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GÊNERO E ESCOLA SOB ATAQUE: ENTRE O RELIGIOSO-INSTITUCIONAL E A POLÍTICA

GENDER AND SCHOOL UNDER ATTACK: BETWEEN THE INSTITUTIONAL-RELIGIOUS AND POLITICS

GÉNERO Y ESCUELA BAJO ATAQUE: ENTRE LO RELIGIOSO-INSTITUCIONAL Y LO POLÍTICO

Os embates políticos que buscam solapar a educação democrática têm operado por meio de dois movimentos que se complementam. Um movimento mantém o debate na superfície, de modo a tirar proveito de preconceitos arraigados, tanto individualmente como no ambiente psicossociocultural, geradores de medos e fobias. O outro, complementar, vale-se de um conjunto de clichês e slogans que, além de reforçar e garantir a superficialidade do debate, promove a multiplicação de estigmas e prontamente desqualifica tudo o que lhe seja oposição. Um dos temas que têm recebido semelhante tratamento, especialmente nas últimas três décadas, se refere às relações entre gênero e educação.

Se o avanço da reflexão e da produção científica trouxe à tona o que forças sociais dominantes e hegemônicas procuravam manter submerso, o avanço da consciência social e política passou a promover conquistas relativas ao reconhecimento de plena cidadania a quem antes era excluído e estigmatizado. Processo que tem se dado em níveis nacional e internacional, logo passou a ser combatido de modo virulento em múltiplas frentes. Há quem associe unicamente aos evangélicos a primazia e a liderança por toda manifestação antigênero, contra todo o avanço dos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIA+.

O pressuposto religioso que perpassa essas atitudes, contudo, não se limita aos evangélicos, nem sequer neles teve origem. A quem beneficia que se mantenha tão raso e desinformado esse debate público? Quais são as origens da elaboração de argumentos religiosos cristãos para atacar tudo o que se refira à igualdade de gênero? Qual é a relação desse ataque com a laicidade do Estado? Quais são os impactos sobre a educação democrática e a escola pública?

O livro A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder, de Rogério Diniz Junqueira, é indispensável contribuição para responder a essas e outras questões, tanto no que se refere a uma melhor compreensão do multifacetado universo que se estruturou em torno da categoria gênero quanto no sentido de prevenir o mencionado uso de clichês, impedindo o tratamento raso de questão tão sensível e relevante para a democracia.

Pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e investigador reconhecido no campo dos estudos de gênero e sexualidade na educação, Junqueira tem uma trajetória em políticas públicas sobre diversidades. Observa-se que, a cada nova publicação (Junqueira, 2017JUNQUEIRA, R. D. “Ideologia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária – ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”? In: RIBEIRO, P. R. C.; MAGALHÃES, J. C. (org.). Debates contemporâneos sobre educação para a sexualidade. Rio Grande: Editora da Furg, 2017.; 2019JUNQUEIRA, R. D. A “ideologia de gênero” existe, mas não é aquilo que você pensa que é. In: CÁSSIO, F. (org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019.), foi consolidando a tese de que a invenção da chamada “ideologia de gênero”, que identifica como sintagma, teve sua formulação no interior da Igreja Católica Apostólica Romana. O autor interliga o sintagma a ultraconservadores da política e da economia, o que conduz ao subtítulo do livro: “um projeto reacionário de poder”. Trata-se, assim, de obra madura e robusta, que dificilmente se entrega à tentativa de resumi-la ou resenhá-la, mas que responde, com sólidos argumentos, às quatro perguntas anteriormente apresentadas neste texto.

Estruturado de modo não linear, trazendo uma profusão de informações, o projeto gráfico-editorial do livro é brilhante. Não se trata de livro corriqueiro, seja no conteúdo diferenciado, seja por despertar interesse ao oferecer, generosamente, fotos dos sujeitos citados no estudo, reprodução de capas de livros, documentos, cartazes, jornais e revistas, entre outras imagens, como charges cedidas pela cartunista Laerte Coutinho.

