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Heterogênero: "Uma categoria útil de análise"

Heterogender: "An useful category of analysis"

Resumos

O uso da categoria gênero, de forma acrítica, contribui para a repetição de uma divisão binária "naturalizada" dos sexos. Fundada na procriação, a heterossexualidade aparece como uma instituição política que define papéis e status no social, criando corpos atrelados aos gêneros feminino e masculino. Constroem-se assim identidades fictícias em torno do sexo biológico, erigindo a sexualidade em essência do ser. A utilização da categoria "heterogênero" aponta, em sua enunciação, para esta construção, dando lugar a perspectivas múltiplas de análise da construção do social.

heterogênero; naturalização; sexualidade; identidade


The uncritical use of the gender category contributes to the repetition of a binary and naturalized division of the sexes. Grounded in procreation, heterosexuality appears as a political institution that defines social roles and status, creating bodies attached to masculine and feminine gender. This is how fictive identities are built around biological sex, forging sexuality as the essence of being. The very employing of the category of "heterogender" points toward this construction and opens the space for manifold perspectives to analyze the construction of the social.

heterogender; naturalization; sexuality; identity


Heterogênero: "Uma categoria útil de análise"

Heterogender: "An useful category of analysis"

Tânia Navarro Swain

Dra. Université de Paris III. Editora da revista feminista Labrys, études féministes/estudos feministas. Universidade de Brasília - UNB

RESUMO

O uso da categoria gênero, de forma acrítica, contribui para a repetição de uma divisão binária "naturalizada" dos sexos. Fundada na procriação, a heterossexualidade aparece como uma instituição política que define papéis e status no social, criando corpos atrelados aos gêneros feminino e masculino. Constroem-se assim identidades fictícias em torno do sexo biológico, erigindo a sexualidade em essência do ser. A utilização da categoria "heterogênero" aponta, em sua enunciação, para esta construção, dando lugar a perspectivas múltiplas de análise da construção do social.

Palavras-chave: heterogênero; naturalização; sexualidade; identidade.

ABSTRACT

The uncritical use of the gender category contributes to the repetition of a binary and naturalized division of the sexes. Grounded in procreation, heterosexuality appears as a political institution that defines social roles and status, creating bodies attached to masculine and feminine gender. This is how fictive identities are built around biological sex, forging sexuality as the essence of being. The very employing of the category of "heterogender" points toward this construction and opens the space for manifold perspectives to analyze the construction of the social.

Keywords: heterogender; naturalization; sexuality; identity.

No quadro epistemológico da atualidade, questionar, ampliar os horizontes de um mundo cercado por "certezas" revela-se mais importante que buscar respostas; inverter as evidências, como propunha Foucault (1971, p. 53), sacudir as verdades que nos definem e nos limitam mostra-se um caminho para o desvelamento de uma realidade múltipla.

Os problemas que aqui nos interessam referem-se à vida, interpelando-nos com seus contornos plurais, construídos a cada instante; nesta ótica, os paradigmas, os estereótipos chocam-se constantemente ao dinamismo e a nuances de um cotidiano feito em matizes diversos. As questões levantadas por esta realidade que nos interpela exigem um olhar voltado para o novo, o criativo, o contraditório, o paradoxal, ali mesmo onde pensava-se haver encontrado um caminho.

Neste sentido, a categoria "identidade" concentra parte do debate acadêmico feminista de forma transdisciplinar, ligado aos problemas de ordem política, étnica e sexual. Onde estão as "certezas" de antigamente, que definiam o verdadeiro e o falso, o real e o ilusório, que designavam as raças e os sexos, "sem sombra de dúvida"? Onde se encontra a evidência da identidade sexual, do sexo biológico demarcador do feminino e do masculino como divisão maior do social?

