Acessibilidade / Reportar erro

A imigração venezuelana e o contexto da alfabetização de crianças brasileiras e venezuelanas em escolas municipais de Boa Vista, Roraima, Brasil: um olhar para as considerações da gestão

RESUMO

Buscamos o entendimento sobre como a Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC) e as escolas públicas de Boa Vista/Roraima estão respondendo ao processo de alfabetização considerando o ingresso de crianças venezuelanas nas escolas. Este artigo é decorrente de uma pesquisa etnográfica, em andamento, em duas escolas municipais de Boa Vista/RR. Realizamos entrevistas com a secretária e vice-secretária, com a equipe gestora das 2 escolas envolvidas e os professores inseridos nelas. Elaboramos as categorias de análise: formação; atuação; relações e desafios. No que tange à formação profissional, todos os sujeitos apresentam formação condizente com a área de atuação e destacam as ações que a SMEC vem oferecendo. Na atuação profissional constata-se que os profissionais têm se empenhado nas distintas ações deliberadas pela SMEC, contudo, há a necessidade de a família estar presente neste processo. A imigração intensificou o olhar para a educação. Fica claro que o agravamento e o surgimento de alguns problemas se deram não somente pela imigração. A pandemia da Covid-19 e a questão econômica/vulnerabilidade das famílias aparecem como elementos importantes no processo de alfabetização e na relação que se estabelece entre a escola com as famílias e as crianças. Os desafios encontrados nos processos de alfabetização viabilizam e dão vazão para o entendimento de problemas estruturais decorrentes de vários fatores sociais, que passam a ser analisados e buscadas alternativas para sanar as problemáticas junto à SMEC.

Palavras-chave:
Imigração; Crianças Brasileiras e Venezuelanas; Alfabetização; Gestão

ABSTRACT

We sought to understand how the Municipal Department of Education and Culture (SMEC) and the public schools in Boa Vista/Roraima are responding to the literacy process, considering the influx of Venezuelan children into the schools. This article is the result of ongoing ethnographic research in two municipal schools in Boa Vista/RR. We conducted interviews with the secretary and deputy secretary, the management team of the two schools involved, and the teachers who work in them. We drew up categories of analysis: training, performance, relationships, and challenges. As far as professional training is concerned, all the subjects have training consistent with their area of work, and they highlight the actions that SMEC has been offering. In terms of professional performance, the professionals have been committed to the different actions deliberated by the SMEC. However, there is a need for the family to be present in this process. Immigration intensified the focus on education. The worsening and emergence of some problems was not only due to immigration. The COVID-19 pandemic and the economic/vulnerability of families are important elements in the literacy process and in the relationship between the school, families, and children. The challenges encountered in the literacy process enable and give rise to an understanding of structural problems arising from various social factors, which are then analyzed, and alternatives sought to remedy the problems with the SMEC.

Keywords:
Immigration; Brazilian and Venezuelan Children; Literacy; Management

Aproximações

A partir dos anos de 2017-2019 as pesquisas vêm mostrando um aumento significativo de venezuelanos migrando para distintos países da América Latina devido à crise econômica e social em seu país. O Brasil tem sido um dos países que tem recebido estes imigrantes1 1 Imigração/imigrante aqui é usado no sentido de destacar o sujeito que entra em outro país para fins de trabalho ou residência. Assim, o sujeito é visto, pelo país que o recebe, como imigrante. venezuelanos. Segundo os dados do Subcomitê Federal para Recepção, Identificação e Triagem dos Imigrantes, nos últimos cinco anos o Brasil registrou a entrada de mais de 700.000 venezuelanos (MJSP, 2022). Muitos venezuelanos cruzam a fronteira pelo estado de Roraima e, geralmente, se concentram na capital Boa Vista, e no município de fronteira, Pacaraima. Estes estudos mostram que as crianças imigrantes venezuelanas têm sido suscetíveis ao trabalho infantil e a renúncia à matrícula escolar (Custódio; Cabral, 2021CUSTÓDIO, André Viana; CABRAL, Johana. O trabalho infantil de migrantes e refugiados no Brasil. Revista de Direito Internacional. v. 18, n. 1, p. 216-242, 2021. https://doi.org/10.5102/rdi.v18i1.7116
https://doi.org/10.5102/rdi.v18i1.7116...
). Ademais, enfrentam discriminação no processo de matrícula nas escolas brasileiras (Lacerda; Melchior, 2021LACERDA, Luis Felipe Perucci; MELCHIOR, Liriam. As Novas Políticas Migratórias Brasileiras e o Impacto na Vida dos Imigrantes Venezuelanos. Revista Continentes, n. 18, p. 135-161, 2021. https://doi.org/10.51308/continentes.v1i18.330
https://doi.org/10.51308/continentes.v1i...
), xenofobia e racismo (Assumpção; Aguiar, 2019ASSUMPÇÃO, Adriana Maria; AGUIAR, Gabriela de Azevedo. “Tienes que hablar portugués con tu hijo”. Retos para el proceso de inclusión de los niños inmigrantes en las escuelas de Río de Janeiro. Revista Iberoamericana de Educación, v. 81, n. 1, p. 167-188, 2019. https://doi.org/10.35362/rie8113541
https://doi.org/10.35362/rie8113541...
) e muitas vezes são encarados como “o outro” (Vasconcelos, 2018VASCONCELOS, Iana dos Santos. Receber, enviar e compartilhar comida: aspectos da migração venezuelana em Boa Vista, Brasil. REMHU, v. 26, n. 53, p. 135-151, 2018. https://doi.org/10.1590/1980-85852503880005309
https://doi.org/10.1590/1980-85852503880...
).

A conjuntura da imigração e pandemia da Covid-19 aumentou os desafios e vulnerabilidades do sistema público de ensino, em uma realidade que já enfrentava dificuldades devido à falta de apoio Federal e Estadual. Crianças brasileiras e imigrantes venezuelanas compartilham salas de aula e recursos em um dos estados brasileiros que mais sofreu com a pandemia e que continua sendo um dos estados com o menor índice de vacinação no Brasil, tendo 69,3% de sua população vacinada, ficando atrás apenas do Amapá que apresenta 68, 8% de sua população vacinada (G1, 2023).

Em resposta ao crescente número de imigrantes venezuelanos que chegam ao país, desde 2018 o governo federal brasileiro estabeleceu um programa de realocação interna voluntária, conhecido como “Interiorização”, parte integrante da Operação Acolhida. O programa Interiorização promove a realocação de venezuelanos situados em Roraima para outros municípios de todo o Brasil. Porém, apesar de iniciativas como essa, ainda há situações bastante complexas que precisam ser abordadas.

