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Políticas curriculares no campo da alfabetização no Brasil: dos avanços teórico-epistemológico-didáticos ao apagão contemporâneo

RESUMO

O estudo que este artigo apresenta teve como objetivo identificar concepções de alfabetização e letramento na versão homologada da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (Brasil, 2017) e na Política Nacional de Alfabetização - PNA (Brasil, 2019). Apoiando-se em discussões teóricas relativas àqueles campos e às políticas curriculares, expõe uma pesquisa documental amparada pela análise temática de conteúdo. Como resultados, em relação à alfabetização na BNCC, verifica-se uma perspectiva assentada no ensino do código alfabético e na mecânica da leitura, suprimindo a expressão sistema de escrita alfabética, tão disseminada na literatura brasileira. No eixo do letramento, embora mantenha a ideia de uso social da língua, tendo como base os diversos gêneros textuais, estabelece uma desnecessária compreensão de superação entre o letramento das letras e o que é proposto como letramentos digitais ou multiletramentos. Em relação à PNA, verificou-se notório retrocesso em relação à alfabetização, cuja referência é a ciência cognitiva da leitura. Esse documento remonta o tradicional método sintético fônico, e claramente comete equívocos conceituais e epistemológicos quanto à escrita alfabética, à norma ortográfica e à leitura. Também aposta em uma conceituação e progressão pouco claras de literacia ao longo da escolarização básica e contraria o exposto no Plano Nacional de Educação, reduzindo a consolidação da alfabetização de três para um ano de duração. O estudo demonstrou um nítido apagão histórico-epistemológico-didático da alfabetização e do letramento.

Palavras-chave:
Educação; Alfabetização e Letramento; Políticas Curriculares

ABSTRACT

The study presented in this paper aimed at identifying conceptions of literacy in the approved version of the National Common Curriculum Base - BNCC (Brasil, 2017) and in the National Literacy Policy - PNA (Brasil, 2019). Based on theoretical discussions relating to these fields and curricular policies, it presents documentary research supported by thematic content analysis. As a result, concerning literacy in BNCC, there is a perspective based on teaching the alphabetic code and the mechanics of reading, suppressing the expression alphabetic writing system, so widespread in Brazilian literature. On the literacy axis, although it maintains the idea of social usage of language, based on the various textual genres, it establishes an unnecessary understanding of overcoming the literacy of letters and what is proposed as digital literacy or multiliteracies. Regarding the PNA, there was a notable step backward in literacy, whose reference is the cognitive science of reading. This document goes back to the traditional phonic synthetic method and commits conceptual and epistemological misunderstandings about alphabetic writing, spelling, and reading. It also relies on an unclear conceptualization and progression of literacia throughout basic schooling. It contradicts the National Education Plan, reducing the consolidation of literacy from three to one year. The study showed a clear historical-epistemological-didactic clackout of literacy.

Keywords:
Education; Literacy; Curriculum Policies

Introdução

A alfabetização constitui um campo multifacetado que impõe desafios aos sistemas de ensino, aos sujeitos envolvidos nos processos didático-pedagógicos, especialmente aos professores, assim como aos sujeitos aprendentes. O intento maior das políticas públicas é invariavelmente o de favorecer a aprendizagem da leitura e da escrita a todos os estudantes, não ignorando aqueles das classes socioeconômicas menos favorecidas. Apesar disso, até a década de 1930, conforme Mortatti (2010MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Alfabetização no Brasil: conjecturas sobre as relações entre políticas públicas e seus sujeitos privados. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, 2010. https://doi.org/10.1590/S1413-24782010000200009
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), não havia, no Brasil, políticas nacionais nesse campo. Tendo essa situação por referência, justifica-se uma análise das políticas curriculares que mais recentemente foram implantadas no país, focalizando os conceitos de alfabetização e de letramento que expressam.

Ao longo da história da alfabetização, os métodos têm assumido diferentes sentidos epistemológicos e proposições didático-pedagógicas. Conforme Morais (2012MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.), em se tratando dos antigos métodos (sintéticos ou analíticos), todos possuem uma base empirista-associacionista, de acordo com a qual o sujeito aprendente é considerado uma tábula rasa que se apropria do sistema alfabético por mera associação. Com isso, ignora-se o complexo processo que o aprendiz percorre para reconstruir esse objeto de conhecimento. Além disso, tais métodos adiam o contato das crianças, na escola, com textos que circulam socialmente, substituindo-os pelos chamados textos cartilhados.

Assumindo uma posição avessa a dos métodos considerados tradicionais, Magda Soares (2020SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. 4. impr. São Paulo: Contexto, 2020.) destacava a necessidade de um trabalho pedagógico que articulasse, desde cedo, a alfabetização - a apropriação da tecnologia da escrita - e o letramento - às capacidades de uso da leitura e da escrita nos diversos contextos socioculturais -, de modo a assegurar a aprendizagem da leitura e da escrita a todas as crianças. Nesse sentido, desde a década de 1980, Magda Soares defendia a interdependência desses dois processos, sem, com isso, apagar suas singularidades. Além disso, já assumia que a alfabetização não era pré-requisito para o letramento, o que justifica sua posição quanto à necessidade de ensinar e aprender a ler e a escrever em contextos de letramento.

