RESUMO
O artigo tem por objetivo analisar o programa “Educação Já!”, lançado em 2018 como o mais recente instrumento de incidência do Todos Pela Educação na definição e articulação de políticas que são centrais à instituição do Sistema Nacional de Educação, tais como o financiamento, o pacto federativo, o regime de colaboração, as políticas de formação de professores, o currículo, a avaliação e a gestão pública. O referencial teórico toma como base Antonio Gramsci e David Harvey, ao discutirem a reconfiguração do capital e a construção de consentimentos, legitimando posições de poder. A metodologia parte da análise documental, com o levantamento de fontes relacionadas à formulação da proposta “Educação Já!”. As considerações finais indicam que o Todos Pela Educação tem levado a termo um projeto de privatização da educação por meio da articulação entre base, ensino, avaliação e responsabilização, a partir da proposta de uma normativa do Sistema Nacional de Educação que incorpore a racionalidade do mundo corporativo.
Palavras-chave: “Educação Já!”; Governança federativa; Sistema Nacional de Educação; Privatização; Todos Pela Educação
ABSTRACT
This paper presents, as a central objective, an analysis of the “Educação Já!” program, launched by Todos pela Educação Social Movement in 2018 as their most recent instrument of incidence for define and articulate policies that are crucial to Brazil’s National Education System settlement, such as finances, the federative pact, the collaboration regime, teacher’s academic training policies, the curriculum, the evaluation and the public Management. The theoretical basis used is from Antonio Gramsci and David Harvey’s contributions, when discussing the reconfiguration of capital and the construction of consents, legitimizing positions of power. The methodology starts from the documental analysis, with a survey of sources related to the “Educação Já!” proposal of formulation. The final considerations points out that Todos pela Educação has been elaborating a project of privatization of the education, making use of the articulation between educational basis, teaching, evaluation and accountability, under a regulation proposal that incorporates the Brazil’s National Education System to the corporate world rationality.
Keywords: “Educação Já!”; Federative Governance; Privatization; Todos Pela Educação Social Movement
Introdução
O ano de 2018 constituiu-se em um marco para as ações do Todos Pela Educação (TPE), uma vez que foi um ano eleitoral e que se aproximava o ano de 2022, estabelecido como prazo final para o alcance do propósito dos documentos “5 metas, 5 bandeiras e 5 atitudes”.
O lançamento das “5 metas” do TPE em 2007 configurou uma agenda estratégica para alcance e incidência nas políticas educacionais e envolveu aspectos relativos à qualidade da educação, ao acesso e à permanência, ao ensino médio, à alfabetização e ao financiamento. O conjunto dessas metas foi reforçado pelo TPE em 2010 com as “5 bandeiras”, com foco na formação de professores, na avaliação externa, na gestão, no aperfeiçoamento da governança e na expectativa das aprendizagens dos estudantes. Finalmente, completando esse ciclo, em 2013 foi lançado o documento “5 atitudes”, que direcionava uma interlocução mais direta com a sociedade, a partir da percepção das famílias e sua relação com os filhos e a escola (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2007, 2010, 2013).
Entretanto, no ano de 2018, o TPE, diante da instabilidade político-institucional do país desde o processo de impeachment em 2016, precisava dar um passo à frente e instrumentalizar o próximo governo com uma agenda muito precisa para a concretização do seu projeto, uma vez que algumas de suas pautas não haviam progredido, como esperado.
Nesse sentido, buscou-se organizar um diagnóstico da educação a partir do Plano Nacional de Educação (PNE), detalhando um plano político com proposições e estimativas orçamentárias, sintetizadas em uma agenda para os primeiros 100 dias de governo. Assim, foram intensificadas pautas estratégicas a partir de propostas como o Sistema Nacional de Educação (SNE) e a cooperação federativa, o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e a iniciativa “Profissão professor”1 (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018). Com base nesse cenário, surgiu o “Educação Já!”, o mais recente instrumento de incidência do TPE na definição e articulação de políticas que são centrais à instituição do SNE, tais como o financiamento, o pacto federativo, o regime de colaboração, as políticas de formação de professores, o currículo, a avaliação e a gestão pública.
