RESUMO
Este artigo apresenta parte dos resultados de pesquisa de doutorado de uma das autoras que teve como objetivo conhecer e analisar o que mobiliza professores em suas práticas docentes, em relação ao trabalho com a leitura e a escrita, da Educação Infantil ao primeiro ano do Ensino Fundamental. Nele, são discutidas as contradições e tensões que envolvem as propostas curriculares da SME-Rio, que objetivam encaminhar o trabalho pedagógico da pré-escola e do 1º ano do Ensino Fundamental, em relação à oralidade, leitura e escrita. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, desenvolvida em duas turmas de pré-escola e uma de 1o. ano do ensino fundamental, que contou com os estudos de Mikhail Bakhtin para sustentar a concepção de pesquisa e as análises do material de campo. A pesquisa evidenciou compassos e descompassos entre as propostas curriculares das duas etapas educacionais. Alfabetização e letramento são entendidos como indissociáveis, mas nos documentos aparecem de forma separada, dando pouca ênfase às questões discursivas. Observou-se que uma das formas encontradas pelos professores frente aos tensionamentos, ao apontarem as consonâncias e dissonâncias contidas nas orientações curriculares, foram os falsetes pedagógicos, formas próprias de enfrentarem as contradições.
Palavras-chave: Alfabetização, Leitura e Escrita; Currículo; Práticas Docentes; Falsetes Pedagógicos
ABSTRACT
The present article provides part of results recorded in a doctoral research (Cruz, 2019) carried out by one of the present authors. The aim of the research was to understand and analyze what mobilizes teachers in their teaching practices when it comes to working with reading and writing from Early Childhood Education to the first year of Elementary School. The current article discusses contradictions and tensions linked to SME-Rio’s discipline matrix propositions, since it aims at guiding the pedagogical work associated with orality, reading and writing in pre-school and in the 1st year of Elementary School. The study followed the qualitative research approach and was carried out in two pre-school classes and in one class of the first year of Elementary School. The study was substantiated by Mikhail Bakhtin’s work, which supported the research design and the field-material analysis. The research highlighted gaps and discrepancies in discipline matrix propositions at the assessed education stages. Literacy, and Reading and Writing learning, are herein understood as inseparable, but they appear separately in different documents, with little emphasis on discursive issues. Pedagogical falsettos are among the ways teachers take to face tensions and contradictions when they point out the compliances and mismatches in discipline matrix guidelines.
Keywords: Reading and Writing Learning; Discipline Matrix; Teachers’ Practices; Pedagogical Falsettos
Introdução
Uma voz Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro mas não um pássaro cantando: lembra um pássaro voando. Ferreira Gullar (2010, p. 179).O poema de Gullar explicita o desvio do que seria o óbvio... a percepção de uma voz que não lembra o canto, mas o voo do pássaro. Talvez essa sensação seja própria não só do poeta, mas também do pesquisador. A escuta das vozes dos sujeitos da pesquisa requer deslocamentos, e ouvir o que dizem, e eles se contradizem por vezes também, ou deixam de dizer, enfim, ouvir até mesmo o que silenciam, é exigente e muitas vezes escapa ao pesquisador. A escuta remete ao olhar mais alto, para tentar observar as sutilezas do voo e, assim, perceber o canto que ele enseja.
Este artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa de doutorado realizada por uma das autoras, no período entre 2016 e 2019, que teve como objetivo conhecer e analisar o que mobiliza professores em suas práticas docentes, em relação ao trabalho com a leitura e a escrita, da Educação Infantil ao primeiro ano do Ensino Fundamental. Problematiza o que orienta professores da rede municipal de ensino da cidade do Rio de Janeiro a escolherem determinadas práticas e conhecimentos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que teve como procedimentos metodológicos: i) análise dos documentos de Orientação Curricular da Secretaria Municipal de Educação do Município do Rio de Janeiro (SME-Rio, 2010) em vigor à época da pesquisa, para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental; ii) observação participante, com registro em notas de caderno de campo, em três turmas - duas de pré-escola e uma de 1º ano do ensino Fundamental; iii) conversas e entrevistas individuais e iv) entrevista coletiva com os três professores - Mateus, Nina e Alice -, que foram gravadas e transcritas.
Três docentes integraram a pesquisa: Nina e Mateus, professores da Pré-escola, de uma unidade municipal exclusiva de Educação Infantil, e Alice, professora do 1º ano, de uma Escola de Ensino Fundamental, além é claro dos sujeitos de pesquisa crianças, de suas respectivas turmas. A análise do material produzido teve como base a teoria enunciativa de Bakhtin. Esse autor considera que “o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante, esse ser que nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado” (Bakhtin, 2003, p. 395). Nesta perspectiva, todo material produzido é composto por textos a serem interpretados, “pensamento sobre pensamento dos outros” (Bakhtin, 2003, p. 308) e é do lugar exotópico, no debruçar sobre a escuta dos discursos dos sujeitos da pesquisa, que o pesquisador organiza esteticamente o seu texto e dá o seu acabamento, isto é, “a compreensão como visão de sentido” (Bakhtin, 2003, p. 396).
