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Currículo e alfabetização: significações em disputa na busca de outros possíveis

RESUMO

As tensões entre currículo e alfabetização têm se tornado cada vez mais evidentes nos últimos anos. Seja no campo das práticas desenvolvidas na escola, seja no âmbito das políticas educacionais, os dois campos têm se interconectado e questionado um ao outro mutuamente. As políticas curriculares nos últimos anos tomam a alfabetização como um campo estratégico para a promoção da nomeada “qualidade da educação”, produzindo disputas sobre o que significa ser alfabetizado/a. Ao mesmo tempo, as políticas que se debruçam sobre a alfabetização discutem questões caras ao campo do currículo, como: o que se deve ensinar? O que conta como conhecimento no processo de alfabetização? Quem é o sujeito alfabetizado/a e quem é o/a professor/a alfabetizador/a? Nesse sentido, este artigo tem como objetivo discutir as aproximações e os tensionamentos possibilitados pelo diálogo entre os dois campos. Argumentamos que tanto alfabetização como currículo estão envolvidos no processo de luta por significados e, nesse processo, podem criar a fixação de sentidos, mas também pode possibilitar fissuras e criação de outros modos de vida.

Palavras-chave:
Currículo; Alfabetização; Políticas Curriculares; Formação docente

ABSTRACT

Tensions between curriculum and literacy have become increasingly evident in recent years.Whether in the field of practices developed at school or in the scope of educational policies, both fields have interconnected and mutually questioned each other. Curriculum policies in recent years have taken literacy as a strategic field for promoting the named “quality of education”, producing disputes about what it means to learn how to read and write. At the same time, policies that focus on literacy discuss issues dear to the field of curriculum, such as: what should be taught? What counts as knowledge in the literacy process? Who is the subject that learning how to read and write and who is teacher that teaching how to read and write? In this sense, this article aims to discuss the approximations and tensions made possible by dialogue between two fields. We argue that both literacy and curriculum are involved in the process of struggle for meanings and, in this process, can create the fixation of meanings, but it can also enable fissures and creation of other ways of life.

Keywords:
Curriculum; Literacy; Curriculum Policies; Teacher Training

Introdução

Alfabetização e Currículo: como tensionar esse par, nem sempre posto em relação? Foi em torno dessa questão que iniciamos nossas discussões para a proposição deste dossiê. Como pesquisadoras que têm procurado articular esses dois objetos e seus respectivos campos teóricos temos percebido que os diálogos entre eles ora se aproximam, ora se distanciam. Por um lado, as discussões no campo curricular, ao se voltarem para a análise de políticas curriculares têm, em geral, tomado tais políticas em recortes amplos, relativos às etapas da educação básica e/ou a campos disciplinares a partir das mobilizações de comunidades epistêmicas. Quando voltadas para a discussão das práticas, as análises do campo curricular dão variados enfoques, seja discutindo as questões das áreas disciplinares, como ocorre na análise de políticas, seja aproximando-se de temáticas relativas à diversidade cultural, como raça-etnia, gênero, sexualidade, entre outros marcadores identitários. Assim, as questões relativas à alfabetização no campo curricular ficam subsumidas em discussões mais gerais ou tomam a alfabetização apenas como uma etapa do processo de escolarização.

Por outro lado, as discussões acerca da alfabetização focam, muitas vezes, nos aspectos relativos às diversas formas de ensinar a ler e a escrever, às metodologias de ensino, à formação docente, ao sucesso/fracasso escolar, aos processos avaliativos. No campo de estudos da alfabetização, as discussões relativas ao currículo muitas vezes não são feitas, por se considerar que este já está definido. Currículo é tomado como um fato, como a organização de saberes que já foram estabelecidos e sobre os quais não é preciso tecer discussões. Há, assim, um distanciamento entre os dois campos, que muitas vezes tomam um ao outro como se fossem dados e não como processos discursivos em constante luta pela produção de significados.