Trataremos, neste artigo, de analisar o documento “Educação Já!”, que tem subsidiado as iniciativas e ações em pauta no Congresso Nacional, com apoio de outras instâncias, como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Ministério da Educação (MEC), para definição do SNE.
Para tanto, utilizamos o aporte conceitual de Aparelhos Privados de Hegemonia (APH) (GRAMSCI, 2000). Este conceito nos ajuda a refletir sobre as instituições de legitimação de poder, considerando como elas agem para estabelecer consensos. As análises foram complementadas por Harvey (2005a, b), ao refletir sobre a reconfiguração do capitalismo global e a construção de consentimentos políticos como forma de legitimar posições de poder na disputa e na definição das políticas educacionais.
Com esse referencial teórico, realizamos análise documental das seguintes fontes:
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“Educação Já!”: Uma proposta suprapartidária de estratégia para a educação básica brasileira e prioridades para o governo federal no período de 2019-2022;
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Seminário Internacional − “Educação Já!”, 25/02/2019;
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Conteúdos especiais: O que é um SNE? TPE, junho de 2019;
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Quatro debates importantes para a criação de um SNE (Lázaro Campos Júnior, do Todos Pela Educação, 11/06/2019);
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Sistema de cooperação federativa na educação TPE (2018).
O texto se apresenta em três partes, além desta introdução. Na primeira, apresentamos brevemente os movimentos para a elaboração do documento “Educação Já!” com as alianças e parcerias para a sua consolidação. Na sequência, analisamos os eixos e diretrizes do documento “Educação Já!”, com ênfase no Eixo 2 e suas diretrizes, cujo objetivo é viabilizar a organização federativa do país, a política de financiamento, o Sistema Nacional de Educação e a política de avaliação em larga escala no país. Na terceira parte, discutimos como as diretrizes no documento “Educação Já!” estão assumindo materialidade junto ao Consed, à Undime e ao Congresso Nacional. As conclusões indicam que o TPE se constitui em um movimento orgânico com ampla capilaridade nacional e internacional e visa a construção de um consentimento político para legitimar posições privatistas na definição das reformas educacionais, particularmente quanto à organização da educação nacional sob a forma federativa no Brasil e à instituição do SNE.
A mobilização para a elaboração do “Educação Já!”
No relatório de 2018 do TPE, Priscila Cruz, presidente executiva e cofundadora do movimento, destacou as ações de mobilização política e de construção de consensos para o lançamento da proposta “Educação Já!”:
O primeiro ano de uma intensa jornada [...]. Colocar esse plano arrojado de pé e inseri-lo no debate público exigiu muita articulação e inovação. Sendo nossa linha mestra de atividades em 2018, em paralelo à construção da agenda técnica, trabalhamos a todo vapor na realização de ações de comunicação e mobilização para alavancar essa agenda, incluindo, por exemplo, uma ação no Congresso Nacional, ampliação de nossa presença na imprensa, diversos eventos e encontros com os principais formadores de opinião do País de diferentes setores e, em caráter inédito, um ciclo de debates individuais com os principais candidatos à Presidência da República na sede do Todos (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 4).
A ação contou com o “[...] apoio das organizações mantenedoras do TPE, 75 especialistas e profissionais, a parceria e o patrocínio adicional das seguintes organizações: Fundação Lemann, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Itaú BBA, Itaú Social e Falconi Educação” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 7).
A plataforma técnica e política “Educação Já!” foi publicada em dezembro de 2018 e se autodefiniu como:
Uma iniciativa suprapartidária liderada pelo Todos Pela Educação, em parceria com outras organizações e especialistas do setor, que visa contribuir para que os próximos governantes estruturem esta estratégia e implementem as medidas necessárias para dar início a um salto de qualidade tão urgente na educação básica brasileira (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 11).