Neste sentido, este artigo2 2 A pesquisa é financiada pelo Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos e por Lemann Research Grant da Universidade Harvard. é resultado de um projeto etnográfico que objetiva compreender como ocorre o processo de integração de crianças brasileiras e venezuelanas no ambiente escolar da rede municipal de ensino em Boa Vista/RR. Para tanto, trabalhamos com dois objetivos específicos: (1) explorar como crianças refugiadas venezuelanas e crianças brasileiras vivenciam o espaço escolar e educacional em escolas públicas de ensino fundamental; (2) entender como representantes da Secretaria Municipal de Educação (SMEC), gestores e professores de escolas públicas municipais estão apoiando as oportunidades educacionais de crianças brasileiras e crianças refugiadas venezuelanas em Boa Vista/RR. Em decorrência do andamento da pesquisa, neste estudo focamos nosso olhar para o objetivo específico 02, o qual temos dados que serão explanados.

Sendo assim, visamos compreender como a Secretaria Municipal de Educação e as Escolas públicas municipais de Boa Vista/RR estão respondendo ao processo de alfabetização considerando o ingresso de crianças venezuelanas.

O que percebemos sobre esse objetivo é o processo de mobilização de ações realizadas tanto pelos docentes das escolas, como pela administração, a SMEC. Concomitantemente, existem oportunidades para o fortalecimento de ações, de modo que sejam implementadas de maneira consistente por toda a rede. Crianças e famílias venezuelanas exibem realidades complexas que necessitam a integração de políticas sociais e econômicas, além das educacionais.

Caminhos trilhados

Este artigo é resultante de um projeto etnográfico, em andamento, o qual em sua estrutura macro abrange um estudo de dois anos e objetiva compreender o processo de integração de crianças brasileiras e venezuelanas no ambiente escolar da rede municipal de ensino em Boa Vista/RR. Para tanto, nesta etapa da investigação e, consequentemente, na elaboração deste artigo pautamos nosso olhar em como a SMEC e as escolas públicas de Boa Vista estão respondendo ao processo de alfabetização, considerando o ingresso de crianças venezuelanas em suas salas de aula.

Esta etnografia teve durabilidade de 2 anos (2022.2 a 2024.1) e foi organizada a partir dos estudos de Emerson, Fretz e Shaw (1991EMERSON, Robert; FRETZ, Rachel; SHAW, Linda. Writing Etnographic Fieldnotes. 2 ed. Chicago: University of Chicago Press, 1991.). Estão envolvidas uma equipe de pesquisadoras sediada em Boa Vista/RR na Universidade Federal de Roraima (UFRR) e outra equipe sediada nos EUA, na Universidade de Harvard, a qual financia a pesquisa. A equipe de Boa Vista/RR vem ao longo dos anos realizando investigações acerca da imigração venezuelana, tendo em vista a inserção das praticantes em programas de graduação, mestrado e doutorado em Educação da UFRR. Assim, a proposta de estudo surge por interesse da Universidade de Harvard em sediar pesquisas em locais de imigração e, desta forma, a equipe de Roraima operacionaliza as ações a partir da articulação com a SMEC e com as escolas.

Para a realização da pesquisa iniciamos com uma série de procedimentos que começaram a partir do contato inicial e da aprovação do desenvolvimento da pesquisa na SMEC e no Comitê de ética. A partir dessas aprovações contatamos a SMEC e realizamos uma conversa acerca do projeto. A SMEC indicou as 2 escolas municipais com o maior número de alunos imigrantes venezuelanos matriculados. Com essas informações a SMEC fez a apresentação da equipe de pesquisadoras para a coordenação das escolas, as quais juntamente com a equipe escolar elegeram as turmas que fizeram parte da pesquisa. Cabe destacar que esse contato foi feito na escola, onde as pesquisadoras se direcionaram ao ambiente, conheceram o espaço e conversaram com a equipe gestora da escola, a fim de entender e buscar as turmas que pudessem contribuir para o entendimento da integração das crianças brasileiras e venezuelanas.

Desta forma, foram selecionados, no ano de 2022, uma turma de alunos do primeiro ano de cada escola. Essa turma foi acompanhada no ano seguinte (2023) e será acompanhada no terceiro ano (2024). O acompanhamento é feito e documentado em relatórios semanais de observação. Em cada turma um dos membros da equipe se dedica a ficar duas horas semanais anotando os processos de integração das crianças no ambiente escolar. Tais procedimentos referem-se ao projeto como um todo. Todavia, neste artigo focamos nos seguintes instrumentos de pesquisa: documentos legais e entrevistas semiestruturadas.

No que tange às análises de documentos foram consideradas as políticas públicas nacionais para o imigrante; as legislações relativas ao acesso dos imigrantes aos serviços; e os dados do Observatório da Educação (SMEC, 2023). Respectivos dados possibilitaram entender os procedimentos legais que estão sendo adotados pela rede municipal de ensino de Boa Vista/RR.

Outrossim, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com a secretária e vice-secretária da SMEC, com os gestores, professores e cuidadores de crianças matriculadas nas escolas municipais de Boa Vista/RR. À vista disso, para a análise etnográfica buscamos padrões interativos entre os dados dos documentos, das entrevistas semiestruturadas e dos relatórios das observações (2022 e 2023).

Quanto a análise de dados (Emerson, Fretz; Shaw, 1991EMERSON, Robert; FRETZ, Rachel; SHAW, Linda. Writing Etnographic Fieldnotes. 2 ed. Chicago: University of Chicago Press, 1991.), a equipe leu as entrevistas e as anotações. Após a familiarização com os dados, as pesquisadoras começaram a categorizar, identificando unidades ou segmentos significativos relacionados à pergunta de pesquisa. Isso envolveu rotular e organizar essas unidades em categorias, as quais podem ser descritivas (resumindo explicitamente o conteúdo) ou interpretativas (capturando significados subjacentes). Após essa etapa, foram revisados e comparados temas, em sincronia com as categorias em todo o conjunto de dados. Procuramos padrões, conexões e relacionamentos entre diferentes categorias. Os temas foram identificados como padrões recorrentes de significado ou ideias nos dados.

Análises e estruturas teóricas

Os movimentos imigratórios têm aumentado consideravelmente. No final do século XX e início do XXI é possível observar transformações significativas nas políticas migratórias brasileiras e internacionais. No ano de 2017, foi promulgada a Lei de migração n° 13.445/2017 (Brasil, 2017), considerada uma das leis mais modernas no mundo referente à garantia dos Direitos Humanos de migrantes. Nesta lei percebemos a visão do migrante como cidadão nacional conciliado com os princípios constitucionais, situação que muda a perspectiva do imigrante como ameaça, vista na lei anterior nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 (Brasil, 1980) e (Lacerda; Melchior, 2021LACERDA, Luis Felipe Perucci; MELCHIOR, Liriam. As Novas Políticas Migratórias Brasileiras e o Impacto na Vida dos Imigrantes Venezuelanos. Revista Continentes, n. 18, p. 135-161, 2021. https://doi.org/10.51308/continentes.v1i18.330
https://doi.org/10.51308/continentes.v1i...
).

