RESENHA
O corpo humano: objeto de intervenções e sujeito da existência1 1 Resenha do livro Corporeidade e Educação Física: do corpo objeto ao corpo-sujeito, de Terezinha Petrucia da Nóbrega, publicado em 2000 e reeditado em 2005, em Natal, pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ISBN 85-7273-139-3).
Maria Isabel Brandão de Souza Mendes
Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte
Refletir sobre o corpo humano como condição ontológica e epistemológica é essencial para os debates acadêmicos e para as práticas sociais na contemporaneidade, haja vista que mesmo prevalecendo na tradição ocidental a visão dualista, também existem linhas de fuga que se contrapõem à fragmentação do ser humano e do conhecimento. Essa discussão configura as idéias apresentadas por Terezinha Petrucia da Nóbrega de forma brilhante por meio do rigor filosófico e de uma linguagem clara e envolvente, no livro de sua autoria intitulado Corporeidade e Educação Física: do corpo-objeto ao corpo-sujeito. A análise apresentada do pensamento de René Descartes (1596-1650) e de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) contribui com indagações sobre como a visão dualista tem influenciado a concepção de corpo e o fazer pedagógico em Educação Física; além de considerar as possibilidades de superação do dualismo e de uma nova ação pedagógica pautada numa concepção ontológica do corpo.
Nóbrega é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atua no Departamento de Educação Física e no Programa de Pós-Graduação em Educação e é pesquisadora do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento. Em sua obra, a autora traz contribuições não somente para a área da Educação Física, mas para todos os estudiosos e profissionais de diversas áreas do conhecimento que se interessam pelos estudos do corpo, da mente, da fenomenologia, da educação e da sensibilidade. Essa segunda edição publicada em 2005 pela Editora da UFRN mantém o sentido da primeira, mas é revista pela autora, que brinda o leitor com o acréscimo de reflexões tecidas nos anos posteriores à primeira publicação, fruto de sua prática pedagógica e de pesquisa.
No primeiro capítulo do livro, Nóbrega apresenta "o olhar dos filósofos sobre o corpo" e demonstra que as idéias de separação e oposição entre corpo e alma; de privilégio do espírito, do intelecto e da razão no processo de conhecimento da verdadeira realidade marcam o dualismo ocidental e o corpo é considerado elemento inferior em relação ao próprio ser humano e ao conhecimento que produz. A autora ressalta que a visão dicotômica do ser humano assume diferentes formas ao longo da história da filosofia e enfatiza o dualismo platônico e cartesiano. Concomitantemente, vislumbra possibilidades de superação do dualismo, seja na Pólis grega na Antigüidade, seja nos pensamentos de Nietzche e Merleau-Ponty na filosofia contemporânea.
A análise minuciosa da concepção de corpo nos estudos de René Descartes centra-se no segundo capítulo, quando Nóbrega faz alusão à "perspectiva cartesiana: o corpo-objeto" e sua influência para diferentes áreas do conhecimento, como a Filosofia, a Ciência e a Educação, sem estabelecer um reducionismo das idéias deste filósofo, embasadas na sua Metafísica, na Ciência Médica e na Moral. Ao direcionar-se à Educação Física, chama a atenção para a fragmentação do saber lógico e sensível, para a racionalização das práticas corporais pautadas na lógica do controle, do rendimento e da produtividade.
Para confrontar o dualismo, a autora articula argumentos de forma surpreendente e diante do terceiro capítulo assume "a atitude fenomenológica: o corpo-sujeito", interrogando o estabelecido e invertendo o instituído, alicerçada pelo pensamento de Maurice Merleau-Ponty. A fenomenologia existencial deste filósofo busca superar a filosofia da consciência e o positivismo na ciência e tem como base a integração do corpo e da mente. A concepção do corpo-próprio e de motricidade presente no pensamento de Merleau-Ponty contribui com a compreensão de que o ser humano visto como totalidade está atado ao mundo em que vive. Como destaca Nóbrega, o corpo entrelaça o mundo biológico e o cultural, expressa a unidade na diversidade e quebra com o dualismo entre os níveis físicos e psíquicos.
Os conceitos de corporeidade, corpo-sujeito e consciência corporal são abordados e trazem também contribuições para o entendimento do ser humano enquanto corpo situado num contexto histórico e para a compreensão de suas diversas maneiras de se movimentar e atuar no mundo em vive. Nesse cenário de discussões, a autora revela contribuições significativas para a Educação Física, demonstrando outras possibilidades de intervir sobre o corpo e movimento, a partir de uma releitura das práticas corporais, tendo como fundamento a expressão e comunicação da complexidade dos sujeitos.
No quarto e último capítulo, a autora traz à tona uma série de discursos, intervenções, práticas corporais e impedimentos visualizados na contemporaneidade, capazes de modelar o corpo, reforçando a necessidade de reflexões sobre a temática em questão. "O corpo revisitado" demonstra que o interesse pelo corpo é antigo e vai se transformando de acordo com as estratégias de pensamento a que está vinculado e ao período histórico em que está inserido. Com a proposta de superar a compreensão cartesiana de corpo, representada pela metáfora do corpo-máquina, a autora retoma os estudos da percepção e da relação corpo-consciência de Merleau-Ponty, trazendo ainda no campo das ciências cognitivas, o estudo de Francisco Varela sobre a abordagem da auto-organização, que se aproxima dos estudos sobre a percepção, de Merleau-Ponty. Diante dessas reflexões, Nóbrega ressalta a idéia de que o organismo e o ambiente são interdependentes e a cognição não está separada do corpo, pois é compreendida como uma interpretação que emerge da relação entre o ser humano e o mundo vivido.
Na contramão da filosofia da consciência, a noção de carne é enfatizada para mostrar a possibilidade de uma reflexão corporificada, reforçar a idéia de que não existe separação entre os aspectos físicos, orgânicos e sociais do corpo humano e que este é, ao mesmo tempo, objeto de intervenções e sujeito da existência. Desse modo, a autora ressalta que os olhares fragmentados sobre o corpo não são suficientes e as análises sobre o corpo estão sempre sujeitas a interrogações, pois são abertas e inacabadas.
Desde 2000, quando foi publicada a primeira edição, Corporeidade e Educação Física: do corpo-objeto ao corpo-sujeito tem sido uma referência relevante para diversas instituições universitárias brasileiras que o adotam em cursos de graduação e pós-graduação. Considerando-se que atualmente esse livro encontra-se esgotado e que possui delineamentos teóricos sólidos, esperamos ansiosos pela próxima edição e pelas surpresas que poderão ser apresentadas pela autora em nova publicação.
Notas
Recebido em 26.nov.07
Aceito em 30.maio.08
Maria Isabel Brandão de Souza Mendes, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é professora no Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio Grande do Norte (CEFET/RN). Endereço para correspondência: Rua das Algas, 2190 (Ponta Negra); Natal, RN; CEP: 50090-410. Tel.: (84) 8816-4255. Fax: (84) 4005-2639. E-mail: isabel@cefetrn.br
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Fev 2009 -
Data do Fascículo
Ago 2008