A partir do aparente engajamento social, o TPE criou uma rede de alianças, reforçando a ideia de uma “solidariedade responsável” dos empresários com a causa da educação e isenta de posições políticas, tornando a sua ação indispensável à estrutura do Estado e às mudanças das políticas educacionais (GENTILI, 1998, p. 82).
“Educação Já!”, a governança federativa e o SNE
A estrutura apresentada no documento destaca três eixos: a) fatores externos; b) viabilizadores em nível de sistema; c) fatores extraescolares. Os eixos são subdivididos em diretrizes, dentre estas, no Eixo 2, a diretriz 7 trata da governança federativa e aborda a proposta de sistematização para o SNE.
Na proposta como um todo, há um cardápio de ações com 12 diretrizes, sendo importante ressaltar que a ideia de governança federativa altera não só o delineamento do SNE, mas a própria função do Estado, na medida em que se configura como uma proposta de governança em redes que remodela a sociedade civil, reformando o Estado, por meio de ações realizadas por “[...] instâncias híbridas que demarcam novos tipos de relações entre organizações estatais e não estatais” (SHIROMA; EVANGELISTA, 2014, p. 31).
O Quadro 1 revela que a proposta formulada pelo TPE cria um leque ampliado de ações que visam impactar diretamente nas políticas educacionais e na gestão pública. O argumento central do documento “Educação Já!” é o desenvolvimento de “[...] uma estratégia educacional nacional [...]” para “[...] promover a qualidade da educação em escala” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 19). Os eixos apresentados na proposta são subdivididos em 12 diretrizes, conforme o Quadro 1:
VISÃO SISTÊMICA DO TPE E AS DIRETRIZES DA PROPOSTA "EDUCAÇÃO JÁ!" PARA A IMPLEMENTAÇÃO EM MÉDIO E LONGO PRAZO
O Eixo 1 refere-se às questões relacionadas ao âmbito da aprendizagem, do currículo, da gestão e da prática docente, articuladas às etapas e modalidades de ensino. Ou seja, a formulação dessas políticas pode definir a base para organizar o SNE aos moldes do TPE.
Cabe ressaltar que a ênfase dada a essas políticas reflete um contexto bem peculiar da reforma empresarial. De acordo com Freitas (2018, p. 81), “[...] essas ações, aparentemente sem relação, se articulam em uma engenharia de ‘alinhamento’ (base/ensino/avaliação/responsabilização)”. Isso porque, quanto mais restritivas e padronizadas forem as políticas de base, maiores serão as possibilidades do setor privado para atuar em escala produtiva, com a ampliação e criação de novos nichos de mercado educacional dentro da esfera pública.
Desse modo, aprimoram sua atuação com um cardápio de serviços, a partir da oferta de novas tecnologias de ensino, plataformas digitais, implantação de sistemas educacionais de gestão, disseminação e produção de materiais didáticos, programas de formação continuada, avaliação e testes padronizados, dentre outras inúmeras e variadas possibilidades neste campo.
O Eixo 2 pode ser definido como elemento central da proposta. Inclui aspectos que podem definir a organização da educação nacional. As cinco diretrizes relacionadas envolvem a pactuação federativa para a instituição do SNE.
A cooperação federativa ganha relevância nessa discussão. Para o TPE, faz-se necessário:
Criar mecanismos de incentivo à implantação de práticas colaborativas entre entes, dentre elas: o regime de colaboração entre Estado e Municípios, os consórcios intermunicipais e a maior institucionalidade aos Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADE) entre Municípios (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 59).
A flexibilização dos instrumentos de colaboração tem estreita relação com o modelo de gestão pública entre as redes. O TPE almeja uma mudança estrutural para que se possa alcançar maior eficiência e destaca como importante a criação de “[...] mecanismos de incentivo à adoção do regime de colaboração entre sistemas de ensino para aumentar o compartilhamento de boas práticas de gestão administrativa e financeira” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 62).
