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Ação política-profissional dos psicólogos e a Reforma Psiquiátrica

Acción política profesional de los psicólogos y la Reforma Psiquiátrica

Political-professional action of psychologists and the Psychiatric Reform

Resumos

Este trabalho objetiva problematizar as formas de participação técnico-assistencial e política dos psicólogos frente à Política Nacional de Saúde Mental, tomando a realidade piauiense como analisador do quadro brasileiro. A pesquisa consistiu de três etapas: levantamento documental acerca da participação dos psicólogos no processo de Reforma Psiquiátrica local; entrevista semiestruturada com os profissionais (n = 33), e acompanhamento, por meio da observação participante e diário de campo, dos principais eventos e mobilizações sociopolíticas no biênio 2009/2010. Como resultados, percebemos que o discurso de compromisso social e o engajamento dos psicólogos em defesa da reforma no Plano Nacional tem pouca equivalência em termos de transformação das práticas e das posturas político-profissionais na realidade piauiense. Tais profissionais estão fortemente implicados com a preservação do modus operandi clássico da psicologia. Esse modo de participação dos psicólogos resulta na pouca sustentabilidade técnico-assistencial e sociopolítica do Movimento da Reforma Psiquiátrica, seja nacional, seja localmente.

reforma psiquiátrica; ação político-profissional; militância; compromisso social; psicologia


This paper aims to discuss psychologists' technical-assistencial and political forms of participation facing Mental Health Policy. Its analysis plan was to take Piauí's reality to analyze the Brazilian picture. For that, it were outlined three stages: documentary research to identify the psychologists participation in local psychiatric reform process; semistructured interviews with psychologists (n = 33); monitoring, through participant observation and conversation circles, of contexts/sociopolitical reformists events occurred in the biennium 2009/2010. Results have shown that, despite social commitment speeches and engagement of the category in defense of psychiatric reform in national plan, these actions have little equivalence as transformation of practices and political-professional postures in everyday services. By being involved with the preservation of the classic modus operandi of being psychologist, is understood that psychologists participation gives little technicalassistencial and sociopolitical sustainability to the anti-asylums fight.

psychiatric reform; political-professional action; militancy; social commitment; psychology


ARTIGOS

Ação política-profissional dos psicólogos e a Reforma Psiquiátrica

Political-professional action of psychologists and the Psychiatric Reform

Acción política profesional de los psicólogos y la Reforma Psiquiátrica

João Paulo MacedoI; Magda DimensteinII

IUniversidade Federal do Piauí

IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO

Este trabalho objetiva problematizar as formas de participação técnico-assistencial e política dos psicólogos frente à Política Nacional de Saúde Mental, tomando a realidade piauiense como analisador do quadro brasileiro. A pesquisa consistiu de três etapas: levantamento documental acerca da participação dos psicólogos no processo de Reforma Psiquiátrica local; entrevista semiestruturada com os profissionais (n = 33), e acompanhamento, por meio da observação participante e diário de campo, dos principais eventos e mobilizações sociopolíticas no biênio 2009/2010. Como resultados, percebemos que o discurso de compromisso social e o engajamento dos psicólogos em defesa da reforma no Plano Nacional tem pouca equivalência em termos de transformação das práticas e das posturas político-profissionais na realidade piauiense. Tais profissionais estão fortemente implicados com a preservação do modus operandi clássico da psicologia. Esse modo de participação dos psicólogos resulta na pouca sustentabilidade técnico-assistencial e sociopolítica do Movimento da Reforma Psiquiátrica, seja nacional, seja localmente.

Palavras-chave: reforma psiquiátrica; ação político-profissional; militância; compromisso social; psicologia.

ABSTRACT

This paper aims to discuss psychologists' technical-assistencial and political forms of participation facing Mental Health Policy. Its analysis plan was to take Piauí's reality to analyze the Brazilian picture. For that, it were outlined three stages: documentary research to identify the psychologists participation in local psychiatric reform process; semistructured interviews with psychologists (n = 33); monitoring, through participant observation and conversation circles, of contexts/sociopolitical reformists events occurred in the biennium 2009/2010. Results have shown that, despite social commitment speeches and engagement of the category in defense of psychiatric reform in national plan, these actions have little equivalence as transformation of practices and political-professional postures in everyday services. By being involved with the preservation of the classic modus operandi of being psychologist, is understood that psychologists participation gives little technicalassistencial and sociopolitical sustainability to the anti-asylums fight.

Keywords: psychiatric reform; political-professional action; militancy; social commitment; psychology.

RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo problematizar las maneras de participación técnico asistencial y política de los psicólogos frente a la Política Nacional de Salud Mental, utilizando la realidad piauiense como analizador del cuadro brasileño. La investigación consistió en tres etapas: levantamiento documental acerca de la participación de los psicólogos en el proceso de Reforma Psiquiátrica local; entrevista semiestructurada con los profesionales (n = 33), y acompañamiento por medio de la observación participativa a diario de campo de los principales eventos y movilizaciones sociopolíticos en el bienio 2009/2010. Como resultados, percibimos que el discurso de compromiso social y la responsabilidad de los psicólogos en defensa de la Reforma en el plano nacional tienen poca equivalencia en términos de transformación de las prácticas y de las posturas político profesional en la realidad piauiense. Los referidos profesionales están fuertemente implicados en preservar el modus operandi clásico de la psicología. Ese modo de participación de los psicólogos resulta en la poca sostenibilidad técnico asistencial y sociopolítica del Movimiento de la Reforma Psiquiátrica nacional y local.

Palabras clave: Reforma psiquiátrica; acción político profesional; militancia; compromiso social; psicología.

