RESUMO
Este artigo tem o objetivo de analisar argumentações de licenciandos em Biologia acerca de testes genéticos que envolvem seleção ou descarte de características raciais, deficiências físicas, eugenia, reprodução humana e aborto. Por meio da análise foucaultiana sobre o material produzido nos grupos focais, argumentamos que o discurso biotecnológico tem construído um regime de verdades sobre corpos vivíveis e corpos matáveis, estipulando a genética saudável e instituindo padrões, abjetos e direitos pouco problematizados no currículo de formação aqui investigado. Ao problematizarmos o direito de vida e morte, pudemos confrontar dimensões éticas e culturais postas aos/às participantes nos procedimentos biotecnológicos, tais como início da vida, descarte de embriões e aborto. Por fim, a partir dos confrontos propiciados, construímos algumas considerações para pensarmos biotecnologias, currículos e produção de sujeitos não fascistas.
Palavras-chave:
Gênero; Corpo; Currículo.
ABSTRACT
This article aims to analyze the arguments of undergraduate Biology students about genetic tests that involve the selection or rejection of racial characteristics, physical disabilities, eugenics, human reproduction, and abortion. Through Foucault's analysis of the material produced in the focus groups, we argue that the biotechnological discourse has built a regime of truths about livable bodies and killable bodies, stipulating healthy genetics and instituting standards, abjects and rights that are not problematized in the educational curriculum investigated here. By problematizing the right to life and death, we were able to confront ethical and cultural dimensions placed on participants in biotechnological procedures, such as early life, embryo disposal and abortion. Finally, from the confrontations provided, we built some considerations to think about biotechnologies, curricula and the production of non-fascist subjects.
Keywords:
Gender; Body; Curriculum
Introdução
As práticas da biologia e das engenharias que estudam a vida surgem da necessidade de diagnosticar o risco ou ocorrência de doenças genéticas hereditárias e são realizadas, sobretudo, pelas redes privadas de saúde, mas, começam a apontar, timidamente, no Sistema Único de Saúde (SUS), na forma de aconselhamentos genéticos (AG). O corpo passa a ganhar intervenções biotecnológicas nunca antes experimentadas e a evolução darwiniana começa a ficar obsoleta. É o início da era biotecnológica que proporciona a seleção de forma artificial e de acordo com padrões instituídos pelos discursos vigentes. Recentemente, por exemplo, fomos surpreendidas/os com a notícia de que cientistas da China criaram duas bebês geneticamente modificadas, iniciando uma nova “estirpe” de humanos (LIY, 2018LIY, Macarena Vidal. Cientistas chineses dizem ter criado os primeiros bebês geneticamente modificados. EL País. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/26/ciencia/1543224768_174686.html. Acesso em: 10 maio 2020.
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). A surpresa se dá pelo fato das irmãs gêmeas não serem geneticamente modificadas por portarem doença hereditária, mas para torná-las imunes ao vírus da Imunodeficiência Humana (HIV).
Partindo do trabalho de Keck e Rabinow (2009KECK, Frédéric, RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain (org.). História do corpo: as mutações do olhar. Petrópolis, RJ: Vozes , 2009. p. 83- 105. ), refletimos sobre como o corpo genético é atravessado por normas e regularidades que controlam e formam o nosso “eu”. Tais autores, por intermédio da pergunta “qual é o ‘nós’ de ‘nosso genoma’?”, mostram que o DNA permite visualizarmos o mais profundo e molecular de nós mesmos. Nesse sentido, Foucault, atento ao problema político da genética, analisa a relação entre capital humano e “a raridade dos bons equipamentos genéticos” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 314), considerando o funcionamento da racionalidade biopolítica que faz viver alguns e que deixa morrer outros por meio de “um racismo biológico-social” (FOUCAULT, 2006, p. 75), em que serão mortos “legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros” (FOUCAULT, 1998, p. 150) de uma população.
A partir das problematizações sobre o direito de vida e morte, inerente a testes genéticos ensinados no currículo de Biologia, este artigo analisa argumentações de licenciandos de uma universidade pública do nordeste brasileiro acerca de testes genéticos que envolvem seleção ou descarte de características raciais, deficiências físicas, eugenia, reprodução humana e aborto. Nessa análise, compreendemos currículo como aquilo que “produz sentidos, práticas e sujeitos de um determinado tipo; faz com que desejemos coisas, muda as nossas percepções, nos modela e nos seduz” (PARAÍSO, 2007PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo e mídia educativa brasileira: poder, saber e subjetivação. Chapecó: Argos, 2007., p. 24). Currículo que faz desejar coisas, modela e convida a um sistema de raciocínio, a um conjunto de pensamentos que “não são naturais; são construídos a partir de sistemas de conhecimento especializados” (POPKEWITZ, 2001POPKEWITZ, Thomas S. Lutando em defesa da alma: a política do ensino e a construção do professor. Porto Alegre: Artmed, 2001., p. 13). Ao problematizarmos o direito de vida e morte, argumentamos que o discurso biotecnológico no currículo de formação tem produzido um regime de verdades sobre corpos vivíveis e corpos matáveis, estipulando a genética saudável e instituindo padrões, abjetos e direitos. Uma racionalidade biotecnológica que define as vidas vivíveis apaga a diferença e abre espaço para discursos fascistas na Educação.
Ao unirmos currículo, biologia, genética, biopolítica, corpos e educação nesta escrita, estamos implicadas nos cenários atuais de tormentas curriculares (PARAÍSO, 2018PARAÍSO, Marlucy. Fazer do caos uma estrela dançarina no currículo: invenção política com gênero e sexualidade em tempos do slogan ideologia de gênero. In: PARAÍSO, Marlucy; CALDEIRA, Maria Carolina (org.). Pesquisas sobre currículos, gênero e sexualidades. Belo Horizonte: Mazza, 2018.), de barbárie a partir da racionalidade neoliberal nas políticas de currículo (MACEDO, 2019MACEDO, Elizabeth. A educação e a urgência de “desbarbarizar” o mundo. Revista e-curriculum, São Paulo, v. 17, p. 1101-1122, 2019.) e de retrocessos normativos no campo curricular brasileiro (CARDOSO et al., 2019CARDOSO, Lívia de Rezende et al. Gênero em políticas públicas de educação e de currículo: do direito às invenções. Revista e-curriculum, São Paulo, v. 17, p. 1558-1479, 2019.). Uma pesquisa curricular atenta a esse contexto precisa “corroer” os sentidos já tomados por essa lógica e permitir que “o impensável que ela busca tornar invisível volte a habitar o sentido legitimado de educação” (MACEDO, 2019, p. 1117). Não questionar em nossos currículos, sobretudo os de formação docente, a política de subjetividade que problematize generificações e racismos é cumprir o projeto neoliberal de educação. Afinal, a existência e a reprodução dessa racionalidade “supõem violências de classe, raciais e sexuais” (LAZZARATO, 2019LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou Revolução? São Paulo: Edições N-1, 2019., p. 75).
Percorremos então nesta escrita a produção de corpos abjetos que são aqui tomados, a partir das discussões de Butler, como aqueles que “não se conformam às normas de inteligibilidade cultural” (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guaracira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010b. p. 151-172.a, p. 39). Abjeto não se restringe, de modo algum, a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se “a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja materialidade é entendida como ‘não importante’” (PRIS; MEIJER, 2002, p. 161). Por ser uma pesquisa produzida na Educação, queríamos compreender como discursividades que hierarquizam corpos circulam e atravessam futuros docentes de biologia, legitimam sutis práticas biopolíticas e alicerçam quadros macros de disputas (des)valorativas do nosso atual contexto democrático.