Num passado não muito longínquo, as mulheres eram representadas como menores de idade por toda sua vida e a frase tantas vezes repetida: "Os adultos, as mulheres e as crianças" exprime uma realidade construída, mas instituída e instituidora de práticas sociais que resultam na inferiorização das mulheres na sociedade. Nesta asserção, o homem é o adulto; a criança do sexo masculino, o adulto em germinação. A mulher e as meninas ocupam um lugar indefinido, entre o adulto e a criança, espaço de ambiguidade. Homem, mulher, criança, divisões bem estabelecidas, representações sociais que criam o verdadeiro e o "natural" na ordem do discurso, onde a família é o eixo em torno do qual giram as pesadas engrenagens das relações sociais. Classificação tão "evidente" do humano, representações tão ancoradas no senso comum, que é difícil visualizar sua construção, sua historicidade. Ou questionar suas definições. Como sublinha Denise Jodelet (1989, p. 35),

Estas representações formam sistema e dão lugar à "teorias" espontâneas, versões da realidade encarnadas por imagens ou condensadas por palavras, umas e outras carregadas de significação [...] estas definições partilhadas pelos membros de um mesmo grupo constroem uma visão consensual da realidade para este grupo.

O desafio hoje é auscultar as zonas obscuras que acompanham os nódulos "naturais" de inteligibilidade do humano, onde aparecem, com força e visibilidade, grupos e indivíduos que reivindicam um lugar fora do esquema binário. Quem são elas/eles, que vem quebrar meu Eu, o Nós, esta identidade tão laboriosamente estabelecida, defendida, cujo custo não ousamos avaliar? Quem são elas/eles, que pronome devo utilizar para nomeá-los, para ancorá-los no meu universo do familiar e do quotidiano?

A difusão de imagens andróginas na mídia, publicidade, cinema é extremamente comum. Seres imaginários ou vizinhos do andar de cima, estes seres que vem perturbar os esquemas delimitados e tradicionais das identidades sexuais? Mulheres ou Homens? Boa pergunta. Quantas vezes não a fizemos olhando jovens e menos jovens que andam de mãos dadas ou abraçados? Meu olhar seria condescendente, acusador, cúmplice?

Seriam eles os Queers? Aqueles classificados como bizarros? Que relação teriam e que problemas colocariam ao feminismo? Pode-se hoje afirmar uma identidade nuclear ou essencial? Gostaria de trabalhar esta questão sob dois ângulos: o epistemológico e o político, separados unicamente por uma preocupação de clareza, pois estamos conscientes da imbricação destas duas dimensões.

Já anunciei algumas categorias como realidade, representações sociais, identidade. Outras farão parte de meu discurso, tais como imaginário, gênero, sexualidade, homossexualidade, heterossexualidade.

Mas inicialmente, alguns marcos teóricos: entendemos aqui o imaginário tal como proposto por Castoriadis (1982) ou Baczko (1984), como uma função instituinte da sociedade. Ou seja, a sociedade que cria os sentidos circulantes enquanto verdades, normas, valores, regras de comportamento, que instaura paradigmas e modelos, que decide o que é a realidade, que define a ordem e a desordem, o natural e a aberração, o normal e o patológico, a significação e o non-sens.

Os sistemas de interpretação constituem, de fato, as redes de construção do mundo, pois as coisas tornam-se TAIS coisas em quadros precisos de interpretação. Assim, é a instituição da sociedade, de suas relações, de suas significações em limites precisos de interpretação que determina o que é real e ilusório, o que é natural ou contra a natureza, o que é dotado de sentido ou se encontra em um lugar de não significação. Castoriadis (1986, p. 226-227) afirma que:

[...] toda sociedade é uma construção, uma constituição, uma criação de um mundo, de seu próprio mundo. Sua própria identidade não é nada mais que este "sistema de interpretação", este mundo que ela cria. [...] E é por isso [...] que ela percebe como um perigo mortal todo ataque contra este sistema de interpretação; ela o percebe como um ataque contra sua identidade, contra ela mesma.

Em uma formação social, assim, nada pode ser verdade absoluta, legítima, universal, nada é um dado natural e inquestionável e a ciência, crítica de seus próprios instrumentos conceituais, o afirma hoje em todos os domínios. Entretanto, representações e imagens circulam com valor de verdade e de evidência, constituindo verdadeiros "regimes de verdade", como sublinha Foucault, em diversos textos.