É com embasamento nos princípios encontrados no Art. 3º da política migratória brasileira que os imigrantes venezuelanos passam a ser recepcionados e começam a ingressar nos diferentes setores sociais da cidade de Boa Vista/RR, seja na educação, saúde, comércio, dentre outros.

No que tange à educação, os dados da SMEC (2023) encontrados no Observatório da Educação mostram um pouco da realidade educacional das 126 escolas municipais na cidade de Boa Vista/RR. Das escolas de Boa Vista/RR tem-se 12 indígenas e 5 escolas do campo (que ficam na área rural).

Destacamos que o Observatório da Educação é um projeto da SMEC que busca dar transparência aos dados das escolas municipais de Boa Vista/RR. No ano de 2023 são aproximadamente 48.500 crianças matriculadas. A seguir é possível visualizar as nacionalidades encontradas no sistema de educação municipal até o ano de 2021.

Imagem 1:
Matrícula de alunos imigrantes por nacionalidade (exceto venezuelanos).

Os dados das matrículas retratam a diversidade de nacionalidades presentes nas escolas municipais, destacando-se os imigrantes da Guiana Inglesa e Haiti, os quais se apresentam com quantitativo mais elevado em relação aos demais.

Não obstante, no que tange à imigração venezuelana, vemos um número bem mais expressivo, conforme mostram os dados do Observatório da Educação, sobretudo no ano de 2022, quando das 45.627 crianças matriculadas 7.615 eram venezuelanas.

Imagem 2:
Matrículas de alunos imigrantes venezuelanos.

Inferimos que entre 15 a 20% das crianças matriculadas nas escolas municipais são crianças venezuelanas. Com a intensificação das matrículas nas escolas, a partir de 2017, juntamente com a pandemia da Covid-19, a incidência aumentou anualmente e algumas problemáticas distintas passaram a ser evidenciadas nos espaços escolares.

Neste contexto, buscamos trabalhar na perspectiva de entender como a SMEC e as escolas públicas de Boa Vista/RR estão respondendo ao processo de alfabetização, considerando o ingresso de crianças venezuelanas. Para tanto, buscamos analisar as entrevistas realizadas com a SMEC e as entrevistas com os gestores, professores e cuidadores das duas escolas indicadas como as com mais contingente de alunos venezuelanos em Boa Vista/RR.

Ambas as escolas se encontram próximas à abrigos de recepção dos imigrantes. A escola municipal 01 apresenta muros que fazem divisa com os muros do Abrigo Rondon localizado no bairro 13 de setembro. No ano de 2022, quando iniciamos a pesquisa, a escola possuía um total de 541 alunos, sendo 270 alunos venezuelanos3 3 Esses dados foram informados pela escola em setembro de 2022. Devido ao constante fluxo das crianças migrantes os dados são alterados constantemente ao longo do ano. . No ano de 2023, dos 533 alunos matriculados, 257 são estrangeiros e, dentre esses, 122 moram nos abrigos. Além dos alunos estrangeiros a escola apresenta 26 alunos indígenas da etnia Warao, todos vivendo nos abrigos. A escola municipal 02 fica no Bairro Nova Canaã, onde se localizava o abrigo do Pintolândia (abrigo de imigrantes venezuelanos e indígenas Warao). A escola, no ano de 2022, possuía um total de 850 alunos, sendo 131 alunos venezuelanos. Já no ano de 2023, a escola contou com 966 alunos matriculados, com 161 alunos venezuelanos e 13 indígenas Warao.

Na construção da pesquisa realizamos, a partir da aproximação com a SMEC e com as escolas, entrevistas com a secretária e vice-secretária da SMEC e com a equipe gestora das duas escolas, bem como com os professores que atuam nas salas selecionadas para o estudo.

Fizeram parte desse momento a Secretária de Educação (SeSMEC) e a Secretária Adjunta de Educação (SeAdSMEC), a coordenadora pedagógica da escola municipal 01 (CPPp), a professora regente da escola municipal 01 (PRPp) e a professora de artes da escola municipal 01 (PAPp). Enquanto na escola municipal 02 fizeram parte: a coordenadora pedagógica da escola municipal 02 (CPNc), a professora regente da escola municipal 02 (PRNc) e a cuidadora da escola municipal 02 (CNc), contabilizando, assim, 8 profissionais da educação da rede municipal de ensino envolvidas nos diferentes âmbitos de formação4 4 A etapa das entrevistas e da análise dos dados contou com a participação da acadêmica do curso de Graduação em Artes Visuais da UFRR Yasmin Gabriela da Silva Faray. .

Por meio das entrevistas realizadas passamos a organizar os dados em categorias e subcategorias, abaixo apresentadas, a fim de que pudéssemos realizar a discussão e problematização das questões elencadas.

Quadro 1:
Categorias de análise.

Na categoria de Formação adentramos na perspectiva da formação docente e/ou na formação voltada à atuação na gestão escolar. Quanto a área de formação, as 8 profissionais envolvidas têm formação na área da Pedagogia com especialização em áreas de interesse. A PAPp possui a especialização no campo das artes, a PRPp tem especialização na área de Psicopedagogia e, a PRNc conta com especialização em pedagogia escolar, administração escolar, teologia e mídias na educação. Por outro lado, apenas a CNc não possui formação específica, tendo em vista que o cargo não exige. A secretária e a secretária adjunta apresentam especialização em Pedagogia Escolar e Educação Especial, respectivamente. No que diz respeito ao tempo de atuação, as PR apresentam entre 20 e 35 anos de atuação, tendo experiências especialmente no campo da alfabetização, coordenação e gestão escolar. A CPPp, a PAPp, a CPNc e a CNc apresentam atuação que varia entre 4 e 12 anos, passando por experiências laborais distintas. A secretária e a secretária adjunta também se possuem entre 10 a 15 anos de atuação.

O educador Freire (1996FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 23. reimp. São Paulo: Paz e Terra, 1996.) se referiu à formação como um fazer permanente, que se refaz constantemente na ação. Sabemos que a formação não ocorre por mera acumulação de conhecimentos, mas constitui uma conquista moldada por várias ações formativas. É um fazer e aprimoramento constante. Neste sentido, a educação continuada destes profissionais precisa se manter em constante engajamento e aperfeiçoamento e, é nessa perspectiva que observamos as buscas que vêm sendo realizadas pelos profissionais contemplados nesta investigação.