As segunda e terceira perguntas apontadas anteriormente são exploradas de modo original por Junqueira. É fato que a produção sobre a laicidade do Estado no Brasil passou a ter grande impacto em 2006, quando a Igreja Católica ensaiou obter a assinatura para a concordata (Fischmann, 2006FISCHMANN, R. Ameaça ao Estado laico. Folha de São Paulo, p. C-10, 14 nov. 2006. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1411200622.htm. Acesso em: 10 maio 2023.
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), que se pretendia que ocorresse na visita de Bento XVI ao país em 2007. Com a efetiva assinatura do Acordo Brasil – Santa Sé e seu debate na Câmara dos Deputados em 2009 (Cunha, 2009CUNHA, L. A. A educação na concordata Brasil – Vaticano. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n. 106, p. 263-280, jan./abr. 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000100013
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; Fischmann, 2009FISCHMANN, R. A proposta de concordata com a Santa Sé e o debate na Câmara Federal. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n. 107, p. 563-583, maio 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000200013
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), a produção acadêmica sobre laicidade do Estado viveu grande expansão, tanto quantitativamente como em relação à diversidade de áreas acadêmicas que se debruçaram sobre a temática. À época, a área da educação teve papel de liderança, enquanto a intersecção entre educação, gênero e laicidade se mostrou particularmente profícua (Fischmann, 2023FISCHMANN, R. Escritos e vividos: educação, pluralidade e laicidade do estado. Portal de Livros Abertos da USP, 2023. https://doi.org/10.11606/9786587047461
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).

O livro de Junqueira (2023)JUNQUEIRA, R. D. A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letras Livres, 2022. aprofunda o estudo dessas relações, bem como os ataques articulados que têm sofrido, mediante como se estruturou o posicionamento antigênero da Igreja Católica. Docentes vinculados a universidades católicas foram chamados a integrar essa cruzada antigênero, emprestando tom acadêmico a uma elaboração precipuamente institucional e regressiva em termos políticos, fundada em manifestações de autoridades religiosas, incluindo documentos papais. A obra de Junqueira analisa as nuanças que diferenciam o papado de Bergoglio, o papa Francisco, de seus antecessores, de maneira especial de Ratzinger, o papa Bento XVI, que sucedeu e radicalizou o conservadorismo de Wojtyla, o papa João Paulo II. Ao mesmo tempo, o livro indica as permanências que a força da instituição impõe.

Junqueira (2023)JUNQUEIRA, R. D. A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letras Livres, 2022. fortalece sua tese ao tomar como referências estudiosas como Sara Garbagnoli e Mary Anne Case, para consolidar seus achados que sugerem que o sintagma “ideologia de gênero” adveio como uma “invenção católica que emergiu sob os desígnios do Pontifício Conselho para a Família e da Congregação para a Doutrina da Fé, entre meados da década de 1990 e o início dos 2000” (Junqueira, 2019JUNQUEIRA, R. D. A “ideologia de gênero” existe, mas não é aquilo que você pensa que é. In: CÁSSIO, F. (org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 1). O autor explicita a “invenção”, compondo um tipo de diálogo entre elaborações de princípios e diretrizes, por intermédio de determinada interpretação de textos eclesiásticos e orientações religiosas, e metodologias adotadas por lideranças da Igreja Católica para inserir e promover no espaço público, nacional e internacional, as mencionadas diretrizes.

O que fica claro, assim, é a decisão que tomou certa instituição religiosa, com peso milenar, de garantir um posicionamento formal, documentado, na direção de combater quaisquer avanços vinculados às questões de sexualidade e gênero exercendo protagonismo num espaço que a ela extrapola. Práticas discursivas e de ingerência organizada ultraconservadora passaram a ser adotadas, atraindo aliados de outras denominações cristãs. Explicita-se, então, a decisão de interferir no espaço público, confrontando e assediando a laicidade que define o Estado brasileiro. As ações desses grupos e de outros inspirados nessa matriz católica é intrinsecamente antilaicidade, antigênero, antifeminista, antiLGBTQIA+ e propõe um tipo de educação que é antidemocrático, decorrente desses posicionamentos e voltado para garantir sua expansão e permanência.

Na associação com a política e a economia ultraconservadora, adjetivada por Junqueira (2023)JUNQUEIRA, R. D. A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letras Livres, 2022. como reacionária, o uso do sintagma “ideologia de gênero” passa a operar como disparador de adesões desinformadas. Entre outros motivos, ao atuar como condutor de pânico moral para as famílias preocupadas com suas crianças, referenda a escola pública como alvo, sobretudo no sentido de retirar da escola, e do corpo docente, a autonomia, o respeito, a liberdade de ensino.

É nesse ponto que as primeira e quarta perguntas encontram um ponto de confluência. Manter raso o debate é do interesse de quem tem construído, dedicadamente, um perverso projeto reacionário de poder.