Para construir tais problematizações, fundamentamos a pesquisa na análise foucaultiana de discurso e o material empírico utilizado é resultante de grupos focais realizados com discentes do final do curso. Estudantes que já transitaram pelo currículo e carregam seus saberes, técnicas e modos de ver o mundo. Com o grupo focal, para além de capturar os sentidos que o currículo, suas disciplinas, vivências e projetos, lhes proporcionou, queríamos criar momentos de interpelação, de confronto de si no contato com o outro (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica , 2015.). Desejávamos fazer aparecer o ensino e as aprendizagens de um currículo (PARAÍSO, 2016PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo e relações de gênero: entre o que se ensina e o que se pode aprender. Linhas , Florianópolis, v. 17, p. 206-237, 2016.).
Três grupos focais foram desenvolvidos e contaram com a participação de seis alunas/os em cada. Durante as discussões no grupo, as/os discentes foram instigados/as a discutir, a partir de reportagens, filmes, notícias, fatos históricos e de questionamentos que fazíamos, acerca de fertilização in vitro (FIV), teste genético pré-implantacional (PGD), benefícios e malefícios desses testes, reprodução humana, bem como implicações éticas e culturais do fazer biotecnológico.
Diante deste material, construímos mais três seções. Na primeira, discutimos os enunciados suscitados quando técnicas biotecnológicas são utilizadas para seleção de certas características físicas no feto, momento em que fenótipos são tidos como mais desejáveis. Na segunda, discutimos como a busca por um corpo geneticamente saudável cria a categoria de corpos não adequados à norma, defeituosos, abjetos, monstros. Na terceira, apresentamos conflitos éticos e culturais postos aos/às participantes nos procedimentos biotecnológicos, tais como início da vida, descarte de embriões, aborto e eugenia. Por fim, a partir dos confrontos propiciados, construímos algumas considerações para pensarmos biotecnologias, currículos e produção de sujeitos não fascistas.
Entre o feio, o belo e o padrão
Em reportagem sobre escolha de características quando se decide pela doação de sêmen, a estatística do anseio por corpos saudáveis, perfeitos e que atendam à expectativa do que é belo chama atenção. A busca pela perfeição e/ou a seletividade do ser humano está transformando os bancos de sêmen em uma espécie de cardápio humano, conforme descrição da reportagem: “Olhos azuis ou castanhos? Cabelos lisos ou ondulados? É quase como se fosse um cardápio, tudo para ter certeza de que o filho vai sair como o planejado” (É POSSÍVEL..., 2018). De acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, entre 2011 e 2016 houve um aumento de 2.500% de importações de sêmen, isso porque as pessoas que recorrem ao processo estão procurando por determinadas características e justificam que não são encontradas com facilidade no Brasil (FAMÍLIAS..., 2017). Alegam que essa preferência é baseada na ficha detalhada que os bancos de sêmen internacionais proporcionam para quem busca essa alternativa de reprodução, onde é possível conhecer as características físicas, personalidade, profissão, estilo de vida e até mesmo ver fotos da infância e adolescência do doador.
No Brasil, em relação à escolha do gênero da criança, a Resolução n. 2.168/2017 (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017) veda tal escolha: “técnicas de RHA [Reprodução Humana Assistida] não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo (presença ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer”. Mesmo não sendo permitida a seleção do gênero e características físicas, é certo que esses processos ocorrem nas clínicas de RHA, uma vez que há uma ficha sobre o genótipo e fenótipo dos doadores e que a escolha das pessoas que buscam esse procedimento prevalece. Diante dessas discussões, as/os participantes foram questionadas/os sobre implicações da procura por um determinado fenótipo:
Ciborgue: São regras que foram construídas e que perpetuamos. Achamos o outro feio simplesmente por ter um tom de pele diferente daquele que foi consolidado como bonito, e não olhamos para a beleza interna, o que vale é capa.
Major: Isso é muito relativo, até diz o ditado popular “quem ama o feio bonito lhe parece”. Então, por que nos prender às regras europeizadas da sociedade atual? Nos prendemos tanto a essas questões que na maioria das vezes consideramos um ser feio simplesmente por ter um tom de pele diferente do padrão europeu e esquecemos de ver quem de fato é aquele ser, o que ele traz de bom.
Robocop: Nesse caso eu sou contra. Até porque quem determina o que é bonito e feio na sociedade? Além do que o “negão” aqui não poderia repassar a sua genética para os filhos. (Risos). Se considerar esse padrão.
T-800: Isso é uma ilusão da sociedade, de querer essas pessoas como boneco, de estar montando pessoas com determinado padrão.
Rachael: Quando dizem que uma pessoa é feia ou bonita, quem foi que impôs isso? Isso é uma coisa que vai passando por todos esses anos e acaba se naturalizando, como ser loiro de olhos claros é o conceito de ser belo. Então, é como no caso dessas famosas que ficam tentando ter filhos que mais parecem bonecos .
Para as/os participantes da pesquisa, a produção do corpo, quando conectada à biotecnologia, é inteligível e problematizável em termos estéticos, ou seja, já capturada pelos discursos de beleza corporal. Para tais discentes, o corpo submetido a procedimentos biotecnológicos é um significante, cujas interdições são compreendidas em termos de ser legítimo ou não ser considerado belo. Alguns discentes não possuem referenciais que possibilitem problematizar as construções culturais sobre os corpos. Afinal, na educação, os corpos foram convencionados a ganhar contornos de prescrição e homogeneização, anormalizando-se tantos outros modos possíveis, barrando movimentos e trânsitos. Mídias, serviços estéticos e currículos investem culturalmente para plastificar a beleza dos corpos e esconder imperfeições (VASCONCELOS; CARDOSO; FÉLIX, 2018VASCONCELOS, Michele Freitas Faria; CARDOSO, Lívia de Rezende; FELIX, Jeane. Por uma educação obscena a desfocar corpos de hipo mulheres. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, p. 1-20, 2018.). Nesse sentido, o currículo torna-se “um espaço que busca, o tempo todo, produzir corpos que pesam e que importam”, que materializem as normas (PARAÍSO, 2016PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo e relações de gênero: entre o que se ensina e o que se pode aprender. Linhas , Florianópolis, v. 17, p. 206-237, 2016., p. 210).
A biotecnologia aparece como possibilidade de criar corpos que corroboram um padrão de beleza e estética, com a concepção de corpos que são belos, saudáveis, individuais e coletivos, que confirmam a expectativa da utilidade e perfeição. Para Goellner e Silva (2012GOELLNER, Silvana Vilodre; SILVA, André Luiz dos Santos. Biotecnologia e neoeugenia: olhares a partir do esporte e da cultura fitness. In: COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre (org.). O triunfo do corpo: polêmicas contemporâneas. Petrópolis, RJ: Vozes , 2012. p. 198-215.), o entusiasmo que se tem hoje com as biotecnologias se assemelha ao que se tinha, no início do século passado, com as práticas eugênicas. Entretanto, há de se considerar a realidade que vivemos, na qual os investimentos do poder sobre o corpo se dão de formas diferentes (GOELLNER; SILVA, 2012GOELLNER, Silvana Vilodre; SILVA, André Luiz dos Santos. Biotecnologia e neoeugenia: olhares a partir do esporte e da cultura fitness. In: COUTO, Edvaldo Souza; GOELLNER, Silvana Vilodre (org.). O triunfo do corpo: polêmicas contemporâneas. Petrópolis, RJ: Vozes , 2012. p. 198-215.). Para Cardoso (2012CARDOSO, Lívia de Rezende. Produção de corpos e tecnologia de hibridização no currículo experimental. REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 35., 2012, Porto de Galinhas. Anais [...], Porto de Galinhas: ANPED, 2012. Disponível em: http://35reuniao.anped.org.br/images/stories/trabalhos/GT12%20Trabalhos/GT12-2203_int.pdf. Acesso em: 21 set. 2020.