A heteronomia das sociedades está diante de nossos olhos, mas que olhar pode enxergar? Os fantasmas do déjà là, da razão que imprime em sua lógica seus próprios limites estão a nos assombrar e mesmo na crítica radical feminista quanto à construção social dos gêneros encontramos a presença de poderosos quadros de interpretação, já cristalizados em formatos definidos.

Estou falando da interpretação binária do mundo, não somente em relação aos sexos, homem/mulher (na ordem), mas igualmente quanto à visão dualista do que compõe a inteligibilidade da vida: o bem e o mal, o bom e o mau, o real e o imaginário, o puro e o impuro, o claro e o obscuro, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o espírito e a matéria, a vida e a morte. As filigranas, as nuances, que fazem o maravilhoso no desabrochar da vida são assim reduzidas ao silêncio e à monotonia de mais uma conexão binária: eu e o outro. A antropologia, mesmo feminista, não tem cessado de afirmar o primado do masculino sobre o feminino, generalizando na construção do humano uma relação social, que por si só já supõe a multiplicidade. Onde fica a desnaturalização das construções sociais, pedra fundamental das críticas feministas contemporâneas?

Os quadros de interpretação constitutivos das condições de produção de nosso discurso escondem-se a nossos olhos, as significações arbitrárias que alimentam nossos valores e tecem nossos caminhos desaparecem diante do perfil imutável da Verdade, do natural. A autoconstituição da sociedade se aninha no seio da evidência, do inquestionável.

Gostaria, entretanto, de por em questão estas evidências e colocar como problema a heterossexualidade, a família, a homossexualidade, a identidade e porque não, a própria sexualidade. Fazendo isto, não tenho a pretensão de um discurso inaugural, pois estas categorias foram e são ainda analisadas e discutidas por muitas autoras, desde a denúncia da heterossexualidade compulsória, até a Queer Theory1 1 Não pretendo aqui entrar em considerações sobre as teorizações queer, de modo especial. Uma busca na internet sob esta denominação traz incontáveis resultados e explanações. . Ao contrário, quero invocar seus argumentos para dar apoio a meu discurso.

Identidade e sexualidade

Comecemos pelo fim: identidade e sexualidade.

Não é preciso mais provar, atualmente, as diversas formas da sexualidade no espaço e no tempo, isto é, que o conceito e a prática da sexualidade manifestam-se diferentemente, seja ela centrada sobre o ato sexual, a procriação, o prazer, a sensualidade, o erotismo, o sado-masoquismo, etc. A sexualidade exercida igualmente como um dos atos do humano ou O ato humano, que faz parte do ser ou É o próprio ser, de acordo com o sistema de representações que ordena a configuração social analisada.

No Ocidente, há muitos séculos, a sexualidade foi apanágio do masculino enquanto ato e do feminino enquanto lócus: a mulher era o sexo - substantivo - sobre o qual se estendia a sexualidade masculina - o verbo, a ação. Mas estamos em pleno domínio do binário. E as práticas sexuais que não pertencem à ordem da sexualidade dual? Desvio, perversão, desregramento: estas práticas vão ser categorizadas para serem assim melhor excluídas da norma, do "normal". A sexualidade vai constituir, aos poucos, o lócus de domesticação e de controle social, lócus também de fixação do afeto e emoção, cadinho de todas as significações, chave de uma ordem que se alega, divina, racional, biológica.

As psicanálises reafirmam esta ordem, na medida em que a sexualidade torna-se a verdade a ser, dita, explicada, narrada, analisada, entre mãe devoradora e pai desejado; falar do sexo, finalmente, é falar de Ego, de super-Ego, de Id, de Mim, e quem sabe, de Nós? Quem sou eu, que falo de um sexo, a partir de um sexo, de que sexualidade somos o produto? E que sexualidade produzimos, em nossas respostas às interpelações do social?

Foucault denomina "dispositivo da sexualidade" este conjunto de investimentos sociais que a constroem como centro do discurso contemporâneo, centro igualmente de nossas vidas e de nossos pensamentos. Segundo este autor, é:

um conjunto decididamente heterogêneo que compreende discursos, instituições, organizações arquiteturais, regulamentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo (FOUCAULT, 1988, p. 244).