Contudo, há que se observar que a problemática envolvida no aprender a ler e escrever mobiliza debates acerca dos saberes necessários para alfabetizar, do sucesso/fracasso escolar, das relações que se estabelecem entre campos disciplinares, dos sentidos e significados associados à alfabetização... De igual maneira, as questões relativas ao currículo estão envolvidas na produção de sentidos sobre o que significa ser alfabetizado/a, o próprio sentido de alfabetização, sobre como os/as docentes devem se conduzir nas diversas práticas relativas à alfabetização. A depender do modo como cada um desses conceitos é construído, as relações entre eles podem ser mais ou menos explicitadas. Além disso, tanto a alfabetização como o currículo estão diretamente envolvidos nas discussões sobre qualidade da educação. Ambos, acabam figurando como indicativo de crises, mazelas e/ou sucesso de modelos pedagógicos, mobilizando discursos que inferem sentidos ao que se entende por educação, qualidade e formação. Sobre isso, tantos exemplos podem ser citados, das notícias veiculadas em jornais de grande circulação sobre resultados de avaliações sistêmicas aos cases de sucesso - terminologia utilizada por organizações não governamentais - sobre práticas que se alinham a um dado sentido de qualidade, na associação sucesso-desempenho-eficácia que se expressa nas avaliações, tornando-se assim práticas exemplares.

No conjunto de políticas construídas nos últimos anos, alfabetização e currículo são apontados como campos estratégicos para as mudanças que se pretende instaurar na educação brasileira. A alfabetização é apontada como fundamental para superar as desigualdades econômicas em nosso país (Brasil, 2019). Já o currículo padronizado é apresentado como fulcral para que aprendizagens mínimas sejam garantidas a todos/as os/as estudantes brasileiros/as (Brasil, 2017).

A questão da alfabetização foi historicamente se constituindo mote de proposição de políticas curriculares tanto para a educação básica quanto para a formação de professores/as, entendida como “base” de projetos educacionais, como fronteira delimitadora da entrada ou não na escola, como elemento garantidor de uma dada concepção de cidadania alcançada a partir do domínio da leitura e escrita. Há, assim, uma importante relação entre os dois campos quando olhamos alfabetização e currículo como processos discursivos que disputam, negociam e significam diferentes projetos de educação. É possível inferir sobre tal enredamento observando como nos últimos anos as políticas curriculares vem cada vez mais voltando-se para as questões relativas à alfabetização. Um exemplo é a lei N. 11.274 (Brasil, 2006), que altera a redação dos artigos 29, 30, 32 e 87 da Lei N. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade. A intenção de inserir a criança de 6 anos no primeiro ano do ensino fundamental é estratégia para garantir a conclusão da etapa do ensino fundamental aos 14 anos, relacionando a apropriação da leitura e escrita à possibilidade de uma trajetória mais ampla, na qual a alfabetização aconteça na “idade certa”. Outra política que articula currículo e alfabetização é o Programa Mais Alfabetização, criado pela Portaria Nº 142, de 22 de fevereiro de 2018 (Brasil, 2018), que visava fortalecer e apoiar as unidades escolares no processo de alfabetização dos/as estudantes regularmente matriculados no 1º ano e no 2º ano do ensino fundamental, considerando o disposto na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017), recém promulgada à época, acerca da alfabetização se dar nos dois primeiros anos do ensino fundamental. Se voltarmo-nos para políticas para a formação do/a professor/a alfabetizador/a, entendendo “a formação de professores como instância de produção curricular e não como questão correlata” (Frangella, 2016FRANGELLA, Rita de Cássia. Políticas de formação do alfabetizador e produção de políticas curriculares: pactuando sentidos para formação, alfabetização e currículo. Práxis Educativa, v. 11, n. 1, p. 107-128, 2016. https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.11i1.0005
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, p. 111), é possível elencar várias políticas que enredam alfabetização e currículo. Podemos citar, para ficar apenas em exemplos mais recentes, o Pacto Nacional para a Alfabetização na Idade Certa (Brasil, 2012) e as ações do Programa Tempo de Aprender, vinculados à Política Nacional de Alfabetização (Brasil, 2019) que investem na formação de professores/as, ao mesmo tempo constituindo-se movimento instituinte de produção curricular para alfabetização.