Atualmente encontramos no país enormes desafios para efetivar os princípios da reforma psiquiátrica em toda sua radicalidade. Avançamos na reversão do Parque Manicomial, substituindo-o por uma rede integrada de serviços, com foco nas ações extra-hospitalares e comunitárias, que articulam a Estratégia Saúde da Família (ESF), a Estratégia de Atenção Psicossocial (EAPS) e outros níveis de atenção de maneira continuada. Para sustentarmos tal horizonte é necessário o empreendimento de dois outros movimentos que entendemos imprescindíveis à Saúde Mental. O primeiro se refere ao campo técnico-assistencial, que exige práticas pautadas no paradigma psicossocial. Ou seja, visa construir uma sólida base de sustentação prático-profissional, inclusive com apoio e suporte institucional, para adoção de ações acolhedoras e resolutivas com a perspectiva da garantia da continuidade do cuidado. O segundo movimento trata do campo sociopolítico, que pede atuações macro e micropolíticas em conjunto com os movimentos sociais para consolidar a Política Nacional de Saúde Mental/PNSM.

Para desenvolvermos tal argumento, tomaremos como análise o processo de Reforma Psiquiátrica em curso no Piauí. Tal contexto concentra muitos acontecimentos que são semelhantes ao de outras realidades do país e sinalizam claramente os desafios para a consolidação da PNSM. Trata-se de um processo reformista recente; com estrutura insuficiente de serviços de atenção à crise e urgência psiquiátrica; carência de ações integradas e intersetoriais para atenção a grupos específicos (pacientes crônicos, crianças e adolescentes, população de rua, indivíduos com uso abusivo de álcool e drogas e situações de catástrofes/desastres); insuficiência de recursos para ações comunitárias, de reinserção e reabilitação psicossocial; dificuldade de implementação de ações de educação permanente; fortalecimento da participação e controle social; dentre outros (Vasconcelos, 2010).

Nosso interesse está centrado em um aspecto específico desse processo que é complexo, multifacetado e em constante movimento. Trata-se da participação e ação política dos psicólogos frente à PNSM. Nesse sentido, interessa-nos investigar as formas de participação dos psicólogos nesse processo de luta, as ações políticas investidas, bem como os movimentos empreendidos por nossa categoria profissional (e seus efeitos) visando à construção de um novo lugar social para a loucura na capital piauiense.

A escolha pela temática considerou as transformações em curso na profissão, o trabalho e a formação do psicólogo no Brasil, especialmente inserido e envolvido no campo do bemestar social, sob a égide da construção de um novo compromisso social da profissão. Nestes termos, apoiamo-nos em quatro amplas questões para problematizarmos a participação e ação política dos psicólogos: a) a inserção dos psicólogos nas políticas de bem-estar social; b) o processo de expansão e interiorização da profissão; c) o movimento de redefinição do compromisso social da Psicologia; e d) o próprio movimento de reforma psiquiátrica, campo reconhecido como de maior engajamento dos psicólogos no cenário das lutas sociais.

Pela impossibilidade de desdobrarmos cada uma das questões acima, nos deteremos em argumentar que as mesmas constituem um importante campo problemático para refletirmos sobre as estratégias de atuação e movimentação político-profissional dos psicólogos no campo social. A própria inserção da profissão nas políticas de bem-estar social, especialmente na saúde pública, saúde mental e assistência social, tem sido um importante dispositivo gerador de problematizações sobre a identidade profissional, os modos de atuação/formação e o compromisso social da categoria. Ademais, esses mesmos espaços foram fundamentais para avançarmos na expansão e interiorização da profissão em todo o país. Dos 236.100 psicólogos em exercício profissional no Brasil, 48% atuam em cidades do interior (Bastos, Gondim, & Rodrigues, 2010), notadamente em serviços como os Centros de Atenção Psicossocial/CAPS, Unidades Básicas de Saúde/UBS, Núcleos de Apoio à Saúde da Família/NASF e Centros de Referência da Assistência Social/CRAS (Macedo & Dimenstein, 2011).

Especificamente em relação à saúde mental, ressaltamos a importância histórica que tem esse campo para a profissão no Brasil, pois além de ter ampliado os espaços de atuação e debate sobre a presença da nossa categoria nas políticas públicas, trata-se de um campo que tem problematizado a relação da Psicologia e dos psicólogos com a esfera pública e os direitos humanos. Na verdade, a saúde mental tem promovido o exercício político de diferentes segmentos, tendo em vista ser um setor que está configurado por espaços de permanente embate de forças, atores e interesses. De um lado estão aqueles que fazem avançar ações para a ampliação da rede substitutiva (e demais dispositivos desinstitucionalizantes) de modo a alavancar debates e intervenções para a constituição de um novo aparato teórico-conceitual, técnico-interventivo e jurídico-legal para a loucura em nossa sociedade (Amarante, 2007; Bezerra Jr., 2007). De outro, encontramos os que se dizem reformistas, mas que na verdade reforçam o discurso de manutenção do poder psiquiátrico quando defendem práticas que reforçam a ação de tutela, isolamento e controle da vida, agregado à revalorização do aparato teórico-conceitual definidor da loucura enquanto doença - um mal passível de ser tratado e curado (Costa-Rosa, 2000).

O fato da Reforma Psiquiátrica ter se constituído no Brasil como um campo de muitas lutas e disputas políticas, dada sua potencialidade reivindicatória, torna-se espaço propício à análise do modo como os psicólogos têm engendrado sua "vontade política" (Foucault, 2010, p. 214). Ou seja, como os psicólogos têm se movimentado, participado e interferido no processo reformista? E atuado em termos técnico-prático e ético-político, enquanto trabalhador da saúde mental?