Mesmo negando-a, coloco-me face à sexualidade, onipresente, deusa à qual todas as oferendas são devidas, eixo de exercício do poder, lugar de pro-dução de verdade sobre os corpos e sobre as construções de si em identidades fixas (FOUCAULT, 1988, p. 236). Mas de que direito a sexualidade erige-se em rainha, centro do ser, fonte de todas as inquietações, de todas as preocupações, senão devido à importância que lhe é dada? Senão pela produção da verdade sobre o corpo e sobre o exercício correto da sexualidade?

Teresa de Lauretis (1987, p. 12) retoma esta ideia e indica as "tecnologias", os procedimentos e técnicas sociais que produzem a sexualidade tal como a vivemos, em um mundo de representações urdido pelos discursos, imagens, saberes, críticas, práticas cotidianas, senso comum, artes, medicina, legislação.

Como esquecer os investimentos econômicos e midiáticos em torno do sexo, das imagens que nos assaltam a todo o momento, das mensagens explícitas e implícitas que ativam todo um campo conotativo em torno da sexualidade, da juventude, beleza, prazer e emoção? O indivíduo assim interpelado aceita e incorpora a imagem que lhe é oferecida e as opções que lhe são reservadas como sua própria representação; torna-se assim a escarnação da representação social, autor-representação de uma identidade que lhe é conferida. Baczko observa a produção de imagens e representações no quadro de um imaginário específico a uma certa coletividade, que:

[...] designa sua identidade elaborando uma representação de si; marca a distribuição dos papéis e posições sociais; exprime e impõe certas crenças comuns implantando principalmente modelos formadores [...] (BACZKO, 1984, p. 32).

Nomeação, designação: quando se designa, cria-se uma identidade material em torno da sexualidade e em seguida ela é nomeada: heterossexual, gay, lesbiana, travesti, transsexual, etc. Mas a norma, o paradigma de referência é sempre a heterossexualidade. E cada tipo de sexualidade, assim narrada e analisada tornar-se-á um todo identitário, dotado de uma coesão intrínseca, essencial, porque não "natural"? De uma natureza boa ou má, segundo o caso. Teresa de Lauretis, neste sentido, indica a representação como sendo o local da construção do gênero sexuado:

O gênero é a representação da qual não se pode negar as implicações reais e concretas no social e o subjetivo compondo a vida material dos indivíduos. Ao contrário. A representação de gênero é sua construção e em um certo sentido pode-se dizer que a cultura e a arte no Ocidente são a marca da história desta construção (DE LAURETIS, 1987, p. 3).

Um nome, um perfil, uma classificação, uma tipologia nos é dada? Dizem as/os homossexuais. Nós as adotamos e deste lugar de fala iremos reivindicar a existência social. Em que medida, entretanto, esta adoção não irá reproduzir o esquema binário do casal, da monossexualidade, da moral corrente, das relações de poder e de dominação?

Porque deveríamos aceitar que nossa identidade seja aquela ligada à sexualidade? Em que medida o "sexual" é pertinente para classificar as relações entre as pessoas? No assujeitamento à sexualidade podemos identificar o "dispositivo" agindo, ao qual se refere Foucault (1976, p. 97):

Muito mais que um mecanismo negativo de exclusão e rejeição, trata-se de criar uma rede sutil de discursos, de saberes, de prazeres, de poderes; [...] de processos que disseminam (o sexo) na superfície das coisas e dos corpos, que o excitam, manifestam e fazem-no falar, implantando-o no real e conjurando-o a dizer a verdade.

As evidências ligadas à sexualidade abrigam uma pluralidade de sentidos, cuja sujeição ao sexee/gender system (DE LAURETIS, 1987, p. 5) tende a reduzir a polissemia. Apelando à intensificação da atividade sexual, chega-se à proliferação de formas de sexualidade, em seguida trazidas à ordem de um imaginário normativo, que reduz sua força de transformação de um sexual binário.