Esses elementos evidenciam também como a alfabetização e o currículo estão imbricados na atualidade nas disputas sobre o que significa a qualidade da educação. Ao investigarmos esse movimento, interessa-nos destacar como o discurso da alfabetização se expande para além das fronteiras do seu próprio campo, incidindo não só sobre referenciais teóricos acerca da aquisição da leitura e escrita, métodos para ensinar a ler e escrever, perspectivas epistemológicas de alfabetização, mas sobre o discurso político da própria significação da educação, do conhecimento, da docência e também das políticas curriculares para alfabetização. De igual maneira, o discurso do campo curricular também alimenta o campo da alfabetização, por meio de diferentes produções discursivas sobre o que conta como conhecimento válido para crianças, jovens, adultos/as e idosos/as que estão aprendendo a ler e a escrever. Como em momento anterior argumentamos, tomamos as políticas curriculares como processo de articulação/produção de significados, destacando sua dimensão discursiva, e observar os efeitos de sentido divulgados e produzidos nessas políticas nos potencializa para compreender embates e negociações em marcha na luta pela significação da própria alfabetização (Caldeira; Frangella, 2023CALDEIRA, Maria Carolina; FRANGELLA, Rita de Cássia. Letramento em políticas curriculares de alfabetização: relações de poder-saber em torno do conceito cunhado por Magda Soares. Revista Brasileira de Alfabetização, n. 20, p. 1-14. 2023. https://doi.org/10.47249/rba2023748
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).

Nesse sentido, procuramos entender a alfabetização e o currículo a partir dos enfoques discursivos pós-estruturais mobilizados nos estudos que temos desenvolvido, acionando jogos de linguagem que põem em movimento processos de significação. Entendemos que tanto a alfabetização como o currículo têm sido alvo de diversas disputas, materializadas em políticas e práticas que ora tendem para a centralização e fechamento dos sentidos, ora apontam para a expansão e a experimentação. Nessa direção, a instauração da Base Nacional Comum Curricular (2017) - que pretende fixar significados em torno das práticas curriculares - e da Política Nacional de Alfabetização (2019) - cujo foco é definir o modo como a alfabetização deve ser realizada nas classes do país, por exemplo, exemplificam tentativas de homogeneização. Já as diferentes práticas curriculares realizadas por professores e professoras no país, que privilegiam as especificidades, a diferença e as características dos/as estudantes, mostram as possibilidades de escape e de fissuras a essas tentativas de padronização.

Em síntese, a compreensão de que a alfabetização e o currículo estão envolvidos nas relações de poder que buscam fixar sentidos para a escolarização nos mobilizou na organização deste dossiê. Soma-se a isso nossa própria trajetória como pesquisadoras da área que borram as fronteiras entre currículo e alfabetização. Somos pesquisadores do campo do currículo que, nas suas dobras, negociam e articulam tais problematizações curriculares com a alfabetização, borrando fronteiras que buscam traçar limites precisos do que cabe a cada campo, uma insurgência micropolítica, como explica Rolnik (2021ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição. Notas para uma vida não cafetinada. 2. ed. São Paulo: N1-edições, 2021.) que torna indiscernível essas fronteiras e que, na ressonância produzida por essa rede de múltiplas relações e conexões tecidas com/neste dossiê, potencializam outras significações para as produções curriculares para alfabetização.