Um bom exemplo para pensarmos a importância da Saúde Mental para a nossa profissão talvez esteja na própria ação do Conselho Federal de Psicologia (CFP) quando elegeu tal campo como palco, por excelência, de atuação e luta política de nossa categoria profissional. A criação da Rede Nacional Internúcleos de Luta Antimanicomial (RENILA)1 1 . O RENILA nasceu da ruptura com o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA) no V Encontro Nacional da Luta, realizado em Miguel Pereira (RJ), em 2001. As razões da ruptura foram às divergências entre as lideranças do movimento sobre sua estrutura e organização; apesar da cisão, o foco da luta "Por uma sociedade sem manicômios" continua central para os dois coletivos de militância do Movimento de Luta Antimanicomial (Vasconcelos, 2010). e o seu fortalecimento na última década no plano nacional, fizeram com que os psicólogos adotassem posturas mais incisivas com uma agenda de reivindicações e contestações dirigidas às três esferas de governo. Tais ações, que contam com apoio e estrutura do CFP, têm se pautado em denúncias de irregularidades e o não cumprimento por parte dos governos da agenda de ações previstas no campo da Reforma e defesa dos direitos humanos (Vasconcelos, 2010).

Exemplos mais recentes de mobilização política dos psicólogos em defesa da Saúde Mental foram: 1) a realização da Marcha dos Usuários à Brasília em 2009, que resultou na realização da IV Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) em 2010; e 2) as recentes investidas do CFP em posição contrária à política nacional de enfrentamento ao crack, que tem fortalecido comunidades terapêuticas e o tratamento por meio da internação compulsória. Tal quadro é o que nos faz entender, portanto, a Saúde Mental como um importante analisador da participação e ação política da nossa profissão.

O próprio trabalho em Saúde Mental é atravessado no seu cotidiano por situações e demandas que exigem dos profissionais ações não apenas no âmbito técnico, mas o envolvimento com atividades de planejamento (gestão do trabalho) e posicionamento frente aos inúmeros jogos de interesses e poder que permeiam essa política pública. O caráter contraditório e conflituoso, bem como a necessidade permanente de construção de posicionamentos comuns, mesmo que temporários, entre os diversos segmentos que estruturam o campo de forças da Reforma Psiquiátrica, faz da Saúde Mental um espaço singular de atuação, pois exige de nós, trabalhadores, ações fundadas não só no âmbito teórico-técnico dos nossos saberes, mas também ético-político de nossas posturas profissionais. Portanto, atuar na Saúde Mental requer o empreendimento de ações mais implicadas, quer no plano macro, quer no plano micropolítico. Daí o entendimento de Ramminger (2006), quando refere que o trabalhador de saúde mental se constrói e se produz sujeito na tensão do embate entre os discursos e na arena de luta constituintes do processo de reforma psiquiátrica. Assim, além da expertise técnica, faz-se necessário que os profissionais saibam se movimentar e dialogar com as mais diferentes opiniões, concepções, estratégias e interesses que configuram a cena política da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Diante disso questionamos: de que forma os psicólogos têm se movimentado politicamente na Saúde Mental? Temos atuado no espaço político, na esfera pública, em torno dos principais problemas do país? A redefinição do compromisso social da Psicologia, associada ao discurso que exige atuações mais implicadas com amplas parcelas da população, tem norteado os psicólogos a agirem técnica e politicamente para a transformação do lugar da loucura na sociedade? Foi a partir dessas ponderações que surgiu o interesse de investigar sobre as dimensões políticas que sustentam as ações profissionais dos psicólogos na Saúde Mental. Investigamos de que forma isso tem se dado numa realidade particular, que é a do estado do Piauí. Nesse cenário formulamos algumas perguntas: a Saúde Mental tem se constituído em um espaço para o exercício político para os psicólogos piauienses? De que forma os psicólogos têm se movimentado politicamente frente ao processo reformista local? Como se posicionam frente aos impasses, desafios e obstáculos do processo reformista na capital piauiense? De que maneira temos nos colocado como parceiros dessa luta, a fim de avançarmos no processo reformista local e brasileiro? Assim, pretendemos nesse trabalho, analisar as formas de organização e participação dos psicólogos frente à Política de Saúde Mental no Piauí, bem como discutir os efeitos dos processos de participação e ação política nos modos de organização do trabalho dos psicólogos.

Método

Amostra e procedimento

Trata-se de um estudo qualitativo, com os respectivos caminhos da investigação: 1) mapeamento dos principais espaços de debate/discussão e demais arenas de luta política, incluindo os principais atores institucionais que participaram do processo histórico do processo de reforma psiquiátrica piauiense; 2) mapeamento dos locais e modos de inserção dos psicólogos que atuam na saúde mental na capital piauiense; 3) realização de entrevistas; 4) acompanhamento das movimentações sociopolíticas e principais acontecimentos do processo reformista local no biênio 2009/2010.

No primeiro momento, reunimos documentos e depoimentos dos principais atores institucionais que fizeram a Saúde Mental no Piauí nos últimos 30 anos. Para tanto, analisamos relatórios de gestão e atas de reunião, além de folders e anais dos eventos realizados na capital piauiense, além de entrevistas com representantes da Gerência Estadual de Saúde Mental do Piauí (n = 5); do 11º Conselho Regional de Psicologia - Seção Piauí (n = 3); da Associação Psiquiátrica do Piauí - APP e a extinta Associação de Saúde Mental Comunitária do Piauí -ASMC-PI (n = 2); e a Associação dos Portadores de Transtorno Mental, Familiares e Pessoas interessadas na Saúde Mental do Piauí -Âncora (n = 2). Os dados permitiram a identificação dos principais acontecimentos, cenários e movimentações sociopolíticas, bem como dos pontos de tensão, desdobramentos e dos atores envolvidos no movimento de reforma psiquiátrica piauiense.