Neste sentido, as relações homossexuais perdem seu poder de inserir o novo, de quebrar as normas das relações estabelecidas no quadro do gênero binário, quando se instalam no "casal" partilhando os valores morais dominantes, assim como suas ambiguidades. Mas a evidência da noção de "casal" se estilhaça logo que começamos a interrogar com maior acuidade sua constituição: com efeito, o que é um casal? Duas pessoas que se amam? Que vivem juntas? Que dormem na mesma cama? Sua formação está baseada em uma relação sexual? Ou quando há uma emoção partilhada? Que gênero de emoção? Física? Todas as opções? Uma só dentre elas? Quantas duplas heterossexuais ou homossexuais não dormem mais juntos, não "fazem mais amor" e são vistos/as sempre enquanto um casal? E todas estas questões não se colocam no vórtice de um imaginário social que se constrói no momento de sua enunciação?Anão evidência da noção de "casal" se esconde no esforço mesmo de sua definição.

E os Queers? Queer, em um primeiro momento foi o nome dado aos homossexuais, os "bizarros"; em seguida, um novo fenômeno se introduz no discurso e a prática correspondente se revela, tomando para si esta denominação. Este seria um movimento para ultrapassar os limites, quebrar as barreiras impostas pela domesticação de sexualidades diversas, seria finalmente, em sua ambiguidade, a resposta à emoção marcada incontornavelmente pelo binário? As práticas, entretanto, não estão mostrando uma decomposição dos gêneros, na medida em que, por exemplo, transexuais transgêneros reivindicam finalmente um papel definido no sistema sexo/gênero, seja de mulher, seja de homem. O sistema binário permanece. No caso de homossexuais, mulheres e homens, a fixação de uma identidade ligada a práticas sexuais não desfaz nem a fixidez identitária, nem o sexo/sexualidade como marco de pertencimento social. Casamento gay, maternidade ou paternidade gay também não quebram as normas da heterossexualidade, cuja normalidade se constrói sobre a procriação. De fato, parece-me que a pretensão, nestes casos, em que não se desfazem os eixos de identidade (seja ela qual for) e da sexualidade como núcleo do ser, é uma inserção nos parâmetros de gênero.

Heterogênero e heterossexualidade

Mas qual o desafio, em relação ao feminismo? De fato, o quadro conceitual feminista vai além de uma certa prática sexual ambígua: a heterossexualidade compulsória é posta em questão como uma instituição política, desmascarando seu caráter "natural". A heterossexualidade compulsória já vinha sido denunciada pelas feministas desde os anos 70, entre as quais Gayle rubin (1975), Adrienne rich (1981) e Wittig (1980), entre outras; mas, na prática, o homossexualismo reproduzia em parte o binarismo social.

Chrys INGRAHAM enfatiza a importância da imaginação heterossexual particularmente presente na estruturação da noção de gênero, binária, que bloqueia assim toda análise crítica da heterossexualidade enquanto instituição organizada e culturalmente construída (INGRAHAM, 1996, p. 169).

Desta forma, os estudos sobre o gênero durante longo tempo viram a heterossexualidade como uma realidade dada, natural, sem questionamento, ligada ao sexo biológico, enquanto que o gênero, o papel social era concebido como construto social e organização primária das relações humanas. Era preciso, entretanto, levar o raciocínio às suas últimas consequências, a seus últimos bastiões, ou seja, pensar igualmente o sexo biológico como fazendo parte de uma representação social. Para isto, INGRAHAM propõe a noção de heterogênero. em sua enunciação, esta categoria desvela o binário naturalizado, contido nos estudos e na aplicação acrítica de "gênero" em todos os tempos e espaços humanos.

Assim, e se tentássemos aprofundar o que de fato dá à heterossexualidade o selo da normalidade? O sexo biológico determina verdadeiramente uma "relação natural"?

Elisabeth Daumer (1992, p. 96) tenta responder esta questão com uma outra interrogação: a heterossexualidade é uma relação de penetração? E eu acrescento: que tipo de penetração? Se não há penetração vaginal, mesmo entre homem e mulher, sua relação é ainda uma relação heterossexual? Se há penetração em uma relação entre mulheres, seria esta heterossexual? As palavras escondem os significados múltiplos que contém e sua aplicação unívoca leva a generalizações incontornáveis.