De outro modo, poderíamos dizer com Bhabha (2001BHABHA, Homi. O local de cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2001.) que nos movemos na liminaridade da fronteira, não como demarcação de um dentro/fora, mas habitando um interstício, um entre-lugar de fluxos, articulações e ambivalências. Assim, “[...]é nesse sentido que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação ambulante, ambivalente [...]” (Bhabha, 2021, p.24) e que nos permite observar como a alfabetização vai se constituindo como questão curricular.

Por percebermos as relações que se forjam entre os dois campos em políticas e práticas e, ao mesmo tempo, notarmos que não há uma discussão tão direta nas pesquisas realizadas nos dois campos teóricos, procuramos chamar pesquisadores/as que têm mobilizado esses temas em suas pesquisas para divulgá-las e dar mais fôlego às discussões que têm sido realizadas nos dois campos. O número significativo de artigos que recebemos para avaliação, bem como a variedade de temáticas que eles abarcam mostram como nossas suspeitas iniciais de que há muito mais a dizer no diálogo entre os dois campos estavam corretas.

A leitura dos artigos que compõem este dossiê mostra que a possibilidade de articulação entre os campos deve-se, entre outros vários fatores, à ampliação do entendimento do que é alfabetização e do que é currículo. Se há um movimento significativo em torno da tentativa de fechamento dos sentidos dos dois termos, há também uma expansão dos contextos em que currículo e alfabetização podem ocorrer. No movimento de tentativa de fechamento de sentidos vemos, em políticas recentes e também no campo teórico, a discussão da necessidade de explicitar o que tem se entendido sobre alfabetização, particularmente para distanciá-la de outros termos que têm sido utilizados para se referir aos processos iniciais de aprendizagem. Soares (2018SOARES, Magda. Letramento. Glossário Ceale, Belo Horizonte, 2018. https://www.ceale.fae.ufmg.br/glossarioceale/verbetes/letramento
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, p. 27) afirma que “[...] na tradição, no senso comum, no uso corrente, e mesmo nos dicionários, alfabetização é compreendida como, restritamente, a aprendizagem do sistema alfabético-ortográfico e das convenções para o seu uso”. Nessa perspectiva, a alfabetização tem seu sentido reduzido às práticas que envolvem a aprendizagem inicial da língua escrita. Esse modo de pensar está presente em documentos curriculares, como a BNCC e a Política Nacional de Alfabetização e, em certa medida, o atual Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. Todavia, apesar de inúmeras críticas, têm se visto também uma ampliação da concepção sobre o que seja alfabetização, tanto alargando a compreensão do que significa alfabetizar, como mostrando que a alfabetização pode se dar em diferentes contextos.