No segundo momento conhecemos a realidade de cada serviço e entrevistamos 29 psicólogos que atuam nos Centros/ Unidades básicas de Saúde (n = 7), Centros de Atenção Psicossocial/CAPS (n = 13), Hospital Psiquiátrico (n = 7) e na Gerência Estadual de Saúde Mental (n = 2). Utilizamos um roteiro de entrevista semiestruturada com foco nas seguintes questões: formas de inserção na saúde mental; experiências profissionais neste campo; organização do processo de trabalho; atividades realizadas e demandas atendidas; envolvimento com o cotidiano do serviço; interesses/motivos para atuar/permanecer na saúde mental; posicionamento quanto ao modelo de reforma implantada no Estado; ações políticas demandadas para nossa profissão; e avaliação sobre a participação dos psicólogos no desenvolvimento da política de saúde mental local.

No terceiro momento participamos dos eventos comemorativos do "Dia Nacional de Luta Antimanicomial" e "Dia Mundial da Saúde Mental" ocorridos no biênio 2009/2010, em Teresina-PI, além das etapas municipal e estadual da IV CNSM realizadas em 2010. Acompanhamos, com base na observação participante e registro em diário de campo, a participação e movimentações sociopolíticas dos psicólogos naqueles espaços, especialmente nas etapas municipal e estadual da conferência, assim como acerca do fechamento do Sanatório Meduna - hospital psiquiátrico privado da capital.

Quanto ao tratamento dos dados, trabalhamos com análise de conteúdo temática (Minayo, 2000), tendo como procedimentos: categorização, inferência e interpretação dos dados. Os resultados foram organizados em quatro grandes eixos: a) modos de inserção na saúde mental; b) saberes e práticas profissionais para atuar na saúde mental; c) movimentação dos atores locais frente ao processo de reforma psiquiátrica; d) psicólogos piauienses e os rumos da política de saúde mental. Contamos com a autorização da Secretaria Estadual de Saúde e Fundação Municipal de Saúde, além da autorização dos participantes.

Resultados e Discussão

Modos de inserção dos psicólogos na saúde mental

Semelhante à realidade nacional, a maioria dos psicólogos que atua nos serviços de saúde mental da capital piauiense é mulher (79,3%), jovem (58,6%), formada há menos de 10 anos (62%) e com vínculo de trabalho público (93,1%), seja pelo regime estatutário (76%), seja por meio de contratos temporários (24%). Trata-se de profissionais com pouca experiência na área, pois têm menos de cinco anos de serviço (55%). Por outro lado, os profissionais vinculados aos hospitais psiquiátricos possuem mais de 20 anos de atuação no setor (31%).

Diferente de outras realidades do país, na qual os psicólogos ingressaram no serviço público por meio da educação, assistência social e segurança pública (Andrade & Simon, 2009; Carvalho, Bosi, & Freire, 2009; Sales & Dimenstein, 2009), no Piauí essa inserção ocorreu pela Saúde Mental. Desde a década de 1970 tem sido a principal porta de entrada dos psicólogos piauienses na esfera pública. Apesar disso, foram poucos os profissionais que relataram alguma aproximação ou experiência prévia com saúde mental antes de ingressarem nos serviços (31%). Muitos profissionais, sobretudo aqueles que atuam nos CAPS, relataram ter sido este o seu primeiro emprego.

Outro dado relevante foi que após ingressaram na saúde pública, a maioria dos entrevistados (69%) ficou surpresa, apreensiva e pouco satisfeita quando informada que trabalharia na Saúde Mental. Entretanto, logo se adaptou ao novo contexto de trabalho, pois significava a retomada do contato com o campo da clínica psicológica, da psicopatologia e das teorias e técnicas psicoterápicas. Além disso, a estabilidade financeira e profissional garantida pelo serviço público foi outro fator que contribuiu para que os entrevistados permanecessem na Saúde Mental.

Muitos participantes relataram combinar mais de um emprego: 72% mantêm pelo menos dois vínculos e 11% mantêm três vínculos profissionais. Pouquíssimos profissionais cumprem a carga horária semanal total, em função dos multiempregos. A clínica psicológica em consultório privado figura como a atividade de maior preferência entre aqueles (58,62%) que combinam mais de um emprego. O objetivo é o complemento da renda.

Dentre as principais dificuldades registramos a questão salarial e fragilidades quanto às condições de trabalho, especialmente em relação à falta de material e estrutura dos serviços. Falta de testes psicológicos, material lúdico e sala adequada para realizar os atendimentos foram as principais queixas dos entrevistados. Outra reclamação foi quanto ao número insuficiente de serviços que contam com psicólogos, ocasionando longas filas de espera pela população. Por fim, dado o perfil dos profissionais que têm ingressado na Saúde Mental, observou-se que eles priorizam a realização de atividades que, notadamente, aumentam seu vínculo ou comprometimento afetivo com o modo clássico de atuação da categoria, ou seja, orientados basicamente pelas ações do psicodiagnóstico e, principalmente, da psicoterapia.

Saberes e práticas profissionais para atuar na saúde mental

Registra-se certa heterogeneidade quanto aos locais, períodos e agências formadoras (graduação e pós-graduação) entre os entrevistados. No caso dos profissionais dos CAPS, por exemplo, a maioria foi formada a partir de 2003, no próprio estado, com exceção de alguns casos oriundos do Ceará e Maranhão. Quanto aos profissionais da atenção primária e rede ambulatorial, a maioria foi formada na década de 1980 e início dos anos 1990, fora do Piauí, em especial, nos estados da Paraíba e Pernambuco, visto o funcionamento dos primeiros cursos no estado datar de 1998. No caso dos profissionais que atuam nos hospitais psiquiátricos, a maioria foi formada no final da década de 1970 e anos 1980, sobressaindo maior diversidade de localidades e agencias formadoras: São Paulo, Rio de Janeiro, Paraíba, Pernambuco, Ceará, entre outras.