Apesar de, ao longo das décadas, virmos evoluindo nos números obtidos por meio de avaliações em larga escala, é verdade que esse cenário, frente a outros países próximos ao Brasil, ainda expressa preocupações e a certeza de que temos um compromisso social e pedagógico com a melhoria da alfabetização de nossas crianças. Apoiando-nos em dados da última edição da Avaliação Nacional da Alfabetização - ANA, realizada em 2016 e publicada apenas em 2018, destacamos que 54,73% dos estudantes brasileiros do 3º ano permaneceram em níveis insuficientes de leitura, enquanto 33,95% ainda estavam nos níveis insatisfatórios de escrita (Brasil, 2018a). Por outro lado, em 2015, de acordo com Soares (2020SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. 4. impr. São Paulo: Contexto, 2020.), o Brasil atingiu uma taxa de 98,6% de sua população de 6 a 14 anos na escola, garantindo a (quase) todos o acesso à educação. No entanto, como pergunta a autora, com isso, asseguramos, de fato, a democratização da educação? Para assegurá-la, é necessário que o acesso seja acompanhado de sucesso. É nesse sentido que Soares (2020) acentua, como condição para uma escolarização exitosa, garantir, já nos primeiros anos da escola básica, a apropriação do objeto de conhecimento, que é a escrita.

Ante essa situação, chegamos ao foco do estudo que este artigo apresenta: considerando a intenção de elevar a qualidade da aprendizagem da leitura e da escrita, em âmbito nacional, ao identificar números inaceitáveis de analfabetismo funcional, há que se questionar as políticas curriculares implantadas pelo Governo que, no caso brasileiro, não possuem continuidade enquanto políticas de Estado. Em um cenário recente, documentos de cunho mandatórios vêm ocupando o campo da alfabetização, remontando, inclusive, ao antigo método fônico. Justifica-se, portanto, a pesquisa que este artigo dá conta e que adotou o seguinte objetivo: identificar concepções de alfabetização e letramento na versão homologada da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (Brasil, 2017) e na Política Nacional de Alfabetização - PNA (Brasil, 2019). A par disso, são tecidos movimentos reflexivos sobre políticas que precederam essas prescrições.

No rastro da alfabetização: alguns contributos da literatura brasileira

A década de 1980 foi marcante, no cenário brasileiro, pelas novas proposições no campo da alfabetização. Até então, as práticas de ensino giravam em torno do método considerado mais pertinente para assegurar a aprendizagem da leitura e da escrita. A questão dos métodos de alfabetização estava bem polarizada: os sintéticos, de um lado, e os analíticos, de outro1 1 Havia, também, os métodos analítico-sintéticos (ou ecléticos), que combinavam princípios metodológicos dos dois grupos clássicos de métodos. . Para Morais (2012MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012., p. 27), “apesar das diferenças que aparentam, os métodos tradicionais de alfabetização têm uma única e comum teoria de conhecimento subjacente: a visão empirista/associacionista da aprendizagem”. Nessa perspectiva, os aprendizes são vistos como tábulas rasas, sem esquemas cognitivos para interagir com os diversos objetos do saber, a exemplo da escrita alfabética, enquanto os professores seriam transmissores de conhecimentos prontos, ora enfocando as unidades menores da língua (sílabas, letras e fonemas) até chegar aos textos cartilhados, como é o caso dos métodos sintéticos, ora partindo de palavras, frases e pseudotextos rumo às unidades linguísticas menores (métodos analíticos).

No bojo das mudanças anunciadas no início desta seção, há inevitável destaque à teoria da psicogênese da escrita, elaborada por Emília Ferreiro, Ana Teberosky e colaboradores (Ferreiro; Teberosky, 1985FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.). Por meio de contribuições da epistemologia genética e da psicolinguística, as autoras desbancaram, ao menos nos campos acadêmico e oficial, os antigos métodos de alfabetização: analíticos e sintéticos. Nesse sentido, ao invés da díade até então prevalecente, passou-se a considerar, também, as contribuições de quem aprende no seu processo de aprendizagem. Aquela teoria vem inspirando há décadas os currículos de vários sistemas de ensino, como no Brasil.

A psicogênese da escrita evidenciou que as crianças se apropriam do sistema alfabético por meio de um processo evolutivo, no qual elaboram hipóteses sobre o funcionamento desse objeto de conhecimento, até chegar à compreensão de que cada letra ou grupo de letras corresponde a um ou mais fonemas. Partindo de interpretações não previstas originalmente nessa teoria, ao analisar as relações entre habilidades de consciência fonológica e o êxito na alfabetização, Morais (2019MORAIS, Artur Gomes de. Análise crítica da PNA (Política Nacional de Alfabetização) imposta pelo MEC através de decreto em 2019. Revista Brasileira de Alfabetização, n. 10, 2019. https://revistaabalf.com.br/index.html/index.php/rabalf/article/view/357
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) aponta a necessidade de promover, na escola, desde a Educação Infantil, oportunidades de reflexão sobre as palavras enquanto uma sequência sonora. Também de acordo com Morais (2007), após a compreensão da escrita alfabética e o domínio de suas convenções, a criança necessitará se apropriar da ortografia, cuja aprendizagem acompanhará todo seu percurso formativo, assegurando a progressão de seu ensino.

