observa o intercâmbio entre falas do professor e estudantes e Não-Interativo quando somente o professor fala; e a dimensão De Autoridade/Dialógica, caracterizando como De Autoridade quando somente um ponto de visto é aceito, usualmente porém restrito ao científico, e Dialógico quanto diferentes pontos de vista são levados em consideração, mormente aqueles evocados pelos estudantes.

Na abordagem Interativa/Dialógica, professores e estudantes exploram suas ideias, endereçam questões genuínas e trabalham sobre diferentes pontos de vista. Já na categoria Não-interativa/Dialógica, o movimento discursivo se caracteriza pelo professor rever vários pontos de vista, destacando similaridades e diferenças (Aguiar, Mortimer, & Scott, 2009Aguiar, O. G., Mortimer, E. F., & Scott, P. (2009). Learning from and responding to students’ questions: The authoritative and dialogic tension. Journal of Research in Science Teaching, 47(2), 174-193. Recuperado de https://doi.org/10.1002/tea.20315
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). Pontos de vistas diferentes sobre um tema sociocientífico têm o potencial de suscitar tensões discursivas que expressam similaridades e diferenças entre os interesses e motivos de professores e estudantes, bem como de seus interlocutores indiretos, que estão representados na origem do tema. Assim, estas duas abordagens podem desempenhar funções específicas no movimento discursivo da problematização, tanto no que se refere à negociação de motivos como de significados.

Aliados à abordagem comunicativa, Mortimer e Scott (2003Mortimer, E. F., & Scott, P. H. (2003) Meaning making in secondary Science classrooms. Philadelphia: Open University Press.) consideram os padrões de interação como um quarto aspecto associado ao discurso da sala de aula, caracterizando-os como uma forma regular de estabelecer os enunciados em sala de aula. Um padrão de interação que geralmente é construído em sala de aula se dá a partir de uma tríade identificada pela sigla I-R-F que corresponde a “Iniciação” (usualmente uma pergunta do professor endereçada aos estudantes) -“Resposta” (dada pelos estudantes) -“Feedback” (avaliação ou elicitação do professor). Outros padrões que podem ocorrer são as sequências estendidas “I-R-F-R-F” originadas a partir das elicitações ou “I-R-F-R-F-S”, em que S corresponde à síntese de um turno de interação (Silva e Mortimer, 2013Silva, A. da C., & Mortimer, E. F. (2013). Contrastando professores de estilos diferentes: uma análise das estratégias enunciativas desenvolvidas em salas de aulas de Química. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias. 12(3), 524-552. Recuperado dehttp://reec.uvigo.es/volumenes/volumen12/REEC_12_3_8_ex758.pdf
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). O último aspecto citado pelos autores são as intervenções do professor, relacionadas à forma como o professor conduz o andamento do discurso para a construção das ideias que circulam pela sala de aula, incluindo ações como moldar as ideias dos estudantes, propiciar a exposição de ideias pelos estudantes ou checar a sua compreensão sobre o conteúdo.

Ampliando os estudos desenvolvidos pelos autores acima citados, Scott, Mortimer e Aguiar (2006Scott, P. H., Mortimer, E. F., & Aguiar, O. G. (2006). The tension between authoritative and dialogic discourse: A fundamental characteristic of meaning making interactions in high school science lessons. Science Education, 90(4), 605-631. Recuperado de https://doi.org/10.1002/sce.20131
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) observaram que ocorrem tensões discursivas entre abordagens do tipo dialógica e de autoridade, conferindo suas observações ao fato de ambas conterem “sementes” da outra, o que foi associado à existência de diferentes pontos de vista em competição. Tanto a emergência como o confronto de diferentes pontos de vista contribuem para a apropriação do conhecimento científico e além disso, entendemos que o movimento discursivo tensionado tem o potencial de sustentar a negociação de interesses e motivos de professores e estudantes sobre o problema sociocientífico.

Defendemos que a problematização é construída com base em uma série de elaborações discursivas que são conduzidas pelo professor na execução do seu planejamento e a principal característica comunicacional da problematização é que ela se desenvolve através do tensionamento entre diferentes contextos mobilizados pelo professor e pelos estudantes. O objetivo de promover a problematização como estratégia para desenvolver atividades de ensino e aprendizagem é articular diferentes contextos direta ou indiretamente relacionados ao problema para encontrar possíveis soluções, subsidiar a apropriação dos conteúdos pelos estudantes e permitir a negociação de motivos entre eles e o professor. O surgimento de diferentes contextos, evocados pelo professor e pelos estudantes, pode produzir tensões discursivas que emergem na problematização no sentido de direcionar o movimento discursivo para a compreensão e resolução do problema.

METODOLOGIA

Contexto da pesquisa

A SD intitulada “Você sabe o que tem na água do córrego Pirajussara?” foi planejada por uma professora de Química e pelos pesquisadores, e executada por ela e por 35 estudantes de uma sala da 2ª série do Ensino Médio de uma escola pública situada no município de Embu das Artes da região metropolitana de São Paulo, localizada próxima à nascente do córrego. A SD apresenta como tema sociocientífico o acesso à água e às políticas de saneamento básico, enquanto o problema desenvolvido pela professora se referia à potabilidade da água do córrego Pirajussara que sofre de um grave problema de poluição relacionado à sua canalização e ao despejo irregular de esgoto (Bacci, Pataca, Jacobi, Silva e Filho, 2009Bacci, D. de L. C., Pataca, E. M., Jacobi, P. R., Silva, P. A. R. e C Filho, L. C. B. (2009). Educando nas águas do Pirajuçara - Uma proposta de Educação Ambiental. Revista de Cultura e Extensão USP, 2, 41-53. Recuperado de https://doi.org/10.11606/issn.2316-9060.v2i0p41-53
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).

