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O cuidado na relação professor-aluno e sua potencialidade política

Care in the teacher-student relation and its political potentiality

El cuidado en la relación profesor-alumno y su potencial político

Resumos

Este artigo discute o cuidado na relação entre professoras, professores e estudantes, problematizando, a partir de autoras da teoria feminista, que a socialização de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres deva ser a finalidade principal da educação. Nas relações de cuidado se evidenciam a interdependência e a mutualidade - afetiva e cognitiva -, aspectos esses que perpassam as relações entre educadores e alunos na escola. As condições atuais de desvalorização da carreira docente e sua burocratização têm conduzido a uma objetificação das relações na escola, resultando em vínculos baseados na tutela e na disciplinarização, em detrimento do cuidado. Por fim, discutimos a potencialidade política do cuidado, ao permitir que professoras, professores e alunos se vejam como mutuamente dependentes. Entendemos que a ação política pode surgir da condição de dependência e do sentimento de responsabilização que se produzem a partir de experiências domésticas e familiares, e não em detrimento das mesmas.

cuidado; educação; psicologia; política


This paper discusses care in the relation between teachers and students problematizing, in the perspective of feminist studies, that the socialization of citizens aware of their rights and obligations should be the main goal of education. In care relationships interdependence and cognitive and affective mutuality are central, an aspect that cuts across relationships between teachers and students at school. The present conditions of devaluation of the teaching profession, and its bureaucratization, have led to a process of objectification of school relationships, bringing forth social bonds based on tutelage and disciplinarization, instead of care. At last, we discuss the political potentiality of care as it favours that teachers and students see each other as mutually dependent. We understand that political action can emerge from the condition of dependency as well as the feeling of responsibility that are produced in domestic and familiar experiences, and not in detriment of them.

care; education


Este artículo aborda el cuidado en la relación entre las profesoras, los profesores y los estudiantes, a partir de las autoras de la teoría feminista, cuestionando la afirmación de que la socialización de los ciudadanos conscientes de sus derechos y deberes debe ser el objetivo principal de la educación. En las relaciones de cuidado se resalta la interdependencia y la reciprocidad - cognitivo y afectivo - aspectos que subyacen en la relación entre profesores y estudiantes en la escuela. Las condiciones actuales de la devaluación de la profesión docente y su burocracia han dado espacio a una objetivación de las relaciones en la escuela, lo que resulta en relaciones basadas en la protección y la disciplina en detrimento de la atención. Finalmente, se discute la potencialidad política del cuidado, para que los profesores y los estudiantes se vean como mutuamente dependientes. Creemos que la acción política puede durgir de una condición de dependencia y el sentimiento de responsabilidad que se produce a partir de las experiencias domésticas y de la familia, y no al contrario de la misma.

cuidado; educación; psicología; política


DOSSIÊ JUVENTUDE E POLÍTICA

O cuidado na relação professor-aluno e sua potencialidade política

Care in the teacher-student relation and its political potentiality

El cuidado en la relación profesor-alumno y su potencial político

Amana Rocha MattosI; Beatriz Corsino PérezII; Carlos Vinícius Ribeiro AlmadaII; Lucia Rabello de CastroII

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO

Este artigo discute o cuidado na relação entre professoras, professores e estudantes, problematizando, a partir de autoras da teoria feminista, que a socialização de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres deva ser a finalidade principal da educação. Nas relações de cuidado se evidenciam a interdependência e a mutualidade - afetiva e cognitiva -, aspectos esses que perpassam as relações entre educadores e alunos na escola. As condições atuais de desvalorização da carreira docente e sua burocratização têm conduzido a uma objetificação das relações na escola, resultando em vínculos baseados na tutela e na disciplinarização, em detrimento do cuidado. Por fim, discutimos a potencialidade política do cuidado, ao permitir que professoras, professores e alunos se vejam como mutuamente dependentes. Entendemos que a ação política pode surgir da condição de dependência e do sentimento de responsabilização que se produzem a partir de experiências domésticas e familiares, e não em detrimento das mesmas.

Palavras-chave: cuidado; educação; psicologia; política.

ABSTRACT

This paper discusses care in the relation between teachers and students problematizing, in the perspective of feminist studies, that the socialization of citizens aware of their rights and obligations should be the main goal of education. In care relationships interdependence and cognitive and affective mutuality are central, an aspect that cuts across relationships between teachers and students at school. The present conditions of devaluation of the teaching profession, and its bureaucratization, have led to a process of objectification of school relationships, bringing forth social bonds based on tutelage and disciplinarization, instead of care. At last, we discuss the political potentiality of care as it favours that teachers and students see each other as mutually dependent. We understand that political action can emerge from the condition of dependency as well as the feeling of responsibility that are produced in domestic and familiar experiences, and not in detriment of them.

Keywords: care; education; Psychology; politics.

RESUMEN

Este artículo aborda el cuidado en la relación entre las profesoras, los profesores y los estudiantes, a partir de las autoras de la teoría feminista, cuestionando la afirmación de que la socialización de los ciudadanos conscientes de sus derechos y deberes debe ser el objetivo principal de la educación. En las relaciones de cuidado se resalta la interdependencia y la reciprocidad - cognitivo y afectivo - aspectos que subyacen en la relación entre profesores y estudiantes en la escuela. Las condiciones actuales de la devaluación de la profesión docente y su burocracia han dado espacio a una objetivación de las relaciones en la escuela, lo que resulta en relaciones basadas en la protección y la disciplina en detrimento de la atención. Finalmente, se discute la potencialidad política del cuidado, para que los profesores y los estudiantes se vean como mutuamente dependientes. Creemos que la acción política puede durgir de una condición de dependencia y el sentimiento de responsabilidad que se produce a partir de las experiencias domésticas y de la familia, y no al contrario de la misma.

Palabras clave: cuidado; educación; psicología; política.