Neste texto, discutimos as contradições e tensões que envolvem as propostas curriculares da SME- Rio, que objetivam encaminhar o trabalho pedagógico da Pré-escola e do 1º ano do Ensino Fundamental. Identificamos pontos de tensões, que evidenciam concepções em disputa, entre as duas etapas educacionais aqui focalizadas, com repercussões nas práticas pedagógicas com a leitura e a escrita.
O artigo está organizado da seguinte forma: na primeira parte, apresenta questões de pesquisa, na segunda faz uma breve análise das orientações curriculares para a Educação Infantil e para os anos Iniciais do ensino fundamental da SME-Rio, no que tange à oralidade, leitura e escrita; na terceira parte põe em realce a problematização das vozes das duas professoras e do professor e as formas como estes sujeitos respondem aos compassos e descompassos das orientações curriculares. Tais vozes foram interpretadas como falsetes pedagógicos, numa metáfora ao conceito de falsete do campo da música; por fim, apresenta considerações sobre as possibilidades de se desenvolver propostas curriculares na perspectiva discursiva, capazes de conferir autoria aos/às professores/as de seu trabalho.
A pesquisa como processo reverberativo das práticas docentes
Os professores Nina, Mateus e Alice conduziram o caminho da pesquisa, ao orquestrar, com seus enunciados, a fundamentação teórica de caráter discursivo. Assim, o cuidado com a pesquisa orientou continuamente a pesquisadora, buscando produzir uma compreensão sobre as práticas docentes das duas professoras e do professor participantes, sem lhes impor um sentido único. Partiu-se do tempo e espaço da experiência compartilhada, que não é marcada por inícios e fins de períodos, mas sim pelos sentidos em continuidade de seus enunciados.
Os pressupostos da etnografia fundamentaram a pesquisa, a partir da alteridade implicada na observação participante. Conversas informais e entrevistas marcaram a pesquisa, como um processo em que os sujeitos envolvidos são modificados pela e na relação. Essa perspectiva rompe com a ideia de um objeto fechado em si mesmo, pois “relacionar ao outro o vivenciado é condição obrigatória de uma compenetração eficaz e do conhecimento tanto ético quanto estético” (Bakhtin, 2003, p. 24). O resultado foi a abertura à possibilidade de trazer à tona eventos - acontecimentos e enunciados das professoras e do professor - destacados no fluxo das interações, a partir da necessidade de compreender as concepções que sustentam as práticas docentes.
Segundo a concepção bakhtiniana, a palavra é constituinte e constituída das e nas interações, pois “toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro” (Bakhtin, 2009, p. 117). Na palavra, o ser se define em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. Assim, a pesquisa constituiu-se pelas pontes construídas entre a pesquisadora, os sujeitos participantes e os contextos nos quais as experiências se deram. Tanto as entrevistas individuais quanto a coletiva foram espaços de interlocução entre a pesquisadora, as professoras e o professor. A entrevista coletiva, por sua vez, assumiu relevo ao fazer circular as vozes de cada um/a no diálogo possibilitado pelo encontro que fez emergir os sentidos específicos da prática pedagógica de cada professor/a e suas compreensões sobre educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental com as dissonâncias e consonâncias de um processo transitório tensionado pelo desencontro. Tal tensão foi observada tanto na prática, quanto nas contradições entre as orientações pedagógicas do município do Rio de Janeiro em relação às duas etapas educacionais. Assim, estar junto dos professores, dialogando com eles sobre suas práticas, ouvindo e acolhendo seus sentidos, mostrou-se importante para o desenvolvimento da pesquisa.
Cruz (2014) aponta o conceito de reverberação como princípio para a compreensão da prática docente, como processo de idas e retornos, constituído por posicionamentos em prol de experiências viáveis ao ensino e à aprendizagem. No campo musical, o conceito acústico da reverberação caracteriza-se como o efeito que ocorre quando ondas sonoras são propagadas, guardando entre si uma pequena diferença de tempo em suas movimentações. As ondas sonoras, ao estabelecerem impacto com a superfície refletora, retornam, também em tempos diferentes, preenchendo o ambiente com várias reproduções do som emitido originalmente. Em analogia ao conceito musical, a autora compreende que as vozes que circulam no contexto escolar (ondas sonoras propagadas) são produzidas a partir de diferentes pontos e trazem em si os sentidos produzidos por diversas experiências que, ao se encontrarem com as especificidades do contexto (superfície refletoras), produzem sentidos transformados pelo contato (retorno). O discurso produzido pelo/a docente na sua prática e sobre ela envolve diferentes discursos - dos/as discentes, da gestão, das políticas, da comunidade etc. - e o que enuncia é, então, resposta a estes discursos. Na dimensão da pesquisa, o discurso do/as professor/as é a reverberação - retorno - dos discursos que têm chegado a eles. São múltiplas as vozes que participam do diálogo da vida desses professores e foi nosso objetivo compreender parte desses discursos e buscar situá-los nas práticas observadas.
Importante posicionar o conceito de voz de Bakhtin, em sintonia com a noção de reverberação cunhada por Cruz (2014), tendo em vista que a voz em seu sentido conceitual bakhtiniano será sempre polifônica, feita de muitas vozes, e nunca única em sua constituição de sentidos produzidos. O sujeito falante, ao enunciar, cunha sua forma significante da linguagem de tal modo que aponta a possibilidade de resposta do outro, seu enunciado se marca por este direcionamento alteritário, apostando na responsividade do outro. Porém deve-se perceber a historicidade de seu enunciado também pelo seu passado, pois ele produz sua palavra própria ali no espaço tempo estando enredado por palavras alheias-próprias anteriores, que o antecederam e o constituem. Sua voz é feita de tempos e espaços marcados por alteridades que o constituem, daí a possibilidade de perceber reverberações dessas vozes.