A problematização da SD foi construída com o intuito de estudar as razões e explicações relacionadas à qualidade da água do córrego e para tal envolveram a coleta de amostras de água, a análise de seus parâmetros de qualidade e a discussão sobre os aspectos ambientais, econômicos, urbanos e políticos que influenciam os parâmetros de potabilidade da água do córrego. Foram desenvolvidos conteúdos epistêmicos, como modelos de solubilidade dos materiais em água e cálculo de concentração de solutos; praxiológicos, como visita guiada para observação do córrego, coleta de amostras de água, medidas de acidez, condutividade elétrica, e das condições de proliferação de microrganismos na água; axiológicos, como o direito universal de acesso à água potável e às políticas de saneamento básico; e afetivos, como as relações pessoais dos estudantes com o córrego, haja vista que muitos deles residiam em regiões próximas à sua nascente.

No âmbito da definição de uma QSC, um primeiro olhar pode identificar a questão da potabilidade da água do córrego Pirajussara como um objeto sobre o qual não reside nenhum aspecto controverso, visto que a análise imediata e sensorial da água do córrego (sua cor, sua turbidez, seu odor e o lixo em seu entorno) já indica que não está adequada para o consumo. Entretanto, a desigualdade de acesso ao saneamento básico afeta as famílias que residem ao longo da margem do córrego fazendo com que deliberadamente tenham contato com a água, seja para consumo, seja para descarte irregular de seu esgoto doméstico. Desta forma, o aspecto controverso relacionado ao consumo da água, mesmo em face de sua não-potabilidade imediata associada aos seus aspectos físicos, é desvelado na SD por meio do conflito entre as necessidades da população margeante o córrego e a realidade da água contaminada, o que se dá na relação entre aspectos sociais, políticos, econômicos e científicos.

O fato de a água do córrego Pirajussara não apresentar parâmetros de qualidade adequados que atestem sua possível potabilidade está associado a âmbitos que extrapolam a Ciência. Enquanto os parâmetros que definem sua potabilidade são aspectos discutidos e definidos por uma comunidade de médicos, químicos, bioquímicos, biólogos e sanitaristas que atuam em órgãos reguladores, e portanto, são resultado de testes e valores-limites estabelecidos pela comunidade científica, bem como os processo de tratamento pelos quais essa água deve passar para que esses parâmetros sejam de fato observados, a realidade que se vê no entorno do córrego e que implica a não-potabilidade de sua água está associada a um âmbito político e econômico maior que impacta o ambiente natural do córrego em duas vertentes distintas, porém associadas: a primeira, é o fato da má gestão das políticas habitacionais que faz com que uma parcela mais pobre da população ocupe as margens do córrego devido ao fácil acesso à água, porém sem investimentos estruturais em saneamento básico, o que faz com que o lixo e o esgoto produzido por essas casas sejam lançados diretamente no córrego; a segunda, é a canalização das água do córrego, o que implica em uma mudança da geografia natural do percurso de suas águas promovendo uma retificação desse caminho e ignorando os fenômenos de cheias naturais, o que acaba impactando as moradias ao redor em episódios de enchentes.

Assim, ao longo das aulas, foi engendrado e desenvolvido um problema sociocientífico relacionando aspectos da política de saneamento básico, do urbanismo da região do córrego, de captação e tratamento de água e de efluentes, em articulação a conceitos sobre amostragem da água, preparo de soluções, solubilidade de sais e gases, pH, condutividade elétrica de soluções, parâmetros microbiológicos. Desta forma, o problema instaura controvérsias que relacionam a falta de qualidade da água do córrego ao cotidiano das pessoas que habitam seu entorno que são os próprios estudantes e a comunidade escolar do entorno. Para que essas controvérsias e contradições fossem trabalhadas na SD, a primeira aula da sequência contou com uma potente contextualização do problema a partir discussões sobre o significado do saneamento básico, a legislação associada a esses processos em nosso país e as medidas de alterações geográficas do córrego. Também nessa aula os estudantes puderam visitar a região do córrego Pirajussara e coletar uma amostra de água para realizar suas análises. Ao longo das demais aulas da SD, os parâmetros de qualidade da amostra de água coletada foram medidos e compreendidos a partir do desenvolvimento dos conteúdos epistêmicos químicos citados anteriormente. Na última aula da SD, realizou-se uma discussão mais geral sobre a potabilidade da água após a medição de todos os parâmetros elencados e sobre possíveis medidas sugeridas pelos estudantes para solucionar o problema da poluição do córrego2 2 O plano de ensino da SD “Você sabe o que tem na água do córrego Pirajussara?” pode ser lido na íntegra em apêndice do texto de Gomes (2020). .

Instrumentos de Coleta e Gestão de Dados

Sete aulas duplas com duração de 100 minutos foram registradas em áudio e vídeo, sendo que para cada aula foram gerados dois registros videográficos utilizando duas câmeras digitais localizadas frontalmente e lateralmente à sala de aula. O áudio foi registrado com o uso de quatro gravadores, sendo que um deles captava o áudio da professora e os outros três captavam o áudio de grupos de alunos sugeridos pela professora por serem alunos engajados e participativos nas suas aulas. Ao fim, os registros de vídeo e áudio foram sincronizados e renderizados para a posterior análise dos dados.

Os registros audiovisuais estão armazenados em uma base de dados digital juntamente com toda a produção da professora e dos estudantes, bem como informações sobre o campo de pesquisa, como ficha individual dos sujeitos de pesquisa, croquis dos laboratórios didáticos de ciências e de informática e da sala de vídeo, e os termos de consentimento e assentimento livre e esclarecido, instrumentos utilizados para mediar as relações estabelecidas entre os sujeitos e entre as instituições de ensino e pesquisa. A base de dados digital permite organizar e relacionar os dados primários e secundários a partir de um software de gestão utilizado por bibliotecas3 3 A base de dados tem acesso controlado e pode ser acessada por meio de link do grupo de pesquisa. .