Na escola, a relação entre professoras, professores e estudantes é atravessada pela troca de conhecimento, e também pelo afeto e pelo cuidado. Além da transmissão de conteúdos, são estabelecidas relações emocionais significativas entre adultos e estudantes. Na sala de aula, emergem incontáveis sentimentos com os quais os adultos e os mais jovens precisam aprender a lidar. Para as crianças e os jovens1 1 . Utilizamos aqui os termos "crianças" e "jovens" em continuidade, por oposição ao lugar dos adultos. Ainda que possamos encontrar diferenças no tipo de cuidado presente nas relações com crianças e jovens, nosso argumento é que em ambos fica patente a dissimetria hierárquica em relação a adultos/educadores. , a escola se configura como um dos principais espaços de sociabilidade de suas vidas, onde aprendem a conviver com as diferenças, a se relacionar com os colegas, a criar laços de solidariedade e amizade. Muitos adultos guardam boas lembranças da época da escola, falam com carinho de professoras e professores que tiveram e cultivam amizades que foram construídas ao longo dos anos em que estudaram juntos. Ao mesmo tempo, a escola é produtora de insatisfações e frustrações que podem perdurar por muito tempo. Como coloca Melman (1994), é "uma situação estrutural do sujeito viver com a educação que ele recebeu e ao mesmo tempo contra ela" (p. 32).

Neste artigo, discutimos de que forma a relação entre professoras, professores e estudantes pode ser pensada a partir da dimensão de cuidado com o outro, para além da tutela e da transmissão de conhecimento, perspectivas tão presentes na escola moderna. Ao enfocarmos as relações de cuidado entre adultos e crianças/jovens na escola hoje, trazemos algumas situações que são habitualmente silenciadas no cotidiano escolar, como as relações de implicação e responsabilidade com o outro. Partindo de autoras da teoria feminista, que problematizam a educação como tendo o seu objetivo principal socializar crianças e jovens e produzir cidadãos racionais e sabedores de seus direitos e deveres, discutimos como o cuidado cotidiano se atualiza nos vínculos construídos na escola, em situações por vezes inusitadas. Apontamos também para a potencialidade política dessa experiência, ao permitir que os sujeitos se vejam como mutuamente dependentes, tanto no aspecto afetivo quanto cognitivo. Nessa perspectiva, a ação política surgiria da dependência, e não em detrimento dela, com o sentimento de responsabilidade e de dever agir frente ao outro.

Por que falar de cuidado nas relações escolares?

Na modernidade, a construção social da infância como uma etapa de vida específica, que requer atenção e cuidados especiais, se deu em oposição à fase adulta, que seria mais bem preparada e esclarecida para lidar com os problemas da vida. Crianças teriam que ser educadas pela família e pela escola, aprendendo regras, normas e padrões culturais para, posteriormente, poderem participar ativamente da sociedade. Elas deveriam permanecer, assim, protegidas no espaço privado, enquanto passariam por esse processo de preparação para a vida adulta.

Na contemporaneidade, a relação entre adultos e crianças vem sendo marcada pela imprecisão dos lugares sociais e geracionais. A atual formação de crianças e jovens não se restringe à família e à escola, expandindo-se para a mídia e outras esferas da vida cotidiana. A cultura do consumo, as inovações tecnológicas e a propagação de diferentes meios de comunicação, como celulares, televisão e computadores conectados à internet, na medida em que horizontalizaram a transmissão de saberes e informações, complexificaram as relações entre adultos e crianças. Essas mudanças perturbaram o papel da escola no processo de formação dos estudantes. Atravessados por novas formas de experimentação dos meios sociais e de obtenção de informações, crianças e jovens podem gozar da possibilidade de construir conhecimentos acerca do mundo que não se restringem aos espaços do lar e da escola.

Para discutir as formas como esses lugares estão sendo ocupados, propomos que tanto a figura do estudante quanto a do professor/a sejam pensadas como papéis relacionais, isto é, constituindo-se em seu processo de interação, marcado pelas condições materiais e contextuais em que essas relações se dão. Consideramos que tanto adultos quanto crianças são capazes de agir no mundo, contribuindo para o processo de produção e de reprodução da vida e da cultura. Como afirma Castro (2001) a esse respeito:

[...] enquanto capazes de agir, criança e adulto não são diferentes, mas se singularizam no curso da ação ao se revelarem como sujeitos distintos. [...] Diferenças entre adultos e crianças emergem a partir de como se estruturam os cursos da ação para estes sujeitos, ou seja, o contexto de condições que possibilitam a ação para ambos. (p. 43)

Assim, ainda que tenham lugares distintos na instituição escolar, as diferenças entre adultos e crianças/jovens, ou entre professoras, professores e estudantes, não devem ser pensadas como "naturezas" distintas, mas como lugares produzidos socialmente, que materializam os valores da sociedade. Trata-se de lugares que são demarcados relacionalmente, uma vez que uns só se definem quando em relações de troca com os outros. É por serem capazes de agir e de produzir modificações no espaço social em que convivem que professoras, professores e estudantes são sensíveis às mudanças e tensões que surgem no desempenho de suas funções, e estas podem ser pensadas de maneira não naturalizada.

A discussão sobre o cuidado, ou mais especificamente, sobre a ética do cuidado nas relações sociais e mesmo políticas foi trazida por diversas teóricas feministas desde a década de 60, e o tema vem sendo considerado importante nos debates da teoria política atual, para além de autoras e autores que estudam gênero e feminismo. Segundo Sevenhuijsen (1998), uma ética do cuidado pode ser pensada ao focarmos valores como a consideração da necessidade do cuidado nas relações, a inclinação a aceitar a responsabilidade por outros e pelos resultados da ação, e a responsividade. Também compõem a ética do cuidado questões relacionadas à atenção aos contextos e situações em que as relações de cuidado se dão e à abertura ao diálogo moral, diálogo este em que os resultados não estão dados de saída.

Uma das importantes ações das teóricas feministas foi mostrar o quanto cuidado e gênero estão relacionados em nossa sociedade. Há, entre as autoras, divergências a respeito da necessidade dessa relação (isto é, se o cuidado deve ser discutido necessariamente à luz de questões de gênero, ou se pode ser pensado como um conceito moral neutro). Entretanto, percebemos que há consenso entre as teóricas feministas ao reconhecerem que o cuidado, na sociedade moderna, é uma função delegada às mulheres, a ser realizada no espaço privado.

Em outras palavras, se, na modernidade, a família e a escola foram as instituições que se responsabilizaram pela socialização de crianças e jovens, a mãe e a professora se tornaram as figuras que representam o cuidado com os mais novos.