Quanto à formação em nível de pós-graduação, muitos entrevistados (66,7%) têm especialização em saúde mental, saúde pública e áreas correlatas. Porém, no CAPS, o quantitativo com pós-graduação na área não chega a 55%, na atenção primária e setor ambulatorial tal índice alcança 71,5%, e no setor dos hospitais psiquiátricos chega a 86%. Apesar da qualificação em saúde mental, as práticas adotadas nos serviços baseiamse, preferencialmente, nas abordagens psicológicas de modelo clínico clássico (82,75%), sendo que uma minoria embasa suas práticas no modelo de atenção psicossocial e saúde coletiva (17,24%).

Pormenorizando a questão das práticas, registra-se a manutenção da clássica organização do trabalho pautado por: a) atuações individuais, com raras participações em atividades grupais; b) busca de nexos causais para elucidar o quadro clínico e psicossocial dos pacientes baseado, unicamente, nas definições de normal e patológico apresentadas pela psiquiátrica tradicional; c) busca de nexos causais entre as queixas clínicas e procedimentos mais efetivos para a remissão dos sintomas e normalização do paciente; d) realização de ações profissionais isoladas, justificadas pelo respeito à ética e a garantia do sigilo, por isso a esquiva para a atuação em equipe; d) trabalho técnico dissociado das ações de gestão, quer no próprio serviço, quer nos outros níveis de atenção.

O reflexo disso está no fato de que as atividades desenvolvidas nos serviços são basicamente as mesmas, independente: a) do tipo de instituição, local e época em que o profissional se graduou ou pós graduou; b) do local de atuação, da população atendida, das necessidades e demandas requeridas; ou c) quanto ao nível de atenção, seja ele primário, secundário ou terciário em saúde. Assim, observamos a pouca adesão dos entrevistados em relação à atenção psicossocial, no sentido da desinstitucionalização dos saberes e práticas que reforçam a ideia do usuário como incapaz e tutelado, e o pouco investimento na produção do cuidado e aumento do coeficiente de autonomia e participação comunitária de usuários e familiares (Costa-Rosa, 2000, Ramminger, 2006).

Notamos então uma distância entre o discurso de engajamento em favor da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica, bastante presente nas entrevistas, e a atuação prática dos profissionais. Os relatos de despreparo e receio para atuar neste campo foram frequentes. Além disso, os entrevistados confessaram ficar bem mais à vontade com pacientes menos comprometidos psiquicamente e de fácil adesão ao modus operandi clássico da profissão: atendimento individual. Assim, eles não precisam alterar a linha de condução do seu repertório técnico de atuação.

Movimentações dos atores locais frente ao processo de reforma psiquiátrica

Diferente de outras localidades, a reforma psiquiátrica piauiense ficou caracterizada como resultante de um processo tardio, iniciado somente em 2004, portanto, 17 anos depois de aberto o primeiro CAPS do país. Esse atraso foi consequência da força e poder psiquiátrico, que associado à forte cultura manicomial local fez perdurar a centralidade do hospital tanto como principal condutor de respostas técnico-assistenciais, quanto como principal meio por onde passaram as decisões políticas da Saúde Mental no Piauí.

Até o ano de 2001, os psiquiatras foram o principal ator do processo reformista local, seja na esfera dos serviços e da gestão, seja na esfera sociopolítica. No plano assistencial, a ação dos psiquiatras teve como foco o aperfeiçoamento da estrutura asilar com o fortalecimento dos hospitais e a ampliação do seu campo de ação e poder profissional, inclusive com a criação de novos serviços ambulatoriais em psiquiatria em todo o estado. Quanto ao campo político, tais profissionais empreenderam esforços para afastar qualquer tentativa de chegada do discurso e ideário antimanicomial às terras piauienses. Foi por este motivo que as demais categorias profissionais estiveram completamente afastadas de qualquer debate sobre a desinstitucionalização e luta "Por uma sociedade sem manicômios" até o início dos anos 2000. E o pior, quando se falava em reforma psiquiátrica o entendimento que se tinha estava focado no melhoramento ou "humanização" da estrutura hospitalar existente. Sobre a posição dos psicólogos a esse respeito, quando havia algum descontentamento era sobre as condições de trabalho para o melhor exercício profissional.

O mais claro exemplo desse distanciamento dos psicólogos piauienses quanto às questões políticas que envolvem trabalhar na saúde mental, foi o debate em torno da tramitação dos dois projetos de lei (estadual e municipal) de reforma psiquiátrica, ambos em pauta no final dos anos 1990. Enquanto para os psiquiatras o debate no plano legislativo se constituiu no novo espaço de investimento político da categoria para manutenção da força e poder do hospital, logo da hegemonia do poder médico, os raros psicólogos que se envolveram nesse debate, assim como os demais trabalhadores, pouco se posicionaram sobre a matéria. Na verdade, este acontecimento mostrou o desconhecimento e a falta de trânsito por parte dos profissionais piauienses nas discussões e nas movimentações de luta que integraram o cenário reformista no plano nacional.

Por desconhecerem os debates sobre o tema e por estarem mais implicados com a aplicação do tradicional repertório técnico-profissional, tais profissionais acabaram tomando partido dos psiquiatras tão logo a discussão apontou para a possibilidade de todos perderem os seus empregos com a aprovação de ambas as leis, que previam a substituição dos hospitais por serviços territoriais. No geral, este foi o quadro de movimentações políticas entres os atores locais até o início dos anos 2000.