Segundo Libâneo (2008LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 2008., p. 227),

o termo formação continuada vem acompanhado de outro, a formação inicial. A formação inicial refere-se ao ensino de conhecimentos teóricos e práticos destinados à formação profissional, completados por estágios. A formação continuada é o prolongamento da formação inicial, visando o aperfeiçoamento profissional teórico e prático no próprio contexto de trabalho e o desenvolvimento de uma cultura geral mais ampla, para além do exercício profissional.

Portanto, inferimos que cabe aos profissionais da educação a consciência de que esse processo deverá estar presente ao decorrer de toda a sua vida profissional. Cabe, contudo, destacar que os professores que atuam na sala de aula são convidados/indicados para atuarem na gestão (Coordenação pedagógica e Direção escolar), mesmo não tendo formação específica para tal. Por conseguinte, as experiências de atuação na gestão escolar não correspondem a algo condicionado à especificação formativa. Com isso, muitos dos professores, em algum momento de sua atuação, acabam adentrando na experiência da gestão escolar e acabam buscando especializações específicas na área de gestão escolar, por exemplo.

A SeAdSMEC destaca que um dos ganhos dos últimos anos foi o projeto Gestores Unidos, o qual busca trabalhar a formação e a socialização de experiências juntamente com os gestores. É uma forma que a SMEC encontrou de estar mais próxima dos gestores e de possibilitar o diálogo destes com a superintendência da educação básica. Este é um dos projetos que surgiu dentre as demandas da pandemia da Covid-19 e do aumento da imigração venezuelana e ainda segue vigente.

Na categoria de Atuação, buscamos apresentar ponderações acerca da atuação nas estruturas da SMEC, adentrando na forma como é feita a orientação pedagógica pela SMEC e a operacionalização pelos docentes; ainda, apresentamos dados para compreendermos a atuação com alunos imigrantes. Na subcategoria da atuação nas estruturas da SMEC obtivemos como resposta que a SMEC se organiza da seguinte forma:

especificamente, dentro da estrutura pedagógica nós somos organizados por macro áreas. Em cada macro área nós temos uma equipe técnica com seu coordenador que caminha com determinado número de escolas. [...] Então, dentro dessa macro área nós temos o coordenador e os monitores. Esses monitores são profissionais que dão suporte para a escola. [...] Então a gente tem a superintendência de Educação Básica que coordena esse trabalho e depois, nós temos os gerentes e a representatividade do gerente da Educação Infantil, do Ensino Fundamental, de Educação física e Artes. Essa é uma equipe que coordena e acompanha o trabalho dos coordenadores que coordenam os monitores. Então é efeito cascata (SeAdSMEC, 2023).

Assim, a partir da organização em macro áreas, o processo educacional ocorre por meio de um sistema estruturado, conforme podemos ver nas narrativas a seguir.

O planejamento da gente é estruturado, ele é de acordo com o que vem da secretaria aí o professor faz as adaptações de acordo com a sua realidade, mas tem que seguir aquela estrutura. Tipo assim, ele tem 8 dias para trabalhar a língua portuguesa, aquele conteúdo. Então, o professor tem que trabalhar aquele conteúdo naqueles 8 dias, no caso ele tem que fazer adaptação para aqueles alunos com dificuldade e se não conseguir tem que fazer esses projetos de leitura, justamente porque ele não consegue acompanhar (CPPp, 2022).

As escolas municipais de Boa Vista seguem um método de alfabetização fonológica ou fonética que ajuda bastante as crianças pois tem seu fundamento no som de cada letra e isso facilita para as crianças, até mesmo aquelas que tem algum problema de dicção. Trabalhamos com os materiais do Instituto Alfa e Beto (PRPp, 2022).

É o ensino estruturado do IAB. Esses livros são mandados de fora, para a prefeitura e são distribuídos aos alunos. Cada aluno recebe seu kit, com 5 livros: Português, matemática e ciências. O de matemática vem o volume 01 e 02. O livro do professor e o livro de Leitura. Vem o kit, todos os alunos ganham o seu kit (CPNc, 2023).

Respectivo planejamento estruturado, é uma prerrogativa didática feita pelo material didático do Instituto Alfa e Beto5 5 Este Instituto é uma organização não-governamental sem fins econômicos que prima pelo trabalho para a melhoria da educação no Brasil. Fundado em 2006 pelo professor João Batista Araújo e Oliveira. O material e as especificações podem ser encontrados no site: https://www.alfaebeto.org.br/. , ademais,

ele tem um acompanhamento, não é só a venda do material ele tem um suporte para a equipe interna, para as escolas, esse é um dos diferenciais que a equipe desse programa tem. E se a gente for pegar os índices educacionais do município de Boa Vista foi uma crescente com o uso desse material a exceção em 2020, que todo o Brasil sofreu por conta da pandemia. Mas é um material que vem trazendo resultados, no início teve muita resistência dos professores, mas hoje eu escuto assim: se tirar esse material, o professor não sabe mais nem planejar (SeSMEC, 2023).

Juntamente com o ensino estruturado, há projetos que são organizados pela SMEC no sentido de atender as demandas educacionais específicas dos alunos. A SeSMEC mostra a lista de todos os projetos realizados por série. São eles: Creche e Pré-escola: PDDE Interativo, Educação Familiar, Wi-fi Brasil, PDDE Campo; 1º e 2º período: PNLD- Programa Nacional de Livros e Materiais didáticos, PDDE Interativo, Educação Familiar, Wi-fi Brasil, PDDE Campo, Tempo de Aprender, Compasso socioemocional, Compasso MIND e, Robótica Educacional; 1º e 2º ano: Ensino estruturado IAB, PNLD- Programa Nacional de Livros e Materiais didáticos, PDDE Interativo, Educação Familiar, Wi-fi Brasil, PDDE Campo, Tempo de Aprender, BV Alfaletrar, Sala de Recursos, Educação conectada, Compasso socioemocional, Compasso MIND e, Robótica Educacional, CGU: Um por Todos e Todos por Um; 3º, 4º e 5º ano: Ensino estruturado IAB, PNLD- Programa Nacional de Livros e Materiais didáticos, PDDE Interativo, Educação Familiar, Wi-fi Brasil, PDDE Campo, Tempo de Aprender, BV Alfaletrar, Sala de Recursos, Educação conectada, Compasso socioemocional, Compasso MIND e, Robótica Educacional, CGU: Um por Todos e Todos por Um, Jornal Joca, Árvore, EDTECH Brasil.