As teóricas feministas insistem na importância de se discutir a ética do cuidado ao abordarmos a socialização e a subjetivação, pois o cuidado relaciona os sujeitos às questões públicas, de interesse coletivo. Entretanto, elas reconhecem que nos debates acadêmicos pouco ou nenhum destaque é dado a esta questão. Como afirma Sevenhuijsen (1998):

Poderia se dizer que a teoria política moderna definiu seu domínio e objeto de modo a excluir o cuidado de sua perspectiva: ela confina o cuidado à esfera privada. No domínio do discurso político-filosófico, o cuidado está relacionado com afeições, corpos, o que é 'pessoal', o amor e o lar, e, portanto, com feminilidade e com as mulheres. (p. 72)

A ideia de cuidado foi sendo construída modernamente como uma característica essencialmente feminina, "para alguns uma responsabilidade natural, para outros, fruto da socialização das mulheres" (Viana, 2001, p. 93). Assim sendo, muitas atividades profissionais associadas ao cuidado foram consideradas femininas, como a enfermagem, a educação, o tomar conta de crianças pequenas, da casa, entre outras. São produzidos, assim, os

estereótipos sobre homens e mulheres: agressivos, militaristas, racionais, para eles; dóceis, relacionais, afetivas, para elas. Em decorrência disso, funções como alimentação, maternidade, preservação, educação e cuidado com os outros ficam mais identificadas com os corpos e as mentes femininas, ganhando, assim, um lugar inferior na sociedade, quando comparadas às funções tidas como masculinas (Viana, 2001, p.93).

Sendo de mulheres a maioria esmagadora do corpo docente das escolas, públicas ou particulares, é inegável que nossa sociedade perceba o trabalho docente e seu trato com os mais jovens a partir dos estereótipos de gênero feminino, independentemente do sexo de quem realiza essa função. Esses estereótipos são marcados pelo "saber lidar" com as emoções, com as relações interpessoais, com as fraquezas de quem "ainda não tem" autonomia, "ainda não sabe" cuidar de si mesmo. Como afirma Carvalho (1999), essa feminização da educação ocorre nos espaços institucionais, porque o espaço primeiro onde o cuidado infantil se dá, o espaço doméstico, é um espaço tido como feminino em nossa sociedade. As expectativas da sociedade voltadas para o papel dos educadores estão marcadas pelo viés de gênero: a professora é aquela que deve cuidar da criança, ter paciência com ela, representar os pais na escola, entender seus limites e dificuldades, em resumo, fazer dela alguém com um futuro.

Assim, a escola é o lugar moderno de preparação, ou socialização, de crianças e jovens, e essa tarefa é realizada principalmente por mulheres, que ocupam a função de educadoras no exercício da tutela dos estudantes. Essa tutela dos mais jovens aparece como necessária uma vez que estes são entendidos como não estando aptos ou preparados para a participação na vida pública de nossa sociedade. Tal situação em que se encontram crianças e jovens faz com que figurem classificações que, conforme Bourdieu (1983) coloca, impõem limites e produzem uma ordem ao determinar o lugar e a função que cada um deve cumprir no sistema regulado da sociedade. Neste sistema, as classificações (criança, jovem, adulto) estão sempre em relação umas com as outras. Assim, o lugar da criança e do jovem está constantemente em defasagem em relação ao lugar hierarquicamente superior do adulto. Ascender, para ser capaz de fazer as próprias escolhas e desfrutar de seus resultados implica, necessariamente, transferir-se para o status de adulto. A infância, nessa perspectiva, é um "traço a ser abolido" (Castro, 2007) da trajetória do sujeito.

No processo educacional, os que estão sendo ensinados percorrem um caminho em que suas experiências vão sendo cada vez mais desmaterializadas e desconsideradas na busca pelo resultado final da formação básica: a aquisição de certas "competências universais", que permitiriam a inserção dos cidadãos recém-formados no espaço público, no mercado de trabalho, na vida regida por leis e regras coletivas. Para isso, tais "competências universais" são ensinadas diariamente para crianças e jovens nas escolas, onde, dia após dia, os estudantes aprendem a pensar como se seus corpos não estivessem presentes na sala de aula, ou ainda, a despeito deles.

A separação entre mente e corpo na educação moderna demanda grandes esforços, pois, no início do processo de socialização, as crianças pequenas têm demandas e necessidades corporais, expressam-se corporalmente e interagem no espaço por meio de seus corpos. A "descorporificação" promovida pela escola moderna não se dá de uma hora para a outra e, para se realizar, utiliza-se de dispositivos materiais que introduzem a disciplina no cotidiano dos corpos, como Foucault (2010) evidencia. Todo o investimento feito em nome da racionalização, da normatividade e da abstração resulta na negação da corporealidade e do contextual em sala de aula. As práticas das professoras que se dedicam a cuidar dos pequenos - no trato de suas questões corporais - são as menos valorizadas no campo da educação. Tais práticas são atravessadas pelo exercício do cuidado com o corpo do outro, pela conscientização corporal e de seus limites.

Nesse cenário, a pedagogia crítica feminista vem afirmar que tal separação entre mente e corpo no processo de ensinoaprendizagem faz com que a dimensão de prazer, e mesmo erótica, que lhe é constitutiva, seja constantemente negada. Como afirma Bell Hooks, a paixão entre professoras, professores e seus alunos muito raramente é afirmada institucionalmente. Esse sentimento, por parte de professoras e professores, é considerado, inclusive, "suspeito". "Parte da suspeita baseia-se no temor de que a presença de sentimentos, de paixão, possa impedir uma consideração objetiva do mérito de cada estudante" (Bell Hooks, 2010, p. 122).

Se pensarmos esse tipo de relação aproximando quem cuida daquele que é cuidado pela via da dependência - inclusive, de uma mútua dependência - podemos conceber os vínculos entre professoras, professores e estudantes para além da noção de tutela. Nesta, o adulto detém o saber sobre o que crianças e jovens precisam, silenciando-os e colocando-os numa posição subalterna. Nesta relação desigual entre professoras e crianças e jovens, os mais novos ficam restritos aos espaços privados, enquanto os adultos agem em seu nome nos espaços públicos e de visibilidade. A ação dos jovens e das crianças se despotencializa no presente de suas vidas e os distancia da participação propositiva da vida social.