Compassos e descompassos de uma proposta curricular
Ao serem perguntadas/dos sobre quais concepções orientavam o trabalho com a leitura e a escrita no cotidiano de cada segmento, Nina, Mateus e Alice afirmaram que as concepções que conduziam suas práticas estavam expressas no Currículo da Rede Municipal de Educação do município carioca.
Na entrevista coletiva, o professor Mateus indica que as Orientações Curriculares dão uma linha geral em relação às especificidades, entretanto não deixam claro qual a linha do trabalho a ser desenvolvido, não havendo um posicionamento teórico assumido. Quando lhe é solicitado que exponha sua opinião sobre como são compreendidas as propostas pedagógicas da Rede e em que elas contribuem para a organização do trabalho pedagógico na Educação Infantil, ele afirma:
Mateus: Eu acho que eles, em algum momento do documento... eles é... em algum momento do documento... Professora Nina, ao fundo fala questionando/sugerindo a Mateus: Não conversam?!!!
Mateus continua: Eles são ótimos, enfim, têm servido pra orientar, mas eles não deixam, como é que é o nome?.... É....eles não se posicionam, parece que não fica claro, entendeu? Assim, não fica claro qual é a linha. Porque eles vão lá e definem assim... o eixo é brincar e interagir, ok! Isso serve pra gente como organização, eles especificam assim, na Educação Infantil vão ser desenvolvidas essas tais e tais habilidades. Como organização, eles servem, são excelentes, mas em linha gerais o documento é bom, volto a dizer, (ele faz um comentário dizendo que fica até com medo porque faz parte da Rede) eles são bons, mas para mim ainda falta alguma coisa, deixam a desejar, assim, no sentido de um posicionamento (Entrevista coletiva - 04/05/19).
Na entrevista coletiva, o professor Mateus indica que as Orientações Curriculares dão uma linha geral em relação às especificidades, entretanto não deixam claro qual a linha do trabalho a ser desenvolvido, não há um posicionamento teórico assumido. A partir do mesmo questionamento, Nina responde: “Acho que os documentos...Assim, eu vou falar por mim, pela minha unidade. Pelos documentos que a gente tem nas Orientações Curriculares, é pra gente tirar dali lendo, entendendo e praticando” (Entrevista coletiva - 04/05/19).
Nina indica que o documento representa a expectativa do caminho a ser seguido para que o professor possa articular à sua prática. Diferentemente de Nina, que seguia as Orientações Curriculares para a Educação Infantil (OCEI) sem muitas problematizações, Mateus se sentia autorizado a questionar. Alice responde a mesma questão da seguinte forma:
Alice: Eu digo pelo nosso grupo de 1º ano lá da nossa escola, a gente vê as competências e as habilidades pertinentes àquele bimestre, que a criança tem que adquirir, e a gente tenta basear o nosso trabalho focado nisso. Ahhh, a criança tem que sair, tem que adquirir conhecimento de sílaba dentro daquele bimestre, então a gente vai tentar se basear dentro das nossas concepções (ela respira), que tipo de atividade a gente vai proporcionar para as crianças para poder fazer com que elas atinjam aquele objetivo dentro daquele bimestre. Então eu acho que é isso, as nossas concepções são trazidas para o nosso cotidiano vendo dentro das orientações, dentro dessas regras, entre aspas, desses objetivos que a gente tem que trabalhar com eles em sala de aula (Entrevista Coletiva - 04/05/19).
Alice considera as Orientações Curriculares como a base que sustenta o seu trabalho, seu discurso docente é perpassado pela compreensão de currículo como um documento prescritivo, que conduz as ações pedagógicas. Tal perspectiva vai na contramão do currículo como possibilidade de as crianças vivenciarem os acontecimentos enquanto processos, o que exigiria uma intencionalidade pedagógica, aliada a uma elaboração tecida nas relações e de maneira que as aprendizagens pudessem ser respostas aos próprios acontecimentos.
No documento denominado Orientações ao Professor de Pré-escola I e II, há um quadro retirado das Orientações Curriculares para a Educação Infantil, que aponta objetivos e habilidades para o trabalho com a Linguagem Oral e Escrita na pré-escola, conforme apresentamos a seguir:
Podemos observar que tanto os objetivos quanto as habilidades são bastante abrangentes, com exceção do item “identificar e reconhecer letras, palavras, pequenas frases familiares: nomes, brinquedos, tarefas da rotina, materiais, etc.”. Alfabetização e letramento são termos que aparecem articulados, a partir da perspectiva de que ambos são indissociáveis. Entretanto, os documentos trazem separadamente as habilidades que se referem à alfabetização e ao letramento, como consta no Quadro 2, a fim de delimitar os propósitos e os objetivos a serem focalizados na alfabetização e no letramento, para facilitar o desenvolvimento das propostas endereçadas às crianças. Sustentam-se nas contribuições de Magda Soares (2012), ao afirmar que esta separação se dá por “questões didáticas e de planejamento das ações do professor” (Soares, 2012 apud SME-Rio, 2013, p. 10).