Desde os anos 1980, o conceito de alfabetização tem sido ampliado, de modo que, além de significar a apropriação do sistema de escrita alfabética e de suas propriedades, também expressa os usos sociais da leitura e da escrita. Nesse sentido, no Brasil, na década de 1990, ganhou realce o fenômeno do letramento, considerado uma faceta distinta, mas interdependente da alfabetização (Soares, 1998SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.). Essa perspectiva tem imposto novos desafios às práticas alfabetizadoras, que implicam uma inevitável articulação entre os diversos eixos de ensino da língua na escola. Por outro lado, começou-se a pensar que não seria mais necessário um ensino sistemático das propriedades da escrita alfabética, visto que o aprendente o faria a partir de sua imersão em eventos e práticas de letramento. Dessa forma, concordamos com Perfeito e Oliveira-Mendes (2019PERFEITO, Márcia Vânia Silvério; OLIVEIRA-MENDES, Solange Alves de. A formação continuada de professores alfabetizadores na conjuntura das políticas públicas no Brasil. In: DANTAS, Otília Maria Alves da Nóbrega Alberto Dantas. Profissão docente: formação, saberes e práticas. Jundiaí: Paco, 2019. p. 99-120., p. 103), quando as autoras destacam que é urgente “recuperar um processo sistemático e progressivo de aprendizagem do sistema de escrita alfabética”, o que Soares (2003) denominou de reinvenção da alfabetização.

Em síntese, corroboramos a importância de a alfabetização recorrer a metodologias e métodos que rompam com perspectivas tradicionais, assumindo a perspectiva de alfabetizar letrando (Soares, 2020SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. 4. impr. São Paulo: Contexto, 2020.). Esse processo demanda diferentes estratégias pedagógicas e mediações realizadas pelos docentes no uso de seu poder de agência (Santos; Leite, 2020SANTOS, Adriana Cavalcanti dos; LEITE, Carlinda. Professor agente de decisão curricular: uma scriptura em Portugal/The Teacher as an Agent of Curricular Decision: A Policy in Portugal. Magis, Revista Internacional de Investigación en Educación, v. 13, 1-21, 2020. https://doi.org/10.11144/Javeriana.m13.padc
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; Melo; Almeida; Leite, 2023MELO, Maria Júlia Carvalho de; ALMEIDA, Lucinalva Andrade Ataíde de; LEITE, Carlinda. Negociação das políticas/práticas curriculares: o desenvolvimento profissional de professores(as) orientado para a decisão curricular. Educar em Revista, Curitiba, v. 39, 2023, e87031. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0411.87031
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), isto é, em que os professores mobilizam poderes de decisão para adequar modos de trabalho pedagógico e em que as opções são decididas sempre em função das situações singulares de ensino e de aprendizagem e dos contextos nos quais atuam profissionalmente.

Políticas curriculares de alfabetização no Brasil: o que dizer? Que caminhos estamos trilhando?

É importante sublinhar que políticas de formação contínua de docentes alfabetizadores ganharam notoriedade a partir da Lei nº 11.274/2006, que ampliou o Ensino Fundamental para nove anos e tornou obrigatória a matrícula das crianças aos seis anos de idade (Brasil, 2006). Nesse cenário legislativo, também é importante realçar o papel exercido pelos Planos Nacionais de Educação (2001-2010 - 2014-2024), que impulsionaram a elaboração de Programas de alfabetização, como os que foram lançados pelo governo federal do Brasil, bem como pelos municípios (Brasil, 2001a; 2014).

Avançando na linha do tempo, é crucial entender que o desenho das políticas de formação continuada de docentes ganhou maior legitimidade e alcance nacional por meio do Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009, que estabeleceu a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério (Brasil, 2009a). A partir de então, com interesse em investir substancialmente na formação, algumas políticas passaram a ser propostas no Brasil: Programa de Formação Continuada de Professores Alfabetizadores - PROFA (Brasil, 2001b); Pró-letramento (Brasil, 2007); Praler (Brasil, 2009b); Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Brasil, 2012). Posteriormente, houve a promulgação de uma política curricular: a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017). Após dois anos, foi instituída a Política Nacional de Alfabetização (Brasil, 2019), que deu origem ao Programa de Formação Docente: Tempo de Aprender (Brasil, 2020).

Objetivando superar o fracasso escolar instalado nas escolas brasileiras, sobretudo na alfabetização, foi implantado o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA (Brasil, 2001b), justificado com a intenção de propor diferentes metodologias de alfabetização, apoiando-se no conhecimento sobre como acontecem os processos de aprendizagem da leitura e da escrita a partir da teoria construtivista da psicogênese da escrita (Ferreiro; Teberosky, 1985FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.).