Ainda, a CPNc apresenta alguns dos projetos que são mais destacados, tais como:

BV Alfaletrar: projeto de reforço para a alfabetização na sala de aula no 1 e 2 anos e, no turno inverso no 3 e 4 ano. Tempo de aprender: que é um projeto Federal, do Ministério da Educação, onde há uma professora que retira os alunos da sala para fazer o reforço. Compasso socioemocional e Compasso Mind: que visam acompanhar as questões emocionais da criança. Tablet: nas turmas do 1 e 2 ano. Inicialmente era somente para o 1 ano, mas hoje eles são disponibilizados também para o 2 ano (CPNc, 2023).

Há, portanto, um apoio didático de materiais e de projetos para atender as demandas da escola. Contudo, conforme sinaliza a CPPp, a situação problema é que “eles querem que a gente execute tudo junto, não tem como executar tudo junto. Deveria aproveitar esses projetos que eles oferecem para a gente, de acordo com a necessidade de cada turma” (CPPp, 2022).

Talvez, a sinalização aqui apontada seja para uma melhor distribuição dos projetos no tempo de aula. No dia a dia da atuação do professor e do aluno há uma carga de ações bastante intensa. Geralmente os professores têm mais de um contrato de trabalho de 20hs, que conforme sinaliza a PAPp, torna-se 25h ao todo. Sendo assim, o tempo destinado para a organização e operacionalização dos projetos nas distintas turmas que atuam nem sempre corrobora para que o professor e os alunos usufruam da melhor forma das ações que são propostas no ambiente escolar.

Essa prerrogativa de atuação dos professores intensifica-se ao pensarmos na atuação com alunos imigrantes que, além das demandas regulares de atuação dos profissionais envolvidos, demanda outras especificidades, conforme apontaram as entrevistadas.

A gente parte do princípio de que toda a criança é criança e tem direito à educação independente da sua nacionalidade. Então, quando no início, eu lembro que tinha muita resistência dos professores, dos pais, enfim, de toda a comunidade escolar [...]. Existia porque os pais falavam isso em casa e as crianças traziam isso para dentro da escola. É o Venezuelano que está tomando a vaga do brasileiro. E houve alguns trabalhos de oficinas com os alunos, o próprio material do Compasso, que é um programa socioemocional que tem na rede ele ajudou muito a questão da empatia, a acolher os pais, a acolher esses alunos (SeSMEC, 2023)

Aqui, na nossa escola, aqui no caso, a gente tem mais [...] que acolher os migrantes pois a gente está rodeado de abrigos. É difícil, a maioria aqui é imigrante. Aí a gente vai ter que atender esses alunos sem termos a habilidade da língua, que eu não sei falar em espanhol, a maioria dos professores também não sabem. A gente tem essa dificuldade, de quando o aluno vem a gente tem que passar aquele mês de adaptação ou dois meses, para eles entenderem a nossa língua e a gente os entender, mas é mais assim, para entender, é eles que tem que falar a nossa língua. A gente não se esforça muito para entender eles (CPPp, 2022).

Quando a gente fazia a reclassificação, é que antes a reclassificação era somente na língua portuguesa. A gente faz a reclassificação dos alunos que estão fora da faixa etária e os alunos excepcionais que são os migrantes. [...] O aluno sabia ler em espanhol, ele era alfabetizado, mas quando vinha para o português ele não conseguia porque ele não entendia o que ele estava lendo. [...] Aí agora a gente fez a reclassificação. A SMEC propôs e encaminhou para a gente a nova reclassificação e aí eles têm a língua portuguesa com a tradução do espanhol aí facilitou para eles. Aí muitos conseguem alcançar a reclassificação para ir para a série destinada de acordo com a faixa etária dele (CPPp, 2022).

Na verdade, eu continuei com a mesma prática só que agreguei mais outros recursos. Quando eu estava só com os brasileiros, era mais fácil porque o livro já vem pronto. [...] Só que com a chegada dos venezuelanos eles não entendiam a leitura, então nós fomos agregando atividades diferenciadas e acompanhando casos isolados também. Em 2020 principalmente, que começou a pandemia, era aula online e era mais difícil, então fui colocando outras atividades mais simples para eles. Então, o objetivo naquele momento era que eles aprendessem a falar o nosso idioma para que eu pudesse também já estar juntando todos os alunos num mesmo nível de aprendizagem (PRNc, 2022).

Olha só, com a migração [...] os pais queriam muito que os alunos estudassem. O grande problema era a questão da língua. Então, se já era um agravante ensinar um aluno, ajudar, fazer com que o aluno acompanhasse essas aulas, da nossa língua, da nossa nação, imagina os que estavam chegando que tinha a dificuldade da língua (CPNc, 2023).

A presença de crianças imigrantes na turma passou a demandar outras estruturas. Contudo, cabe reforçar que, além dessa situação, a pandemia da Covid-19 é constantemente citada pelos profissionais da educação como um fator que mobilizou a necessidade de outras estratégias de atuação pedagógica.

Se a presença do imigrante requiriu demandas da compreensão da língua espanhola e da estruturação de dinâmicas de acolhimento/reclassificação/estruturação pedagógica, a pandemia da Covid-19, por sua vez, intensificou as demandas já existentes no sistema escolar municipal, principalmente, no que se refere ao abandono escolar. No que tange ao acolhimento/reclassificação e estruturação pedagógica, o município adotou a Instrução Normativa nº 003/2007 (SMEC, 2007) e implementou a Resolução/CME/BV/RR nº 12/2005 (SMEC, 2005), a qual estabelece as normas para matrícula inicial, por transferência e em regime de progressão parcial, aproveitamento de estudos, classificação e reclassificação, adaptação, equivalência e revalidação de estudos feitos no exterior, e regularização da vida escolar nas unidades escolares integrantes ao sistema municipal de ensino de Boa Vista/RR.

Essa Resolução passa a estabelecer as formas de ingresso dos alunos, particularmente os imigrantes, ao ambiente escolar e tem o destaque do material de reclassificação ser apresentado em português e espanhol, como menciona a CPPp, e é reforçado pela SeSMEC, quando coloca que esse processo passou por mudanças que acabaram facilitando e ampliando as possibilidades de inserção do aluno migrante à rede municipal de ensino. Conforme a SeSMEC (2023),

um avanço muito grande que a rede teve. s alunos chegavam na rede, eles passavam pelo processo de classificação e o processo anterior, as crianças faziam as provas das 5 disciplinas: Português, Matemática, Ciências, Geografia e História. Então, imagina uma criança chegando de um país completamente desconhecido, com uma língua diferente e ele é submetido a 5 avaliações. Ele tinha que dar conta da história do Brasil, da geografia, enfim. Sob a orientação e parceria com o Conselho Municipal de Educação, nós fizemos a solicitação e foi acatado nos fazermos a prova apenas em Língua Portuguesa e Matemática e com a tradução para o espanhol. Na primeira aplicação, entre 900 a 1000 crianças fizeram e foram aprovadas nesse processo. Nós conseguimos aplicar em toda a rede, e foi um avanço para as crianças. Imagina, quase 1000 crianças conseguiram avançar em virtude disso. Então, a estratégia que é usada na rede é essa. E antes da criança fazer a matrícula ela já passa por esse processo de classificação (SeSMEC, 2023).