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), as concepções sobre o corpo perfeito, saudável e bonito, são marcas da história ocidental, dadas através das políticas que normalizam os corpos. Essas políticas legitimam os “indivíduos de sexo masculino, de cor branca, heterossexuais e europeus” (CARDOSO, 2012CARDOSO, Lívia de Rezende. Produção de corpos e tecnologia de hibridização no currículo experimental. REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 35., 2012, Porto de Galinhas. Anais [...], Porto de Galinhas: ANPED, 2012. Disponível em: http://35reuniao.anped.org.br/images/stories/trabalhos/GT12%20Trabalhos/GT12-2203_int.pdf. Acesso em: 21 set. 2020.
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, p. 12).
Santos e Zago (2013SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos; ZAGO, Luiz Felipe. Topologia dos corpos de homens gays: deslocamentos na produção de sensibilidades biopolíticas. Revista Nómadas, Bogotá, n. 39, p. 137-151, 2013.) mostram como as regulações do Estado e do mercado neoliberal, através do exercício de poder, produzem subjetividades, regulando e controlando os corpos para que atendam a um determinado padrão de beleza. “O processo de produção do corpo mostrável, do deslocamento de um anti-corpo em direção a um corpo-que-importa, demanda a adesão a um processo de transformação da materialidade da carne que se traduz numa fabricação disciplinada e controlada de um (novo?) corpo” (SANTOS; ZAGO 2013SANTOS, Luís Henrique Sacchi dos; ZAGO, Luiz Felipe. Topologia dos corpos de homens gays: deslocamentos na produção de sensibilidades biopolíticas. Revista Nómadas, Bogotá, n. 39, p. 137-151, 2013., p. 147). A partir da fala dos/as discentes, podemos pensar o padrão de corpo e de beleza ensinados por esse currículo e que, possivelmente, reverbera nos currículos da educação básica quando de suas atuações.
Outros aspectos discutidos foram a normatização dos corpos e a determinação de características que devem constar em um fenótipo. Esses questionamentos suscitaram, dentre outras coisas, uma questão lançada por uma participante sobre os malefícios de testes como o PGD no que concerne à falta de diversidade biológica para evolução das espécies, em uma situação em longo prazo:
Ava: O grande defeito dessas práticas seria levar esse lado eugênico. Se todo mundo tivesse o acesso de criar, selecionar as melhores coisas no filho. Nós teríamos uma geração que seria perfeita. Ótimo, tudo bem. Mas, você imagine pela evolução. A evolução ela se faz com as diferenças. A variedade é quem garante a evolução e sobrevivência. E também é uma ilusão social, que tem efeitos negativos: se uma parte da população fosse perfeita e a outra parte nascesse com algum tipo de deficiência. Esse pessoal que tivesse a deficiência seria excluído por suas limitações.
As biotecnologias não são acessíveis a todas/os da população. De acordo com Ava, teríamos um predomínio de grupos sobre outros, em relação àquelas/es que podem “comprar” o corpo que proporcione uma melhor qualidade de vida e/ou aceitação na vida em sociedade. Major também comentou sobre o “apartheid” que levaria à extinção da diversidade biológica, pensando o PGD no sentido de produzir estética para apenas um grupo. Isso significaria dizer que a qualidade de vida de uns estaria fundada na “impossibilidade de vida de outros muitos, de modo que a biopolítica e a tatanopolítica continuariam a remeter-se mutuamente” (DUARTE, 2009DUARTE, André. Foucault e as novas configurações da biopolítica: o fascismo contemporâneo. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica , 2009. p. 35-50., p. 50). Boa qualidade de vida que, como discutiam médicos nazistas há algumas décadas, entrelaça “economia e biologia” para definir uma vida politicamente qualificável (ROSA, 2009ROSA, Susel de Oliveira. Os investimentos em capital humano. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica , 2009. p. 377-389., p. 382).
Instrumentalizar o currículo de biologia com técnicas e saberes genéticos de modo neutro, sem apontar implicações econômicas, sociais e culturais, é apostar na mesmidade do currículo ao invés de educar na perspectiva da “despossessão-vulnerabilidade” para subverter a lógica curricular do reconhecimento a partir do já dado (MACEDO, 2017MACEDO, Elizabeth. Mas a escola não tem que ensinar? Conhecimento, reconhecimento e alteridade na teoria do currículo. Currículo sem Fronteiras, [s.l.], v. 17, n. 3, p. 539-554, set./dez. 2017. , p. 548). Quando nas relações estabelecidas uma estudante reivindica outros possíveis, enfrenta essa vontade pedagógica que normatiza os corpos e põe em cena o fora, o interstício, o corpo deficiente.
Pensando nesses corpos que não se adequam aos padrões, questionamos as/os participantes sobre as pessoas que apresentam alguma limitação física e/ou cognitiva, situações que já vinham sendo colocadas por eles/as, mas que não estavam sendo problematizadas, e obtivemos o seguinte diálogo:
Robocop:Aí você me pegou. (Pausa). É interessante essas tecnologias, mas quando a gente vai pensar nessas pessoas que estão aí e poderiam não estar só porque tem uma deficiência, deixa a gente intrigado.
Rachael:Sei que eu seria uma pessoa que não teria oportunidade de nascer e ser quem eu sou, caso passasse por um teste desse. Porque eu não sou uma pessoa que estaria de acordo com o padrão exigido para o PGD e as pessoas que buscam ele.
Ava:Do mesmo jeito que a gente as considera boas para umas coisas, como no caso de quem sofre de doenças, elas também são ruins porque essas mesmas pessoas que sofreriam com alguma doença nem iriam existir.
Major:Basta olharmos ao nosso redor, que sempre encontramos uma pessoa que apresenta uma deficiência. E imaginar que aquela pessoa não existiria só porque não atende a um padrão. Não é porque uma pessoa nasce com uma deficiência que ela não vai poder ter uma vida, construir uma história e fazer parte da sociedade.
Ciborgue:É difícil. Mas também tem a questão que se essas pessoas não nascessem, não as conheceríamos. Então não ficaríamos mal em aceitar esses testes.
T-800:De um lado penso que é triste uma pessoa não nascer porque não atende um padrão. Por outro penso nas privações dessa pessoa e, se elas não nascessem, não ficaríamos tristes por elas não existirem.