Na relação de cuidado, tal como estamos considerando aqui, as separações entre os corpos e os indivíduos não são tão claras e estáveis. Ao contrário: uma vez que a relação é atravessada pela dependência, esses limites são perturbados e mesmo relativizados. O cuidado evidencia a dependência física e emocional dos envolvidos, e não apenas de quem é cuidado. Adultos são constantemente mobilizados por essas relações e se veem diante da inquietante experiência de dependerem daqueles de quem cuidam, ou pelos quais são responsáveis. Justamente por serem posições relacionais, tais funções, quando atravessadas pela experiência do cuidado, põem em questão a individualidade e independência do sujeito racional e autônomo, evidenciando o esforço de constante separação e silenciamento da mútua dependência envolvidos em sua produção.

Precisamos estar atentos ao modelo liberal de ser humano difundido e sócio-historicamente valorizado nas ciências humanas - a saber, o masculino, de cor branca, adulto, heterossexual, possuidor de bens, detentor de racionalidade e consciência - para levarmos em conta que toda relação que se estabelece hoje em nossa sociedade é atravessada pelo pressuposto mais ou menos consciente de que aquele que não se enquadra nesse modelo encontra-se na condição de diferente (Mattos, 2012). Castro (2007) problematiza a representatividade dos adultos em relação aos interesses da infância e da juventude no espaço público, pois esta torna esses segmentos invisíveis politicamente. Considera que a suposta equidade de direitos de participação da contemporaneidade não significa que se crie uma boa consciência a respeito dos direitos dos mais novos. Um ideal de igualdade quanto às necessidades de se expressar não necessariamente potencializa o lugar de fala e visibilidade desses atores, afinal, quando o status de cidadania é mensurado a partir de um viés adultocêntrico, a tendência é que os mais jovens sejam delegados ao patamar de "ainda-não-cidadãos" (Moosa-Mitha, 2005).

Ao considerarmos a relação entre adultos, jovens e crianças pela perspectiva do cuidado, nos propomos a equivaler suas posições na medida em que a dependência é algo vivido frente ao outro em todas essas condições. Sem dúvida que, uma vez que a sociedade é organizada de modo a privilegiar o lugar dos adultos, a dependência destes em relação às crianças e aos jovens fica secundarizada, mas entendemos que ela comparece sempre que se estabelecem relações afetivas entre esses sujeitos.

Moosa-Mitha (2005), parece justamente atentar para os efeitos de maior participação social e institucional que o reconhecimento de uma interdependência produz ao falar sobre um self que é sempre agenciado. A autora afirma que, para além de um self independente e individualizado, é a partir do reconhecimento da relação de interdependência entre adultos e crianças - que se dá sempre por meio de um self agenciado - que pode surgir uma maior abertura para conhecer o que aqueles que são cuidados gostam e querem fazer, permitindo, portanto, o diálogo e a participação.

Dessa forma, discutimos a relação que se estabelece entre estudantes, professoras e professores como um processo em curso na escola e que pode ser pautado por uma perspectiva alternativa ao modelo adultocêntrico, que opera como um padrão normatizador das necessidades infanto-juvenis. Consideramos que as demandas infanto-juvenis emergem no bojo das relações que estabelecem entre si e com as educadoras e educadores. É o que Benjamin (2004) chama de intersubjetividade, ou seja, uma produção que não se encerra em nenhuma das figuras envolvidas, mas na mutualidade entre elas. Para a autora, na medida em que se possa experimentar o outro como uma figura que "sente conjuntamente", produz-se um centro de sentimento e percepção distinto. Diferentemente de uma padronização das necessidades infantis, esse modelo de relação investe numa produção conjunta das mesmas e na abertura para a influência recíproca.

Ainda que o cuidado seja uma dimensão importante das relações na escola, muitas vezes é deixado de lado frente aos problemas que a instituição escolar vem enfrentando, como a desvalorização do papel de quem educa, o aumento da burocratização, do controle e da normatividade dos órgãos públicos de gestão da educação. Vários são os motivos que acabam enrijecendo os vínculos entre adultos e crianças/jovens em torno de padrões que reforçam a tutela e desvalorizam outros tipos de trocas que podem abrir para o descentramento e a imprevisibilidade dessa relação. A seguir, discutimos alguns aspectos que vêm se apresentando no cotidiano escolar, desgastando o exercício da profissão de educadora e educador, e tencionando as relações na escola.

Tensões no exercício da profissão e suas repercussões na relação entre professoras, professores e estudantes

Quando abordamos a relação entre professoras, professores e seus estudantes, algumas questões saltam aos olhos: as dificuldades apontadas pelos educadores para transmitir aquilo que sabem aos mais novos; o chamado "fracasso escolar" dos alunos; as constantes queixas que aparecem sobre situações de desrespeito no exercício da função (tanto de professoras/es em relação a alunos quanto o contrário); a violência e a intolerância na escola, a falta de obediência dos mais novos em relação aos mais velhos, o desinteresse generalizado pelo ensino (tanto dos alunos, para aprender, quanto dos professoras/es, para ensinar), dentre outros tantos problemas. A gritante pauperização que a carreira docente vem sofrendo nas últimas décadas desvaloriza a profissão e impõe muitas dificuldades àquelas que decidem exercê-la. Entender, portanto, os principais aspectos da desqualificação do lugar de professora ou professor - em termos valorativos e em termos materiais - pode nos ajudar a pensar as dificuldades que surgem na relação que estabelecem com os estudantes.

Na divisão do que chamamos de "papéis relacionais" presentes na escola, cabe a professoras e professores orientar os estudantes a respeito do mundo dos adultos, sobre todos os espaços aos quais a entrada de crianças e jovens ainda não está franqueada, ou nos quais eles só podem adentrar de forma tutelada e experimental. Um dos discursos mais repetidos e reafirmados na escola é, certamente, o do lugar de imaturidade e de desenvolvimento ocupado pelos alunos. Esse discurso não é apenas afirmado explicitamente (quando a opinião da professora ou do professor prevalece porque ele "sabe mais"), mas está presente em inúmeras práticas e vivências cotidianas (alunos devem assistir silenciosamente às aulas ministradas, alunos precisam usar uniformes, ainda que professoras e professores não, os estudantes não decidem o que vão estudar na escola...). Essa rotina escolar vai construindo a visão que os estudantes (crianças e jovens) têm sobre si, sobre a sociedade em que vivem e sobre a participação que podem ter nela.