Com esta afirmativa, referendada por uma importante pesquisadora da área de alfabetização, o documento reitera o lugar de alfabetização na pré-escola, que tem como base a proposta de desenvolver situações sistematizadas para que as crianças possam perceber e ter consciência do som da língua, de textos, frases, palavras, sílabas e fonemas. A sistematização cabe ao professor com propostas de atividades. Às crianças cabe “transferir” o que escutam e falam para a escrita. Uma concepção que parte de pressupostos como: i) a alfabetização tem início na pré-escola e baseia-se em uma perspectiva transmissiva de conteúdos que as crianças precisam aprender; ii) a ênfase da alfabetização está na percepção e na “consciência” da pauta sonora da língua. Tais pressupostos evidenciam uma cisão entre a estrutura da língua e a vivência da língua enquanto discurso.
O objetivo explicitado nas “Orientações aos Professores de Pré-escola I e II” demarca as intenções de trabalho com a alfabetização e com o letramento separadamente, possibilitando a oferta de “propostas cotidianas e sistematicamente planejadas para que se apropriem das habilidades específicas pertinentes a cada um desses conceitos” (SME-Rio, 2013, p. 10). No documento, há uma sessão destinada a apontamentos referentes a oralidade e consciência fonológica, em que se destaca a necessidade de compreensão de que “é falando e se expressando que as crianças, de fato, aprendem a utilizar a língua e se tornam capazes de organizar e expressar o seu pensamento por meio da fala, para, posteriormente, fazê-lo por meio da escrita” (SME-Rio, 2013, p. 11). Afirma, ainda, que isso não é uma tarefa fácil para as crianças, que primeiro se apropriam da correspondência semântica da língua como significado e em seguida associam-nas às características e atributos dos objetos que estas nomeiam.
O documento assevera que é necessário, então, planejar atividades “que deem ênfase ao desenvolvimento da consciência fonológica” (SME-Rio 2013, p.11), levando as crianças a perceberem essa dimensão sonora da língua. Estende-se, ainda, observando que a fala é sonora e que esta característica pode ser identificada pelas habilidades das crianças em perceber e articular partes como palavras, sílabas, rimas e aliterações. Estas afirmações levam-nos a concluir que o material é direcionado à compreensão de que as crianças primeiro estabelecem a correspondência semântica para em seguida avançarem em direção à correspondência sonora, conforme explicitado no Quadro 3, a seguir:
Mesmo reconhecendo as interações e a brincadeira como eixos articuladores do trabalho pedagógico na Educação Infantil, o material dá destaque à correspondência sonora das palavras, ao fazer um recorte epistemológico em que, de acordo com Magda Soares (2012), o foco principal da alfabetização na Educação Infantil é a percepção e consciência do som, a partir de situações que favoreçam a observação da pauta sonora da língua. O objetivo é que a criança possa viver diferentes processos, até que perceba as menores partes sonoras da língua, que são os fonemas, e faça a transferência daquilo que escuta e/ou fala para aquilo que escreve (Soares, 2012 apud SME-Rio, 2013, p. 12). Observemos agora as posições docentes a respeito desse currículo.
Nina, ao falar sobre a organização de sua prática na pré-escola a partir dos eixos da Educação Infantil - interações e brincadeira - afirma na entrevista individual que “tem a brincadeira, mas tem sempre o direcionamento” e que, mesmo proporcionando o espaço para o brincar, tem a preocupação com os conteúdos necessários para que as crianças alcancem as habilidades de leitura e escrita para que cheguem ao 1º ano do EF em condições de acompanhar os conteúdos da alfabetização.
Em um dos momentos da observação participante, a professora entregou à pesquisadora o caderno de uma das crianças para que visse algumas das atividades que ela realizava com a turma. Foi surpreendente encontrar atividades que não tinham sido desenvolvidas pela professora no período de convivência com turma, conforme figuras 1 e 2 a seguir.
Em conversa informal, Nina afirma saber que na Educação infantil não cabe este tipo de proposta, mas que ela tem como prioridade em sua prática fazer com que as crianças aprendam a escrever os seus nomes, a reconhecer palavras e suas partes, por meio de atividades de cópia e de textos em que ela é a escriba.
Mateus, também professor na Pré-escola, da mesma unidade escolar que Nina, em prol de uma aprendizagem significativa da leitura e da escrita, rompe com a “visão linear da Psicogênese da Língua Escrita, de Ferreiro, que focaliza e privilegia o conhecimento das habilidades cognitivas que interagem nesse processo de construção” (Abaurre; Fiad; Mayrink-Sabinson, 1997, p. 17), que foi apropriada pelo contexto escolar de maneira apressada “e, por vezes, irresponsável, ao transformar em método de ensino os resultados de uma pesquisa acadêmica séria” (Abaurre; Fiad; Mayrink-Sabinson, 1997, p. 17). Ao longo da convivência no período de observação, constantemente, as crianças participavam das propostas de leitura e escrita. Poucas vezes Mateus se colocava como escriba, incentivava as crianças a escrever e a ler espontaneamente, a escolher os livros que elas desejavam ler sozinhas, ou que ele fosse o leitor, bem como a registrar, com desenhos ou escrita, suas expressões de leitura. O processo todo acontecia por via de negociações e objetivos claros estabelecidos junto com as crianças.