Cabe ressaltar que o debate defendido pelo TPE sobre a cooperação federativa não implica pactuação, tampouco define uma colaboração pela via da equidade federativa, mas reforça a institucionalização de acordos, pactos e arranjos que possam ampliar os espaços de atuação dos agentes de interesse privado. Exemplo disso é a criação, em 2016, de um movimento que reúne instituições para fomentar e fortalecer ações cooperativas entre os entes federados, no âmbito das políticas públicas de educação, como condições necessárias para a melhoria dos resultados de aprendizagem de todos, o Movimento Colabora Educação (MCE), que foi lançado “[...] como uma mesa temática no âmbito consultivo da sociedade civil do Banco Interamericano de Desenvolvimento” (MOVIMENTO COLABORA EDUCAÇÃO, 2018). O atual diretor de estratégia política do TPE e cofundador do Movimento Colabora, João Marcelo Borges, declarou que:
O BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento] tinha o desejo de estabelecer uma nova forma de relacionamento com as diversas organizações da sociedade civil atuantes na área da educação no país, que fosse menos pontual e pulverizada, e tivesse objetivos e produtos mais concretos. Do outro lado, havia um interesse das próprias OSCs [Organizações da Sociedade Civil] de se articularem melhor em torno de algumas pautas prioritárias no âmbito educacional (BORGES, 2019, p. 33).
E quanto à definição do SNE, não esconde a ambição de assumir protagonismo, não só quanto à sua criação e estruturação, mas também na participação efetiva de eventuais comissões de pactuação interfederativas no âmbito do governo federal e dos governos estaduais2:
O Colabora terá um papel essencial, que hoje não é desempenhado por nenhuma organização da sociedade civil, não só na deliberação sobre a criação do SNE, mas, depois de aprovado, na sua estruturação - seja no âmbito de uma eventual comissão tripartite, seja em apoio a diversas comissões bipartites que possam ser estabelecidas (BORGES, 2019, p. 33).
As iniciativas em torno das formas de colaboração não são recentes. O TPE tem sido um articulador estratégico na defesa pelos Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADE). Do mesmo modo, a parceria com o Instituto Natura favoreceu a difusão de um conceito de colaboração, num documento intitulado “O regime de colaboração em que acreditamos”. O documento parte de uma perspectiva gerencialista de controle e competitividade e visa, a partir dos cases de sucesso, propagar a ideia da eficiência e bons resultados a partir de um modelo de governança estruturada (INSTITUTO NATURA, 2017).
O movimento articulado entre o BID, o TPE e o Movimento Colabora tem produzido uma narrativa baseada na ineficiência da gestão pública e na falta de regras quanto às responsabilidades dos entes federados, o que justificaria a construção de outros modelos de cooperação mais institucionalizados.
Dessa forma, para ampliar e reforçar o engajamento a esse modelo, temos como exemplo a criação, em 2017, da Rede de Colaboração Intermunicipal em Educação, que se define como:
Uma iniciativa suprapartidária, sem fins lucrativos, e que representa a união de forças institucionais, tanto públicas quanto privadas, que atuam em regime de colaboração, como instrumento de gestão pública para a melhoria da qualidade da educação no Brasil, como Consórcios Intermunicipais, Arranjos de Desenvolvimento da Educação - ADE, Associações de Municípios, entre outros. Fundações, Institutos e Associações Privadas, dentre outras organizações sem representatividade do poder público municipal podem integrar a Rede como apoiadores ou parceiros (REDE, 2019).
A Rede alcançou, em 2019, a seguinte configuração, de acordo com o Quadro 2:
Essa articulação em rede, para a disseminação desses conceitos e experiências, é estratégica para alcançar o fortalecimento das propostas e afirmar os interesses de classe dos “reformadores empresariais”. Assim, o TPE configura, na prática, uma rede do capital, em que a ação de cada sujeito representa um conjunto seleto de empresas com expressiva participação no mercado financeiro. Nesta perspectiva:
Os empresários, se não todos, pelo menos uma elite deles deve possuir a capacidade de organizar a sociedade em geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, inclusive no organismo estatal, tendo em vista a necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão da própria classe; ou, pelo menos, devem possuir a capacidade de escolher os “prepostos” (empregados especializados) a quem confiar esta atividade organizativa das relações gerais exteriores à empresa. Pode-se observar que os intelectuais “orgânicos” que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo são, na maioria dos casos, “especializações” de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz (GRAMSCI, 2001, p. 15).