Valer-se da escola para disseminar ensinamentos ultraconservadores, que adotam uma imprópria naturalização de toda a diferença, seja de sexo, seja de gênero, seja de posição socioeconômica, é estratégia antiga, que não deveria surpreender. Na conquista da América, por exemplo, dizimar e impor crenças aos povos originários foi (e é) parte eloquente e estratégica da dominação. Assim como rejeitar direitos aos escravizados, com base na decisão eclesiástica de que existiriam povos sem alma. Ou ainda, ao longo das oito primeiras décadas do século 20, o veto, por parte da mesma instituição, às tentativas de implantar educação sexual nas escolas (Rosemberg, 1985ROSEMBERG, F. Educação sexual na escola. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 53, p. 11-19, maio 1985.), inculpada como suposta responsável pela perda da inocência das crianças.

Nessa visão, incluir educação sexual nos currículos seria pecaminoso, com a tradução de pecado (restrito ao domínio de dada crença) como crime (ampliado ao nível público); criminalização que, num exemplo terrível, em 1969 levou à prisão e a inquérito policial-militar, instaurado pelo Ministério Público e realizado pelo Departamento de Polícia Militar em conjunto com a Justiça Militar, um secretário de Educação do estado de São Paulo que era reitor da Universidade de São Paulo (USP) e seu chefe de gabinete, notável docente da Faculdade de Educação também da USP (O Estado de S. Paulo, 1973O ESTADO DE S. PAULO. A Justiça arquivou o IPM da Educação. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. 4, 14 jul. 1973.). No exemplo extraído dos mais tenebrosos tempos da ditadura civil-militar, explicita-se como se unificou a repressão a toda divergência política com a repressão a todo esclarecimento educativo, particularmente em matéria de sexualidade e democratização do ensino, atingindo avanços educacionais na escola pública que eram considerados como “subversivos” e “ameaça à segurança nacional”.

Por isso é efetiva e relevante a exortação que faz Junqueira (2023)JUNQUEIRA, R. D. A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letras Livres, 2022. de como é necessário desconstruir a minuciosa invenção da “ideologia de gênero” nos mais diversos campos e direções, em defesa da democracia. Porque a ânsia de normatizar a sexualidade, com repercussão para os gêneros, afirmando uma suposta ordem natural que reduz a vivência erótico-afetiva humana a um único padrão, e a própria busca da “eliminação [...] da espontaneidade como expressão da conduta humana” (Arendt, 2013ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso/Companhia das Letras, 2013., p. 550) são duas das principais demonstrações da tendência totalitária, que visam eliminar a pluralidade humana, base indispensável da democracia (Arendt, 2013ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso/Companhia das Letras, 2013.). Estigmatizar seres humanos por suas características diferenciadoras, singulares, sejam elas quais forem, é uma das bases do pensamento autoritário, que gera atitudes de discriminação, solapando os fundamentos da democracia (Horkheimer; Adorno, 1973HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Preconceito. In: HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Temas básicos da sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973. p. 172-183.).

Em resumo, proteger a diversidade e a pluralidade é proteger a democracia. Por isso, a escola efetivamente democrática não pode se omitir e precisa ter seu campo de ação garantido. O momento atual é grave, exige atenção, aprofundamento, conhecimento detalhado do que ataca a democracia e a escola pública, não o mero cancelamento, que se torna preguiçoso e inefetivo. A obra de Junqueira (2023)JUNQUEIRA, R. D. A invenção da “ideologia de gênero”: um projeto reacionário de poder. Brasília: Letras Livres, 2022. vem ao encontro dessa exigência.

Referências

  • ARENDT, H. Origens do totalitarismo São Paulo: Companhia de Bolso/Companhia das Letras, 2013.
  • CUNHA, L. A. A educação na concordata Brasil – Vaticano. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n. 106, p. 263-280, jan./abr. 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000100013
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  • FISCHMANN, R. Ameaça ao Estado laico. Folha de São Paulo, p. C-10, 14 nov. 2006. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1411200622.htm Acesso em: 10 maio 2023.
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  • FISCHMANN, R. A proposta de concordata com a Santa Sé e o debate na Câmara Federal. Educação & Sociedade, Campinas, v. 30, n. 107, p. 563-583, maio 2009. https://doi.org/10.1590/S0101-73302009000200013
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  • FISCHMANN, R. Escritos e vividos: educação, pluralidade e laicidade do estado. Portal de Livros Abertos da USP, 2023. https://doi.org/10.11606/9786587047461
    » https://doi.org/10.11606/9786587047461
  • HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Preconceito. In: HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Temas básicos da sociologia São Paulo: Cultrix, 1973. p. 172-183.
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  • ROSEMBERG, F. Educação sexual na escola. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 53, p. 11-19, maio 1985.
Editor de seção: Ivany Pino https://orcid.org/0000-0001-6227-972X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2023
  • Aceito
    03 Jul 2023
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