Apesar de moroso e tardio, o processo de reforma psiquiátrica local, no que diz respeito à abertura de serviços, avançou muito rapidamente a partir de 2004 com o surgimento de um novo ator: Ministério Público Estadual (MPE-PI). Somente com o questionamento do poder psiquiátrico pelo poder jurídico, as ações do Ministério da Saúde para implantação da rede psicossocial do estado ganharam força. Consequentemente, a Gerência Estadual de Saúde Mental teve mais legitimidade para efetivar as negociações junto aos municípios piauienses para abertura de novos serviços. Com isso, deixamos de ter uma das piores coberturas CAPS do país em 2002, atingindo somente 3% da população, para alcançarmos em dez anos a sexta melhor posição do país, com 91% da população coberta em saúde mental (Brasil, 2012).

Por outro lado, a despeito dos avanços e conquistas, os psiquiatras (e demais a atores alinhados à lógica manicomial) demonstraram habilidade em interferir no processo de reforma em curso, dando outro sentido à reforma psiquiátrica no Piauí, ou seja, mantendo a centralidade do hospital psiquiátrico e da lógica do especialista para condução do tratamento/cura. Tal quadro reformista, diferente de outras localidades do país, não foi disparado e não teve sustentação dos tradicionais atores envolvidos com o movimento de luta antimanicomial: trabalhadores, usuários e familiares. Na verdade, houve pouca força política dos trabalhadores e sociedade civil, que sem retaguarda política e institucional no âmbito local, não conseguiu avançar nesse campo, tal como ocorreu em outras regiões do Brasil. Além disso, os conselhos estadual e municipal de saúde muito raramente se colocaram como parceiros desta luta, visto que seus membros desconheciam a agenda política da reforma psiquiátrica, chegando, inclusive, a defender as propostas vinculadas ao modelo manicomial tanto nas plenárias sobre o fechamento do Sanatório Meduna, quanto nas etapas da IV CNSM.

Quanto à participação dos psicólogos ao longo de todo o processo de conformação do movimento de reforma psiquiátrica piauiense, ficou evidente a dificuldade dos nossos profissionais ocuparem determinados espaços que exigem movimentação política e discussões na esfera pública com posicionamentos e ideias em defesa da luta antimanicomial. De fato, as movimentações dos psicólogos nesse campo estiveram bem mais voltadas: a) para a garantia de espaços adequados, junto aos serviços, para o melhor exercício dos seus atos profissionais (trabalho clínico individual); b) à busca da manutenção dos seus empregos, como foi o caso dos embates políticos sobre o processo reformista em Teresina no final dos anos 1990; ou c) para a conquista de novas frentes de trabalho. Nesse sentido, muitos psicólogos recém-formados foram autores dos projetos dos CAPS instalados nos municípios do interior, a partir de 2004, garantindo sua contratação na equipe técnica ou na coordenação do serviço.

Sobre a participação dos psicólogos enquanto categoria organizada nos eventos políticos e culturais que envolveram o movimento reformista local, não notamos a presença de nenhum representante formal (Conselho Regional, Sindicato, entre outros). Nenhuma instância apresentou críticas, sugestões e proposições em relação à condução da Política de Saúde Mental. Nem mesmo os cursos de psicologia da capital fizeram manifestações (nota pública, folhetos, faixas ou cartazes) em apoio à Reforma e ao Movimento da Luta Antimanicomial, ou à realização da IV CNSM. A mesma ausência ocorreu nos eventos comemorativos da luta antimanicomial e saúde mental e de fechamento do Sanatório Meduna, onde os grupos pró reforma e antirreforma travaram longa discussão sobre as consequências do fechamento de um hospital psiquiátrico na capital.

Os psicólogos piauienses e os rumos da política de saúde mental

Apesar dos avanços quanto à abertura de serviços extrahospitalar e de base comunitária em saúde mental em todo o Piauí, não são poucos os desafios locais. No plano técnicoassistencial, observamos que: a) os serviços têm dificuldade de organizarem suas práticas a partir do paradigma e estratégia da atenção psicossocial; b) não há um trabalho integrado da rede de serviços que organize, regule e coordene o fluxo e as ações de cuidado de modo a garantir a continuidade de ações no território de maneira corresponsabilizada; c) não se avança nos serviços com ações intersetoriais, fazendo com que aumente a capacidade de interdependência dos mesmos na coordenação de ações de reinserção social e poder de contratualidade dos usuários/familiares.

No plano sociopolítico, os desafios giram em torno da própria necessidade de defender os avanços até então conquistados, especialmente quanto à ampliação da rede e maior oferta de serviços, benefícios e demais dispositivos de reabilitação psicossocial, sem deixar de mobilizar novas forças que resistam às tentativas de paralisar os avanços alcançados. Também se faz necessário maior aproximação com instâncias formais de controle social (conselho de saúde e movimentos sociais) para construir pontos de diálogo e apoio na defesa do processo reformista local, logo, na capacidade de indivíduos e grupos agirem e interferirem nos espaços decisórios, pautando temas específicos dos usuários e familiares.