É nos processos de “outragem”, de ser “pego”, desfeito no encontro com o outro, de ver aquilo que o currículo não ensinou, de ser confrontado pelas cenas do outro, que desnaturalizamos saberes e técnicas que nos condicionam a ver e pensar de um único modo. Se o grupo via corpos por um referente padrão, ao “desfazer, desconstruir e desmontar todas as formas dos currículos, todos os raciocínios que dividem e confinam, todas as verdades que aprisionam” (PARAÍSO, 2016PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo e relações de gênero: entre o que se ensina e o que se pode aprender. Linhas , Florianópolis, v. 17, p. 206-237, 2016., p. 231), foi possível vislumbrar a diferença. Esqueceu-se o ensino do currículo e abriu-se às aprendizagens (PARAÍSO, 2016). Confronta-se as biotecnologias como forma de biopoder que controla os corpos, transforma-os e molda-os para a utilidade e perfeição. Problematiza-se a desqualificação do embrião que não possua uma carga genética que se adeque aos padrões fenotípicos de estética e saúde. Põe-se em suspenso o embrião qualificável que se torna certamente uma coisa rara e poderá entrar “em circuitos ou em cálculos econômicos” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 313).
Saúde (re)produtiva e produção de monstros
As questões científicas relacionadas a estruturas celulares, manipulação do código genético, seleção de embriões saudáveis e/ou que atendam a um determinado fenótipo, e como e quando se inicia uma vida, bem como impacto que essas técnicas geram nas práticas sociais, têm gerado controvérsias. Isso se dá porque “a pesquisa genética torna assim visível um mal localizado no mais fundo do corpo. Mas, longe de obrigar a fitá-lo de modo trágico, incita à ação para intervir sobre o corpo” (KECK; RABINOW, 2009KECK, Frédéric, RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain (org.). História do corpo: as mutações do olhar. Petrópolis, RJ: Vozes , 2009. p. 83- 105. , p. 93). São tempos biopolíticos em que o cientista se move em terras que, antes, só o soberano poderia adentrar (AGAMBEM, 2002). Considerando essas questões científicas e seus modos de subjetivação, questionamos sobre formas de intervenção da fertilização in vitro (FIV), e as falas que ouvimos foram:
Ava:Tem o viés positivo porque tem pessoas que não querem se casar, mas querem ter um filho. Então vão para um banco de sêmen e pegam o sêmen de outra pessoa. Mas, tem o lado negativo, que você precisa de uma ajuda médica, ajuda de um psicólogo, às vezes a pessoa tá ali querendo ter um filho, sem pensar no futuro. As vezes você quer uma coisa agora e depois não vai poder dizer não. Mas, eu não usaria, não acho que seja certo.
Robocop:Eu sou a favor de todas as técnicas de reprodução assistida, desde que seja para o bem da população, na questão das doenças e de ajudar a quem precisa.
Rachael:A FIV é uma técnica que já tem alguns anos e que já ajudou e ajuda muita gente. Assim como Robocop, vejo as técnicas de reprodução assistida como boa, desde que voltadas à saúde do ser humano. Não concordo com o que fazem para mudar as pessoas e os corpos, mas pela saúde e bem estar acho bom.
Ciborgue:Eu vejo como algo bom, pois é, se um casal tenta por vias naturais gerar um filho e não consegue, certamente devem procurar alguma saída que dê certo, e ai essa técnica vai ajudar aos casais a terem sucesso com seu relacionamento, com o seu bebe, então eu vejo como algo eficaz.
Major:Seguindo o fluxo biológico, o ideal é que fosse uma concepção da natureza, mas aqueles que por um motivo são impossibilitados e têm condições financeiras de arcar, não vejo problema. E há ainda a possibilidade de adoção, caso nada dê certo.
É fato que testes como o PGD são divulgados como esperança às pessoas que sofrem com problemas de infertilidade ou doenças genéticas que são hereditárias, que comprometem a qualidade de vida das pessoas, e que podem causar até a morte (KECK; RABINOW, 2009KECK, Frédéric, RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain (org.). História do corpo: as mutações do olhar. Petrópolis, RJ: Vozes , 2009. p. 83- 105. ). No currículo de formação analisado, as biotecnologias são tidas como salvacionistas por corrigirem problemas e propiciarem saúde. São construídas como provedoras de sonhos, que ajudam a quem precisa. Uma concepção “de que a ciência e a tecnologia são capazes de resolver os problemas da humanidade” (FREIRE, 2007FREIRE, Leila Inês Follmann. Pensamento crítico, enfoque educacional CTS e o Ensino de Química. 2007. Dissertação ( Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007., p. 55). Desejosas por problematizar esse salvacionismo, sugerimos que apontassem benefícios e malefícios que testes como esses poderiam proporcionar à sociedade.
Ava: Quem é que quer ter um bebê doente? Ou com limitações. Não, a gente sempre quer o melhor para os nossos. Pense como poderíamos eliminar muitas doenças. O grande problema disso é que a estética iria andar junto com a ciência. As pessoas querem estar escolhendo cor de olho, cor de cabelo, cor de pele. E aí vem o lado pior, para usar essas técnicas tem que ter muito dinheiro, então só pode quem tem dinheiro.
Robocop: Sou totalmente a favor desses testes, quando eles retiram as doenças dos embriões. Não sou a favor de características físicas. Perfeição e QI é coisa eugênica.
Ciborgue:Assim que se faz todo um diagnóstico e faz toda uma análise em laboratório, realmente vai checar se há uma predisposição daquele feto vir a ter problemas de saúde e aí muitas famílias não estão preparadas a lidar com tais problemas, e se de repente houver a possibilidade de cortar o mal pela raiz, acredito que o fruto disso tudo será algo melhor.
T-800: Ele é positivo no caso das mulheres que têm algum problema pra gerar filhos, ou no caso de doenças que tem na família e que passam para as gerações. E é negativa quando ficam selecionando características que consideram melhor, que não seria algo natural, e também pelo grande descarte de embriões que foram fecundados. Porque eu considero vida. Eu acho que a vida começa na fecundação.
Rachael: Seria muito bom usar essas técnicas para eliminar as doenças, deletar só os cromossomos que causam doença, não para estar escolhendo características que acham bonito, tem que ter cuidado com o PGD.
Essas enunciações, ao apontarem o desejado, sinalizam incômodo com o que foge do padrão. Isso implica questionar: como nos relacionamos com os “defeituosos”, os abjetos, os que seriam descartados, os monstros da nossa atualidade? As figuras monstruosas são consideradas “anormais” e são elas que possibilitam compreender o que se tem como normal, confundindo as fronteiras que separam o normal do anormal, pois os seus limites não são claros e nem fáceis de definir (COURTINE, 2009COURTINE, Jean Jacques. O corpo anormal - História e antropologia culturais da deformidade. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean Jaques; VIGARELLO, Georges (org.). História do corpo: As mutações do olhar: O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p.7-12,). Um processo construtivo que, pela normatização e controle (FOUCAULT, 1998FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 1998.), organiza-se em uma matriz excludente que produz “um domínio de seres abjetos” (BUTLER, 2010BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guaracira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010b. p. 151-172.b, p. 155). Os abjetos, quando lidos unicamente pela racionalidade biopolítica, são alvos de “um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social” (FOUCAULT, 2006, p. 73).