Continuando o caminho na linha do tempo, em 2005 foi criado o Pró-letramento (Brasil, 2007), voltado para os docentes atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental das escolas públicas brasileiras. O foco dessa política curricular incidiu nas áreas de linguagem e matemática. No que se refere à primeira área, o material esteve organizado em oito fascículos no campo da alfabetização e linguagem, contemplando aspectos como planejamento, avaliação, ludicidade, livro didático, entre outros.

Corroborando com o princípio de descontinuidade e de instabilidade nas políticas curriculares e de formação de professores, em 2009, o Ministério da Educação - MEC, a Secretaria de Educação Infantil e Fundamental - SEIF, o Departamento de Políticas Educacionais - DPE, o Fundo de Fortalecimento da Escola - Fundescola, e demais políticas educacionais de investimento no ciclo inicial da alfabetização criaram o Programa de Apoio à Leitura e Escrita - Praler (Brasil, 2009b). É importante destacar que o texto dessa política apontou, mais uma vez, para o trabalho com leitura e escrita. Esse Programa teve duração de um ano e contou com a distribuição do Manual Geral do Formador e doze cadernos de Atividades de Apoio à Aprendizagem dos Alunos (Brasil, 2009b).

Em alinhamento com o Plano Nacional de Educação (2014-2024), em sua meta 5, que explicita que toda criança deve estar alfabetizada até os oito anos de idade (Brasil, 2014), a partir de uma parceria com o Centro de Estudos em Educação e Linguagem - CEEL - da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, por meio da Portaria nº 867 de 4 de julho de 2012, foi criado o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC (Brasil, 2012), que objetivava essencialmente a formação continuada dos professores alfabetizadores. Mais uma vez, por descontinuidade nas políticas, o PNAIC teve a sua última edição em 2018. Com um largo alcance e uma proposição didático-epistemológica robusta, seus pressupostos, segundo Vasconcelos, Mendes e Lins (2019VASCONCELOS, Maria Djanira Vieira; MENDES, Solange Alves de Oliveira; LINS, Carla Patrícia Acioli. Pacto Nacional pela alfabetização na idade certa: a formação continuada e o processo de didatização em língua. Linguagens, Educação, Sociedade, ano 24, n. 43, p. 242-264, 2019. https://doi.org/10.26694/les.v0i43.9664
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), estão presentes em várias salas de aula brasileiras.

Estabelecendo uma relação com momentos políticos anteriores, vale a pena recordar que, desde a Constituição Federal de 1988, havia a intenção de criar uma Base Nacional dos Currículos. Em seu artigo 210, esse documento destacou: “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (Brasil, 1988). Mais tarde, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996a), no art. 8, inciso IV, referiu que é preciso:

estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum (Brasil, 1996a).

Posteriormente, em 2014, a Base Nacional Comum Curricular foi definida como meta do Plano Nacional da Educação (Brasil, 2014), desencadeando conferências e diversos debates para esse feito. Com isso, houve uma ampla discussão no meio acadêmico, nas associações e unidades da federação para a construção da primeira proposta da Base e consolidação dos relatórios das contribuições dos debates públicos efetuados, ambos entregues ao Conselho Nacional de Educação (CNE). Não ignorando as críticas tecidas em torno de algumas dessas políticas (Macedo, 2014MACEDO, Elizabeth. Base Nacional Curricular Comum: novas formas de sociabilidade produzindo sentidos para a educação. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 12, n. 03, p. 1530-1555, 2014.; Lopes, 2019LOPES, Alice Casimiro. Itinerários formativos na BNCC do Ensino Médio: identificações docentes e projetos de vida juvenis. Retratos da Escola. v. 13, n. 25, p. 59-75, 2019. https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/963
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), no estudo aqui apresentado, elas não são contempladas, uma vez que o objetivo é identificar concepções de alfabetização e de letramento que têm sustentado tais políticas.

Em 2015, a versão preliminar do documento foi novamente disponibilizada para debate público e mobilização, principalmente por parte das instituições escolares de todo o país, de modo a opinarem e incorporarem contribuições para aprimoramento do documento. Caminho semelhante foi adotado com relação à segunda edição da BNCC, ao contrário da terceira, promulgada em 2017.

Nessa reflexão, há que contemplar o Programa Mais Alfabetização (Brasil, 2018b), justificado com a intenção de elevar a qualidade da aprendizagem da leitura e da escrita nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental, em alinhamento com a ideia apregoada pela Base Nacional Comum Curricular, de que a alfabetização deveria ser consolidada em dois anos. É oportuno pontuar que, enquanto o PNAIC focava a formação continuada de professores alfabetizadores, o Mais Alfabetização limitou-se a assegurar apoio pedagógico ao docente por meio da contratação de Assistentes de Alfabetização, viabilizado com recursos concedidos pelo Programa Dinheiro Direto na Escola - PDDE. O Mais Alfabetização veio integrar a Política Nacional de Alfabetização - PNA (Brasil, 2019), sendo um dos braços de apoio para a implementação desse ideário por meio do Programa Tempo de Aprender (Brasil, 2020).