Porém, para tanto, é preciso que os principais atores envolvidos, notadamente trabalhadores e gestores, compreendam que o trabalho em saúde é constituído por vetores que têm entre si a função de estabelecer relações de intercessão entre os modos como nos constituímos trabalhadores (desejos, necessidades, interesses) e os modos como organizamos os processos de trabalho nesse campo (saberes, planejamento, avaliação e tomada de decisão). Além disso, há outro vetor que trata sobre os modos como esses sujeitos permeados de desejos, necessidades e interesses diversos, que organizam de diversas formas e parâmetros suas atividades e saberes nos serviços, se encontram, dialogam, cooperam, negociam, ou seja, coletivizam tais relações, posições, saberes e poderes nesse campo (Barros & Barros, 2007). É exatamente neste aspecto que reclamamos que a saúde mental piauiense precisa de profissionais que se pensem trabalhadores para além de meros sujeitos técnicos, portanto, simples executores de atos profissionais encastelados em seus núcleos de saber. Precisamos de trabalhadores que articulem o seu fazer profissional com ações políticas e de gestão da clínica e do cuidado, de forma permanente, no cotidiano dos serviços. Talvez assim, possamos consolidar o processo reformista em curso no Piauí, tanto com ações voltadas para a macroestrutura estatal com a negociação com diversas instâncias de governo, quanto com ações mais microfísicas, a partir da micropolítica do cotidiano do trabalho, nos produzindo sujeitos críticos e inventivos de novas práticas e ações político-profissionais.

Contudo, no caso dos psicólogos piauienses que atuam na saúde mental, percebemos, ao longo desses 30 anos que este coletivo esteve envolvido com outras questões. Em vez de implicados com o movimento de luta antimanicomial e reforma psiquiátrica que efervescia nos anos 1980 e 1990, nossos profissionais, preocupados com seus empregos, acabaram conduzidos pelos argumentos dos psiquiatras na luta pela permanência do hospital e melhoria de sua estrutura física. Com a abertura dos CAPS e o ingresso de psicólogos recém-formados nesses serviços a partir de 2004, percebemos que apesar dos profissionais não desconhecerem o debate sobre a reforma psiquiátrica, luta antimanicomial, legislação e a política de saúde mental no Brasil, tal fato não garantiu a organização das práticas calcadas no paradigma e estratégia de atenção psicossocial. Ou seja, enquanto que no campo discursivo nossos entrevistados saem em defesa da reforma psiquiátrica, do repúdio à violência institucional e da necessidade de enfrentamento do estigma da loucura na sociedade, no cotidiano dos serviços, os mesmos profissionais operam modelos tradicionais de ambulatorização do atendimento, contribuindo muito pouco para firmar ações de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial.

Qual é o efeito desse quadro para as ações dos psicólogos na saúde mental? A produção de profissionais que atuam, preferencialmente, voltados para o plano individual e privativo; frente às questões complexas que caracterizam a vida das pessoas em situação de sofrimento que demandam cuidados em saúde mental procedem amparados em leituras psicologizantes; tomam o trabalho com grupos, quase sempre, como dispositivo de normatização de condutas e subjetividades, sendo a adesão do paciente ao tratamento medicamentoso a principal preocupação; que não realizam qualquer discussão de caso para o planejamento de atividades interdisciplinares, muito menos de construção e monitoramento de projetos terapêuticos singulares, com ações de continuidade do cuidado. Por fim, psicólogos que apresentam muita resistência para desenvolver/participar de oficinas terapêuticas; de ofertar qualquer ação de suporte à crise; desenvolver ações no território ou de perspectiva intersetorial, inclusive de matriciamento das equipes da atenção básica; ou de realizar ações de fortalecimento da participação política dos usuários, efetuando ações de construção de cidadania, contribuindo para a produção de cuidado, autonomia e projetos de vida.

Ficam evidentes na nossa investigação alguns pontos: a) a clara desarticulação e a pouca participação dos entrevistados no movimento de reforma psiquiátrica e luta antimanicomial no plano nacional e local; b) o quanto a categoria dos psicólogos não é um ator importante que interfere no cenário local, no processo reformista, mesmo participando como técnico do serviço, gestor e com assento nos conselhos do controle social; c) caso não fosse o surgimento do MPE-PI como o mais importante ator da reforma psiquiátrica no Piauí, não teríamos avançado tão rapidamente na estruturação da atual rede psicossocial do estado; d) que avançamos com a implantação de muitos serviços, porém, o que se observa é que contamos com pouca sustentação técnica e política por parte dos profissionais e gestores, no contexto local, quanto ao movimento de reversão do modelo asilar para o psicossocial de atenção. Em resumo, falta participação efetiva na construção da Política de Saúde Mental do Piauí.

Interfaces entre os desafios da reforma psiquiátrica no plano local e nacional

Apesar de termos analisado uma realidade específica que é a piauiense, estamos engendrados por uma lógica que tem relação com o cenário nacional, pois sinaliza o momento atual e os desafios quanto à consolidação da Política de Saúde Mental e o tipo de ação que os psicólogos têm empreendido neste campo. Mesmo com os avanços conquistados - o fechamento de mais de 18 mil leitos, maior gasto com ações extra-hospitalares (70,56%) se comparado com o setor hospitalar (29,44%) e expansão da rede de serviços substitutivos (Brasil, 2012) - vimos com base nas análises anteriores, que não são poucas as distorções para consolidação desta política no país, seja nos grandes centros, seja quando o contexto em questão são as localidades periféricas. Daí o entendimento de que além dos desafios para seguir na realização de ações estruturantes para o setor, como por exemplo, abertura de novos serviços, criação de mecanismos de regulação e avaliação permanente, além da reorientação dos modos de gestão e financiamento da política para fortalecer a articulação dos recursos substitutivos entre si e com a rede do Sistema Único de Saúde (SUS), é preciso garantir que a estratégia da atenção psicossocial se efetive concretamente no campo das práticas e no cotidiano dos serviços. Talvez assim, possamos produzir alternativas no plano cultural, das subjetividades, das sociabilidades e identidades coletivas, bem como melhores condições de trabalho e estrutura para os serviços que rivalizem com a lógica manicomial que ainda encarna os profissionais e a organização dos serviços, como também a população de forma geral.