No campo do currículo, a tentativa de fechamento de significados para definir “o que é mesmo currículo” tem encontrado uma série de resistências, ainda que reconhecendo como diz Macedo (2015MACEDO, Elizabeth. Base nacional comum para currículos: direitos de aprendizagem e desenvolvimento para quem? Educação e Sociedade, v. 36, n. 133, p. 891-908, 2015. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302015155700
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, p. 903-904), que “há, no currículo, como em toda prática de significação, um desejo de controle, uma redução de uma infinidade de sentidos àqueles tornados possíveis para pelos jogos de poder”, ainda argumenta a autora que são significações parciais, embora os esforços para conter as possibilidades de diferir sejam constantes. O desejo pela definição do que deveria ser/conter o currículo comum a todos, a partir de uma ideia de que essa igualdade garantiria práticas democráticas, acaba por apagar as singularidades e regem-se por uma lógica universalizante que ignora a diferença e mais produz desigualdade que equidade/qualidade na educação. Lopes e Borges (2017LOPES, Alice Casemiro; BORGES, Verônica. Currículo, conhecimento e interpretação. Currículo sem Fronteiras, v. 17, n. 3, p. 555-573, 2017. https://www.curriculosemfronteiras.org/vol17iss3articles/lopes-borges.pdf
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), em discussão sobre uma concepção normativa de currículo, que, assentada na centralidade do conhecimento, investe no controle via conhecimento, argumentam que “o currículo não se limita a ser um conjunto de enunciados constatativos ou teóricos, mas envolve a possibilidade do performativo como promessa de algo que nunca se institui plenamente”. Embora o senso comum também tenha a ideia de que o currículo se refere a uma lista de disciplinas, a discussão feita no campo tanto entende que o currículo não se restringe ao espaço escolar, como densifica as discussões ao mostrar que o currículo é uma produção discursiva, envolvida na produção de sentidos e significados. Assim, o currículo escolar não se restringe às disciplinas, mas abarca os diferentes processos que se dão na escola e que entram na disputa pela produção de sentidos, como políticas curriculares, materiais didáticos, práticas desenvolvidas em sala de aula e discussões teóricas. O currículo entra na disputa para se definir o que conta como saber verdadeiro e na definição de modos de ser e estar no mundo. Alinhamo-nos a essa concepção, que desloca o currículo concebendo-o como movimento, produção ininterrupta, significação, produção cultural... ou valendo-nos das palavras de Paraíso (2022PARAÍSO, Marlucy. Currículo e seus Dizeres, Fazeres e Quereres: vontade de potência de uma professora? Educação & Realidade, v. 47, e124429, 2022. https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/124429
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, p. 3) sobre a teorização produzida por Sandra Corazza, outra curriculista que se voltou para as relações alfabetização e currículo, currículo é espaço de “criação da educação”.

Nessa direção, nossa proposta com este dossiê é mostrar a diversidade que existe nos sentidos que têm circulado de currículo e alfabetização e, ao mesmo tempo, evidenciar como a articulação dos objetos de pesquisa (currículo e alfabetização) e dos campos teóricos (que se caracterizam por uma multiplicidade) pode produzir fissuras nos sentidos que se tenta fixar e ajudar na construção de modos outros de pensar a educação. Entendemos que, entre a fixação de significados e as experimentações que criam fissuras e possibilitam outros modos de vida, este dossiê dá visibilidade aos diversos modos como alfabetização e currículo podem ser pensados, problematizados e construídos na pesquisa educacional contemporânea. Os artigos aqui reunidos mostram essa pluralidade e evidenciam como pensar a alfabetização e o currículo como produtos e produções culturais areja os dois campos e possibilita articulações múltiplas e diversas.

Assim, o primeiro dos textos, intitulado Alfabetização e cultura: por possibilidades outras de significação dos processos de aprendizagem da leitura e da escrita , de autoria de Rosalva de Cássia Rita Drummond, Bonnie Axer e Jade Dias, com base em referenciais pós-estruturais, busca mostrar a tensão que se estabelece na tentativa de fixar sentidos para a alfabetização e para o currículo em políticas educacionais recentes. As autoras defendem que essa tentativa de fixação de um único sentido para a alfabetização traz “[...]consigo um caráter compensatório e salvacionista, reduzindo possibilidades outras de significação dos processos de leitura e escrita para além do que vem sendo proposto atualmente”. Tomando como mote inicial a obra “Cabo de guerra”, de Ivan Cruz, as autoras mostram como há uma disputa (que nem sempre vai em sentidos opostos, como na brincadeira infantil, mas que muitas vezes se dissipa em várias direções) sobre o que, como e quando deve se dar a alfabetização. Para sair dessa tentativa de fixação, as autoras recorrem novamente a Ivan Cruz, na obra “Várias brincadeiras”, mostrando como a pluralidade pode ser muito mais potente do que a disputa por apenas dois lados.