O desenho do projeto “Educação Já!” representa o modo como os empresários têm buscado afirmar um modelo de sociedade em um viés neoliberal, o que evidencia um processo de privatização lato sensu na definição de Licínio Lima (2018), ou seja, a
[...] introdução de teorias e de modos de gestão privada no interior das organizações públicas, a privatização em sentido amplo transcende os processos e instrumentos mais típicos da privatização stricto sensu, não sendo, aliás, simples alternativas em confronto nem, muito menos, incompatíveis entre si.
Com isso, pretende-se reformar a educação pública, tida como “ineficiente”, com a lógica e o modus operandi da empresa privada.
Dentre as demais diretrizes apresentadas no Eixo 2, foram relacionados os mecanismos de financiamento, já que estes são elementos fundamentais na instituição do SNE. O documento expressa a necessidade de:
Aprimorar esses mecanismos, tornando-os cada vez mais redistributivos, [...] é nessa discussão que se insere o debate sobre o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), dispositivo previsto no Plano Nacional de Educação para referenciar o custo de um padrão mínimo de qualidade do ensino no Brasil, mas que ainda não tem regulamentação de cálculo prevista e tampouco um debate suficientemente amadurecido no País (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 68).
Embora o texto reconheça a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de financiamento, destaca que “[…] há espaço relevante para a introdução de mecanismos de indução de resultados de aprendizagem dos alunos. Para isso, as próprias regras de distribuição de tributos podem servir como instrumentos importantes” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 70). Esta visão cria uma outra concepção para a política de financiamento, que diverge da implementação do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e do Custo Aluno Qualidade (CAQ), ao assumir contornos neocorporativos de competição entre os entes federados.
Sendo assim, a distribuição tributária não teria por princípio a equidade federativa na oferta de serviços educativos e na garantia do direito à educação. A reforma tributária seria mais um instrumento para monitorar e avaliar as redes e sistemas de ensino, com o aprimoramento e a expansão dos sistemas de avaliação em larga escala.
Na dimensão do financiamento, diante do não reconhecimento do CAQi e do CAQ, e sob a justificativa da insuficiência do debate, em abril de 2019, o Parecer nº 08/2010, do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB), que tratava dos padrões mínimos de qualidade de ensino para a educação básica pública, foi revogado com o voto da então relatora Maria Helena Guimarães de Castro (que já exerceu o cargo de secretária executiva do MEC) com o parecer contrário “[...] à competência da Câmara de Educação Básica do CNE para definir o valor financeiro e a precificação do Custo Aluno Qualidade Inicial” (BRASIL, 2019, p. 25).
A decisão criou uma lacuna no PNE, especificamente na Meta 20, revogando a possibilidade de se instituir uma política de Estado para o financiamento da educação pública com a definição de parâmetros de qualidade e mecanismos de maior equidade na Federação. Assim, o descomprometimento na definição do CAQi e do CAQ tem impacto na dimensão da “[...] qualidade da escola, portanto, é uma mercadoria que está disponível em vários níveis e que pode ser ‘comprada’ pelos pais. Compete ao Estado apenas garantir o básico para o cidadão, expresso no valor do voucher” (FREITAS, 2018, p. 32).
Importante destacar que, nesse período, o TPE tinha como proposição o “Fundeb Equidade” e o seu completo apoio à proposta de Emenda Constitucional - EC nº 15/2015, de autoria da deputada Raquel Muniz (PSC/MG - Partido Social Cristão/Minas Gerais) da deputada Professora Dorinha Seabra Rezende (DEM/TO - Democratas-Tocantins). Em 31/12/2019 a proposta foi arquivada com o fim da legislatura. Porém, em 21/02/2019, iniciada a 56ª Legislatura e dois meses antes da revogação do parecer nº 08/2010, a deputada Dorinha, reeleita e na condição de relatora, por meio do requerimento nº 76/2019, solicitou o pedido de desarquivamento da Proposta de Emenda Constitucional - PEC nº 15/2015, que seguiu tramitação na Comissão Especial e no plenário da Câmara dos Deputados3.