A posição hierarquicamente inferior que crianças e jovens ocupam em relação a professoras e professores tende a minimizar a posição de aprendizagem criadora e inventora dos mais novos, normatizando a ação dos alunos no espaço escolar. Entretanto, em tempos de tecnologias altamente interativas, de mídias em tempo real e de questionamentos acerca da autoridade, a escola aparece, cada vez mais, como um espaço defasado em nossa sociedade. Crianças e jovens possuem desenvoltura que os colocam numa posição de independência frente ao adulto podendo, muitas vezes, ensinar os adultos a utilizarem os comandos da televisão, a mexerem no computador, a usarem o celular. Assim, crianças e jovens traduzem para o "adulto os significados de uma criação que é sua [do adulto], mas que a ele próprio soa como estranha" (Pereira, 2002, p.161).

É recorrente, portanto, que crianças e jovens vivam posições ambivalentes, ora sendo aqueles que não sabem de nada e devem estar à parte dos assuntos ditos "adultos", ora gozando de conhecimento e autonomia, como por exemplo, para lidar com a tecnologia. Esses limites imprecisos, quando transpostos para o espaço escolar, geram conflitos, inseguranças e incertezas sobre qual deve ser o papel de quem educa e do estudante. A autoridade da professora e do professor, assim como a dos pais, parece ir perdendo o sentido, ainda que as relações hierárquicas continuem fazendo parte da longa trajetória percorrida pelos mais novos até o seu credenciamento como cidadãos. O desafio para os educadores de formular um conjunto de práticas comuns entre os alunos se mantém, e a escola precisa se haver com a dificuldade de aplicar normas a alunos que, por vezes, tentam trazer para seu cotidiano algo próprio a eles e não somente ao que está prescrito no programa escolar.

Entretanto, se nossa sociedade oferece, por um lado, possibilidades inéditas para que crianças e jovens tornem-se visíveis, e apareçam diante dos adultos, por outro lado vai sendo criada uma negação de tudo o que representa o passado e a tradição nessa mesma sociedade. Essa suposta equivalência enfraquece a relação do aluno com as gerações mais velhas, que guardam e podem transmitir aos mais novos os conhecimentos, valores e projetos acumulados. Como afirma Torres (2009):

A escola, junto com a família, vem se desgarrando das redes simbólicas que as sustentavam.

[...] Dito de outra forma, a figura do professor não tem mais o aparato simbólico que mantinha sua autoridade diante das crianças. Sem essa rede simbólica, o professor se encontra desamparado e precisa "dar conta" sozinho de uma tarefa que antes tinha respaldo no social. (p. 113-114)

Somando-se a esse cenário de crise da autoridade - ou, ainda, contribuindo fortemente para que este se dê - observamos, nos últimos anos, uma significativa desvalorização material das condições de trabalho e de vida dessas e desses profissionais. A nosso ver, não é possível discutir a educação e o papel da professora e do professor sem contextualizar no tempo e nas práticas essa mesma educação. No caso de nossa sociedade brasileira, trata-se de um momento histórico marcado, desde o final do século XX, por políticas neoliberais e por grandes desigualdades sociais. Desse modo, a educação a que ricos e pobres têm acesso em nosso país são muito distintas em termos de recursos, de tempo de duração, de qualidade e de infraestrutura. Ainda assim, pode-se afirmar que estão inseridas em uma mesma lógica de mercado, que pauta a organização do trabalho na escola em resultados e metas pré-estabelecidas.

Uma consequência direta dessa situação, segundo Costa (2009), é a alienação do trabalho da figura-chave da educação: o professor e a professora. Estes, como mediadores necessários na instituição escolar entre o aluno e o conhecimento, vê seu trabalho - de propriedades imateriais - objetivado, alienado por aquele que o contrata, seja o Estado, sejam as instituições privadas de ensino. A alienação, para a autora, deve ser pensada como uma consequência das relações de produção capitalistas. Nessas relações,

o trabalhador se relaciona com o que produz como algo que lhe é estranho, externo, embora seja fruto do seu esforço físico e intelectual, ocupe a maior parte do seu tempo e em detrimento de outras esferas que lhe são vitais." (p. 70)

Nesse processo de alienação, tem destaque a burocratização asfixiante da rotina e do fazer da professora e do professor, levando-os a perder a propriedade sobre aquilo que ensinam e produzem, por meio de avaliações padronizadas, rígido controle institucional do conteúdo das aulas, vigilância do comportamento de alunos e funcionários, dentre outras práticas. Além disso, o pouco investimento na formação consistente e a aposta numa "formação continuada", a expensas do próprio profissional e de sua sobrecarga, devem ser entendidos como um importante elemento do processo de alienação da carreira. Ao se exigir que a professora e o professor sejam meros técnicos na educação, sua relação com o processo da transmissão, e mesmo o engajamento político com sua prática vão sendo subtraídos do cotidiano escolar.

São muitas as reclamações sobre as pressões do trabalho, os baixos salários, as cobranças da direção e das Secretarias de Educação, as exigências do Ministério da Educação, e sobre tantas dificuldades para realizar o trabalho. Aquelas e aqueles que estão à frente da árdua tarefa de transmitir, educar, "construir pontes" entre as gerações, são profissionais pouco reconhecidos socialmente, que enfrentam dificuldades materiais para sobreviver com os baixos salários que recebem. Se falarmos especificamente da educação pública, a situação é alarmante. Esses problemas provocam a frustração de profissionais da educação e de estudantes, que se sentem alheios aos processos e às regras da escola, ao seu funcionamento. Esse sentimento tem efeitos consideráveis: "A frustração que tal situação desencadeia [...] constitui-se uma das fontes dos conflitos entre professores e alunos" (Costa, 2009, p. 75). Para professoras e professores, essa é a realidade que permeia sua prática.