Ainda no campo de análise de políticas que tentam fechar os sentidos de alfabetização e currículo, o artigo Políticas curriculares no campo da alfabetização no Brasil: dos avanços teórico-epistemológico-didáticos ao apagão contemporâneo , de autoria de Solange Alves de Oliveira-Mendes e Carlinda Leite analisa os sentidos de alfabetização e letramento/literacia presentes na BNCC e PNA. Partindo de uma retomada das discussões acerca da alfabetização, as autoras mostram as diferenças de concepção que permeiam esses dois documentos, bem como a disputa que se estabelece entre eles. Mostram, ainda, como houve um “apagão histórico-epistemológico-didático da produção que precedeu a BNCC e a PNA”. Assim, defendem que é preciso, nas políticas de alfabetização “assegurar uma estabilidade e flexibilidade curriculares e garantir a participação efetiva dos principais segmentos envolvidos”.

Em Letramento/s em Políticas Curriculares de Alfabetização: sentidos em disputa , Andréia Mello Rangel, com base na espectrologia derridiana, mostra a tentativa sempre impossível de definir o sentido de algo, particularmente de letramento, aspecto tentado por políticas curriculares, como a PNA. A autora mostra como, ao lado da tentativa de cercear os sentidos de letramento, há também um movimento de “desqualificar as experiências produzidas nos municípios, nas unidades escolares, em um movimento que procura dizer que o trabalho desenvolvido nas escolas não favorece uma educação de ‘boa’ qualidade”. Assim, tanto currículo como letramento passam por esse processo de tentar cercar os sentidos, processo esse que não tem, na perspectiva teórica adotada pela autora, possibilidade de, de fato, ocorrer.

Já Andrea dos Santos Gabriel e Sandra Kretli Silva tomam como objeto diferentes macropolíticas (como a BNCC, a PNA e o recente Compromisso Nacional Criança Alfabetizada) para problematizá-los com base em uma perspectiva deleuziana, no artigo Currículos e alfabetização: entre códigos, desvios e experimentação. Além disso, utilizando redes de conversações com docentes do Espírito Santo, as pesquisadoras mostram que micropolíticas são acionadas pelas docentes no cotidiano da escola e como elas criam “movimentos curriculares coletivos de afirmação da vida, num exercício de pensamento que se abre ao novo, ao impensável, rachando postulados e inventando modos outros de (re)existir, com a arte”.

Cabe registrar que a Política Nacional de Alfabetização estabeleceu uma série de ações para além do documento que define o que deve ser ensinado nas turmas de alfabetização. Todas essas ações podem ser entendidas como currículos e é isso que o artigo Diálogos [inter]ditados: formação de professores no âmbito da Política Nacional de Alfabetização e o currículo [im]posto evidencia. Voltando sua análise para o Programa Tempo de Aprender, ação de formação docente proposta pela PNA, particularmente para o Curso Práticas de Alfabetização e os materiais “Práticas de Alfabetização: Livro do Professor Alfabetizador - Estratégias” e “Práticas de Alfabetização: Livro de Atividades”, Jânio Nunes dos Santos e Adriana Cavalcanti dos Santos mostram, com base na perspectiva discursiva de Bakhtin e Volochinov, como a PNA pretende impor um discurso que retrocede na formação docente, ao limitar as práticas de alfabetização à instrução fônica. A formação proposta por esse curso constrói sentidos que desconsideram a alfabetização e o letramento como práticas discursivas, ao mesmo tempo que propõe uma formação aligeirada e superficial para os/as professores/as. Entretanto, o autor e a autora defendem que os/as professores/as alfabetizadores/as “ao dialogarem com os signos ideológicos que integram a PNA na defesa do discurso de inovação, de evidências científicas e de eficácia no que tange à instrução fônica sistemática e prescrição curricular, podem reconfigurá-los nos moldes da palavra criada, palavra próprio-alheia”. Argumentam, assim, que há possibilidades de abertura nos sentidos, apesar de todas as tentativas de cerceá-los.