O TPE também esteve presente em reuniões sobre essa pauta no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e no MEC, com a apresentação da proposição para o novo fundo na 2º reunião de avaliação e reestruturação do Fundeb. Fizeram-se presentes “[...] representantes da Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], BM [Banco Mundial], Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Instituto de Ensino e Pesquisa (InsPer), o TPE e dos deputados federais a Professora Dorinha e Gastão Vieira” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2019). Na ocasião, foram formalizados acordos de cooperação técnica com a Confederação Nacional dos Munícipios, o que demonstra a intenção de coadunar interesses e compor uma proposta para o fundo.
O Eixo 3 apresenta os fatores extraescolares, indicando a necessidade de implementar políticas intersetoriais voltadas para a articulação de ações que englobem a primeira infância e os jovens. Cabe ressaltar que grande parte das propostas no âmbito do governo tem contado com o apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, parceira nas ações do TPE e representada pelo grupo do Banco Finasa, que conta com reconhecimento no mercado financeiro e atuação no campo da primeira infância.
Em síntese, a arquitetura projetada pelo “Educação Já!” definiu sete prioridades para a gestão do governo no período de 2019-2022, indicando um amplo portfólio de estratégias, com o destaque para: a) reestruturação das regras de governança e melhoria da gestão das redes; b) financiamento mais redistributivo e indutor de qualidade; c) efetivação da BNCC em todas as redes de ensino; d) profissionalização da carreira e formação docente; e) primeira infância como uma agenda intersetorial; f) alfabetização em regime de colaboração; g) nova proposta de escola no ensino médio (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2019).
Para legitimar a sua proposta, o TPE busca cada vez mais afirmar supostos consensos, refinando suas estratégias na produção discursiva que seja validada e chegue à população através dos meios de comunicação e em diferentes formatos. As publicações também contribuem para reforçar e legitimar essa produção discursiva, e, neste sentido, para validar os eixos e estratégias do documento “Educação Já!” foi publicado, em 2018, pelo TPE e pela Editora Moderna, o livro: Educação em debate: um panorama abrangente e plural sobre os desafios da área para 2019-2022 em 46 artigos. Priscila Cruz e Luciano Monteiro (2018, p. 14) reforçam, na apresentação da obra, que:
O convite a esses ilustres autores, acostumados a pensar nossa Educação, pedia que eles estabelecessem uma prioridade para a área no período 2019-2022, desenvolvendo-a na forma de artigo. Nossa intenção era de que os textos tivessem uma argumentação propositiva, independente de variáveis político-ideológicas. Desse modo [...], acreditamos que este livro fortalece a pluralidade de ideias.
Assim, a utilização dos APH, nas diferentes mídias e fontes de comunicação, revela a disputa pela “opinião pública” definida por Gramsci (2007, p. 265) como “[...] conteúdo político da vontade política pública”, representando um elemento fundamental para a estrutura de poder em um projeto de classe.
Podemos inferir que o TPE tem fortalecido suas estratégias, redefinindo sua articulação de acordo com os seus propósitos, criando meios cada vez mais específicos e orgânicos para fomentar os seus interesses, o que é possível destacar na disseminação de conteúdos e ações do programa “Educação Já!”.
As novas estratégias de incidência do TPE na definição do SNE no Consed, na Undime e no Congresso Nacional
O TPE também vem afirmando a sua inserção nas políticas educacionais, demonstrando a necessidade de assegurar alterações de normas jurídicas e institucionais no Congresso, incluindo a criação de uma sede em Brasília, denominada “Casa da Educação”, com a intenção de promover encontros regulares sob a coordenação da Frente Parlamentar Mista da Educação (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2019).
Entre 2018 e 2019, o site do TPE também passou a intensificar a veiculação de matérias mais específicas sobre o SNE na série conteúdos especiais, conforme registro no Quadro 3.