Tratamento e Análise dos Dados

Após o registro audiovisual das aulas, elas foram segmentadas por meio da técnica de Mapeamento Multinível (Silva-Neto, 2016Silva Neto, A. B. (2016). Multimodalidade e produção de significados sobre representação estrutural química: aportes metodológicos para a análise gestual na sala de aula. (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo (SP). Recuperado de doi:10.11606/D.81.2017.tde-29032017-171514
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) gerando três níveis hierárquicos: o nível das aulas (macro), o nível das atividades de ensino (meso) e o nível dos episódios (micro). Por meio desta metodologia, produzem-se as dimensões temporal e contextual dos dados, para acompanhar, respectivamente, o ritmo de evolução das atividades de ensino dentro de uma aula ou ao longo das aulas, bem como acompanhar o ritmo de evolução da própria SD, ou seja, analisar quais eram os contextos evocados pela professora e pelos estudantes a partir de um plano de ensino inicial. O mapeamento multinível foi executado com o apoio do software NVivo 10 ®, onde são inseridos os registros audiovisuais das aulas da SD e marcadas as sequências do vídeo que correspondem a cada nível hierárquico, gerando diagramas de codificação, entre outros recursos.

Após a demarcação temporal das atividades e dos episódios de ensino de cada aula no software, efetuamos a categorização e contabilização do percentual de tempo dos propósitos da professora em cada episódio de ensino segundo as categorias propostas por Sgarbosa (2018Sgarbosa, E. C. (2018). A comunicação multimodal e o planejamento de ensino na formação inicial de professores de química (Dissertação de Mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo (SP). Recuperado dedoi:10.11606/D.81.2019.tde-02052019-161135
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) em propósitos associados à gestão da sala de aula (p.e. dar início ou fechamento à aula e dar orientações sobre as atividades), à compreensão e à resolução do problema (p.e. apresentar o problema da SD e discutir as diferentes faces do problema), ao desenvolvimento dos conteúdos (p.e. realizar experimentos de análise da água e fazer a formalização conceitual de conteúdos químicos) e à articulação entre a problematização e o conteúdo (p.e. discutir os dados de análise das amostras de água segundo os conteúdos químicos). Aos intervalos de tempo nos quais não se observaram propósitos discursivos associados à aula, foi atribuída a classe “Não categorizado” (p.e. enquanto os alunos se acomodavam em suas bancadas no laboratório ou quando eram conduzidos de um espaço da escola em direção a outro). Com base no percentual de tempo destinado a propósitos de compreensão e resolução do problema, efetuamos a seleção de uma aula da SD como recorte para nossas análises. Em seguida, selecionamos dentro desta aula um episódio de ensino no qual a professora mobilizou propósitos associados à construção da problematização e realizamos a análise das sequências discursivas que os compõem a partir das categorias de abordagem comunicativa de Mortimer e Scott (2003Mortimer, E. F., & Scott, P. H. (2003) Meaning making in secondary Science classrooms. Philadelphia: Open University Press.).

O processo de categorização foi desenvolvido entre os autores na forma de validação por pares, mediante a seleção de alguns casos iniciais gerais e outros específicos, isto é, ao longo do mapeamento multinível, juntamente da demarcação de tempo de cada episódio, se realizava a categorização da abordagem comunicativa, a qual era posteriormente revisada e discutida para se chegar à categorização final. Com o auxílio das ferramentas do software NVivo 10 ®, este processo de codificação forneceu relatórios, por meio dos quais foram gerados mapas e diagramas, os quais permitem analisar a interação discursiva nas dimensões macro (SD), meso (aula) e micro (episódio) com o objetivo de interpretar o movimento da problematização.

ANÁLISE DAS CATEGORIAS

Na dimensão macro, a análise dos propósitos da professora em cada uma das aulas forneceu o gráfico representado na figura 1, que mostra o percentual de cada classe de propósitos ao longo da SD.

A análise do gráfico permite afirmar que os propósitos de compreender e resolver o problema foram mobilizados, majoritariamente, na primeira e na última aula da SD, que corresponderam à introdução e à conclusão do problema respectivamente, pois na primeira aula a professora delimitou o contexto de trabalho com o tema sociocientífico, e na última, após os resultados das análises das amostras de água, ela pôde concluir a SD com a resolução do problema. Observamos a mobilização de propósitos para compreender e resolver o problema ao longo das outras aulas da SD, o que sustenta nossa proposição de o problema ser o elemento articulador das atividades desenvolvidas em sala de aula, uma vez que a mobilização dessa classe de propósitos permite produzir contextos que encadeiam ideias para compreender e resolver o problema (Gomes, 2020Gomes, G. S. (2020) Aspectos discursivos e contextuais da problematização no ensino de Química sob uma perspectiva sociocultural. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Figura 1.
Percentual de tempo de mobilização das diferentes classes de propósitos da professora ao longo da aplicação da sequência didática. Fonte: os autores, a partir do software Nvivo 10 ®, 2023.

Destaca-se o predomínio da categoria conteúdo, sobretudo epistêmicos da Química, nas aulas 2, 3 e 4, e da articulação entre o conteúdo e o problema nas aulas 5 e 6, o que interpretamos pelo fato de o movimento discursivo da problematização desenvolver, em um primeiro momento, os conceitos necessários à compreensão da análise das amostras de água, e em um segundo momento, sua aplicação na interpretação do resultado das análises. Na última aula, não se observa a presença da categoria do conteúdo, sendo prevalecentes as categorias relacionadas ao problema.

A distribuição das categorias expressa a relação entre os propósitos das atividades planejadas na SD e o estilo de sua condução pela professora, uma vez que durante a formação da docente, onde inicialmente foi planejada a SD, foram discutidos e criados os elementos estruturantes das atividades. Ao longo da execução da SD e como parte da formação e desenvolvimento da pesquisa, foram enfatizadas adaptações para as atividades, bem como o processo de construção e resolução do problema. A distribuição das categorias também revela uma forte ênfase da professora em articular os conteúdos e o problema como uma prática didática que prevaleceu sobretudo nas aulas 5 e 6, e que esteve ausente apenas nas aulas 3 e 4. Contrastiva e respectivamente, nesses dois conjuntos de aulas, observam-se os menores e os maiores percentuais relativos à categoria conteúdo.