Os alunos não estão indiferentes a essa situação, inclusive por sofrerem diretamente suas consequências. Em entrevistas realizadas em um projeto de pesquisa recente2 2 . Projeto de pesquisa realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (Nipiac/UFRJ), que teve como objetivo compreender as formas de participação de crianças e jovens no contexto escolar. Ao longo da pesquisa foram utilizadas diferentes metodologias, que incluíram entrevistas com alunos e professores, aplicação de questionário e realização de grupos de discussão com alunos. , foram frequentes as falas que atestam o enfrentamento diário dessas condições pauperizadas e precárias na escola. Destacamos a fala a seguir:

Incomoda essa mudança toda hora de professores, e atrapalha porque cada um ensina uma coisa. Às vezes a gente até reclama... reclamamos das professoras de ciências e matemática e não adiantou. Elas eram agressivas, falavam que iam jogar a gente pela janela, aí a gente reclamou na direção, o diretor conversou com as professoras, mas não adiantou. A professora ainda brigou com a gente por ter reclamado. A gente pode até reclamar, mas a gente reclamou das professoras e não adiantou. (aluna de escola pública, Ensino Fundamental)

Vê-se que estudantes, professoras e professores sofrem com esse desinvestimento, e que as condições de trabalho tornam-se muitas vezes insuportáveis - a ponto de as professoras mencionadas pela aluna se mostrarem agressivas, querendo "jogar os alunos pela janela". Muitos são os casos de profissionais que adoecem por estresse, se encontram com quadros de fadiga, depressão, hipertensão e outras doenças relacionadas ao trabalho. O desencanto com a profissão também parece ser algo recorrente entre professoras e professores de nosso país, quando se veem trabalhando em algo que não condiz com seus anseios, que não faz sentido em suas vidas, o que faz com que o abandono da carreira apareça como uma saída para tal quadro. Lapo e Bueno (2003) discutem as causas e as consequências do abandono do magistério por professores da rede pública de educação do Estado de São Paulo. Elas afirmam:

O abandono, neste caso, não significa apenas simples renúncia ou desistência de algo, mas o desfecho de um processo para o qual concorrem insatisfações, fadigas, descuidos e desprezos com o objeto abandonado; significa o cancelamento das obrigações assumidas com a instituição escolar, quando o professor pede exoneração do cargo ou, de maneira mais abrangente, o cancelamento das obrigações profissionais, quando deixa de ser professor. (p. 75)

Discutindo as diferentes formas de abandonar a profissão - dentre as quais a exoneração seria a saída extrema - as autoras falam desse processo de desencantamento, de frustração com a prática. O abandono da carreira também pode aparecer como um ato último de resistência ao processo de pauperização da educação no país, quando o profissional se recusa a pactuar com o tratamento que sua classe vem recebendo dos governantes e dos empregadores particulares.

Surge, entretanto, um dado na pesquisa feita por Lapo e Bueno (2003) que gostaríamos de ressaltar, pois contribui com a questão do cuidado que abordamos neste artigo. Trata-se da ênfase que os professores escutados deram à qualidade das relações interpessoais no ambiente de trabalho:

O trabalho docente se constitui em uma atividade centrada nas relações interpessoais e nas dinâmicas relacionais estabelecidas no ambiente escolar, que são determinantes do sucesso do ensino e da qualidade de vida do professor. Nesse sentido, pode-se dizer que o relacionamento com diretores, com os demais professores e com os alunos é um dos principais fatores de insatisfação no trabalho e, também, o grande responsável pelo envolvimento nas atividades profissionais. (pp. 77-78)

Dessa forma, a qualidade das relações que se dão na escola é promotora de circunstâncias em que o ensino e aprendizagem possam se dar de uma forma mais profícua. A cumplicidade, a parceria, podem criar condições para vínculos que não estejam baseados na tutela e na disciplinarização, nem submetidos à burocracia e às condições alienantes de trabalho muito presentes na educação brasileira hoje. Como discutimos a seguir, a possibilidade de que crianças, jovens e adultos experimentem relações de mútua dependência, de afeição e de cuidado na escola traz, inclusive, potencialidades políticas para o espaço escolar.

O cuidado e sua potencialidade política

Se partimos de uma concepção de sujeito que, para participar do mundo público e da vida em coletividade, não precisa superar as relações de dependência com outros sujeitos tornando-se independente, ou, em outras palavras, se entendemos que a noção de sujeito independente liberal é uma ficção que se promove às custas do silenciamento e do apagamento de intensas redes de cuidados, trocas, colaboração e interdependência nos mais diversos níveis, surge a possibilidade das relações na escola serem pensadas em outro registro que não o de mera tutela. Nesse registro marcado pelo cuidado, surgem cumplicidades e trocas que aproximam as diferentes posições.

A partir de sua pesquisa em escolas, Carvalho (1999) assevera que as professoras são muitas vezes acusadas de transferir referências e práticas familiares, relativas ao espaço privado e doméstico, para sua atuação na escola. Entretanto, ela aponta para a existência de inter-relações bastante complexas entre práticas docentes e maternais (ou paternais), em que não é fácil separar um universo do outro. De fato, a autora questiona se seria necessário realizarmos essa separação, pois isso já pressupõe uma hierarquização entre esses espaços. Como ela afirma:

Pensar afetos, vínculos ou demandas emocionais remete ao universo da vida privada e das relações familiares, pois é essa a esfera em que, efetivamente, temos maiores oportunidades de vivenciar vínculos emocionais, especialmente com crianças, dado o tipo de organização social em que vivemos e, no caso dos professores e professoras, dada a ausência desses temas na literatura pedagógica e em seus cursos de formação. Parte dos saberes de que lançam mão para desenvolverem empatia e uma percepção integral de seus alunos pode ter sido desenvolvida pelas professoras e professores ao longo de suas experiências familiares. (p. 25)

Essa contribuição das experiências do universo familiar para a prática docente não deveria ser pensada como algo que atrapalha ou desvirtua a ação profissional na escola. A responsabilização e o cuidado pelo outro são processos que se produzem a partir de experiências iniciais, domésticas e familiares, e não a despeito das mesmas. Uma vez dentro da escola, o que se percebe é que a forma como alunos se relacionam com as disciplinas, por exemplo, diz respeito ao fato de nutrirem algum afeto positivo por professoras e professores, demonstrando que o esvaziamento da afetividade nesta relação, em nome da racionalidade produtiva, tende a distanciá-los do aprendizado conjunto e de práticas interdependentes.