Quanto aos psicólogos, inúmeros estudos têm debatido sobre as dificuldades encontradas por estes profissionais para operarem seu saber-fazer sob a lógica da atenção psicossocial. São trabalhos que versam sobre o fato da profissão ter acompanhado com pouca profundidade o debate conceitual, técnico-gerencial e sociopolítico no campo da reforma psiquiátrica. Como efeito, percebe-se o pouco envolvimento dos psicólogos na realização de deslocamentos no seu aparato teórico-prático, historicamente centrado no saber médico-psiquiátrico (psicopatológico e clínicoprivatista-normatizador), para a interdisciplinaridade de saberes; da noção de doença para a de produção da saúde; da ideia de tratamento em serviços especializados (hospitais psiquiátricos, CAPS, entre outros) para a circulação pela cidade; do conceito de doente mental para portador de uma existência-sofrimento; do julgamento de incapaz e tutelado para o de cidadão. Em resumo, as críticas refletem sobre a dificuldade dos profissionais avançarem no questionamento radical dos pressupostos teóricos e conceituais do campo psiquiátrico-psicológico e social da loucura (Alverga & Dimenstein, 2006; Carvalho et al., 2009; Lobosque, 2010; Ramminger, 2006; Romagnoli, 2006).

Comparando as análises dos estudos presentes na literatura especializada com as que produzimos neste trabalho, nota-se que o caso piauiense não difere tanto de outras localidades do país. O fato da maior parte dos psicólogos que ingressou na Saúde Mental na última década ser jovem, recém-formado e com pouco envolvimento tanto com as concepções da estratégia de atenção psicossocial, quanto com o sentido histórico e político do movimento de Reforma Psiquiátrica e suas bandeiras de luta, faz com que os psicólogos encontrem dificuldades no manejo e adesão quanto ao uso de ferramentas e estratégias de intervenção que pretendem estar mais próximas à realidade dos serviços, ao trabalho em equipe e à gestão da clínica e do cuidado com foco na autonomia e reinserção social (Andrade & Simon, 2009; Ferreira Neto, 2008a, 2008b; Sales & Dimenstein, 2009)

Por outro lado, ao relacionarmos a realidade piauiense com as dos estudos citados anteriormente, percebemos que a dificuldade dos psicólogos em sustentarem os avanços conquistados e os desafios futuros sobre os rumos da Política de Saúde Mental no Brasil, especialmente, com a adoção de práticas pautadas pelo paradigma psicossocial e ações políticoprofissionais em conjunto com os movimentos sociais, tem implicações bem maiores para a profissão. Por quê? Enquanto no plano macrossocial, de maneira especial nas instâncias institucionalizadas de decisão e governo da Política de Saúde Mental e demais espaços sociopolíticos, os psicólogos são reconhecidos como uma categoria que evidencia forte ativismo, articulação e compromisso profissional com a luta pelos direitos humanos e por uma reforma psiquiátrica efetivamente antimanicomial, na esfera mais micro, sobretudo no cotidiano dos serviços, o debate crítico tem evidenciado a fragilidade teórica e técnica, como também política dos psicólogos ao exercerem suas ações profissionais na defesa das mudanças que se quer implantar na saúde mental.

Ou seja, apesar do forte discurso pautado no lema do compromisso social, inclusive tendo como uma de suas bandeiras a luta pela reforma psiquiátrica brasileira, no campo das práticas e ações profissionais nos serviços, percebemos os psicólogos mais vinculados e comprometidos afetivo-profissionalmente com a reprodução e atualização do saber-fazer que tanto reafirma o modus operandi clássico da nossa profissão. Isso significa que o argumento do compromisso social frente às necessidades e demandas da sociedade, que sustenta a ideia da imprescindibilidade da psicologia no SUS, tem se materializado em práticas ainda pouco efetivas na produção de saúde e cidadania, com modalidades de cuidado culturalmente sensíveis e territorializadas (Andrade & Lavrador, 2007).

Diante deste quadro, fica a aposta que a participação dos psicólogos no âmbito da Reforma Psiquiátrica brasileira possa de fato expressar o compromisso social da profissão com a presença qualificada e implicada da categoria com a potência política da Luta Antimanicomial. Para tanto, precisamos rever não apenas os modos de inserção, a formação graduada e pós-graduada e as estratégias de educação permanente, mas as formas com que nos vinculamos e nos comprometemos, inclusive afetivoprofissionalmente, com os novos conhecimentos e os norteadores teórico-práticos da Estratégia de Atenção Psicossocial. Talvez assim, possamos construir posturas político-profissionais capazes de sustentar o movimento de reversão do modelo asilar para o psicossocial, especialmente, no cotidiano dos serviços.

Nota

Recebido em 28. Nov.12

Revisado em 14. Mai.13

Aceito em 06. Jun. 13

João Paulo Macedo, Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Piauí. Endereço para correspondência: UFPI - CMRV, Departamento de Psicologia. Av. São Sebastião, 2819. São Benedito. CEP 64202-020. Parnaíba, PI, Brasil. E-mail: jpmacedo@ufpi.edu.br

Magda Dimenstein, Doutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Endereço para correspondência: UFRN - CCHLA, Departamento de Psicologia, Campus Universitário, Lagoa Nova. CEP 59078-970. Natal/RN, Brasil. Email: magda@ufrnet.br

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  • 1
    . O RENILA nasceu da ruptura com o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA) no V Encontro Nacional da Luta, realizado em Miguel Pereira (RJ), em 2001. As razões da ruptura foram às divergências entre as lideranças do movimento sobre sua estrutura e organização; apesar da cisão, o foco da luta "Por uma sociedade sem manicômios" continua central para os dois coletivos de militância do Movimento de Luta Antimanicomial (Vasconcelos, 2010).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jul 2019
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      28 Nov 2012
    • Aceito
      06 Jun 2013
    • Revisado
      14 Maio 2013
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