Para contemplar nosso objetivo de discutir na dimensão meso (aula) como a problematização se constrói em um movimento discursivo, seria desejável apresentar em detalhes a distribuição temporal das categorias em cada uma das aulas, o que seria exaustivo e extrapolaria o espaço destinado à publicação. Para contornar esta limitação, selecionamos a segunda aula da SD como referência para a análise da interação entre a professora e os estudantes, pois, dentre as aulas intermediárias da SD (excluídas a primeira e a última), nas quais variadas categorias de propósitos foram mobilizadas, essa se mostrou como aquela com maior percentual relativo ao propósito de construção do problema (7,2% do tempo total). Além disso, essa é a primeira aula em que os conteúdos, sobretudo epistêmicos da Química, são mobilizados de forma explícita e caracteristicamente predominam com uma ordem de grandeza sobre a categoria problema.

Na Figura 2, apresentamos o diagrama de codificação das atividades e dos propósitos mobilizados pela professora ao longo do tempo para a segunda aula da SD, que foi gerado pelo software Nvivo 10 ®.

Figura 2.
Diagrama de codificação de atividades e propósitos da professora para a segunda aula da SD. Tempo total de vídeo: 1h31min10s. Fonte: os autores, a partir do software Nvivo 10 ®, 2023.

Como observado no diagrama de codificação da Figura 2, o movimento discursivo da problematização na segunda aula da SD está expresso pela alternância das categorias (problema)-(conteúdo)-(problema)-(conteúdo)-(articulação conteúdo-problema) ao longo do tempo de quase toda a aula, corroborando mais uma vez nossa proposição de o problema ser o elemento articulador entre as atividades da SD.

A professora adotou uma rota para a condução das atividades que iniciou reendereçando o problema da SD (Atividade 1), com o intuito de estabelecer continuidade entre a primeira e a segunda aula. Em seguida, os estudantes realizaram um experimento para determinar a solubilidade do cloreto de sódio, da sacarose e do óleo de soja em água e medir a condutividade elétrica das soluções aquosas dos solutos mencionados (Atividade 2), onde prevaleceu exclusivamente a categoria conteúdo que perdurou até o final da Atividade 4. Logo após, a professora conduziu uma discussão para que os alunos descrevessem suas observações e criassem hipóteses para explicá-las, porém sem concluí-las (Atividade 3). Num terceiro momento, os alunos exploraram uma simulação digital para observar as diferenças entre a dissolução do cloreto de sódio e da sacarose em água a nível submicroscópico (Atividade 4). Posteriormente, a professora conduziu outra discussão, alternando as categorias conteúdo e problema, na qual os alunos descreveram suas observações e relacionaram com suas hipóteses propostas no laboratório (Atividade 5). Em seguida, a professora iniciou nova atividade (Atividade 6) com uma generalização acerca do comportamento de sólidos iônicos e moleculares em água. Durante a generalização, ela retomou o problema da SD a fim de discutir com os alunos a condutividade elétrica da água do córrego, articulando-a aos seus aspectos químicos, geográficos e ambientais (Articulação Conteúdo & Problema), efetuando posteriormente a medição da condutividade elétrica das amostras de água coletadas. Por fim, ela concluiu a aula do dia com orientações aos estudantes sobre a tarefa de casa que deveriam realizar para a aula seguinte.

Observa-se uma distribuição de categorias que privilegia temporalmente a dedicação da professora aos conteúdos químicos (Conteúdo) e a presença de elementos diretamente relacionados ao problema sociocientífico no início e no final da aula (Problema e Articulação Conteúdo & Problema). A diversidade de propósitos e tipos de atividades, que variaram de medidas experimentais, discussão e elaboração de hipóteses, simulação do modelo de partículas, explicação das interações a partir do modelo de partículas, generalização das formas de interação de compostos em sistema aquoso, indica ênfase da professora não apenas sobre os conteúdos químicos, mas também sobre a diversidade de categorias epistêmicas e práticas, o que pode ser constatado em análise aprofundada dos dados (Gomes, 2020Gomes, G. S. (2020) Aspectos discursivos e contextuais da problematização no ensino de Química sob uma perspectiva sociocultural. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Observou-se também por meio da natureza das atividades desenvolvidas na aula uma grande diversidade de suportes (vidrarias, materiais de laboratório, lousa, tela de projeção e computador) e modos de comunicação (fala, escrita, imagem, gesto) empregados, o que indica a mobilização de linguagens e interações multimodais. Ainda que os estudos da linguagem na perspectiva da multimodalidade tenham ganhado destaque nas últimas décadas (Norris, 2004Norris, S. (2004) Analyzing multimodal interactions: a methodological framework. New York: Routledge .; Kress, 2010Kress, G. (2010) Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. New York: Routledge .; Mortimer e Quadros, 2018Mortimer, E. F., Moro, L., & Sá, E. F. (2018) Referenciais teóricos utilizados na pesquisa: discurso, semiótica social e multimodalidade. In Mortimer, E. F., & Quadros, A. L. (Orgs.) Multimodalidade no Ensino Superior. (pp. 17-54) Ijuí, RS: Editora Unijuí .), não desenvolveremos um quadro analítico desta ordem, pois nosso enfoque é com a produção verbal na compreensão da dinâmica discursiva.

ANÁLISE DE EPISÓDIO

Tendo indiciado a função articuladora do problema pela análise da distribuição das categorias ao longo das aulas e de uma aula em particular, passamos a analisar na dimensão micro um episódio de retomada do problema (categorias em azul na Figura 2) mencionado acima com vistas a discutir quais propósitos e estratégias discursivas foram empregados para compreendê-lo, desenvolvê-lo e resolvê-lo. Nesta dimensão, o objetivo é explorar nossa segunda proposição, isto é, de a problematização ser um movimento discursivo que se produz a partir de deslocamentos contextuais decorrentes da tensão entre contextos internos e externos ao problema proposto pela SD, que produz significado aos conteúdos e permite negociar os motivos entre professores e estudantes.