Entretanto, a questão do abandono escolar ainda é um ponto complexo e que demanda compreensão do contexto da imigração. Alguns dos possíveis e prováveis fatores de aumento do abandono têm relação com a pandemia da Covid-19, em virtude dos problemas econômicos, de saúde e psicológico, mas, também envolvem o processo de interiorização e retorno à Venezuela das famílias venezuelanas. Isso pode ser evidenciado na fala da CPNc quando coloca que:

há um índice, o aumento de um índice pois tinha a dificuldade da língua, eram crianças que sumiam. Não sei se eles pensavam assim, e não tinha aquele compromisso. E foi ficando, e foi um agravante a imigração e a pandemia. Então isso resultou em um agravante. No nosso estado aqui foi bem difícil (CPNc, 2023).

A questão do abandono escolar decorre de situações complexas da migração que vão além dos movimentos de inclusão das crianças imigrantes. Podemos perceber que apesar de buscar uma perspectiva inclusiva, como colocada por Aranha (2004ARANHA, Maria Salete Fabio. Educação inclusiva: transformação social ou retórica? In: OMOTE, Sadao (Org.). Inclusão: intenção e realidade. Marília: Fundepe, 2004. p. 37-60. https://doi.org/10.36311/2004.85-98176-02-8
https://doi.org/10.36311/2004.85-98176-0...
, p. 07), a “Escola inclusiva é aquela que garante a qualidade de ensino educacional a cada um de seus alunos, reconhecendo e respeitando a diversidade e respondendo a cada um de acordo com suas potencialidades e necessidades” no relato da CPPp há sinais de preconceitos e não compreensão da realidade do sujeito imigrante quando aponta que “a gente não se esforça muito para entender eles e não há uma motivação da equipe docente para o aprendizado alegando que “é eles que tem que falar a nossa língua” (CPPp, 2022). Ou seja, embora haja a compreensão do contexto, o preconceito e a soberania da língua empoderam o discurso de superioridade de um para com o outro.

Para a criança imigrante aprender o idioma é um dos passos necessários para sua inclusão no ambiente escolar, porém, a solidariedade, a empatia e o espírito colaborativo da sociedade que o recebe é o que vai garantir que este se sinta parte no grupo.

Estas questões refletem também na categoria de Relações, que passa a ser estabelecida com a gestão da escola/SMEC e a relação com os pais das crianças imigrantes, como salientam as entrevistadas a seguir.

Sim, e a gente percebeu, eu estava conversando com o secretário, ele percebeu também uma situação. Muitos pais vêm matricular os filhos só para receber o direito deles fazer a interiorização, que é um dos requisitos - o filho estar matriculado na escola (CPPp, 2022).

Aí os pais também, dos alunos migrantes são difíceis, eles não são participativos, eles não estão nem aí para a atividade escolar dos filhos. Assim, se for exceção, de 100 eu tiro, eu acho que uns 3 que são participativos. Tem uns que nem telefone para contato tem e quando a gente consegue contato eles não vêm. É difícil (CPPp, 2022).

Não faz diferença! Os pais, assim ó, não importa se é brasileiro ou não, muitos não vão para escola nem para receber o professor de sala regular (PAPp, 2022).

Têm. Os venezuelanos acompanham mais do que os brasileiros. Tem alunos brasileiros que o pai não é muito presente não (PRNc, 2022).

Fica evidente nas falas que há alguns processos que foram surgindo decorrentes da imigração, mas há situações que existiam anteriormente e ainda existem, indiferentemente das crianças e dos pais serem brasileiros ou venezuelanos. A narrativa da PRNc e da PAPp enfatiza que o não acompanhamento das crianças na escola não se trata de uma situação especificamente inerente aos pais imigrantes. Isso, parece ter mais relação com as condições econômicas/sociais desses pais, os quais muitas vezes não possuem um emprego, uma casa, e com isso, demandam tempo em busca das condições primárias de sobrevivência da família.

A dificuldade de alguns, se não me engano, do abrigo Pricumã [...] quando é dia de chuva diz que alaga e eles não vêm por essa situação. Aí quando tem essas situações de fenômenos da natureza, aquela ventania que deu, diz que molhou tudo, diz que é fragilizado o abrigo deles, aí tudo afeta, aí tudo é desculpa. Desculpa não, é a realidade [...] (CPPp, 2022).

As considerações feitas acerca da CPPp deixam evidente a fragilidade econômica ao tratar das situações dos abrigos e dos pais não terem celulares para que a escola os contate. Assim, não é somente a condição de nacionalidade que os faz participar ou não da vida escolar das crianças, mas também as condições econômicas que circunscrevem o sujeito imigrante.

Essa constatação pode ser observada na subcategoria onde buscamos enfocar a relação entre as crianças, na qual as entrevistadas citaram, que os migrantes sempre chegam com medo, apreensivos e até com receio de se comunicar. Porém toda criança tem uma facilidade muito grande de adaptação e relacionamentos de amizade, “em poucos dias eles já estão se sentindo à vontade com os demais. Ver o desenvolvimento social deles é maravilhoso, além disso, a gente nem percebe quem são os brasileiros. É uma relação muito tranquila” (PRNc, 2022). Concomitantemente, a CPNc (2023) esclarece:

Isso eu vejo em outras salas, o acolhimento que quando a gente voltou da pandemia e que os venezuelanos já estavam aqui. Não teve essa diferença. Alguns professores a gente conversava em sala e nossa, a minha turma tem mais venezuelano e eu tenho mais dificuldade pois eu tenho que trabalhar mais a língua, a aprendizagem da leitura e escrita. Era esse o ponto, a dificuldade de trabalhar com eles pois eles vinham de língua diferente e não faziam as atividades online pois não tinham acesso à internet.

A relação de empatia entre as crianças de diferentes nacionalidades mostra a importância do trabalho de socialização no contexto escolar, tendo em vista que nessa etapa da formação não há distinção de nacionalidade para as relações que são estabelecidas.

Percebemos que há uma maior demonstração de preconceito na relação dos adultos, com os profissionais da educação e com os pais. Um dos dados relatados pela CPNc é a falta de compreensão dos pais brasileiros para com a disponibilização de vagas. A matrícula nas escolas municipais de Boa Vista/RR é feita através de ligações para a Central de Matrículas e, o critério de vagas é a ordem de chegada das ligações.