As propostas de formação docente promovidas pela PNA também são tematizadas no artigo O Tempo de Aprender e o silenciamento do letramento no processo de alfabetização, de Darlize Teixeira de Mello e Ramona Graciela Alves de Mello Kappi. Com base nas contribuições de Stephen Ball, as autoras mostram os contextos de influência e do texto presentes na PNA e problematizam o modo como o curso Práticas de Alfabetização silencia o conceito de letramento, ao mesmo tempo que restringe a alfabetização à instrução fônica. Há, assim, um esvaziamento da formação docente que oculta saberes que em outras propostas de formação foram considerados importantes.

Porém, outros modos de pensar a formação docente para a alfabetização são possíveis, além daqueles estabelecidos nos currículos maiores. Alexandre Cougo de Cougo, Sílvia Adriana Rodrigues e Márcia Regina do Nascimento Sambugari mostram isso no artigo A narrativa como eixo mobilizador do currículo de um curso de formação continuada de professoras alfabetizadoras. Tomando como objeto de estudos um curso de formação continuada de professoras alfabetizadoras no estado de Mato Grosso do Sul, na fronteira Brasil/Bolívia, o autor e as autoras analisam os trabalhos de conclusão de curso realizados por professoras alfabetizadoras e constroem dois núcleos analíticos com base nas narrativas produzidas. O primeiro núcleo mostra as práticas da professora alfabetizadora como um currículo calcado na sua experiência profissional. As narrativas, nesse sentido, explicitam a vivência de um currículo que perpassa os saberes docentes e constroem o modo delas serem e estarem na profissão. Já o segundo, intitulado como currículo da escrita de si, evidencia como a narrativa proposta pelo curso de especialização fez com que as docentes ressignificassem certas práticas e constituíssem sua identidade profissional. As narrativas em um curso de formação vão em direção oposta àquelas prescritas nos currículos maiores e permitem pensar em outros sentidos para o ser docente alfabetizadora, acionando saberes diversos e que possibilitam a produção de outros modos de ser.

Se o artigo anterior analisou uma experiência na fronteira Brasil/Bolívia, o oitavo artigo que compõem o dossiê, A imigração venezuelana e o contexto da alfabetização de crianças brasileiras e venezuelanas em escolas municipais de Boa Vista, Roraima, Brasil: um olhar para as considerações da gestão , de Leila Adriana Baptaglin, Gabrielle Oliveira, realiza uma etnografia em duas escolas e entrevistas com diversos atores envolvidos no processo de alfabetização para entender as questões que perpassam o ensino da leitura e da escrita de crianças imigrantes venezuelanas. A análise mostra como há uma proposta centralizada de currículo, que segue os princípios do Instituto Alfa e Beto e que leva a uma alfabetização baseada, sobretudo, na instrução fônica. Evidencia, ainda, os muitos desafios colocados pela questão da diferença linguística, pelos impactos da pandemia de Covid 19 e pela existência de problemas estruturais que decorrem de vários fatores sociais. Ainda que o artigo não opere com a ideia de interseccionalidade, fica implícito como essa é uma dimensão importante no processo de alfabetização.

Questões relativas à Educação Infantil em sua intersecção com a alfabetização também foram tematizadas nos artigos do dossiê. A presença de livros didáticos nesse nível e os efeitos que isso pode ter para as crianças e para o currículo são o objeto de estudo no artigo O PNLD 2022 e a curricularização da alfabetização na Educação Infantil. Nele, Eliana Borges Correia de Alburquerque, Ana Catarina dos Santos Pereira Cabral e Maria da Conceição Lira da Silva analisam as duas coleções de livros didáticos mais escolhidas para as crianças de 4 e 5 anos em algumas cidades de Pernambuco. A análise mostra que as propostas dos livros se aproximam daquilo que a PNA estabelece: uma perspectiva de alfabetização fônica e a concepção da Educação Infantil como etapa preparatória para a alfabetização. As autoras concluem dizendo que é fundamental garantir uma organização curricular para a Educação Infantil que não negue “às crianças o ensino da língua escrita envolvido em práticas de letramento, sem perder de vista que essas experiências considerem as brincadeiras e as interações”.