Outras questões me intrigam: a heterossexualidade tem por fim a procriação é centrada na perspectiva reprodutiva? Se não, porque o heterossexual seria "normal"? Caso afirmativo, um casal que não pode ter filhos seria heterossexual? E ao mesmo tempo "anormal"?

Com efeito, o "natural" do sexo biológico reside, sobretudo na possibilidade de procriação e esta perspectiva está na ordem de valores, da moral, logo, construída social e historicamente, em uma rede de sentidos que faz circular as normas datadas como sendo verdades universais, "naturais". Instinto, diriam alguns?

O instinto evocado em matéria de procriação não é senão um fator de exclusão para os que não o percebem assim: por exemplo, a mulher que não é mãe, nem quer sê-lo, não é uma "verdadeira" mulher. É uma forma de se fundamentar no biológico, em uma pretensa "natureza" dos seres, que os estudos feministas vêm desconstruindo. Judith Butler afirmou em uma entrevista, que não sabia que era queer, até ser alertada para isto e asseverou que antes de ser queer ou outra coisa, era feminista.

O estado civil naturalmente simplifica as coisas no que se refere à noção de casal, mas como classificá-los quando, como no Canadá e certos países europeus, muitos direitos são concedidos aos casais do mesmo sexo?

A noção de heterogênero adotada por INGRAHAM leva-nos à equação: heterossexualidade/natural e gênero/cultural, ou seja, a prática da heterossexualidade ligada ao sexo biológico remete à construção social, da mesma forma que os papéis sociais do feminino e do masculino (INGRAHAM, 1996, p. 169). Evidentemente, a sexualidade foi contemplada nos estudos sobre o gênero, tendo em vista a divisão binária do humano a partir das construções baseadas sobre o sexo; este, porém, restava como o último reduto do "natural". A prática heterossexual subtende-se nestas análises em torno dos grandes esquemas de poder social: casamento, família, maternidade, contracepção, violência, abuso, prostituição, etc. Assim, para INGRAHAM, a noção de heterogênero é mais central que a de gênero apenas, pois esta lhe é subordinada.

O que a autora insiste em sublinhar é o fato que, apesar de sua extrema importância na análise das relações sociais, a categoria "gênero" elide a instituição da heterossexualidade e contribui, assim à manutenção da ordem que critica. Segundo esta autora, "[...] esta participação ao imaginário heterossexual não faz senão reproduzir as condições sociais que elas querem interromper" (INGRAHAM, 1996, p. 179).

Isto significa que a ordem hegemônica dos valores se rearticula na afirmação da atração "natural" entre dois opostos, à parte de toda produção social. Para de Lauretis, o sex gender system que orienta grande parte da produção que utiliza a categoria "gênero" apresenta uma oposição conceitual rígida e estrutural dos dois sexos biológicos; sublinha, entretanto, seu caráter de constructo sociocultural, aparelho semiótico e sistema de representação que conferem uma significação - identidade, valores, prestígio, status, etc. Assim, para esta autora, "[...] a construção do gênero é ao mesmo tempo o produto e o processo de sua representação" (DE LAURETIS, 1987, p. 5). Com efeito, a apreensão do sexo biológico não é necessariamente realizada da mesma maneira, na imensa pluralidade das formações sociais: assim, os hermafroditas, por exemplo, poderiam ser considerados como os seres existentes mais perfeitos. No imaginário social, o Um, neste caso, seria muito mais importante que o Dois, da relação binária entre os sexos.

Neste sentido, analisar o gênero na representação binária não é suficiente, pois o processo não está interrompido; enquanto que a diferença seria colocada entre mulher e homem no cultural e no biológico, o referente será inevitavelmente o masculino e a cadeia de representações continuará a se desenvolver. Certos feminismos se esfalfam assim em um imaginário social que muda as posições das cartas, mas mantém seu valor intrínseco. E os estudos de gênero continuam a reproduzir o binário, reinstituindo na história a recitação do masculino dominante.