Sobre a teoria foucaultiana de capital humano, Duarte (2009DUARTE, André. Foucault e as novas configurações da biopolítica: o fascismo contemporâneo. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica , 2009. p. 35-50.) afirma que a biogenética será o caminho pelo qual o sujeito tratará de potencializar suas capacidades e habilidades para tornar-se competitivo no mercado. Afinal, “é também por meio da biogenética que o empreendedor de si mesmo tentará controlar os fatores potenciais de risco - como doenças geneticamente herdadas, por exemplo - que podem colocá-lo, e a seus descendentes, em situações desfavoráveis na competição pelo sustento de sua vida” (DUARTE, 2009DUARTE, André. Foucault e as novas configurações da biopolítica: o fascismo contemporâneo. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica , 2009. p. 35-50., p. 48). Sujeitos imbuídos por essa governamentalidade entendem que “a produção dos filhos, pode se encaixar em toda uma problemática econômica e social a partir desse problema da raridade dos bons equipamentos genéticos” (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 314). Quando participantes afirmam que “ninguém quer um bebê com limitações” e que tem de “cortar o mal pela raiz” já naturalizaram essa lógica e as vidas que valem ser vividas.
A partir dos sujeitos desse currículo, discursos científicos acionam um sentido eugênico pelo qual essas técnicas algumas vezes mantêm relações, julgam a eficiência do PGD como potencial em melhorar a qualidade de vida, formar seres com características consideradas perfeitas. Nesse sentido, as técnicas moleculares, através da Biologia e das engenharias, colocam o corpo em evidência, a partir do momento em que a vida sai da esfera do privado e entra no domínio público. Portanto, “o corpo escapa, assim, à propriedade do indivíduo quando entra em um processo técnico e comercial: torna-se então visível no cenário da economia e do direito” (KECK; RABINOW, 2009KECK, Frédéric, RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain (org.). História do corpo: as mutações do olhar. Petrópolis, RJ: Vozes , 2009. p. 83- 105. , p. 102).
Para confrontar esses enunciados, indagamos sobre a possibilidade das/os participantes realizarem o PGD e as respostas variaram com os motivos que estão envolvidos na decisão:
Major: Dizemos que não faríamos até nos encontrar numa situação que nos coloca à prova, e se temos a escolha de poupar um filho de sofrer as consequências de doença ou limitação física, cognitiva que vem de herança genética, porque mais tarde a sociedade controladora e estereotipada vai rechaçar esse sujeito. Então, faria sim.
Ciborgue: Está ligado à prevenção de crianças que podem estar nascendo com problemas de saúde, e aí pode acarretar num problema maior, no qual a família não vai saber lidar com essa criança. Já os malefícios que podem ocorrer, é que a gente sabe que ali é uma vida, independentemente de ter ou não consciência, é uma vida. E quando essa vida é tirada não é legal, principalmente nós que adoramos a vida, que queremos o bem pra humanidade.
Ava: Eu acho que eu não faria o PGD, porque eu não tenho traço de doença que poderia passar pra um filho. Enquanto a FIV, se eu não pudesse gerar, eu poderia até fazer.
Robocop: Só se eu precisasse fazer a FIV e tivesse dinheiro pra realizar o PGD. Mas eu só queria saber da parte de doenças, para ele não ter doença. Quanto ao fenótipo, eu não selecionaria, esses negócios de escolher característica não, eu sou contra.
T-800: Eu não pretendo, mesmo que eu tivesse condições. Tanto pelo dinheiro, porque é caro, e pela moral e ética envolvido nesse processo, que eu não concordo.
Rachael: Pensando na minha ceratocone, se eu fosse gerar uma criança eu gostaria de saber se ela também iria ter. Na verdade, eu queria ter um filho por concepções naturais, mas depois eu queria fazer um mapeamento genético, pra ver se ele teria a mesma doença que eu. Não é que eu faria o PGD e iria descartar se tivesse a doença. Eu queria mapeamento só pra saber antes pra passar por um tratamento desde cedo.
Ao clamarem por melhorias, mapeamento de doenças, prevenção de crianças deficientes, cautela com futuros estereótipos, preocupação com as famílias, vemos funcionar na formação desses sujeitos atravessamentos que cruzam ciência, biotecnologia e questões eugênicas. Quando a ciência é tomada “como aquela que desvenda, anuncia descobertas, gera inovações, promove melhorias, enfim, como imprescindível, demanda-se e fabrica-se sujeitos de um certo tipo” (CARDOSO, 2018CARDOSO, Lívia de Rezende. Queremos saber, queremos viver: governo do cotidiano no currículo experimental. Currículo sem fronteiras, [s.l.] , v. 18, p. 943-962, 2018., p. 944). Sujeitos capturados pelo discurso biotecnológico que, ao não ser colocado em suspeição em seu ensino, oferta futuras formas de vida que apagam as vidas já existentes no currículo.
A partir dos saberes científicos que possuem sobre os corpos e dos conceitos morais sobre a vida, os sujeitos alternaram os modos de se posicionarem discursivamente. Os relatos mostram a delicadeza desse assunto e a polêmica que esse teste causa, pois outrora elas/es afirmavam que o PGD poderia potencializar um fator eugênico. Para além disso, “será que se pode dizer que o genoma atua de maneira invisível como uma estrutura subjacente ao conjunto dos comportamentos comuns à “família humana”?” (KECK; RABINOW, 2009KECK, Frédéric, RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain (org.). História do corpo: as mutações do olhar. Petrópolis, RJ: Vozes , 2009. p. 83- 105. , p. 83-84). Esse questionamento possibilita refletir como o genoma diz respeito à concepção que temos sobre o corpo e como este pode se transformar através dos dispositivos de poder que são utilizados pela genética. Assim, importa questionar “em que é que a genética nos diz respeito?” (KECK; RABINOW, 2009, p. 84).
Diz-nos respeito à medida que o corpo genético é atravessado pela possibilidade de controle: ao saber como está constituído o seu genótipo, conhece-se suas predisposições fenotípicas e possíveis comportamentos. A partir do dispositivo da genética, os corpos passam a ser vistos e percebidos através do genoma. Aí, “a aparência visível do corpo humano fica assim ligada a uma estrutura invisível cujas íntimas modificações produzem corpos radicalmente diferentes: fenótipos diferentes, genótipo análogo” (KECK; RABINOW, 2009KECK, Frédéric, RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain (org.). História do corpo: as mutações do olhar. Petrópolis, RJ: Vozes , 2009. p. 83- 105. , p. 89). Nesse sentido, os testes genéticos produzem uma imagem do corpo e uma possível identidade pessoal à medida que mapeiam as doenças e estabelecem uma realidade para quem os procura. A biotecnologia não foi maléfica - mesmo conflitando com discursos morais acionados em outros episódios do grupo focal - a partir do momento que se precisou dela para proporcionar melhor qualidade de vida às/aos familiares.
Nesse sentido, a saúde reprodutiva das famílias ganharia novos contornos. Afinal, para Foucault (2008FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 234), “dado meu equipamento genético, se quero ter um descendente cujo equipamento genético seja pelo menos tão bom quanto o meu, ou, na medida do possível, melhor, vou ter que encontrar alguém com quem casar cujo equipamento genético também seja bom”. Em nome da qualidade de vida do corpo-espécie, põe-se em xeque o artigo sexto da Declaração Universal do Genoma Humano, que estabelece: “ninguém será sujeito à discriminação baseada em características genéticas que vise infringir ou exerça o efeito de infringir os direitos humanos, as liberdades fundamentais ou a dignidade humana”.