A CPPp menciona que os pais das crianças venezuelanas entenderam esse processo. Muitas vezes eles se adiantam e conseguem as vagas, enquanto os pais brasileiros acabam deixando para mais tarde e perdendo a vaga da criança na escola desejada. Tal realidade é algo recente, pois logo no início da imigração havia uma enorme dificuldade de compreensão, de organização da documentação e de encaminhamento dos pais junto à Central de Matrículas para a efetivação da vaga. Esse contexto é relatado por Lacerda e Melchior (2021LACERDA, Luis Felipe Perucci; MELCHIOR, Liriam. As Novas Políticas Migratórias Brasileiras e o Impacto na Vida dos Imigrantes Venezuelanos. Revista Continentes, n. 18, p. 135-161, 2021. https://doi.org/10.51308/continentes.v1i18.330
https://doi.org/10.51308/continentes.v1i...
) quando abordam sobre a discriminação e a falta de empatia com os pais no processo de recepção da documentação e aceite das matrículas nas escolas. Contudo, com o passar dos anos os pais foram se adaptando e começaram a ficar atentos aos processos. Essa situação, segundo a CPPp ainda tem gerado falas preconceituosas em relação aos imigrantes, sendo muitas vezes encarados como “o outro” que “rouba” a minha vaga (Vasconcelos, 2018VASCONCELOS, Iana dos Santos. Receber, enviar e compartilhar comida: aspectos da migração venezuelana em Boa Vista, Brasil. REMHU, v. 26, n. 53, p. 135-151, 2018. https://doi.org/10.1590/1980-85852503880005309
https://doi.org/10.1590/1980-85852503880...
).

Segundo a Secretária da SMEC, esse fator do preconceito realmente aconteceu no início da imigração. Contudo, na atualidade é algo que já se percebe um controle e uma aceitação, como corrobora a entrevistada da SesMEC (2023):

O grande desafio foi a gente ser pego de surpresa, com esse fluxo tão grande e, a gente em tão pouco tempo, ter que se adaptar, conhecer, buscar estratégias. E uma das coisas mais fortes foi combater o preconceito. Isso foi o grande diferencial. Não vou dizer que hoje não tem, tem, mas a gente conseguiu minimizar muito, porque onde a gente identificava que tinha, a gente fazia oficinas com as crianças, trabalhava com os pais. Mostrava para todos os pais que as crianças estavam lá, elas tinham direito de estudar. Eles não estão aí porque eles querem. Se coloquem no lugar deles, eles estão aqui, mas eles não queriam estar aqui. Por eles, eles estariam lá no país deles, se fosse o contrário, se fosse a gente. Então assim, foi um trabalho muito grande para conseguir reduzir esse preconceito e essa aceitação. E hoje eu vejo como mais natural. O gestor já não fica mais tão impactado. Tem escolas que mais da metade dos alunos são estrangeiros, mas que com o esforço de todos nós, da secretaria, das escolas, que estão diante das crianças e com essas famílias a gente tem muitos relatos produtivos. Todo mundo sai ganhando, fortalecido e muitos aprendizados.

Na categoria concernente aos Desafios buscamos apresentar algumas Problemáticas evidenciadas nas escolas, com o processo de imigração. Neste tocante, uma forte sinalização ocorre para o processo da dificuldade de compreensão da língua, como demonstram os trechos a seguir.

Aqui a gente até pensou (cursos de língua espanhola), mas já veio a fala de alguns professores que não é obrigação nossa aprender a língua por que estamos no Brasil. Aí a gente não pode seguir adiante com uma capacitação para a língua pois os próprios professores têm essa ideia de quem tem que ter essa adaptação são eles, não é a gente (CPPp, 2022).

Nosso maior desafio sempre será a língua, porém também temos o dever de ajudar a essas crianças a se adaptarem e a enfrentarem muitos desafios numa terra desconhecida. Então é inevitável para mim não envolver o sentimento. Aprendo com eles e tento envolvê-los fazendo com que se sintam bem-vindos (PRPp, 2022).

O idioma. E assim, claro a questão socioeconômica, que também e situação de brasileiros (PAPp, 2022).

Língua espanhola, num primeiro momento sim, até porque depois que eles aprendem a falar, nós não temos aquela questão da dificuldade com o idioma deles depois que você se acostuma com a língua deles, porque eles estão sentados junto com o brasileiro e interagem direto. Então assim, quem chega não sabe quem é o venezuelano e quem é o brasileiro (PRNc, 2022).

Então o desafio maior é a preocupação com essa didática pedagógica, para que o aluno venezuelano também tenha o mesmo direito (PRNc, 2022).

A maior problemática sinalizada trata-se da diferença da língua seguida das questões econômicas e da didática pedagógica a ser trabalhada a partir deste contexto. Segundo a SeAdSMEC (2023) as escolas mostraram isso, os relatos dos gestores, dos professores. Então, existia uma preocupação absurda de quando começou e o processo mostrou que a comunicação foi estabelecida. Hoje nos tranquiliza. O esforço da família, o contato com eles, são muito esforçados, eles vão na escola, eles participam, eles querem saber, eles estão integrados. E tem o apoio também da ACNUR, da UNICEF que é parceira e faz essas articulações.

Referente à problemática da língua, a SeSMEC (2023) destaca que a contratação de intérpretes ainda é um grande problema, mas, em relação ao aluno venezuelano, pela comunicação já ser mais tranquila, a entrevistada coloca que não está tão complicado. De modo que, o problema maior abarca os alunos indígenas venezuelanos da etnia Warao.

Contudo, novamente, quanto às crianças venezuelanas o destaque é para que a integração aconteça de forma bastante rápida com as crianças. Lemos (2020LEMOS, David Sena. Bilinguismo fronteiriço e o code-switching no espaço escolar: aquisição/aprendizagem do português brasileiro (PB) por crianças venezuelanas. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo, 2020. https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/193045/lemos_ds_dr_arafcl.pdf?sequence=5
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
), em seus estudos, alerta sobre como a “prática de uso da translinguagem era crucial na maneira como as crianças imigrantes venezuelanas interagiam, embora o português fosse a língua dominante na escola e no discurso dos professores. Corroborando com essa perspectiva, Guimarães et al. (2020GUIMARÃES, Thayse Figueira; BUIN, Edilaine; GARCIA, Rosana Iriani Daza de; RIBEIRO, Cristiene Oliveira. Práticas translíngues como recurso no acolhimento de migrantes venezuelanos em sala de aula de língua portuguesa. Revista X, v.15, n.7, p. 83-102, 2020. http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v15i7.75166
http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v15i7.7516...
) demonstraram que as escolas públicas podem alavancar a translinguagem como um recurso nas aulas introdutórias de língua portuguesa, potencializando, assim, a inserção e a adaptação das crianças no ambiente escolar.