Recorrendo a Morais (2020MORAIS, Artur Gomes de. Consciência fonológica na educação infantil e no ciclo de alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.), o cenário de disputa política, de constantes alterações e instabilidade do MEC coincidiram com a construção de um documento, intitulado Política Nacional de Alfabetização, que fere a educação como um direito social fundamental, abrindo espaço para uma visão utilitarista da escola, adequada ao interesse do sistema capitalista e das estratégias de controle dos chamados “mercadores da educação” (Morais, 2020, p. 5). Como tem sido sustentado, essa situação ameaça a educação, submetendo-a a lógicas neoliberais e a grupos empresariais (Ball, 2001BALL, Stephen. Diretrizes Políticas Globais e Relações Políticas Locais em Educação. Currículo sem Fronteiras, v. 1, n. 2, p. 99-116, 2001.; Dale, 2010DALE, Roger. O marketing do mercado educacional e a polarização da educação. In: GENTILI, Pablo. (Org.). Pedagogia da Exclusão: crítica ao liberalismo em educação. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 129-158.; Laval, 2004LAVAL, Christian. A Escola não é uma Empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Londrina: Planta, 2004.). Com a mudança de governo e críticas severas às políticas curriculares de alfabetização aqui destacadas, foi imposta, portanto, a Política Nacional de Alfabetização - PNA, por meio do Decreto Nº 9.765 de 11 de abril de 2019 (Brasil, 2019), apresentada com o objetivo de garantir a qualidade da alfabetização e, com isso, combater o analfabetismo, por meio de pesquisas ancoradas em evidências científicas.

O slogan é sempre o mesmo: elevar a qualidade do ensino da leitura e da escrita e, com isso, assegurar, de fato, a redução do analfabetismo. O que é possível apreender, no caso da PNA, porém, é um nítido retrocesso. No quesito temporal, esse documento reduz o processo de alfabetização para um ano e, de forma arbitrária, impõe o método fônico, que rompe com o que vimos defendendo há aproximadamente quatro décadas no campo da alfabetização no Brasil.

Metodologia

Em linha com o objetivo do estudo atrás enunciado (identificar concepções de alfabetização e letramento das três versões da Base Nacional Comum Curricular - BNCC - e da Política Nacional de Alfabetização - PNA), foi realizada uma pesquisa documental e análise de conteúdo (Bardin, 1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 1977.) desses documentos.

Neste estudo, apoiando-nos em Laville e Dionne (1999LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed/Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999., p. 168), adotamos a perspectiva de que as pesquisas com base documental envolvem “reunir os documentos, em descrever ou transcrever eventualmente o seu conteúdo e talvez efetuar uma primeira ordenação das informações para selecionar aquelas que parecem pertinentes”. Em outras palavras, esse processo implica, como salienta Bardin (1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 1977.), a transformação de um documento primário (bruto) em um documento secundário.

Os dados gerados por meio da análise documental foram tratados com o apoio da análise de conteúdo que, ainda de acordo com Laville e Dionne (1999LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed/Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999., p. 214), “consiste em desmontar a estrutura e os elementos desse conteúdo para esclarecer suas diferentes características e extrair sua significação”. Adotando a perspectiva de Bardin (1977BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 1977.), realizamos uma análise temática de conteúdo, recorrendo às seguintes etapas: pré-análise, análise do material (codificação e categorização da informação), tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

Concepções de alfabetização e letramento na BNCC e na PNA: que cenários estão desenhados?

No concernente à terceira edição da BNCC, sublinhamos que ela permanece defendendo a concepção de linguagem presente nas edições anteriores, especificamente em relação ao que preconizam os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1996b). Essa vinculação é claramente expressa:

assume-se aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, já assumida em outros documentos como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), para os quais a linguagem é uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua história (Brasil, 2017, p. 67).

O texto continua assumindo centralidade na terceira versão da Base (Brasil, 2017), “apoiando-se em [...] uma concepção que vê a língua como enunciação, discurso, [...] que, portanto, inclui as relações da língua com aqueles que a utilizam, com o contexto em que é utilizada, com as condições sociais e históricas de sua utilização” (Soares, 1998SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998., p. 59). Entretanto, na área de alfabetização, enfatiza o ensino explícito do código, não do sistema alfabético de escrita. Nesse caso, em nosso entendimento, simplifica o complexo processo de aprendizagem daquele objeto de conhecimento, conforme trecho que segue:

Nesse processo, é preciso que os estudantes conheçam o alfabeto e a mecânica da escrita/leitura - processos que visam a que alguém se torne alfabetizado, ou seja, consiga ‘codificar e decodificar’ os sons da língua (fonemas) em material gráfico (grafemas ou letras) [...] (Brasil, 2017, p. 89-90, grifos nosso).