Características como a paixão da professora e do professor pela profissão, sua abertura à expressividade do aluno, o respeito pelo aluno, a capacidade de ditar limites, de modo que alunos considerados bagunceiros não atrapalhem a aula e, finalmente, a capacidade de envolver o aluno com a matéria são qualidades que os estudantes colocam como importantes na figura do professor (Sposito & Galvão, 2004). Isso indica que os alunos percebem a importância de que professoras e professores estejam atentos e cautelosos às suas necessidades na escola, e ainda, que haja certa sedução entre os mesmos para que o trabalho escolar aconteça de uma forma mais produtiva, pois o interesse do aluno pelas práticas escolares passa pelo interesse na professora ou no professor que se apresentam diante dele.

O cuidado está relacionado ao afetamento, a uma sensibilidade diante das necessidades e demandas que vêm do outro e da necessidade de agir, dando algo de si para atender a esse apelo. Ser afetado pelo outro e poder responsabilizar-se por ele são capacidades necessárias para a subjetivação política em nossa sociedade. Em pesquisa realizada com jovens sobre trabalhos solidários por eles realizados (Castro, Pérez, & Silva, 2009), as autoras afirmam que foi o sentimento de compaixão e responsabilidade pelo outro que os conduziu a agir. O seu engajamento surge a partir de um afetamento pelo sofrimento do outro e ganha forças, em primeiro lugar, por ser vivido no âmbito coletivo. Nesse caso, a participação dos jovens em trabalhos solidários se dá pelo desejo de experimentar coisas novas, de fazer algo que seja transformador na sua vida e na dos outros com os quais convive.

Esses sentimentos indicam que a participação no espaço público não se dá apenas através de uma racionalidade supostamente livre de afetos. Como colocam Castro e Mattos (2009):

O espaço público, então, não se sustenta, do ponto de vista psíquico, como espaço público de "troca relacional" e de "legitimação dos papéis", mas como espaço de conhecimento de si, do outro e de auto-realização. Assim, do ponto de vista subjectivo, vivências públicas e privadas misturam-se, alimentando-se reciprocamente, o que nos faz questionar se os valores da vida pública não deveriam deixar-se afectar por aqueles constitutivos da vida privada, como, por exemplo, o cuidado com o outro, os afectos, a humildade (Boling, 1991), de modo que a vida pública possa ser revitalizada e transformada nas suas práticas. (p. 820)

Esses valores constitutivos do espaço privado também estão presentes nas relações que os estudantes estabelecem entre si e com as professoras e os professores na escola. Mais do que ensinar conteúdos importantes para serem aprendidos, os educadores transmitem valores através da postura ética pela qual lidam com crianças, jovens e com os seus pares. Crianças e jovens são os primeiros a apontarem quando os adultos estão sendo contraditórios ao pregarem aquilo que seria "o correto" e, no entanto, agirem de forma contrária. Não basta ensinar como crianças e jovens devem agir se esses valores não estão incorporados a suas ações.

A despeito de toda tradição escolar que forneceu os mecanismos ideológicos para que a relação entre professoras, professores e estudantes seguisse um modelo sujeito-objeto, em que determinados padrões seriam incutidos pelo sujeito professor no objeto aluno, a reação contrária de estudantes àquilo que estranham na postura dos educadores parece indicar que crianças e jovens procuram a todo tempo se reposicionar nessas relações. A expressividade dos estudantes acerca das contradições percebidas na escola aponta para uma tentativa de saírem da condição de objeto. Entretanto, conforme indica Benjamin (2004), há uma enorme dificuldade em reconhecer que o objeto dos sentimentos, necessidades, ações e pensamentos seja, na realidade, outro sujeito. A partir do referencial psicanalítico, a autora atenta para a importância de que possa emergir da relação entre sujeitos um processo intersubjetivo, de mutualidade e de intenção de reconhecer e ser reconhecido pelo outro, ao qual chama de "terceiro compartilhado".

Nesse sentido, a relação entre professoras, professores e alunos poderia ser dar com maior horizontalidade. Superando a lógica de que o aluno é o objeto a ser "moldado", mas sim que também é sujeito e possui agência; e que não somente crianças são dependentes dos adultos na escola, mas que se trata de uma relação de mutualidade, poderiam se dar mudanças na dinâmica escolar. A relação horizontalizada implica que professoras e professores também precisam ser cuidados pelos alunos, tratados com respeito e reconhecimento, em uma relação em que ambos são responsáveis. Por outro lado, a responsabilidade também é compartilhada no ensino, demandando maior participação dos alunos na construção das aulas, dos temas a serem trabalhados, e das decisões na escola. Em pesquisa recente (Castro et al, 2010), a maioria das crianças e dos jovens considera as professoras e os professores os mais qualificados para tomarem as decisões sobre os conteúdos a serem ensinados na escola, em detrimento dos governantes e da direção institucional. As professoras e os professores foram apontados como porta-vozes competentes dos estudantes, uma vez que estão em contato direto com as suas dificuldades e interesses. Crianças e jovens parecem defender um ponto de vista próprio que, com a mediação dos adultos, pode contribuir para a criação de uma escola que esteja mais próxima dos seus interesses.

Assim, abre-se espaço para que os estudantes sejam agentes nessa instituição, sem que haja a negação dos diferentes papeis sociais de crianças/jovens e adultos. A esse respeito, Moosa-Mitha (2005) argumenta que a análise dos direitos da criança à igualdade de condições de participação deve ser feita a partir de um viés que as compreenda como membros "diferentemente iguais" da sociedade, ou seja, que possuem direitos igualitários à participação. Para isso, entende que a dicotomia privado/ público precisa ser superada. Aautora considera que os interesses e necessidades das crianças não podem estar circunscritos a essa dicotomia, porque assim permaneceriam sempre marginalizadas no privado em contraposição a normas e práticas sociais adultocêntricas, que acontecem na cultura pública. De antemão, a presença da criança no espaço público, bem como a possibilidade de apresentarem uma contribuição diferenciada, são impedidas por pressuposições normativas de quem são os participantes legítimos. Concordamos com Mossa-Mitha (2007) quando a autora afirma que a separação público-privado deva ser repensada de forma a incluir a participação de crianças e jovens em esferas mais amplas da vida social, a começar pelo exercício da participação nas instituições às quais fazem parte desde muito cedo, como a família e a escola.