No quadro teórico proposto, de um imaginário criando as relações sociais a partir de representações generizadas chega-se à mesma conclusão que Monique Wittig: a heterossexualidade se funda na ordem do político, na fundamentação do poder (WITTIG, 1992, p. 13). Com efeito, no sistema classificatório que marca as práticas e as identidades sexuais, existe uma imensa confusão entre zonas erógenas, órgãos de reprodução e determinação sexual.

Assim, se o binário não é senão uma construção social erigida em saber inquestionável, em fato biológico, é preciso saber qual é a significação atribuída ao conceito de "natural" aplicado ao sexo. Quais os efeitos de poder que fundamentam a naturalização do sexo biológico? Que força poderosa é tirada da domesticação do múltiplo, da repetição do Mesmo identitário?

A noção de heterogênero propõe, na ordem epistemológica, um questio-namento tão radical das relações sociais quanto o da teoria da construção dos gêneros, em sua época.

Isto nos leva a uma outra dimensão, de uma identidade migrante nas práticas sociais, ainda fixada em práticas sexuais, que é a afirmação da bissexualidade enquanto ambiguidade assumida. A mídia se apodera do tema, e Congressos de Bissexuais se multiplicam; na Internet os chats bissexuais se multiplicam, o mundo do espetáculo se descobre e se revela enquanto tal. Mas seria uma identidade, dizer-se bissexual? Não seria apenas ampliar o campo de relações sexuais, de maneira explícita?

Um princípio positivista identitário muito simples pode ser assim enunciado: "O que é, é; o que não é, não é". Esta fórmula ingênua e totalitária é ao mesmo tempo negada pela multiplicidade do real e reivindicada por todos os movimentos de identificação, sejam eles oriundos do binômio sexo/gênero ou dos queers, dos estranhos, que em torno deste, giram.

De um lado, como sublinha Jean Carabine (1996, p. 50) os indivíduos têm identidades múltiplas, não apenas determinadas pela personalidade ou pela sexualidade, mas que se manifestam pelas necessidades ou expressões diversas, segundo os contextos e os momentos. As performances sociais adequadas, segundo as normas, resultam em uma identidade que nos torna visíveis ou que nos permite ser reconhecidos por aqueles que chamo "os meus". Os movimentos homossexuais, adotando a diferença que lhes é imposta, constroem igualmente um núcleo identitário - ser lesbiana ou pederasta no sentido ontológico - e criam assim um novo espaço de exclusão: os bissexuais seriam assim os Queers dos homossexuais, da mesma maneira que estes últimos seriam os Queers dos heterossexuais. A bissexualidade seria esta nova forma de amor que "não ousa dizer seu nome"? (GOLDMAN, 1996, p. 175). E porque devo dizer "amor" quando falo de sexualidade senão para acentuar os valores culturais ligados ao sexo?

Elisabeth Daumer (1992, p. 90-95) criou um personagem bissexual, Cloé, que sonhava com pessoas sem gênero ou sem sexo, ou mesmo andróginas, apenas humanos com os quais ela não seria "mulher" ou "lésbica"; não imaginava uma instabilidade ou uma indecidabilidade, mas uma intimidade não normatizada em quadros ostensivos de identidade sexual, que se tornaria assim uma criação contínua. Uma liberação, enfim, dos limites identitários e da identidade ligada ao sexo. Esta autora considera, entretanto, os aspectos positivos e negativos desta bissexualidade Queer. Por um lado, o risco de uma falsa unidade na qual todos os Queers estariam contidos: o deslizamento para o sentido de uma comunidade, de uma identidade alternativa, de uma terceira opção que apagaria as diferenças e o poder que delas advém.

Por outro lado, a denominação - bissexual - pode ainda ser uma identificação no quadro binário de gênero, pois aí permanece a noção que divide a pessoa, homo ou heterossexual, segundo as polaridades do momento. É uma mudança de identidade sem efeito transformador na medida em que os papéis de gênero podem se reproduzir em uma relação homossexual. Enquanto a bissexualidade será colocada como escolha entre dois polos baseados sobre o sexo biológico e o gênero cultural, seu potencial subversivo, no âmbito epistemológico ou moral será nulo.