Ao trazer as crianças como centro organizador de sua prática, Mateus atribui um sentido diferente ao expresso nas Orientações Curriculares da Educação Infantil, em que a leitura e a escrita são abordadas relacionadas à ideia de que “a língua é um sistema de normas fixas objetivas” (Bakhtin, 2009, p. 95). Mateus tornava possível que as crianças registrassem acontecimentos a partir de situações em que elas compreendessem a necessidade de escrever, conforme registro fotográfico de material escrito produzido pela turma (Figura 3).
Os aspectos relacionados ao uso da língua, à relação fonemas e grafemas, a como se escreve, que letra se usa para escrever, quantas partes uma escrita possui, à direção do texto, ao para que se escreve, dentre outras, eram articulados no fluxo da relação entre o professor e as crianças. Um processo que Mateus atribuía a seu investimento pessoal de estudo que lhe dava condições de estabelecer críticas e argumentos em relação às Orientações Curriculares para a Educação Infantil.
No Ensino Fundamental, a professora Alice toma as Orientações Curriculares como as bases do seu trabalho que, em relação à leitura e à escrita nos anos iniciais, são disponibilizadas nas “Orientações Curriculares para o ensino de Língua Portuguesa” do Ensino Fundamental. A proposta aponta a discursividade como fio condutor para o trabalho de alfabetização, a valorização dos sujeitos, as interações, os processos e os sentidos produzidos a partir da relação com a língua. Entretanto, o documento dá ênfase ao sistema linguístico e gramatical da língua, desvinculado de um processo de alfabetização em que cada enunciação é única e parte do fluxo ininterrupto de atos de fala, em que o sistema linguístico não é acabado, fixado nas relações fônicas e gramaticais.
Alice afirma que a centralidade do trabalho está em codificar e decodificar, que “a criança tem que estar lendo e escrevendo, ser leitora e escritora e acabou” (Entrevista Coletiva - 04/05/2019), sem mencionar um trabalho vinculado aos sentidos produzidos pelas crianças em sua relação com o texto. Assim, a professora reproduz tais princípios em sua prática cotidiana no trabalho de leitura e escrita. Apesar de não querer reproduzir processos repetitivos e descontextualizados, ela deixa claro que sua prática se organiza a partir do material pedagógico da SME. Em suas tentativas, busca algo que faça sentido para as crianças bem como para ela, a fim de desenvolver uma prática pedagógica apoiada nas interações e trocas. Além do material pedagógico da SME, Alice afirma que utiliza as provas dos anos anteriores como parâmetros para elaboração das atividades pedagógicas a serem realizadas pelas crianças, com a finalidade de prepará-las melhor para o período avaliativo da Rede.
Mesmo que as Orientações Curriculares para os anos iniciais considerem o texto e a produção textual como ponto de partida e de chegada no processo de apropriação da língua, há destaque às habilidades centradas em “identificar, reconhecer, conhecer, valorizar”, entre outras, que dizem pouco em relação à leitura e à escrita na dimensão da produção de sentidos. O documento reforça um ensino preso à análise das estruturas macro e micro do texto, para que as crianças desenvolvam habilidades a partir de procedimentos que indicam uma compartimentação do fluxo da língua, em que esta é acabada a partir do momento em que a criança consegue transmitir esses conhecimentos por meio das habilidades adquiridas. A abordagem desvia-se da abordagem discursiva que aposta no fluir do significado:
em todo ato de fala, o importante, do ponto de vista da evolução da língua, não são as formas gramaticais estáveis, efetivas e comuns a todas as demais enunciações da língua em questão, mas sim a realização estilística e a modificação das formas abstratas da língua, de caráter individual e que dizem respeito apenas a esta enunciação (Bakhtin, 2010. p. 78).
A questão de os professores sentirem a necessidade de ampliar seus conhecimentos esteve presente ao longo de toda pesquisa. Alice falava sobre ter bases para poder argumentar e não se calar diante de algumas situações; Nina queria um embasamento teórico para entender qual caminho a seguir e Mateus buscava articular sua prática com as questões que trazia das teorias estudadas por ele. Este movimento ficou mais claro quando, na entrevista coletiva, foi perguntado a elas/ele sobre seus conhecimentos a respeito das orientações curriculares dos demais anos de escolaridade. Sobre este aspecto, Mateus e Nina informam desconhecimento das orientações curriculares do 1º ano do Ensino Fundamental e Alice as da Educação Infantil.
Nina: Conheço superficialmente agora que estou olhando para prova.
Alice: Não, não conheço.
Mateus: Eu também não conheço.
Alice: Nunca li o documento, eu o entendo pela vivência, pela prática, pelo meu cotidiano, pelos anos de Rede, pelas conversas com outros professores, pelos cursos e tudo mais. Então, eu entendo isso pela fala de vocês, mas que eu tenha lido em algum momento, eu não (Entrevista Coletiva - 04/05/2019).