Se nos primórdios o monstro foi visto pela religião como “milagre, malefício, sinal, fruto do pecado ou acidente de concepção” (COURTINE, 2009COURTINE, Jean Jacques. O corpo anormal - História e antropologia culturais da deformidade. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean Jaques; VIGARELLO, Georges (org.). História do corpo: As mutações do olhar: O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p.7-12,, p. 491), após o século XVII, ele caiu na jurisdição da ciência ao adentrar seus laboratórios e passar pelos crivos de sua observação. Aí, monstro continuou a ser entendido como “sinal de desordem do mundo, próximo das catástrofes naturais” (COURTINE, 2009, p. 491). Isto é, seres não naturais, não normais, que serviram, desde então, como instrumento para clamar por ordem e razão. Com a biotecnologia e seus discursos de normal e anormal geneticamente, qualificável ou não culturalmente, o monstro passa a ser identificado e capturado por precisas técnicas que rompem camadas superficiais da aparência e adentram sua intimidade molecular.
Em pesquisa sobre currículo de formação docente em biologia, Oliveira e Cardoso (2013OLIVEIRA, Tiago Ranniery Moreira de; CARDOSO, Lívia de Rezende. À flor da pele: uma cartografia da subjetividade docente em Ciências. Tomo, São Cristovão, SE v. 22, p. 53-80, 2013., p. 70), diante de saberes científicos que atravessavam os discentes, definem essa ciência como “construída de novidades iluministas, de seu humanismo fascista, forçou e modelou pela imposição de suas verdades certa forma de conhecimento [que] no seu altar hierárquico e excludente promoveu uma compreensão de conhecimento fracionário, moralmente individualista e autoritariamente copista”. A partir dos achados do presente artigo, precisamos tornar os currículos de ciências biológicas, em seus diferentes níveis de ensino, abertos a novas aprendizagens (PARAÍSO, 2016PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo e relações de gênero: entre o que se ensina e o que se pode aprender. Linhas , Florianópolis, v. 17, p. 206-237, 2016.). Currículos que desmontem raciocínios engendrantes para nos desgarrarmos do desejo de seguir materializando e naturalizando corpos normalizados.
Seleção, eugenia ou aborto?
Assim como na literatura, as questões mais problematizadas durante o grupo focal foram o neonazismo e o aborto. Destarte, pedimos que as/os participantes comentassem sobre como seria se os grupos eugenistas tivessem acesso às práticas biotecnológicas:
Robocop: Se Hitler tivesse esse poder, não seria uma desgraça? Se ele matou meio mundo de gente, imagina com as biotecnologias. Só nascia quem passasse por esses testes e selecionado com as características deles. Essas tecnologias sempre nascem dizendo que é para o bem, mas podem matar um monte. Eu mesmo não teria nascido, porque eles procuram características que eu não tenho.
Ava: A eugenia já tinha antes de Hitler, e também essas medidas de controle, com a esterilização das mulheres e tudo mais. Se elas apresentassem alguma doença, não poderiam ter filhos. Se os pais apresentassem alguma doença, não teriam filhos. Nos tempos de hoje seria bem pior. Acho que o governo iria acabar com aquelas pessoas que não nasceram perfeitas e sadias, para ter na população somente os perfeitos. Seria uma exclusão e seleção muito maior que no nazismo.
Ciborgue:Na época do nazismo para ter uma sociedade perfeita, nos traz um pouco de indignação pelo fato deles não terem a sensibilidade nem a ética ao trabalhar ciência. Já nos dias atuais, a ética é bem atrelada à ciência. Isso se dá por ser novos tempos, por ser mais natural que antes, porque antes as coisas eram mais brutais, por exemplo.
Major:Seria a extinção da pluralidade, só existiriam os perfeitos no mundo imperfeito, porque uma vez que você cessa a oportunidade de uma vida mostrar quem é na sua singularidade, esse mundo não é bom, não é perfeito.
T-800: Não teríamos autonomia, tudo já decidido e ainda só vivia quem fosse do padrão que eles quisessem. Esse povo que recorre a esses testes, é quem tem dinheiro e que quer só que nasçam pessoas de determinado jeito.
Rachael: Seria terrível, se já procuram pessoas com determinadas características, então muitos não existiriam, como eu, que tenho problema na visão e pele escura. É uma coisa ruim a se pensar, porque só quem atendesse um padrão viveria.
Ao relacionarmos uma técnica ensinada em currículos de biologia a uma hipotética situação de exclusão e racismo, queríamos confrontar seus saberes, entender suas percepções de mundo, identificar a quais argumentos recorreriam, entender como enxergam o papel da ciência na sociedade atual. Suas problematizações foram em torno de quem seriam as/os usuárias/os mais recorrentes a esses testes genéticos; quais seriam as suas principais características; a finalidade pela qual as pessoas o utilizam, se seriam para fins terapêuticos ou apenas seleção de características do fenótipo; bem como pela retomada do extermínio de uma população.
A exceção foi o enunciado de Ciborgue, que acredita que as práticas biotecnológicas se diferem da eugenia do passado ao alegar que a nossa sociedade, atualmente, está diferente e que a ciência está submetida a uma ética. Ele foi um dos mais entusiasmados com essa técnica. Precisamos salientar, porém, que saberes sobre as biotecnologias não são aprendidos apenas nos currículos de biologia. As promessas do genoma estão atreladas, também, ao sensacionalismo e reducionismo das mídias (LEITE, 2007LEITE, Marcelo. Promessas do genoma. São Paulo: Editora UNESP, 2007.), sendo necessário problematizar essa centralidade dos raciocínios baseados no determinismo genético, em que se acredita que todas as características, para além das físicas, podem ser mapeadas através dos genes, como as emoções e o comportamento. Além disso, cabe ainda evidenciar como as biotecnologias, através da oferta dos seus serviços, são importantes para o dinamismo da economia e na construção de subjetividades, na medida em que interferem na vida social dos sujeitos (LEITE, 2007).
O corpo tem sido objeto de cuidado e atenção, desde o século XX, se tornando um desafio médico, mas também comercial (SOHN, 2009SOHN, Anne-Marie. O corpo sexuado. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean Jaques; VIGARELLO, Georges (org.). História do corpo: As mutações do olhar: O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes 2009. p.7-12.). Entre terapia e estética, é o desejo por certa carga biológica que impera. Um certo conjunto genético que é ensinado nos currículos como sendo o desejável, somado a processos políticos, econômicos e sociais, produz uma inteligibilidade cultural que define o que conta como corpo qualificado, que nos venda aos sutis processos de exclusão e racismos. Os currículos de biologia, quando assim se deixam seduzir pelo discurso de progresso e melhoria, ajudam a compor nefastos desejos fascistas que encontram brechas na atualidade brasileira. O fascismo contemporâneo que assola a vida cotidiana, como destaca Duarte (2009DUARTE, André. Foucault e as novas configurações da biopolítica: o fascismo contemporâneo. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica , 2009. p. 35-50., p. 40), possui “caráter insidioso e discreto” e “não mais se associa, exclusivamente, ao problema de racismo de Estado”. Fascismo como aquilo que “está em nós, que acossa nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006., p. 134).
Vemos, a partir de provocações sobre a prática de testes biotecnológicos tão corriqueiros aos currículos de biologia, enunciações que naturalizam padrões genéticos, que definem a genética boa e a genética ruim, que concebem o saber-poder da ciência como salvacionista, como esperança à população-espécie. Apenas quando tais enunciações são problematizadas quanto à semelhança com regimes fascistas e nazistas, é que os/as participantes da pesquisa ponderam os seus usos e vínculos a regimes totalitários. Isso evidencia a estreita relação entre governo e a produção dos desejos. Afinal, “o poder não era exercido pura e simplesmente pela ditadura de um único homem, mas vastas parcelas da população foram investidas de formas de poder detestáveis e embriagadoras, como o poder de matar, de confiscar, de delatar, de violar” (DUARTE, 2009DUARTE, André. Foucault e as novas configurações da biopolítica: o fascismo contemporâneo. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica , 2009. p. 35-50., p. 37).