O episódio ocorreu no início da aula e recebeu como título “Largados e Pelados” e sua transcrição pode ser acompanhada no Quadro 1. Na primeira aula da SD os estudantes visitaram a foz do córrego Pirajussara localizada dentro do campus da Universidade de São Paulo onde realizaram uma observação de campo e coletaram amostras de água, as quais também nesse dia tiveram seus parâmetros físicos (cor, turbidez e temperatura) analisados. Na segunda aula, os estudantes realizaram a medição do último parâmetro físico indicado, a condutividade elétrica das amostras coletadas. A transcrição do episódio no Quadro 1refere-se ao momento em que a professora retoma o problema para estabelecer a conexão entre a primeira e a segunda aula da SD.

Quadro 1.
Transcrição verbal do episódio Largados e Pelados. Fonte: base de dados do laboratório, 2018. T: turno de fala; t: tempo de início do turno; P: professora; An: estudantes.

Quadro 1
continuação

O propósito principal da professora é retomar uma questão endereçada por uma estudante na aula anterior, permitindo-lhe relacioná-la contrastivamente com a questão que será respondida na aula do dia. A oposição se estabelece pelas circunstâncias do tratamento alternativo e da análise da composição da água, o primeiro pela necessidade de sobrevivência e a segunda pela necessidade de controlar a qualidade, as quais evocam respectivamente os motivos da estudante e da professora para compreender e resolver o problema. O episódio é formado por três sequências discursivas, entre T1 e T9; T10 e T23; T24 e T26, onde se observa o entrelaçamento de contextos internos e externos ao problema da SD, permeadas por perguntas endereçadas pela professora.

Na primeira sequência discursiva, a professora refere-se indiretamente ao problema da SD (T1), aludindo à amostra e aos parâmetros físicos de qualidade da água analisados na primeira aula. Em T3, ela parafraseia a resposta da estudante e reitera o problema com uma pergunta sobre o significado de três parâmetros físicos à luz da caracterização da amostra. A partir das respostas, em T6 ela seleciona e avalia positivamente a resposta de A1, o que caracteriza até este momento uma abordagem comunicativa interativa de autoridade. Ainda em T6, ela volta a se referir à “aula passada” e explicitamente a uma estudante com a intenção de recuperar um deslocamento contextual da própria estudante que relacionara uma série televisa ao tratamento alternativo da água.

Na paráfrase para recuperar o contexto evocado pela estudante (a partir de “ah, professora” em T6), a professora inicialmente descreve a situação de tratamento alternativo da água e depois endereça uma pergunta com a intenção de relacionar a análise e o tratamento da água no contexto do problema da SD em oposição ao procedimento alternativo. O contraste entre contextos e a pergunta presentes no discurso citado da professora produzem o movimento discursivo da problematização, ou seja, a oposição entre os contextos e seus respectivos problemas gera uma tensão que desencadeia o movimento discursivo da problematização na forma de uma pergunta. Decorre daí uma disputa entre professora e estudante pela abordagem comunicativa (interativa de autoridade e interativa dialógica), uma vez que o estudante toma como referência o conhecimento prático dos personagens do show realista para responder à questão (“lá o objetivo é sobreviver”, T9), enquanto a professora direciona a interação para a oposição entre o conhecimento prático e o conhecimento químico (“lá eles não precisam, só ferve?”, T6).

Não tendo obtido uma resposta satisfatória para uma pergunta complexa que relaciona o contexto da série televisa com o da sala de aula, em T10 a professora reendereça a pergunta circunscrevendo-a ao contexto do problema da SD (“por que nós analisamos”), retomando a abordagem comunicativa interativa de autoridade que se mantém até T23. Após aceitar parcialmente a resposta de A2 (T11), ela recupera indiretamente o contexto da série televisiva (“ele ferve ... ele mata”, em T12), relativiza a eficácia do tratamento alternativo (“mata uma parcela”) e endereça três perguntas encadeadas (T12, T15, T17) que enfatizam os parâmetros químicos e, portanto, o contexto da SD, com a finalidade de simplificar uma pergunta de processo e desdobrá-la em perguntas de produto e elicitações (Silva e Mortimer, 2010Silva, A. da C., & Mortimer, E. F. (2010). Caracterizando estratégias enunciativas em uma sala de aula de química: aspectos teóricos e metodológicos em direção à configuração de um gênero do discurso. Investigações em Ensino de Ciências, 15(1), 121-153. Recuperado dehttps://ienci.if.ufrgs.br/index.php/ienci/article/view/318
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).

Entre T12 e T18, instaura-se uma discussão sobre porque analisar os parâmetros químicos, movimento que é sustentado por perguntas elicitativas e diretivas da professora, ou seja, que suscitam a participação dos estudantes com a intenção de desenvolver seu raciocínio químico sobre a composição da água. Como em T18, a estudante relaciona a composição química ao tratamento, em seguida, a professora promove outro deslocamento de contexto para a série televisa (“ele ferve”, em T19), endereçando uma pergunta para realçar a técnica alternativa de tratamento também em oposição (“não elimina”, em T19) ao raciocínio químico da estudante (“se tem muito, sei lá, aminoácido”, T18).