Letícia Santos da Cruz, Patrícia Corsino e Ludmila Thomé de Andrade, por sua vez, analisam como professoras da educação infantil e do ensino fundamental da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro conduzem suas práticas de alfabetização, com base nos documentos curriculares da Rede. No artigo Práticas docentes em tensionamento: produção de falsetes pedagógicos a partir das propostas curriculares de leitura e escrita da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, as autoras trabalham com Bakhtin para mostrar como há compassos e descompassos entre as orientações curriculares e as práticas docentes e como as professoras e o professor respondem por meio de falsetes pedagógicos para agir nessa polifonia existente. Defendem que as falas docentes mostram “as contradições presentes no próprio campo da alfabetização brasileira que se materializam em propostas curriculares pouco consistentes e que patinam em diferentes concepções de oralidade, leitura e escrita sem assumir uma posição”.

Na busca de orientações consistentes que possam embasar produções curriculares para alfabetização, Carina Venanzetti e Mónica Baez no artigo El objeto de enseñanza en la alfabetización inicial, un campo de controversias y disputas defendem perspectivas teórico-metodológicos que dão sentido à concepção de alfabetização entendida como processo psicolinguístico individual, como prática sociocultural e como direito.

A Educação de Jovens, Adultos e Idosos é tematizada no artigo Investigações sobre o currículo para a alfabetização de jovens, adultos e idosos: o que dizem as propostas? O olhar aqui volta-se para as propostas de redes municipais do Estado do Rio de Janeiro. Na tríade, EJA, currículo e alfabetização, Jaqueline Luzia da Silva mostra como as propostas curriculares muitas vezes alinham-se à BNCC, o que indica um apagamento das características próprias dessa modalidade. As especificidades dos/as idosos/as também são ignoradas em muitas dessas propostas, bem como a formação docente específica para a EJA. Assim, a autora defende a necessidade de “uma reflexão importante sobre o reconhecimento de um currículo que rompa os limites de uma formação para a construção de conhecimentos necessários, válidos e úteis em direção a um currículo concebido como uma prática de enunciação de sentidos”.

O artigo que fecha este dossiê articula diferentes categorias para pensar o processo de alfabetização. Intitulado Currículo, alfabetização e interseccionalidade na educação de pessoas surdas, o texto problematiza relatos e situações em uma turma de EJA na cidade de Belo Horizonte/MG para mostrar as relações interseccionais de deficiência, gênero, classe social, trabalho e raça em processos de ensino da leitura e da escrita para estudantes surdos(as), à luz das teorias pós-críticas do currículo. Com base na leitura do conto “Circuito fechado”, de Ricardo Ramos -, Cláudio Eduardo de Resende Alves, Rebeca Cristina Nunes Lloyd Gonçalves e Luciana Aparecida Guimarães de Freitas fazem um trabalho articulado para (des)estruturar a linguagem e também as categorias interseccionais abordadas. Evidencia, assim, a possibilidade de mostrar como “diferentes marcadores sociais podem atravessar práticas curriculares, oportunizando outras composições e outras leituras de mundo”.

Esperamos que a leitura dos artigos aqui reunidos seja um convite para a produção de modos outros de pensar a alfabetização, o currículo e a interação entre eles. Foi possível perceber que, com base em olhares teóricos os mais distintos e a partir de experiências de diferentes partes do país, a análise do par que, como apontamos no início desta apresentação, muitas vezes não é posto em relação, é muito profícua para pensarmos a educação para além daquilo que os currículos maiores definem. Nosso desejo com este dossiê é divulgar alguns sentidos e significados que, longe de serem homogêneos e harmônicos, mostram a riqueza do debate e abrem caminhos para pensarmos a educação de outros modos.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2023
  • Aceito
    16 Maio 2024
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