Propor problematizações dos saberes que eles carregam de suas formações é pensar um currículo de desaprendizagens das normas para desfazer-nos de “todo um sistema de raciocínio que tem sido acionado nos currículos” (PARAÍSO, 2016PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo e relações de gênero: entre o que se ensina e o que se pode aprender. Linhas , Florianópolis, v. 17, p. 206-237, 2016., p. 209). Quando repensam, juntos, os raciocínios generificados, racistas e normalizadores de corpos que habitam os saberes científicos e suas tecnologias, abrem-se a aprendizagens outras, materializam uma educação não fascista. Como provocam Macedo e Ranniery (2018MACEDO, Elizabeth; RANNIERY, Thiago. Políticas Públicas de Currículo: diferença e a ideia de público. Currículo sem Fronteiras, [s.l.], v. 18, n. 3, p. 739-759, set./dez. 2018., p. 747) sobre políticas de currículo, talvez queer “nos permita invocar uma abertura radical do ‘todos’, que, ao invés de pressupor identidade, possa decorrer de sua condição relacional, da relação com a alteridade, de um enlace com o outro”.
Outra questão que inquietou os grupos, para aquelas/es que consideram o embrião como vida, foi o aborto. Assim, foram questionadas/os sobre o que e quando seria aborto nas técnicas em questão:
Ciborgue:Vejo como algo que pode trazer benefícios para família. Ainda mais no mundo em que vivemos, um mundo que trabalha muito em cima da beleza, vê essa questão da estética como algo superior. Nesse caso o aborto, acredito que tornar as coisas mais fáceis.
Major:Sou contra o aborto por outras formas, a não ser nos casos específicos da legislação, como por exemplo, em casos de estupros.
Ava:Depende de cada pessoa, como enxerga a vida, e aí eles trazem, por exemplo, quem tem o direito. A mãe tem o direito sobre o corpo dela, e aí tem o direito ou não de ter a criança. E a criança? Qual o direito tem? Perde o direito de viver, porque vai ser cessada todas as experiências e ainda ganha o direito de morrer.
Robocop: Cada caso é um caso, gente. Você pega lá a mulher que é estuprada, você quer que ela continue a gestação, aí o filho nasce e ela passa a odiar aquele menino.
Ava: Mas, se houvesse a legalização do aborto seria para olhar cada caso .
Robocop:Sim, justamente. Quando falei que sou a favor, não é que a pessoa vai engravidar todo mês e vai estar abortando. Não só com o aborto no caso de estupro, mas aqueles casos que têm um bebê que descobrem que tem pouco tempo de vida, vai morrer com um ano. Para que deixar os pais sofrerem? Por causa do nosso ego ou da religião que diz: deixe nascer e sofrer por um ano e que se dane.
Ava: E quem é que vale mais? A vida que vale mais, a da mãe ou a da criança?
Robocop: Vida é um conceito muito amplo, vai depender do que você entende por vida. Se num teste genético você descarta embriões, por que não pode abortar um?
Rachael: E as experiências que essa criança poderia ter e foi cessada?
A maioria dos participantes explicitou seu descontentamento com o aborto em diversas situações, conjugais ou não. Porém, isso foi relativizado ao se utilizar o termo “descarte de embriões” e ponderar os benefícios que a prática traria à espécie. Afinal, “são mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros” (FOUCAULT, 1998FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 1998., p. 130). É nesse ponto que Duarte (2009DUARTE, André. Foucault e as novas configurações da biopolítica: o fascismo contemporâneo. In: RAGO, Margareth; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica , 2009. p. 35-50., p. 42) argumenta sobre uma transformação do racismo, “que deixa de ser um mero ódio entre raças ou expressões de preconceitos religiosos, econômicos e sociais”, para fazer viver, preservar e intensificar a vida da entidade biológica vencedora.
Alguns trabalhos apontam que o PGD não somente traz consigo o cunho científico a que se propusera - garantir qualidade de vida aos que passaram por esse teste, tendo em vista que as doenças genéticas que poderiam infligir a vida do sujeito não irão mais fazer parte do seu genótipo e fenótipo - mas envolve outras questões pertinentes, como o aborto e a eugenia (MAURON, 2015MAURON, Alex. Choosing among possible persons: The ethics of prenatal selection in the postgenomic age. Comptes Rendus Biologies, [s.l.], v. 338, n. 8-9, p. 566-570, 2015.). Assim, quando questionadas/os sobre o que mais movia a escolha sobre a realização desse teste, as respostas foram as seguintes:
Robocop:A questão da omissão de informação é um lado negativo. Eles descartam embriões que não “prestam” e não avisam. Eles fazem essa omissão porque sabem que tem gente que é contra o aborto e que pode não aceitar essas técnicas. Se a pessoa que é contra um aborto, imagina 11 ou 14 de uma vez? (Risos)!
Ava:Muitas pessoas não têm essa informação, quando se apropria dessas técnicas. Que aquele que deu certo vai progredir e aquele que deu errado ou falhou é descarte.
[Mediadora: E esse descarte te gera algum sentimento?]
Ava:Matar vidas. Porque desde a célula lá que eu considero vida, pois se aquelas células se desenvolverem vão gerar vida, em relação ao momento da fecundação.
T-800:Esses embriões eu considero vida. Eu acho que a vida começa na fecundação.
Ava:É que temos o pensamento que a vida só é por causa do racional da pessoa, do indivíduo enquanto pessoa socialmente e não tem a visão de tem pessoas têm dificuldades, como deficientes mentais. Tem pessoas que as consideram irracionais, porque não desenvolvem algumas habilidades, não conseguem pensar direito, não têm o desenvolvimento cognitivo. Então, isso não seria uma vida?
Rachael:Em quase tudo que a gente fala estamos emitindo um princípio eugenista. Porque quando uma mulher está grávida dizemos: vindo com saúde é o que importa. E por que não dizer: vindo é o que importa? Quer dizer que você não aceitaria se viesse com algum tipo de deficiência. É como Ava falou, deixa de ser uma vida porque tem uma deficiência?
Ciborgue:A religião não favorece a essa técnica. Eu vejo como algo legal, pois se de fato a família não está preparada com um novo ser que muitas vezes ele pode não vir com saúde.
O relato de Ciborgue, sobre o aborto ser um tema polêmico e a religião não favorecer essa prática corrobora o atual debate da descriminalização do aborto fundamentado em premissas constitucionais e reflexões teológicas e filosóficas. Até este momento, somente é permitida a interrupção da gestação nos casos em que os fetos gerados são anencéfalos, a gestação é decorrente de um estupro ou em que a gestação põe em risco a vida da mãe. Neste ano, expressa maioria do STF negou o pedido de direito à interrupção da gravidez de mulheres infectadas pelo zika vírus (SENADORES..., 2020). Apesar de existir um consenso no que se refere ao fim da vida (morte cerebral), no discurso científico não há consenso de quando ela inicia. No âmbito das religiões, muitos discursos são produzidos e tentam legitimar seu poder. Entretanto, também não há consenso de quando a vida inicia (BARCHIFONTAINE, 2010BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Bioética no início da vida. Revista PistisPraxis: Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 41-55, jan./jun. 2010.).