Sugestões foram apresentadas pelas entrevistadas, a fim de que algumas problemáticas sejam melhor trabalhadas, tais como:

formação para língua espanhola - Sim, pela secretaria é interessante. Quando os pais vêm com a gente a gente precisa entender os pais, porque os pais eles tentam, mas eles não têm a mesma facilidade de aprendizagem que nem as crianças. As crianças aprendem rápido. A gente já percebeu que tem crianças que aprendem em 2 a 3 meses a nossa língua e fala fluentemente melhor do que a gente (CPPp, 2022).

Então assim, a questão do projeto de leitura e eu arriscaria... arriscaria não, eu vou arriscar mais uma vez (PRNc, 2022).

Há uma preocupação com as condições comunicacionais e de aprendizado das crianças que são reforçadas pelos professores. Assim, diante dos desafios que passam a ser evidenciados, ações são realizadas, ou começam a ser pensadas, no sentido de operacionalizar melhores índices de alfabetização, aprovação e evasão escolar. Ainda, outro grande desafio apresentado pela SeSMEC (2023) é a realização da matrícula das crianças. Segundo ela,

são os documentos que balizam nosso trabalho: o Plano Nacional, o Plano Municipal de Educação e os compromissos que o prefeito fez com a população na área de Educação. Então são essas as grandes metas que nós temos que alcançar, não só da parte pedagógica, mas da infraestrutura. E, um dos compromissos que ele fez foi: entregar 3 creches, aumentar 3.000 novas vagas de creche e construir 10 escolas. Algumas unidades estão sendo entregues, mas esse número que diariamente chega em Boa Vista extrapola qualquer planejamento.

Portanto, apesar da existência de alguns desafios a serem sanados, fica evidente que a SMEC não se esquiva dos compromissos e tem buscado, junto à comunidade escolar e com parceria com os coordenadores e monitores, realizar distintas ações.

Principais apontamentos da gestão

Na perspectiva de entendimento sobre como a SMEC e as escolas públicas de Boa Vista/RR estão respondendo ao processo de alfabetização, considerando o ingresso de crianças venezuelanas em suas salas de aula, adentramos no resultado de uma das etapas mais importantes da investigação etnográfica nas escolas municipais de Boa Vista/RR. No contato com a SMEC foram indicadas duas escolas com números significativos de alunos migrantes e, escolas próximas à realidade imigrante, com a presença de famílias e espaços de abrigos para pessoas imigrantes.

Deste modo, a partir da inserção da escola e de entrevistas realizadas com a SMEC, com a equipe gestora e os professores das escolas, apresentamos alguns dados que são importantes para compreensão do processo de alfabetização no ambiente escolar da rede municipal de ensino em Boa Vista/RR.

Após as entrevistas com oito profissionais envolvidos no contexto da gestão escolar elaboramos categorias de análise: formação; atuação; relações e desafios. Respectivas categorias possibilitaram compreender o processo de alfabetização, considerando o ingresso de crianças venezuelanas em suas salas de aula.

No que tange à formação profissional, todos os sujeitos apresentam formação condizente com a área de atuação e destacam as várias ações que a SMEC vem oferecendo para as crianças. Todavia, não há uma visualização clara da formação continuada docente voltada para a inserção do imigrante onde, frequentemente, essa é feita individualmente pelo professor. Com o contexto da imigração venezuelana e com a Pandemia da Covid-19, a SMEC implementou o programa Gestores Unidos que foi e tem sido uma forma de levantamento de demandas e de atuação na formação dos profissionais gestores.

Quanto à atuação profissional percebemos que os profissionais têm se empenhado nas distintas ações deliberadas pela SMEC, contudo, há a necessidade de a família estar presente neste processo, indiferentemente da nacionalidade, o que, por conseguinte, implica nas relações que são estabelecidas entre os diferentes sujeitos (gestão, pais e crianças).

Embora a imigração tenha intensificado alguns pontos, os dados obtidos nesta pesquisa deixam claro que o agravamento e o surgimento de problemas ocorreram não somente em virtude da imigração. A pandemia da Covid-19 e a questão econômica/vulnerável das famílias aparecem como elementos importantes vinculados ao processo de alfabetização e na relação que se estabeleceu entre a escola, as famílias e as crianças.

Assim, os desafios encontrados viabilizam e dão vazão para o entendimento de problemas estruturais que decorrem de vários fatores sociais e que, a partir da existência, passam a ser analisados e buscadas alternativas para sanar as problemáticas junto à SMEC. Um dos problemas destacados sobre a alfabetização, destacados pelos gestores, continua sendo o processo de comunicação, com a questão linguística. Contudo, há outros problemas como a questão econômica/vulnerável das famílias, não somente as venezuelanas. Outro ponto destacado é a perspectiva de aumento de vagas para matrícula das crianças, questão que envolve fatores de planejamento, estruturação e/ou criação de novas escolas.

Por fim, a vista do exposto, apesar dos problemas, desafios e dificuldades encontradas cabe destacar que tanto a SMEC como as escolas municipais investigadas têm consciência das demandas e estão buscando alternativas para dar condições de igualdade de educação para todas as crianças, indiferente de sua nacionalidade.

Referências

  • APOIO/FINANCIAMENTO

    A pesquisa conta com o financiamento do David Rockefeller Center for Latin American Studies e com Lemann Research Grant da Universidade de Harvard, Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Dados serão fornecidos se solicitados.
  • 1
    Imigração/imigrante aqui é usado no sentido de destacar o sujeito que entra em outro país para fins de trabalho ou residência. Assim, o sujeito é visto, pelo país que o recebe, como imigrante.
  • 2
    A pesquisa é financiada pelo Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos e por Lemann Research Grant da Universidade Harvard.
  • 3
    Esses dados foram informados pela escola em setembro de 2022. Devido ao constante fluxo das crianças migrantes os dados são alterados constantemente ao longo do ano.
  • 4
    A etapa das entrevistas e da análise dos dados contou com a participação da acadêmica do curso de Graduação em Artes Visuais da UFRR Yasmin Gabriela da Silva Faray.
  • 5
    Este Instituto é uma organização não-governamental sem fins econômicos que prima pelo trabalho para a melhoria da educação no Brasil. Fundado em 2006 pelo professor João Batista Araújo e Oliveira. O material e as especificações podem ser encontrados no site: https://www.alfaebeto.org.br/.

Disponibilidade de dados

Dados serão fornecidos se solicitados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2023
  • Aceito
    07 Maio 2024
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br