Diante de respostas inconclusas que lançam mais dúvidas sobre o tratamento da água no contexto da série televisiva, entre T24 e T26, a professora desenvolve uma explicação que visa justificar a análise química e relacioná-la contrastivamente ao tratamento alternativo da água. Neste movimento discursivo de síntese final da interação (Silva e Mortimer, 2013Silva, A. da C., & Mortimer, E. F. (2013). Contrastando professores de estilos diferentes: uma análise das estratégias enunciativas desenvolvidas em salas de aulas de Química. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias. 12(3), 524-552. Recuperado dehttp://reec.uvigo.es/volumenes/volumen12/REEC_12_3_8_ex758.pdf
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) e abordagem comunicativa não-interativa dialógica, a professora relativiza a eficiência da técnica (“mas ele não elimina”, em T24) e a contrapõe à necessidade de analisar a composição química da água por meio de outro deslocamento de contexto, desta vez a partir de um exemplo mais distante dos estudantes, relativo a uma síndrome causada pela ingestão de um possível contaminante. Selecionado o componente (“os nitratos”) e sua quantidade (“dependendo da quantidade”) a partir do deslocamento do contexto para o campo da saúde, a professora recupera o contexto da sala de aula e encadeia ao final de T24 duas perguntas retóricas que relacionam a técnica alternativa de tratamento à técnica de identificação do componente nas amostras coletadas do córrego. Observa-se novamente que a problematização se apresenta como um movimento discursivo de deslocamento entre contextos, neste caso, externo e interno ao problema da SD, no qual a professora estabelece contrastes e endereça perguntas.

A professora conclui o episódio, introduzindo a necessidade de analisar a composição da água por um parâmetro que será estudado na aula, ao mesmo tempo em que recupera explicitamente o problema a SD evocando o córrego pelo nome e pelo pronome possessivo (“nosso caso do córrego Pirajussara”, em T26). Contrastivamente, ela desloca novamente o contexto para a série televisiva indicando a ineficácia da técnica para resolução do problema e reduzindo-a para fins de sobrevivência (“é só uma questão de sobrevivência”), enquanto cita diretamente dois estudantes que corroboram com seu pensamento em uma polêmica orquestração de vozes (Bakhtin, 2000Bakhtin, M. M. (2000) Estética da criação verbal(3a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.).

O movimento discursivo do episódio se deu por deslocamentos contextuais entre a aula anterior, a série televisiva, a síndrome do bebê azul e a qualidade da água do córrego. Nestes deslocamentos contextuais criam-se contrastes que opõem a função da técnica alternativa de tratamento da água, ora à composição, ora à eficácia e mesmo à finalidade de uso da água. Ao longo das três sequências discursivas, observa-se que a professora adotou a estratégia de estabelecer tensões entre o problema trazido pela estudante e o problema da SD, empregando abordagens interativas de autoridade e dialógica. A estudante, influenciada pelo show realista dos personagens da série televisiva, concebera exclusivamente o tratamento alternativo da água como necessário à sobrevivência. Em oposição a esta motivação, a professora introduz a necessidade de analisar a composição química da água como fonte de motivação para compreender e resolver o problema da qualidade da água do córrego.

É importante recuperar aqui a noção de controvérsia associada à poluição do córrego Pirajussara como decorrente de um problema sociocientífico. Aqui, a controvérsia está associada aos diferentes pontos de vista sobre a água que surgem da pergunta da aluna sobre o show de realidade e que é construída a partir do tensão entre aspectos axiológicos, procedimentais e epistêmicos que são intencionalmente explicitados e articulados pela professora. Em termos axiológicos, o show de realidade suscita na aluna uma falsa ideia de necessidade de consumo da água em um contexto de sobrevivência extrema na selva, o que culmina, em termos procedimentais, em considerar permitido um tratamento alternativo - a fervura da água - como uma técnica suficiente para torná-la potável. Em contrapartida, em termos epistêmicos, a noção de água potável apresentada pela professora na aula anterior e que balizaria as análises dos estudantes, concebia a água potável como um objeto que deveria possuir padrões específicos atestados. Esse conflito entre pontos de vista se mostra controverso à medida que a professora recupera a questão da aluna, abre-a para discussão com a sala, situa e negocia os diferentes motivos que fariam a aluna consumir uma água que fosse somente fervida. Esta negociação de motivos entre a professora e os estudantes também caracteriza o movimento discursivo da problematização ao longo do episódio e corrobora com nossa proposição anterior (Gomes & Giordan, 2019Gomes, G. S., & Giordan, M. (2019) The controversial aspect of the socioscientific issue as a discursive construction of the teacher. In Levrini, O., & Tasquier, G. (Eds.), Electronic Proceedings of the ESERA 2019 Conference. The beauty and pleasure of understanding: engaging with contemporary challenges through science education, Part 7 (co-ed. Andrée, M., & Iordanou, K.), (857-864). Bologna: Alma Mater Studiorum - Universittà di Bologna.) de que o aspecto controverso do problema sociocientífico é construído de maneira discursiva em sala de aula, demonstrando que a intervenção da professora é fundamental para a compreensão das ideias científicas pelos estudantes e para a construção de uma visão mais crítica com relação à tomada de decisões sobre ações que impactam diretamente a sua qualidade de vida, como, nesse caso, o consumo de água.

DISCUSSÃO

A atividade científica se constitui em um processo específico que parte da identificação de problemas que estão relacionados à observação sistematizada de fenômenos naturais ou artificialmente criados, passa para a proposição e teste de hipóteses para resolver o problema e se conclui com a construção de um argumento embasado em uma teoria para que a hipótese seja refutada ou não, o que geralmente repercute na identificação e proposição de outros problemas. Este processo não se encerra na confirmação ou refutação de hipóteses, ao contrário, é em meio à produção de conhecimento que novos problemas podem ser elencados e novos ciclos de produção se iniciam. Se a identificação e resolução de problemas são inerentes à Ciência, é de se esperar que elas sejam incorporadas ao ensino de ciências tanto para que os alunos compreendam sua função na empresa científica, quanto se apropriem delas no curso do próprio desenvolvimento. Entretanto, adotar uma abordagem de ensino que privilegie somente aspectos epistêmicos e metodológicos da ciência exclui seu caráter de ser integrada à sociedade, seja por aspectos políticos, econômicos, ambientais, jurídicos etc. Assim, reafirmamos nosso argumento de que uma aprendizagem de ciências integrada e crítica deve contemplar a compreensão e resolução de problemas que sejam de interesse dos estudantes e professores e que sejam construídos com base em questões que revelem a tensão entre a produção científica e outras esferas de atividade e produção, o que confere ao problema didático seu caráter sociocientífico.