As Orientações Curriculares encaminham um trabalho no qual fonemas, letras e sílabas devem ser ensinados como pré-requisito para a leitura e a escrita de unidades de sentido. Enfatizam a fonética, a ortografia e o vocabulário para o desenvolvimento da consciência fonológica, com o pressuposto de que tudo que se fala pode ser escrito. O contexto social e cultural fica em segundo plano, diante da necessidade emergencial de que as crianças leiam e escrevam para dar conta de metas avaliativas internas e externas.
Um empobrecimento das relações com a língua escrita para as crianças de classes populares, já que as problematizações sobre a língua não partem de suas indagações e não suscitam perguntas sobre os modos de utilização e ampliação da língua escrita. Assim, “qualquer abordagem pedagógica que concebe a língua como sistema reverte-se em prática alfabetizadora antiprodutiva” (Andrade, 2010, p. 11) e coloca em segundo plano as enunciações que dizem respeito aos estilos infantis. O/a professor/a é colocado/a em um conflito, entre a realização de um trabalho pautado na interlocução e a realização de um trabalho prescritivo, em que a criança precisa ser conduzida a realizar, demonstrar, identificar e usar a leitura e a escrita.
Vozes falseteadas como respostas aos tensionamentos
Os discursos de Nina, Mateus e Alice deixaram claro que o caminho apresentado pela SME-Rio não lhes elucida o suficiente, derivando interpretações muito variadas que não favorecem práticas docentes autorais com a leitura e a escrita na Educação Infantil e no primeiro ano do Ensino Fundamental. A pesquisa apontou que: i) as orientações curriculares deixam a desejar, no sentido de um posicionamento teórico, por não deixarem claro o caminho a seguir; ii) há o reforço de um ensino preso à análise das estruturas macro e micro do texto, sem dar elementos para o professor relacionar o texto à vida; iii) mesmo o texto sendo apresentado como centro do trabalho a ser desenvolvido, a ênfase está no sistema linguístico e gramatical; iv) não há uma discussão mais ampliada sobre o quanto as crianças podem aprender sobre a língua, a partir de relações significativas e de experiências criativas; v) as atividades propostas não relacionam à leitura e à escrita com os contextos discursivos das crianças; vi) a articulação de um trabalho como processo não se firma, pela falta de conhecimentos sobre as especificidades de cada etapa educacional; vii) não há espaço no contexto escolar para os professores dialogarem entre eles e apontarem soluções coletivas, nem tampouco produzir conhecimentos sobre suas demandas de trabalho; viii) na estrutura constituída, poucas são as possibilidades dos/as professores/as olharem para as especificidades do processo educativo das crianças.
Como as orientações são pouco consistentes, dão margem a um processo marcado por oscilações dos/as professores/as no qual, ora tendem a realizar práticas procedimentais, repletas de atividades mecânicas, repetitivas, de treino e preparatórias, ora tendem a práticas que partem do diálogo com as crianças e seus saberes.
Na pesquisa, a autora da tese definiu este fenômeno de falsete pedagógico, buscando uma analogia com o conceito no campo da música. No contexto musical, o falsete - tom falso - é um recurso utilizado para se alcançar registros acústicos fora da natureza vocal de quem está emitindo um som, em prol de um resultado sonoro necessário pela especificidade da obra, da estética musical ou da forma de sua execução, de modo a não comprometer o resultado esperado. Caracteriza-se por um modo controlado para alcançar sons mais agudos ou graves, em relação ao registro vocal natural (a tessitura). Esta técnica é utilizada de forma consciente por cantores e cantoras, que dela lançam mão na execução musical, a partir do conhecimento que têm do contexto da obra e, por isso, colocam e retiram sua voz falseteada, conforme a necessidade.
A partir da análise dos discursos docentes realizada, a pesquisadora observa que os professores Nina, Mateus e Alice realizavam práticas pedagógicas falseteadas, a partir dos tensionamentos que trouxeram ao apontarem as consonâncias e dissonâncias contidas nas orientações curriculares. Um conflito era travado entre o discurso oficial e aquele que se afasta dos aspectos e graus de autoritarismo. Para Bakhtin (2014, p. 142), nos discursos que se colocam no nível ideológico de formação do homem, com a intenção de definir atitudes e comportamentos, como é o caso do discurso das Orientações Curriculares, a palavra pode surgir de duas formas: como autoritária (dogmática, monossêmica, sem possibilidade de réplica) ou como palavra interiormente persuasiva (dialógica, contemporânea, inacabada, aberta, polissêmica). O contexto enunciativo é definidor destas duas formas.
O falsete pedagógico caracteriza-se, então, pelos diversos modos pelos quais as professoras e o professor escapavam dos tensionamentos postos por este conflito e como faziam fluir suas próprias vozes no cotidiano com as crianças, ora como palavra autoritária, ora como palavra interiormente persuasiva. O falsete é a voz usada como resposta à palavra autoritária. A voz falseteada esconde a palavra própria - palavra persuasiva- que é a palavra que nos interessa conhecer, pois dela emerge o discurso sobre o que realmente acontece na prática.
Nina tem sua voz falseteada pedagogicamente, ao assumir uma prática preparatória na EI pela necessidade de se manter segura para realizar o trabalho, diante de suas incertezas pedagógicas e da sua fundamentação do caminho escolhido para conduzir o processo de ensino e aprendizagem com a leitura e a escrita. Assim, acatava sem questionar as incoerências das Orientações Curriculares, o que a impedia de perceber a potencialidade que a relação dela com as crianças poderia trazer à sua prática. Mantém-se permanentemente com sua voz docente falseteada pela palavra autoritária que “exige de nós o reconhecimento e a assimilação, ela se impõe a nós independente do grau de sua persuasão interior no que nos diz respeito; nós já a encontramos unida à autoridade” (Bakhtin, 2014, p. 143).