Termos como código, codificação e decodificação, conforme Morais (2005MORAIS, Artur Gomes de. Se a escrita alfabética é um sistema notacional (e não um código), que implicações isto tem para a alfabetização? In: MORAIS, Artur Gomes de; ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de; LEAL, Telma Ferraz (Orgs). Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabética. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 29-46.; 2020), denotam uma perspectiva reducionista e equivocada de aprendizagem do sistema de escrita alfabética, remontando à concepção empirista-associacionista e ocultando a complexidade do sistema alfabético e do seu processo de apropriação pelos aprendizes. Além disso, constatamos que a versão homologada da BNCC (2017) apresenta, em outro trecho, uma concepção equivocada de alfabetização, reduzindo-a à apropriação da ortografia:

[...] alfabetizar é trabalhar com a apropriação pelo aluno da ortografia do português do Brasil escrito, compreendendo como se dá este processo (longo) de construção de um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento fonológico da língua pelo estudante (Brasil, 2017, p. 88, grifos nossos).

Dessa maneira, ao defender a alfabetização como apropriação da ortografia, a BNCC (2017) confunde, ao que parece, escrita alfabética e norma ortográfica, ao mesmo tempo em que define esse processo (apropriação da ortografia) como a “construção de um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento fonológico da língua” (Brasil, 2017, p. 88). Nas citações anteriormente apresentadas, temos, portanto, uma série de equívocos conceituais sobre o que significa alfabetização, sistema de escrita alfabética e norma ortográfica.

No que concerne ao campo do letramento, o documento em tela acentua os letramentos digitais ou multiletramentos, estabelecendo um divisor de águas com as versões anteriores. Sobre esse assunto, sublinha:

o espaço maior nesse trecho introdutório destinado aos novos letramentos e à cultura digital é devido, tão somente, ao fato de que sua articulação ao currículo é mais recente e ainda pouco usual, ao contrário da consideração dos letramentos da letra já consolidados. Os quadros de habilidades mais adiante atestam ainda a primazia da escrita e do oral (Brasil, 2017, p. 69 - nota de rodapé, grifo nosso).

Há, em nossa compreensão, uma tentativa de superação do conceito de letramento largamente apregoado na literatura brasileira. O fato de dar ênfase à dimensão digital, aos multiletramentos, não pode subtrair o que vem sendo sublinhado por Soares (2020SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. 4. impr. São Paulo: Contexto, 2020.) e outros autores, como Tfouni (1986TFOUNI, Leda Verdiani. Adultos não-alfabetizados: o avesso do avesso. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1986.; 2006), desde a década de 1980, de que, além da apropriação do sistema de escrita alfabética, o sujeito aprendente carece de fazer uso social da leitura e da escrita, ou seja, participar efetivamente de eventos de letramento. O documento supracitado estabelece uma distinção entre o “letramento da letra” e o “letramento digital” sob o argumento de que “a cultura digital perpassa todos os campos, fazendo surgir ou modificando gêneros e práticas” (Brasil, 2017, p. 85). Ao dar consistência à expressão letramento da letra, estabelece uma ruptura pouco clara com o letramento digital quando, em nosso entendimento, inserir o aprendiz no uso social da língua por meio das novas tecnologias é braço do letramento, e não uma outra tendência.

Já na Política Nacional da Alfabetização (Brasil, 2019) é identificada uma clara amostra de imposição e autoritarismo, nomeadamente na forma como foi implementado o documento. Como salienta Morais (2022MORAIS, Artur Gomes de. Políticas e práticas de alfabetização no Brasil, hoje: precisamos continuar resistindo e aprendendo com Paulo Freire. Revista Brasileira de Alfabetização, n. 16, p. 1-14, 2022. https://doi.org/10.47249/rba2022584
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), não foi feito nenhum debate acerca da construção do documento e, por esse motivo, trata-se de uma política a qual claramente se opõem aqueles que debatem e estudam a temática. As contribuições para a formulação desse documento foram feitas por um grupo selecionado de pesquisadores filiados a uma determinada perspectiva de alfabetização, entre os quais curiosamente estão incluídos autores de livros e materiais didáticos vinculados ao método fônico, como João Batista Araujo e Oliveira, Fernando Capovilla e Alessandra Seabra, entre outros que possuem programas desenvolvidos por instituições privadas para comercialização nas escolas públicas, conforme sublinha Mortatti (2019MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Brasil, 2091: notas sobre a “Política Nacional de Alfabetização”. Olhares: Revista do Departamento de Educação da Unifesp, v. 7, n. 3, p. 17-51, 2019. https://doi.org/10.34024/olhares.2019.v7.9980
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).

A imposição da PNA expressa claramente uma descontinuidade das políticas em nosso país, o que é recorrente na recente história das políticas curriculares voltadas para o campo da alfabetização, conforme vimos realçando ao longo do texto, mas sem assumir o tom impositivo e unilateral da PNA. Sobre esse aspecto, Mortatti (2019MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Brasil, 2091: notas sobre a “Política Nacional de Alfabetização”. Olhares: Revista do Departamento de Educação da Unifesp, v. 7, n. 3, p. 17-51, 2019. https://doi.org/10.34024/olhares.2019.v7.9980
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, p. 45) sublinha:

A redução às ciências cognitivas como única e autoritariamente consensuada fundamentação teórica válida para a alfabetização [...] visa à destruição simbólica de extenso corpo de conhecimento sobre alfabetização (e sua complexa multifacetação) construído por pesquisadores brasileiros, especialmente na segunda metade do século XX, em diversas áreas e campos de pesquisa, e cujas contribuições são reconhecidas, por exemplo, pelas agências de fomento que os financiam e por qualificados periódicos nacionais e internacionais em que se publicam resultados dessas pesquisas.