A necessidade de apresentar e desenvolver problemas de relevância para os estudantes e sobretudo conectados aos seus contextos de vivência já é aspecto de discussões teóricas e metodológicas há mais de duas décadas. Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002Delizoicov, D., Angotti, J. A., & Pernambuco, M. M. (2002) Ensino de Ciências: fundamentos e métodos. São Paulo, SP: Cortez.) trouxeram uma contribuição importante para a discussão sobre o que se entende por problematização no Ensino de Ciências com a proposição dos Três Momentos Pedagógicos. Os autores desenvolveram uma rota de ensino dos conceitos científicos que se estrutura em três fases: (i) a Problematização inicial, na qual as ideias trazidas pelos alunos de seus contextos externos à escola são confrontadas com as ideias científicas; (ii) a Organização do conhecimento, na qual os alunos aprendem os conceitos científicos por meio de atividades estruturadas pelo professor; e (iii) a Aplicação do conhecimento, na qual uma nova situação problema é trazida aos alunos para que eles apliquem os conhecimentos adquiridos.

Essa sequência de etapas, quando interpretada à luz da perspectiva sócio-histórica-cultural, na qual o problema é o objeto da atividade (Engeström, 2016Engeström, Y. (2016) Aprendizagem Expansiva. Campinas, SP: Pontes Editores.), falha em reconhecer que o problema perpassa todas as fases e não se apresenta de forma segmentada entre problema inicial, construído em confrontação de ideias de estudantes e professores, e aplicação de conhecimentos na forma de uma nova situação problema. Tomar o problema como objeto da atividade significa reconhecer a multiplicidade de motivos e funções em disputa em torno dele tanto na sala de aula quanto na sociedade, e seu caráter dinâmico que se estende desde o planejamento, passando pela execução e chegando às fases de reflexão e avaliação do processo didático. A negociação de motivos e a dinâmica de atualização do problema são inerentes ao processo de problematização sociocientífica e exercem funções na ampliação crítica do horizonte temático da sala de aula, expandindo suas fronteiras para estabelecer relações epistêmicas, práticas, axiológicas e afetivas entre as ferramentas culturais e o tema sociocientífico. Esta abordagem implica reconhecer que as fronteiras formadas entre ciência, sociedade e escola são complexas fontes de disputa e contradição, e por essa razão são espaços criativos de trabalho de professores e estudantes, e não apenas justificativas para propostas curriculares e para o planejamento didático.

É necessário dar atenção à forma como os professores e estudantes ocupam essas fronteiras na sala de aula de modo a promover o trânsito das ideias de senso comum em direção às ideias científicas e favorecer seu desenvolvimento crítico e criativo. Nossas análises demonstraram que a atividade discursiva associada à problematização da sequência didática ocorreu por meio da tensão entre abordagens dialógica e de autoridade (Scott, Mortimer, & Aguiar, 2006Scott, P. H., Mortimer, E. F., & Aguiar, O. G. (2006). The tension between authoritative and dialogic discourse: A fundamental characteristic of meaning making interactions in high school science lessons. Science Education, 90(4), 605-631. Recuperado de https://doi.org/10.1002/sce.20131
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) originadas em um contexto extraído da indústria cultural (Giordan & Lima, 2020Giordan, M., & Lima, G. S. (2020) A produção discursiva em aulas de ciências por meio da divulgação científica: o caso do uso do discurso direto. Investigações Em Ensino De Ciências (Online), 22(2), 83-95. Recuperado dehttps://doi.org/10.22600/1518-8795.ienci2017v22n2p83.
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) e outros contextos inerentes ao científico escolar (Lima & Giordan, 2017Lima, G. S., & Giordan, M. (2017) Características do discurso de divulgação científica: implicações da dialogia em uma interação assíncrona. Investigações Em Ensino De Ciências(Online), 25(3), 209-231. Recuperado de). Nesse sentido, nossos resultados indicam que a problematização pode promover este trânsito de contextos quando ela engendra um movimento discursivo que se desenvolve com base em tensões oriundas de contextos conflituosos emergentes na sala de aula a partir de diferenças entre referências de conhecimentos, práticas e valores para compreender e resolver o problema.

Para instaurar o movimento discursivo da problematização, é necessário mobilizar diferentes formas de mediação. Na abordagem sócio-histórico-cultural para o ensino de ciências, considera-se que os conteúdos relacionados a um problema apresentam não apenas contornos epistêmicos, mas também exercem funções mediadoras das atividades que, concebidas de forma ampliada, extrapolam o quadro escolar para vincular-se às realidades vivenciadas pelos estudantes. Conforme apontam Gehlen e Delizoicov (2012Gehlen, S. T., & Delizoicov, D. (2016). A dimensão epistemológica da noção de problema na obra de vygotsky: implicações no ensino de ciências. Investigações em Ensino de Ciências, 17(1), 59-79. Recuperado de https://ienci.if.ufrgs.br/index.php/ienci/article/view/207
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), é possível afirmar que é a partir da compreensão e resolução de problemas que se dá a gênese dos conceitos no plano mental do sujeito. Considerando a larga extensão do universo das atividades de compreensão e resolução de problemas, a dialética entre as transformações produzidas no estudante e as transformações produzidas no mundo que o cerca sustenta-se pelo desenvolvimento de mediações que possuem tanto caráter cognitivo como caráter social (Vigotski, 2001Vigostski, L. S. (2001) A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo, SP: Martins Fontes .). Na imbricação dos planos cognitivo e social, desenvolvem-se formas mediadas de pensar e agir sobre o mundo que subsidiam a construção de conceitos e de relações sociais implicadas no desenvolvimento e na aprendizagem do estudante.