Alice, no 1º ano do EF, busca escapar das tensões, tateando propostas que acolham as crianças em suas questões sobre a leitura e a escrita. Tenta encontrar uma zona de transformações dos sentidos da prática alfabetizadora, mas, na impossibilidade de encontrar caminhos autorais, segue o fluxo das propostas já conhecidas com a consciência de realizar um trabalho que rompe com as experiências infantis. Esta dinâmica leva a professora a não conseguir ouvir o que as crianças trazem cotidianamente para dentro da escola, sendo vencida pelo discurso autoritário e inclinando-se a cumprir o convencionado.
Por sua vez, Mateus assume uma prática docente que o aproxima da palavra interiormente persuasiva.
Esta palavra é determinante para o processo de transformação ideológica da consciência individual: para uma vida ideológica independente, a consciência desperta um mundo onde as palavras de outrem a rodeiam e onde logo de início ela não se destaca; a distinção entre nossas palavras e as do outro, entre os nossos pensamentos e os dos outros se realiza relativamente tarde. Quando começa o trabalho do pensamento independente experimental e seletivo, antes de tudo ocorre uma separação da palavra persuasiva da palavra autoritária imposta e da das palavras indiferentes que não nos atinge (Bakhtin, 2014, p. 145).
O professor escapa ao tensionamento, autorizando-se a questionar e não se permitindo a reprodução de concepções que não dialogam com as especificidades do contexto da EI. Sustenta-se em processos que assegurem experiências de leitura e escrita que tenham relação com as necessidades reais das crianças, processo engendrado por seu investimento pessoal, na ampliação de conhecimentos sobre o seu fazer. Ele compreende que há orientações a serem seguidas, mas que estas não podem isolar os sujeitos, conduzindo-os a uma voz monofônica.
Para Bakhtin (2014), o processo de formação ideológica é caracterizado pela divergência entre a palavra autoritária que tem a necessidade da palavra interiormente persuasiva para tornar-se consciente, assim como, a palavra interiormente persuasiva tem a necessidade de autoridade, pois, por sua consciência, não tem como submeter-se a qualquer tipo de discurso autoritário: “O conflito e as inter-relações dialógicas destas duas categorias da palavra determinam frequentemente a história da consciência ideológica individual” (Bakhtin, 2014, p. 143).
O falsete pedagógico torna-se um modo de sobrevivência dentro de um sistema que possui sua própria consciência ideológica. No contexto musical, um cantor não tem condições de executar uma obra inteira em modo falseteado, pela própria especificidade fisiológica de sua tessitura, o que lhe causaria danos vocais em médio e a longo prazo. No contexto educacional isto não é diferente. A utilização permanente de falsetes pedagógicos parece traduzir que as/os professoras/es não têm reconhecimento das características de sua própria voz docente, da sua prática, de seus conhecimentos, de seu processo autoral. Em suma, de sua identidade.
Em uma realidade atravessada por propostas políticas com diversos interesses e impactos, torna-se praticamente impossível a não utilização de falsetes. Entretanto, a consciência sobre quais falsetes são usados e os motivos de sua utilização, conduz o/a professor/a a se reconhecer, a assumir os princípios que orientam suas convicções e a não neutralidade de sua prática docente em relação às especificidades do trabalho a ser realizado. Diferentemente do contexto musical, em que o falsete é a voz falsa que possibilita ao cantor fazer parte do todo e, quando o realiza bem, é considerado um/a bom/boa cantor/a, no falsete pedagógico, as vozes falseteadas mostram, por trás dela, a verdadeira voz docente. Esta dimensão torna possível a compreensão dos princípios que sustentam as práticas e o porquê de cada ação no processo de ensino e aprendizagem das crianças.
Considerações finais
Ao longo da pesquisa, a temática da relação fonema e grafema surgiu no discurso dos professores, tanto da Educação Infantil quanto do Ensino Fundamental, como o fator mais importante para o desenvolvimento da leitura e da escrita. Principalmente no 1º ano do Ensino Fundamental, no qual há uma cobrança mais intensa ante a expectativa de que as crianças cheguem plenamente alfabetizadas ao final do ano. Essas cobranças acabam por resvalar na Educação Infantil, que se vê pressionada a antecipar o processo de alfabetização das crianças, a partir da ideia de que a alfabetização se dará pelo desenvolvimento da consciência fonológica da criança o quanto antes.
O discurso dos professores sobre suas práticas trouxe à tona a importância de fortalecer a concepção discursiva para o trabalho com a leitura e a escrita, desde a Educação Infantil. A perspectiva discursiva possibilita colocar em cena tanto as práticas docentes, quanto às práticas discentes, em processos de alteridade na construção de conhecimentos, “o que significa que o singular das interações que são sempre únicas torna-se plural e que o imponderável de cada enunciação pode ser analisado, embora e justamente porque seja sempre imprevisível” (Andrade, 2017, p. 524). Nesse sentido, o diálogo entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental torna-se imprescindível, a fim de que o processo transitório seja caracterizado como tempo e espaço da elaboração de sentidos pelos processos alteritários.