No que diz respeito à homossexualidade, esta escolha aparece como uma expressão oportunista das vantagens de ambos. De forma global, a bissexualidade tende a obscurecer a opressão das mulheres demonstrada pela categoria do gênero e de tornar ainda mais invisível o mundo gay. Aliás, a apropriação da palavra gay para indicar os homens homossexuais é também um sinal de uma divisão generizada e talvez valorativa. A palavra gay desloca os termos pejorativos usados para designar a pederastia, enquanto que de "lésbica" emanam conotações negativas.

Mas tendo em vista que a ambiguidade e o paradoxo fazem parte integrante do mundo, a sexualidade Queer, seja ela qual for, por um lado acentua a descontinuidade entre os atos sexuais e as escolhas afetivas, mas por outro, reafirma a política de identidade, como sublinha Daumer, no artigo mencionado. E esta ambiguidade mesma contribui a aprofundar a percepção das diferenças, culturais, sexuais, generizadas, abrindo o caminho à multiplicidade (GOLDMAN, 1996, p. 176). A sexualidade, enquanto verdade intrínseca do ser, fica assim desestabilizada para realçar as escolhas pessoais da experiência no sentido apontado por de Lauretis (1987, p. 18), isto é, "[...] o conjunto de efeitos de significação, de hábitos, de disposições, de associações e de percepções que resultam da interação semiótica de si e do mundo exterior".

Finalmente, qual a significação dada a esta palavra: Queer? Quais são as representações que a compõem?

Queer, no sentido aqui proposto não é somente uma sexualidade alternativa, mas um caminho para exprimir os diferentes aspectos do humano, um espaço também, para a criação e a manutenção de uma polimorfia discursiva que desafia e interroga a heterossexualidade e a própria sexualidade como essência do ser.

Como a compreendo, a queerness desafia igualmente a noção de identidade, nega o essencialismo generizado ou homossexual, na medida em que percebe a performatividade constitutiva das relações de gênero. De fato, como afirma Butler (1990), só existem gêneros em práticas de gênero e assim um corpo qualquer pode abrigar representações múltiplas. Desta forma, seguindo seu raciocino, são finalmente os papéis de gênero que instituem a noção de sexo e a naturalização do binário. Se organiza na performance de identidades plurais, que se constroem a cada dia. Desta forma não se fala mais em identidades, mas em processos de subjetivação, uma construção em permanência, um processo sem margens e sem limites (GOLDMAN, 1996, p. 173). Neste sentido, a identidade não é o sexo, não é a sexualidade, eu não sou um ser generizado ou desviante da norma, EU SOU EU, em construção contínua e nesta, a sexualidade não tem um papel essencial.

No mundo das representações sociais, como mudar a imagem do corpo, a imagem do outro, referente de minha própria imagem, como quebrar a norma que cristaliza o comportamento? Como iniciar um contraimaginário que abre os horizontes das relações humanas, além dos papéis pré-estabelecidos, do poder maciço que investe as polarizações de gênero, como criar o novo nas redes de sentido atravessadas de tradições, de marcas, de escansões que acompanham nossas vidas?

Uma percepção do corpo como um todo de sensibilidade e de sensualidade, uma desestabilização da sexualidade centrada nos órgãos genitais, uma abertura para a emoção que atravessa os olhares, seria uma nova erótica social? Subjetivação, sem limites e sem definições. A âncora está partida, o apelo do largo nos traz o gosto da descoberta.

O princípio é: no universo queer, todo o mundo não é queer da mesma maneira (DAUMER, 1992, p. 100) Somos sempre o queer de alguém, a diferença sem fundo. O Universo Queer é a mise en abîme da diferença, desafio para os próximos anos dos feminismos.

Texto recebido em 27 de maio de 2009.

Texto aprovado em 10 de julho de 2009.

  • BACZKO, Brinislaw. Les imaginaires sociaux, mémoires et espoirs collectifs. Paris: Payot, 1984.
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  • 1
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    queer, de modo especial. Uma busca na internet sob esta denominação traz incontáveis resultados e explanações.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      10 Jul 2009
    • Recebido
      27 Maio 2009
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