Ademais, o TPE tem apresentado a sua inserção de modo cada vez mais explícito no Legislativo, seja por via das proposições legais nos espaços de deliberação política, seja pela mobilização e participação das associações parlamentares, conforme incidência indicada no Quadro 4.
Nesse contexto e com a tarefa de cumprir a agenda estratégica (2019-2022), o Projeto de Lei Complementar - PLP nº 25/2019, de autoria da deputada Dorinha Seabra Rezende, foi apresentado em 13/02/2019. Três dias depois do anúncio da proposta, foi realizado o Seminário Internacional “Educação Já!”: as 7 prioridades que podem mudar o rumo da educação e do país,” em 17 e 18 de fevereiro de 2019, pelo TPE.
O seminário foi organizado em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). A transmissão do evento foi disponibilizada no Canal Futura (CANAL FUTURA, 2019). Foram realizados painéis com a discussão das temáticas das sete prioridades estabelecidas pelo TPE.
Dentre as prioridades do evento, esteviveram a governança federativa e a organização do SNE, que se configuram como meta para o TPE até 2022. Importante ressaltar que o seminário identifica um momento estratégico, diante do início de um novo governo e da necessidade de construir uma agenda que seja ampliada para os estados e munícipios. A mesa de abertura demonstrou a tônica do evento, ao reunir: a) Alessio Costa Lima, presidente da Undime; b) Fernando Abrucio, professor da FGV-SP; c) Frederico Amancio, vice-presidente do Consed; d) Luiz Antônio Tozi, secretário executivo do MEC; e) Luiz Roberto Lira Curi, presidente do CNE; e f) Priscila Cruz, presidente executiva do TPE (CANAL FUTURA, 2019).
Quanto ao federalismo e ao SNE, o Painel 2 teve como tema: “Governança na educação: como regulamentar a cooperação entre União, Estados e Munícipios?”. A composição dessa mesa temática é emblemática: a) Alessio Costa Lima, presidente da Undime; b) Idilvan Alencar, deputado federal; c) José Henrique Paim, ex-ministro da Educação e professor da FGV-RJ; d) Mozart Nevez Ramos, membro do CNE e diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna; e) Ricardo Martins, consultor legislativo da Câmara dos Deputados. Como mediador do painel, Guilherme Lacerda, secretário executivo do Movimento Colabora Educação.
A discussão central do painel se deu com o debate da regulamentação do SNE pela via da cooperação federativa. Remonta a aspectos da responsabilização entre os entes federados, das atribuições específicas e de quais seriam as regras para tornar efetiva a pactuação.
Embora os debatedores reforcem a necessidade da lei, inclusive referendando o PLP nº 25/2019, de autoria da deputada Professora Dorinha Seabra (DEM/TO), podemos observar, na fala do ex-ministro da Educação, José Henrique Paim, o interesse numa regulamentação do SNE que não obstaculize a pactuação entre estados e municípios ou entre municípios com a participação dos “reformadores empresariais”, como nos ADE, por exemplo:
A lei não pode descer a um nível de detalhe que inviabilize essa pactuação entre o Estado e Munícipio. Ela não pode atrapalhar o processo que já existe, e sim, a partir da regulamentação permitir que haja essa pactuação [...].
E sobre: Os arranjos, acho que é uma saída muito boa, se conseguíssemos colocar na Lei, uma diretriz nessa direção que induzisse essa organização, independentemente se será arranjo ou consórcio (CANAL FUTURA, 2019).
Da mesma forma, na proposta elaborada pelo TPE sobre a colaboração federativa é dada relevância para os ADE, na perspectiva de assegurar uma maior institucionalidade com sua inscrição em lei:
Para o êxito dessas estratégias, será cabível que a lei complementar do sistema nacional de educação preveja que, em lei ordinária, a organização entre entes públicos venha a ser mais adequada à sua formatação como arranjos de desenvolvimento da educação, tal como já referidos na Resolução CEB/CNE nº 1, de 2012, como instrumentos de gestão pública para a melhoria da qualidade da educação (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2019, p. 59, grifo nosso).