A experiência do encontro expressa a dimensão da perspectiva discursiva em seu sentido dinâmico. A defesa por essa perspectiva para o trabalho com a leitura e a escrita da Educação Infantil ao Ensino Fundamental não diz respeito a indicação de procedimentos sobre leitura a escrita, mas sim à apropriação por parte do/a professor/a de uma escuta atenta e interessada e de uma forma de responder às crianças que as instigue a pensar e a fazer outras perguntas. É possível afirmar que a perspectiva discursiva leva o/a professor/a a trazer para dentro o cotidiano escolar a organização de um trabalho pedagógico em prol das crianças. A prática diária torna-se, portanto, um aprendizado do olhar e da escuta, do exercício da resposta responsável ao outro, da presença atenta e cuidadosa. Em muitos casos, trata-se de fazer aquilo que ele já faz com uma reflexão sobre a intencionalidade pedagógica do fazer.
O desafio posto diante de nós tem relação com a promoção de propostas educacionais, em que não seja necessário o uso de tantos falsetes pedagógicos para que os/as professores/as consigam encaminhar suas práticas. Nossa defesa pela perspectiva discursiva para o trabalho com a leitura e a escrita vai de encontro aos contextos silenciadores, onde os falsetes são utilizados. Ela nos leva a ampliar (e amplificar) as vozes docentes, com a finalidade de mobilizar novas discussões e ações práticas que resistam a um projeto de desmonte do fazer docente e garanta práticas docentes autorais.
Para Bakhtin (2003, p. 272), “todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau”, nesse processo de falar/ouvir somos alterados em nossas constituições pelo outro falante/ouvinte que confere uma visão de mim, fora de meu alcance, de seu ponto de vista ao mesmo tempo em que tem uma visão sua, por mim, de meu ponto de vista. A experiência do encontro - com o outro, com a palavra do outro, como o texto do outro, com os gestos do outro - expressa a dimensão da perspectiva discursiva em seu sentido dinâmico. É no e pelo encontro com o discurso do outro que os espaços de elaboração de sentidos são constituídos e o processo alteritário efetiva-se, ao passo em que se compreende as esferas de responsabilidade e responsividade implicadas nessa dinâmica. O/a professor/a imerso/a em um contexto de reflexão sobre sua prática e problematização do seu fazer pode colocar-se no movimento de encontro, de escutas e respostas com as crianças.
Consideramos que a perspectiva discursiva se constitui em processos de interação entre mim e o outro, diz respeito à forma como os sujeitos se colocam no espaço de aprendizagem, modificando-se e modificando seus modos de ensinar/aprender. Smolka (2017, p. 35) chama a atenção para o fato de que a perspectiva discursiva “envolve o conhecimento, a sensibilidade, a compreensão da complexidade e das incontáveis possibilidades de articulações feitas pelas crianças”. Ela ressalta, como foco de tal perspectiva, os modos de proceder do professor, em relação à forma como ele significa os sentidos produzidos pelas crianças e à forma como elas produzem conhecimento, ao enfatizar que a perspectiva discursiva não abole os aspectos linguísticos-cognitivos, mas sim, os redimensiona lançando sobre eles um outro ponto de vista, o da relação.
O trabalho com a leitura e a escrita passa a ter como possibilidade a organização da língua a partir das necessidades de um ato enunciativo, que abarca as necessidades da organização do pensamento, sentimentos e gestos; da dimensão sonora da língua em seu funcionamento, da dinâmica de compreensão das mais variadas possibilidades de perguntar, responder, perceber, falar, contar, narrar, inferir, constituindo novas formas de ensinar e aprender. As práticas docentes com a leitura e a escrita trazem em si a dimensão de uma organização prática que considere prever quais propostas podem levar as crianças a pensar sobre a língua, a problematizá-la para que, a partir dessa problematização, as dúvidas sejam levantadas por elas e um caminho em busca de respostas seja construído na interação criança-professor/a-professor/a-criança.
É imprescindível que os/as professores/as tenham a possibilidade de organizar suas práticas a partir de suas realidades, a fim de propor espaços de interações que tenham relação com a oralidade, a leitura, a escrita e a análise linguística que circulam em seus contextos. Assim, podem impulsionar outras formas de falar, ler, escrever e compreender a língua. A perspectiva dos/as professores/as encaminharem suas práticas de forma discursiva é um processo que implica em investimento na formação e em tempo de reflexão e de trocas coletivas, além de terem orientações curriculares que assumam a perspectiva discursiva de modo a dar condições dos/as professores/as encontrarem suas vozes reais e seus discursos sobre o que fazem, como fazem e para que fazem.
Tal qual na epígrafe deste texto, as vozes percebidas nos falsetes pedagógicos nos fizeram ver não apenas as notas dissonantes e consonantes dos/as professores/as em relação às orientações curriculares da SME-Rio, mas as contradições presentes no próprio campo da alfabetização brasileira que se materializam em propostas curriculares pouco consistentes e que patinam em diferentes concepções de oralidade, leitura e escrita sem assumir uma posição.
Referências
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Disponibilidade de dados
Não se aplica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
15 Out 2023 -
Aceito
07 Maio 2024