Além de considerar a alfabetização como a aquisição de um código, o que se expressa, de modo explícito, não só pelo uso de termos como código alfabético, decodificar e codificar, mas também pela concepção associacionista de aprendizagem que assume, a PNA elimina o termo letramento e ignora as evidências científicas desse campo teórico, assim como os de outros campos não filiados à ciência cognitiva da leitura, como o da psicogênese da escrita. Em vez do termo letramento, já consolidado na literatura acadêmica e pedagógica brasileira, adota a expressão literacia, cujo conceito é ambíguo e muito pouco preciso no contexto brasileiro. Conforme o documento, “literacia consiste no ensino e na aprendizagem das habilidades de leitura e de escrita, independentemente do sistema de escrita utilizado” (Brasil, 2019, p. 18). Em outro momento, esse mesmo conceito é definido como

o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionados à leitura e à escrita, bem como sua prática produtiva. Pode compreender vários níveis: desde o mais básico, como o da literacia emergente, até o mais avançado, em que a pessoa que já é capaz de ler e escrever, faz uso produtivo, eficiente e frequente dessas capacidades, empregando-as na aquisição, na transmissão e, por vezes, na produção do conhecimento (Brasil, 2019, p. 21).

Conforme já anunciado neste artigo, a PNA reduz o processo de alfabetização de três para um ano. Claramente objetiva alinhar-se ao que vem sendo apregoado especialmente por países lusófonos, e ao optar por esse caminho, em nosso entendimento, comete diversos equívocos. Coloca no mesmo bojo o que denomina “literacia emergente/básica” (pré-escolar e 1º ano), caracterizada pelo aprendizado do vocabulário e da consciência fonológica, com aquelas habilidades “adquiridas durante a alfabetização, isto é, a aquisição das habilidades de leitura (decodificação) e escrita (codificação)” (Brasil, 2019, p. 21). O documento, assentado na “ciência cognitiva da leitura”, reduz a consciência fonológica à “instrução fônica sistemática” (Brasil, 2019, p. 32), trilhando um caminho catastrófico para o sistema de ensino brasileiro e remontando, no caso da alfabetização, ao método fônico. Há claramente uma opção pela “remetodização da alfabetização”, conforme assinala Mortatti (2010MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Alfabetização no Brasil: conjecturas sobre as relações entre políticas públicas e seus sujeitos privados. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, 2010. https://doi.org/10.1590/S1413-24782010000200009
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, p. 332).

O documento sugere, antes da alfabetização formal, introduzir habilidades de leitura e escrita que são determinantes para assegurar uma escolarização exitosa. Mais adiante, citando a National Early Literacy Panel (2009), responsabiliza a família por essa tarefa, colocando essa instituição no mesmo bojo da escola: “durante a primeira infância, seja na pré-escola, seja na família, a literacia já começa a despontar na vida da criança, ainda em um nível rudimentar, mas fundamental para a alfabetização” (Brasil, 2019, p. 22). Em nenhum momento assume a compreensão de letramento defendida por pesquisadores brasileiros. Vejamos o que o documento sublinha:

a criança é introduzida em diferentes práticas de linguagem oral e escrita, ouve histórias lidas e contadas, canta quadrinhas, recita poemas e parlendas, familiariza-se com materiais impressos (livros, revistas e jornais), reconhece algumas das letras, seus nomes e sons, tenta representá-las por escrito, identifica sinais gráficos ao seu redor, entre outras atividades de maior ou menor complexidade (Brasil, 2019, p. 22).

As etapas estabelecidas são estanques, de modo que, nessa fase que antecede o processo formal de alfabetização, as habilidades apreendidas seriam as raízes. Somente quando adquirir “fluência oral, compreensão de textos, a escrita conforme as regras ortográficas e com boa caligrafia, seria o seu crescimento” (Brasil, 2019, p. 22). O documento, de forma esdrúxula, segue afirmando: “a planta cresce no 1º ano do ensino fundamental, e as flores desabrocham a partir do 2º ano” (Brasil, 2019, p. 22). Ao mesmo tempo em que responsabiliza a família pelo ensino das habilidades que precedem o processo formal da alfabetização, aponta que aquelas que não tiveram acesso a esse conhecimento serão favorecidas pela escola (Brasil, 2019), impondo uma mediação direta das famílias no processo de aprendizagem da leitura e da escrita e secundarizando o papel exercido pela escola, principal instância responsável pela didática do ensino.

Em síntese, o documento da PNA apresenta uma pirâmide em que, inicialmente, é defendido um trabalho com a literacia emergente/básica (pré-escolar e 1º ano), caracterizado “pelas habilidades fundamentais para a alfabetização, como a decodificação e o conhecimento das palavras de alta frequência, que fundamentam virtualmente todas as tarefas de leitura. Inclui a literacia familiar, a literacia emergente e a alfabetização” (Brasil, 2019, p. 21).