Nas relações sociais entre estudantes e professores, estão implicadas formas de mediação relacionadas à comunicação, à divisão de tarefas e ao controle dessas relações por meio de regras de comportamento, que são orientadas à compreensão e resolução de problemas, que em síntese modelam a estrutura da atividade humana (Engeström, 2016Engeström, Y. (2016) Aprendizagem Expansiva. Campinas, SP: Pontes Editores.). As mediações de caráter comunicacional entre os agentes produzem o que denominamos de movimento discursivo de compreensão e resolução de problemas. As mediações relacionadas à divisão de tarefas orientam o trabalho colaborativo em grupo na direção de compreender e resolver problemas como um processo de planejamento e execução de ações mediadas por instrumentos de caráter mental e físico. Já as mediações por regras se referem tanto ao controle das relações entre os sujeitos, quanto às suas formas de agir diante do problema, o que implica reconhecer aspectos volitivos e valorativos que regulam as relações sociais e as relações dos sujeitos com os fenômenos científicos.

Compreender e produzir essas formas de mediação em atividades orientadas à problematização instauram relações entre estudantes e professores, entre eles e outros grupos sociais, bem como com o ambiente e sua transformação, que estão na base de seu desenvolvimento e de sua aprendizagem. O ambiente escolar exige do professor formas de mediação que o levem a tomar o problema como objeto de sua atividade de ensino e a compartilhá-lo com os estudantes para que eles o tomem como objeto de sua atividade de aprendizagem. Para a compreender e resolver problemas, é necessário negociar os motivos que orientam o planejamento da atividade de ensino e os motivos dos estudantes, de onde os temas sociocientíficos de interesse mútuo podem formar contextos para orientar as formas de agir e de se posicionar diante das tensões e contradições que eles suscitam na sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, ensejamos contribuir para a proposição de uma abordagem teórico-metodológica sobre questões sociocientíficas que lhes imprima um caráter problematizador no ensino e na aprendizagem. Para isso, elencamos os conceitos estruturantes da atividade humana, a mediação (Vigotski, 2001Vigostski, L. S. (2001) A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo, SP: Martins Fontes .), o motivo (Leontiev, 2021Leontiev, A. N. (2021) Atividade, consciência e personalidade. Bauru SP: Mireveja Editora.) e o objeto (Engeström, 2016Engeström, Y. (2016) Aprendizagem Expansiva. Campinas, SP: Pontes Editores.), bem como quadros analíticos para interpretar a produção de contextos (Edwards & Mercer, 1987Edwards, D., & Mercer, N. (1987). Common knowledge: the development of understanding in the classroom. New York: Routledge.) e o movimento discursivo da sala de aula (Mortimer & Scott, 2003Mortimer, E. F., & Scott, P. H. (2003) Meaning making in secondary Science classrooms. Philadelphia: Open University Press.). Como indicamos em nossas análises da execução de uma sequência didática, a articulação destes conceitos evoca a necessidade de tratar as questões sociocientíficas em diferentes dimensões que levem a aproximação entre a sala de aula das controvérsias e contradições que animam o debate público e podem servir de inspiração para engendrar problemas sociocientíficos. Mais do que controvérsias suscitadas por questões, é necessário introduzir as contradições expressas pelo problema. Estabelecendo um recorte intramuros no plano da relação ciência-sociedade-escola, defendemos que trazer para dentro da escola um tema vivo como a qualidade da água de um córrego que a margeia, encadeá-lo na forma de um problema no planejamento didático através da formação contínua e da autoria compartilhada com a professora e desdobrá-lo em um movimento discursivo na forma de problematização que promove a participação crítica e criativa dos estudantes na compreensão e resolução do problema, e permite articular os três conceitos da teoria da atividade relacionando-os à finalidade principal de desenvolvimento de estudantes e da professora. É desta forma que compreendemos como se desenvolve o problema sociocientífico em meio à dinâmica discursiva da sala de aula.

Consideramos este movimento de problematização necessário, mas não suficiente para lidar com as demandas da escola e de sua complexa relação com a sociedade. Indicamos ser necessário que o programa de pesquisa das questões sociocientíficas avance na direção de ir além dos muros escolares, o que passa por tomar em mãos outras dimensões do processo de problematização, ou seja, engendrar questões que atinjam outros sujeitos e contextos no processo colaborativo de identificar, compreender e resolver problemas não apenas com propósitos de ensino e aprendizagem de professores e estudantes, mas também de promover mudanças nos contextos em seu entorno. Dessa forma, uma abordagem problematizadora pode direcionar as tensões e contradições dos problemas sociocientíficos de modo a reverter a seta de influência “sociedade → escola” e a provocar movimentos autênticos de participação social dos agentes escolares nas grandes questões da sociedade e da ciência.

Um desafio específico para o campo da Educação em Ciências que buscamos superar nesta pesquisa é a análise de diferentes dimensões temporais dos fenômenos de ensino e aprendizagem da sala de aula. Adotar uma unidade de planejamento didático e acompanhar sua execução se mostrou acertado para interpretar o movimento da problematização desde o conjunto das aulas, passando para uma aula em específica e chegando a um episódio representativo deste movimento na interação discursiva entre professora e estudantes. Este é um desenho metodológico promissor para as pesquisas em sala de aula, sobretudo quando se busca compreender estes recortes temporais pela perspectiva da atividade.

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    » https://doi.org/10.1002/sce
  • 1
    Os significados foram extraídos dos dicionários online Cambridge Dictionary (https://dictionary.cambridge.org/) e Oxford English Dictionary (https://www.oed.com/).
  • 2
    O plano de ensino da SD “Você sabe o que tem na água do córrego Pirajussara?” pode ser lido na íntegra em apêndice do texto de Gomes (2020).
  • 3
    A base de dados tem acesso controlado e pode ser acessada por meio de link do grupo de pesquisa.
  • O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à Universidade Federal de Ouro Preto pela verba para editoração do artigo.

Editado por

Vanessa Cappelle (editoria adjunta), Nathália Helena Avezedo (editora de dados)

Disponibilidade de dados

Os dados suplementares a pesquisa encontra-se disponíveis em https://doi.org/10.48331/scielodata.BY1WGH

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2023
  • Aceito
    30 Jul 2024
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