Isso significa criar um modelo de cooperação federativa que, ao invés de pactuar, pode revelar, conforme salientou Abicalil (2013, p. 821),
Uma cobiça pelos fundos públicos [...], pelo controle da administração, dos fins educacionais e do conteúdo da qualidade segundo os propósitos de quem mobiliza, assessora, planeja, avalia, forma, subsidia, detém os meios de produção e instrumentaliza a política pública para a eficiência econômica.
O conjunto dessas ações reforça o fortalecimento do empresariado, influenciando os sistemas educacionais com a construção de agendas consensuais. Esse processo fragiliza o papel do Estado na implementação de políticas, que passam a ser reguladas pela redefinição do capital em escala global, em sua lógica de poder (HARVEY, 2005a, b), incorporando cada vez mais a necessidade de alinhar princípios corporativos para delinear os rumos da educação nacional.
O TPE tem ampliado as suas estratégias, alcançando abrangência em diferentes instâncias dentro e fora do governo. Suas ações demonstram uma ampla capacidade institucional, com a intenção de assumir o lugar de especialistas da educação, debatendo sobre vários assuntos e temas dessa área e validando os seus interesses em direcionar as políticas dos sistemas educacionais sobre o pretexto da corresponsabilidade (MARTINS, 2016).
A conformação desse projeto apresenta-se, por diferentes estratégias de linguagem, como forma de comunicar as ações. Gramsci (1999) afirma que, ao socializar as informações, pode-se criar uma cultura, mecanismos de coordenação de ordem intelectual e moral. Essa percepção pode ser evidenciada a partir dos slogans, campanhas e eventos que visam atender a um “[...] mercado determinado, que corresponde à relação de forças sociais em determinada estrutura do aparelho de produção” (GRAMSCI, 1999, p. 194).
Considerações finais
E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo (SARAMAGO, 1996).
Constatamos que há uma movimentação em torno da implementação do SNE, intensificada com a participação da agenda instituída pelo TPE em seu programa “Educação Já!”. O desenho desta proposta representa o modo como os empresários têm buscado afirmar um modelo de sociedade em um viés neoliberal, o que evidencia o projeto de privatização da educação por meio da articulação entre base, ensino, avaliação e responsabilização a partir de uma normativa do SNE que incorpore a racionalidade do mundo corporativo.
O enfoque dado à governança federativa no documento “Educação Já!” deriva da premissa de que institutos, fundações e variadas organizações de interesses empresariais sejam mais capazes de “gerenciar” os sistemas e redes de ensino no território nacional, ou seja, esses atores seriam capazes de dar respostas pragmáticas a questões estratégicas em cada território, por meio de uma teoria geral da administração que deva ser aceita de forma universal, como é o caso da transposição acrítica do modelo dos arranjos produtivos locais para os ADE.
Dessa forma, as ações do TPE configuram um movimento orgânico de privatização no campo das políticas educacionais e têm refletido mudanças em questões estruturais da educação, quanto ao planejamento educacional, à noção de qualidade da educação, às relações intergovernamentais entre os entes federados, à difusão de modelos de cooperação federativa, bem como nas dimensões que envolvem as políticas do currículo, da avaliação e da gestão pública.
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A iniciativa “Profissão professor” foi lançada em 2007. A partir de 2009 passa a ser um movimento independente, atuando por meio de advocacy em conjunto com organizações do terceiro setor.
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Em 24 junho de 2015, um ano após a aprovação do PNE, por meio da Portaria MEC nº 619, foi instituída a instância de pactuação federativa que chegou a ser instalada em 27 de janeiro de 2016, mas nunca funcionou.
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A PEC seguiu para o Senado Federal em 22/07/2020 e recebeu o número 26/2020. A matéria terá como relator o senador Flávio Arns (Rede/PR – Rede Sustentabilidade/Paraná).
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Dez 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
20 Jul 2020 -
Aceito
15 Set 2020