Por outro lado, a problematização da dicotomia público/ privado deve ocorrer dentro da própria dinâmica escolar, de tal maneira que valores como o afeto, o cuidado e a responsabilidade possam ganhar lugar de relevância nas relações entre alunos e professoras e professores, de forma mutua. A construção de "cidadãos no futuro" se contrapõe, portanto, à emergência da subjetivação política, que pode ocorrer no presente com crianças e jovens a partir da sua capacidade de se afetar e agir. A subjetivação política não demanda preparação, como a concepção clássica de cidadania, mas é algo que surge a partir de um sentimento de responsabilização com aqueles outros, que muitas vezes não conhecemos, mas aos quais consideramos como sujeitos.

Considerações finais

Os vínculos afetivos entre professoras, professores e estudantes se dão dediferentes formas. Arelação que professoras e professores têm com os alunos pode se tornar opressora, a partir do momento em que a fala de crianças e jovens são suprimidas. Ao considerá-los como incapazes de saber o que é melhor para si, agem de forma impositiva, acreditando muitas vezes estarem fazendo o melhor para os estudantes, como se não valesse a pena considerar as suas vontades e opiniões. Quando impõem sua maneira de pensar, acreditando ser a forma mais adequada, muitas vezes, não ajudam os estudantes a organizarem suas próprias ideias, tirando-lhes a capacidade de dizer o que querem.

Por outro lado, a relação que professoras e professores estabelecem com os alunos pode promover uma maior abertura para conhecer o que crianças e jovens pensam e gostam de fazer, levando à construção de um diálogo. Diferentemente da tutela, em que o adulto afirma saber aquilo de que a criança precisa, a ética do cuidado pressupõe deixar o outro falar, expressar suas opiniões e desejos. Neste caso, é possível criar uma relação mais horizontal, na quais professoras e professores podem criar suas aulas e tomar as decisões na escola também a partir dos interesses dos alunos. A relação baseada no cuidado dos mais velhos em relação aos mais novos, portanto, não é antagônica com a ideia de participação de crianças e jovens, e se distingue de uma relação na qual a criança é tutelada pelo adulto.

Na pesquisa mencionada anteriormente (Castro et al., 2010), os estudantes desejam que a escola se abra a experiências novas, use tecnologias, aborde questões relevantes para seu momento de vida, discutindo temáticas como sexualidade e uso de drogas, por exemplo. Além disso, crianças e jovens desejam que a escola seja um espaço de sociabilidade, com mais tempo livre para que possam conviver e conversar com os colegas, com aulas que incentivem o jogo e a brincadeira. A escola é um lugar de intensa experiência coletiva, onde os estudantes podem conviver com pessoas de sua idade e produzir coisas juntos. No entanto, essas experiências são, muitas vezes, consideradas como "algo menor". Diante das demandas do aprendizado de conteúdos tomados como importantes, que reificam as posições assimétricas entre alunos e educadores, a escola vem deixando de lado a possibilidade de que crianças e jovens possam compartilhar opiniões, trocar saberes e expressar os conflitos e as dificuldades de se estar em grupo.

Se, no projeto moderno de escola, a educação visa o cidadão do futuro, as mudanças no contemporâneo indicam que a escola precisa considerar o momento presente da vida de crianças e jovens. Por muito tempo a escola valorizou a autonomia, a independência e a individualidade como valores necessários para a participação no espaço público. No entanto, são os sentimentos de solidariedade e o afetamento diante do outro que podem trazer novos valores para a vida pública atualmente. Entendemos que é nas relações de cuidado e diálogo entre professoras, professores e estudantes que reside a possibilidade de construir uma escola que atenda às demandas do mundo contemporâneo. Se crianças e jovens ganharam visibilidade na cultura de consumo e, com as novas mídias, passaram a deter saberes que os adultos, muitas vezes, não têm, a escola precisa incorporar essas mudanças na sua forma de ensinar. Não se trata necessariamente de propor um novo modelo de escola, que serviria para todas as crianças e jovens, independente de seu contexto histórico e social, mas de dar atenção a relações e vínculos que já existem na escola hoje, mas que são silenciados e ignorados. São as experiências de coletividade, os saberes que crianças e jovens aprendem fora da escola, os vínculos afetivos entre professoras, professores e estudantes, entre outros, que podem nos ajudar a repensar a escola e suas práticas.

Notas

Recebido em 05. Nov. 12

Revisado em 02. Mai. 13

Aceito em 23.Mai.13

Amana Rocha Mattos, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professora do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereço para correspondência: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia. Campus Maracanã, Rua São Francisco Xavier, 524, Pavilhão João Lyra Filho, 10º andar, blocos B, D, E e F, Maracanã. CEP 20550-103 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil. Telefone: (21) 25877202 E-mail: amanamattos@gmail.com

Beatriz Corsino Pérez, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: biacorsino@gmail.com

Carlos Vinícius Ribeiro Almada, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é pesquisador do NIPIAC-Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: vini_almada@hotmail.com

Lucia Rabello de Castro, Doutora em Psicologia pela Universidade de Londres, é professora Titular do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e bolsista em produtividade do CNPq. E-mail: lrcastro@infolink.com.brlrcastro@infolink.com.br

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  • 1
    . Utilizamos aqui os termos "crianças" e "jovens" em continuidade, por oposição ao lugar dos adultos. Ainda que possamos encontrar diferenças no tipo de cuidado presente nas relações com crianças e jovens, nosso argumento é que em ambos fica patente a dissimetria hierárquica em relação a adultos/educadores.
  • 2
    . Projeto de pesquisa realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (Nipiac/UFRJ), que teve como objetivo compreender as formas de participação de crianças e jovens no contexto escolar. Ao longo da pesquisa foram utilizadas diferentes metodologias, que incluíram entrevistas com alunos e professores, aplicação de questionário e realização de grupos de discussão com alunos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jul 2019
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      05 Nov 2012
    • Aceito
      23 Maio 2013
    • Revisado
      02 Maio 2013
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