Desta forma, as/os participantes do grupo foram questionadas/os sobre o conceito de vida e incitados a pensar se os embriões podem ser considerados indivíduos ou um objeto de pesquisa:
Ciborgue:No ato da fecundação dos gametas.
Major:A partir da união entre células gaméticas que fecundem.Embora a vida existente naquele segmento seja apenas estrutural, mas que ganhará formas e sentido com os processos de divisão celular.
Ava:Desde a fecundação já é considerado vida.
Robocop: O início da vida é quando o indivíduo nasce. Acho que um pouco antes, quando consegue ter uma estrutura que permite que ele não dependa do corpo da mãe.
T-800: Eu acho que a vida começa na fecundação .
Rachael:Eu sou da filosofia dos pré-zigóticos. Acredito que quando há fecundação, que ocorre formação da célula ovo, acredito que há sim uma vida ali, porém sem princípio inteligente, é só uma questão de divisão celular, mas há uma vida ali sim.
Os enunciados de Ciborgue, Major, Ava, T-800 e Rachael, podem estar alicerçados tanto em uma visão genética sobre a vida, na qual ela é formada a partir de uma estrutura celular que possua código genético único (CESARINO, 2007CESARINO, Letícia da Nóbrega. Nas fronteiras do "humano": os debates britânicos e brasileiro sobre a pesquisa com embriões. Mana, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 347-380, out. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132007000200003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 21 set. 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), como também podem estar apropriadas do discurso religioso. A igreja católica defende a vida humana a partir da fecundação e não corrobora com a manipulação de embriões, nem com o aborto (BARCHIFONTAINE, 2010BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Bioética no início da vida. Revista PistisPraxis: Teologia e Pastoral, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 41-55, jan./jun. 2010.). Para o hinduísmo, a vida começa com a fecundação, onde a alma e a matéria se encontram. Desta forma, o embrião é tido como ser humano, pois tem uma alma. Em relação ao aborto, os hindus tendem a não aceitá-lo, exceto quando a gravidez compromete a vida da mãe (BARCHIFONTAINE, 2010). O enunciado de que “o início da vida é quando o indivíduo cria uma estrutura que permite que ele não dependa do corpo da mãe”, alicerça-se na perspectiva de vida ecológica, a qual foi determinada pela Suprema Corte dos Estados Unidos para autorização do aborto (CESARINO, 2007).
As discussões jurídicas e éticas sobre as propriedades do genoma tiveram início com os debates do Projeto Genoma e atravessam questões que estão associadas ao corpo, como a clonagem, as mães de aluguel, enxerto de órgãos (KECK; RABINOW, 2009KECK, Frédéric, RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: CORBIN, Alain (org.). História do corpo: as mutações do olhar. Petrópolis, RJ: Vozes , 2009. p. 83- 105. ), bem como ao corpo-espécie, racismo e economia política (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2008.). Assim como nas ciências e religiões, entre os participantes do grupo não houve consenso de quando a vida inicia, enunciação convocada para justificar quando é ou não um aborto. É curioso, no entanto, que esse discurso não tenha a mesma força quando se trata de fazer o vivo ser confrontado com a “vida viva”: o discurso científico cede espaço para o religioso nas tentativas de explicar aquilo que um corpo seria autorizado ou não a fazer.
Ciência, religião e moral entrarão sempre em conflito nos currículos quando os corpos e a vida estiverem em disputa, e não temos aqui a pretensão de indicar se um ou outro deve estar mais ou menos presente, pois o que buscamos desestabilizar são as prescrições, a fixidez, as conduções que os currículos podem exercer. Com as provocações suscitadas nos grupos focais, queríamos ver funcionar um currículo que acontece, que está na universidade, mas também na mídia e na igreja, que sempre evoca padrões, mas que também pode ampliar seus sentidos e combater desejos de exclusão, racismo e fascismo, quando em contato com o múltiplo. Currículo “é território político, ético e estético incontrolável que, se é usado para regular e ordenar, pode também ser território de escapes de todos os tipos” (PARAÍSO, 2018PARAÍSO, Marlucy. Fazer do caos uma estrela dançarina no currículo: invenção política com gênero e sexualidade em tempos do slogan ideologia de gênero. In: PARAÍSO, Marlucy; CALDEIRA, Maria Carolina (org.). Pesquisas sobre currículos, gênero e sexualidades. Belo Horizonte: Mazza, 2018., p. 13). Currículo que acolhe a novidade obscena da vida, no sentido do que é deixado de fora de cena nos espaços educacionais, recompondo neles outros corpos em desaprendizagens (VASCONCELOS; CARDOSO; FÉLIX, 2018VASCONCELOS, Michele Freitas Faria; CARDOSO, Lívia de Rezende; FELIX, Jeane. Por uma educação obscena a desfocar corpos de hipo mulheres. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 34, p. 1-20, 2018.).
Considerações finais
Entre fenótipos, genomas, técnicas de fecundação e critérios de seleção genética, estivemos atentas no desenvolvimento desta pesquisa às construções que foram produzidas em torno dos sujeitos da biotecnologia e seus modos de encarar a vida, os padrões, as caraterísticas racializadas, as doenças, as deficiências e as diversidades genéticas das populações. Sujeitos de um currículo biológico que hierarquiza, busca por homogeneidade e percorre padrões genéticos. Currículo e sujeitos que, em conteúdos de genética ou biologia do desenvolvimento, atualizam conceitos de monstruosidade, definem abjeções, potencializam desejos por um padrão e inviabilizam nossos cotidianos inventivos.
Problematizamos a necessidade de tratar aspectos educacionais e suas relações com a biotecnologia, assim como a fabricação de corpos normalizados nos currículos. Além disso, questionamos a formação em ciências biológicas no que se refere à circulação de discursos hegemônicos sobre a vida e seus modos de ser vivida. A preocupação que lançamos sobre essa necessidade está embasada na relevância do caráter filosófico, histórico e biológico envolvido. Nas tardes de grupos focais que buscamos narrar, vimos sujeitos atravessados por discursos biológicos que disputavam autoridade para discutir, definir e manipular a vida. Ali buscamos, sobretudo, desnaturalizar as matrizes discursivas empenhadas em hierarquizar sujeitos, em instituir identidades doentes e não-doentes, deficientes e não-deficientes, abjetos e normais.
Em um espaço formativo em que eles e elas puderam relatar suas existências num exercício de interpelação com o outro, quase sempre imbuídos/as do incômodo ao se reconhecerem em discursos temerários, foi possível perceber que o sujeito “se forma em relação a um conjunto de códigos, prescrições ou normas e o faz de maneiras que não só (a) revelam a constituição de si como um tipo de poiesis, mas também (b) estabelecem a criação de si como parte de uma operação de crítica mais ampla” (BUTLER, 2015BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica , 2015., p. 29). Butler, ao analisar processos de relatar a si mesmo, que é encontro com o outro inteligível, oferece a possibilidade de alargarmos os horizontes educacionais, de pensarmos currículos de formação como despossessão. Afinal, “criar-se de tal modo a expor esses limites é precisamente se envolver numa estética do si mesmo que mantém uma relação crítica com as normas existentes” (BUTLER, 2015, p. 29). Um currículo-despossessão que escancara o eu-fascismo-biológico evidencia a contingência subjetiva e amplia as formas de vida.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Dez 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
15 Jul 2020 -
Aceito
01 Set 2020