Em seguida, a PNA indica a literacia intermediária (2º ao 5º ano), etapa em que se priorizam “estratégias genéricas de compreensão de textos, significados de palavras comuns, conhecimentos ortográficos e fluência em leitura oral” (Brasil, 2019, p. 21). Onde está o eixo da produção escrita de textos? Claramente o documento ignora! Por fim, a literacia disciplinar (do 6º ano ao Ensino Médio), cuja ênfase, segundo a PNA, reside em “habilidades específicas para diferentes disciplinas, como história, ciências, matemática, literatura e artes” (Brasil, 2019, p. 21).

Fechamos esse bloco, ainda que de maneira provisória, considerando o alcance de um artigo, salientando que, da terceira versão da BNCC à PNA e os seus desdobramentos, vimos atravessando um momento denominado no título deste estudo de apagão teórico, epistemológico e didático na área de alfabetização. Enquanto políticas curriculares, assistimos a disputas político-ideológicas que desconsideram escancaradamente o contributo literário nessa área, e impõem ao país um nítido retrocesso nos processos didáticos.

Conforme pontuamos neste estudo, a descontinuidade das políticas de formação docente para atuação na alfabetização tem tido como efeito, no campo do currículo, proposições oficiais arbitrárias e uma tímida discussão dos pesquisadores, professores e da sociedade em geral, aspectos que, em nossa compreensão, têm impedido avanços concretos no Brasil no quesito alfabetização. Ao tecermos análises em torno dos diversos eixos do ensino de língua, expomos imprecisões e inconsistências epistemológicas, de progressão do ensino da leitura e da escrita, nas políticas curriculares focadas neste estudo: BNCC e PNA.

Recuperando a epígrafe desta seção: que cenários estão sendo desenhados? Sugerimos a urgência em recuperar o caminho que vínhamos trilhando (alfabetização em uma perspectiva de letramento), a fim de concretamente cumprirmos com a assertiva de Magda Soares (2020SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. 4. impr. São Paulo: Contexto, 2020.), de que toda criança pode aprender a ler e a escrever em nosso país!

Algumas reflexões finais

No estudo de que este artigo dá conta, apreendemos concepções de alfabetização e letramento na versão homologada da Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017) e da Política Nacional de Alfabetização (Brasil, 2019). Foi possível observar mudanças substanciais entre essas políticas curriculares. No campo da alfabetização, ao nos reportarmos à BNCC, verificamos uma perspectiva que parece se assentar no ensino do código alfabético, na mecânica da leitura, lançando mão de expressões que não alcançam a riqueza e a complexidade da didatização, tampouco a epistemologia desses objetos de conhecimento. Na área do letramento, embora o documento mantenha uma compreensão do uso social da língua a partir dos diversos gêneros textuais, estabelece uma distinção entre o letramento da letra e os letramentos digitais ou multiletramentos, sugerindo uma compreensão de superação do que já está posto na literatura brasileira a respeito desse campo.

Trilhando um caminho catastrófico para a área de alfabetização em nosso país, a PNA assume, como estandarte salvacionista, a alfabetização ancorada na ciência cognitiva da leitura. Para isso, regressa aos antigos métodos, como o fônico, cometendo equívocos conceituais, epistemológicos quanto à ortografia, à escrita alfabética e à leitura. Tira de cena a vasta literatura sobre o letramento no Brasil, importando de outros países o termo literacia, cuja conceituação é equivocada e reducionista. Aposta em uma progressão confusa da literacia na escola básica, lançando a armadilha e a arbitrariedade de a família assumir o que seria essa etapa inicial de alfabetização. Com isso, claramente isenta o Estado de assumir a garantia de uma educação de qualidade e uma alfabetização eficaz para todas as crianças brasileiras.

No aspecto temporal, impõe incongruências com o Plano Nacional de Educação, considerando, sobretudo, que em nosso país ainda não temos a universalização da Educação Infantil. Além disso, há embates a serem considerados quanto a ensinar o objeto escrita alfabética nessa etapa da escolarização, havendo grupos de estudiosos da área que a entendem como prontidão para alfabetização, tal como é expresso na PNA. Assumimos que é preciso reduzir o apartheid educacional realçado por Morais (2012MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.), no Brasil, de modo a contemplar esse trabalho com a leitura e a escrita em uma perspectiva lúdica já na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental sem que, com isso, estejamos afinados com a ideia de prontidão para alfabetização.

O estudo evidenciou, também, que é preciso avançar, em nosso país, no estabelecimento de políticas de Estado vinculadas à alfabetização, de modo a assegurar uma estabilidade e flexibilidade curriculares e a garantir a participação efetiva dos principais segmentos envolvidos, visto que ficou notório o apagão histórico-epistemológico-didático da produção que precedeu a BNCC e a PNA.

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    » https://doi.org/10.26694/les.v0i43.9664
  • APOIO/FINANCIAMENTO

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES PrInt).
  • 1
    Havia, também, os métodos analítico-sintéticos (ou ecléticos), que combinavam princípios metodológicos dos dois grupos clássicos de métodos.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2023
  • Aceito
    07 Maio 2024
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