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APRESENTAÇÃO

Em nível mundial, o número de países que avançam na direção do autoritarismo constitui o dobro de países que caminham na direção democrática. Cerca de dois terços da população do planeta vivem atualmente em democracias em regressão ou sob regimes autoritários, caracterizadas por crescentes polarizações políticas, pelo avanço da extrema-direita e de sua organização em escala global e pela cada vez maior dificuldade de composição de maiorias democráticas nos governos e parlamentos (International Idea, 2023INTERNATIONAL IDEA. Relatório do Estado Global da Democracia de 2023: Estabelecer contratos sociais numa época de descontentamento. Estocolmo: Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral, 2023.).

Nesse contexto dramático, a educação tem sido utilizada, muitas vezes, como área prioritária e plataforma de ataques por grupos de extrema-direita que visam não somente descontruir os avanços no campo dos direitos educativos, mas atacar a democracia, as políticas de enfrentamento das desigualdades, a laicidade do Estado e a preservação ambiental, tendo como base agendas moralmente regressivas, ancoradas na defesa da austeridade econômica, de hierarquias sociais, da supremacia branca, da família nuclear e do discurso falacioso da ideologia de gênero. Esse discurso nasceu na década de 1990, foi formulado por setores reacionários da Igreja Católica e mobilizado para atacar os avanços dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ conquistados nas Conferências Internacionais do Ciclo Social da Organização das Nações Unidas (Conectas Direitos Humanos, 2020CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Entrevista: a ofensiva antigênero como política de Estado. Conectas Direitos Humanos, São Paulo, 7 mar. 2020. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/ofensiva-antigenero-politica-estado/. Acesso em: 7 jul. 2024.
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; Brown, 2021BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Filosófica Politeia, 2021.; Junqueira, 2022JUNQUEIRA, R. A invenção da ideologia de gênero: um projeto reacionário de poder. Campo Grande: Letras Livres, 2022.; Sentiido et al., 2021SENTIIDO. Fabricar el pánico moral: usar la niñez como arma para atacar la justicia de género y los derechos humanos. Colômbia: Sentiido, 2021.).

Diante desse quadro, quais são os desafios da educação? Qual é o papel das políticas educacionais na defesa da democracia? Qual é a tarefa dos sistemas de ensino? O dossiê “O lugar da educação no fortalecimento da democracia” representa um esforço de reflexão teórica sobre as contradições e fissuras do ultraconservadorismo na área educacional, compreendido como fenômeno complexo, dinâmico, multifacetado, que tem como uma das suas bases a descrença na política institucional.

Considerando realidades de diferentes países da América Latina, o dossiê foi construído com o objetivo de identificar brechas e abordagens que contribuam para a defesa de políticas públicas garantidoras de direitos humanos e para o fortalecimento do lugar da educação na promoção de culturas democráticas sustentadoras de projetos de sociedade comprometidos com a justiça racial, social, de gênero e climática. Teve como uma de suas motivações os resultados instigadores da pesquisa nacional “Educação, Valores e Direitos”, coordenada pela Ação Educativa e Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), desenvolvida em 2022 em parceria com o Centro de Estudos de Opinião Pública da Universidade Estadual de Campinas, Plano CDE e instituto Datafolha, em aliança com a Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação1 1 Coordenada pela Ação Educativa, a Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação vem atuando há anos no enfrentamento do fenômeno da censura, perseguições e autocensura nas escolas, promovidas por movimentos ultraconservadores. A Articulação em Defesa do Direito à Educação e Contra a Censura nas Escolas tem atuado no âmbito do sistema de justiça e do Congresso Nacional, além de promover ações de comunicação, formação e produção de materiais. como o Manual de Defesa das Escolas contra a Censura. É constituída de: Artigo 19, Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos, Associação Mães pela Diversidade, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Associação Nacional pelos Direitos Humanos LGBTI, Associação Tamo Juntas – Assessoria Jurídica Gratuita para Mulheres Vítimas de Violência, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará, Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cenpec, Cidade Escola Aprendiz, Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres, Conectas Direitos Humanos, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Confederação Nacional dos Trabalhadores dos Estabelecimentos em Educação, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Frente Nacional Escola Sem Mordaça, Geledés – Instituto da Mulher Negra, Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Instituto Alana, Instituto Brasileiro de Direito da Família, Movimento Educação Democrática, Observatório Sexualidade e Política da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, Plataforma de Direitos Humanos, Projeto Liberdade, Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde, Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior e Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. e cofinanciamento do Fundo Malala.

O objetivo da pesquisa “Educação, Valores e Direitos” foi compreender como agendas reacionárias promovidas por grupos ultraconservadores voltadas para a educação são entendidas e elaboradas pela população. A pesquisa abordou questões como a militarização de escolas; a proposta de educação domiciliar; as cotas raciais; a implementação do ensino da história e das cultura africanas e afro-brasileiras, estabelecida pela Lei nº 10.639/2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996; as agendas de educação sexual, gênero e diversidade sexual; e a abordagem da política e de direitos na escola (Ação Educativa; Cenpec, 2022AÇÃO EDUCATIVA; CENPEC. Pesquisa Educação, Valores e Direitos. São Paulo: Ação Educativa, 2022. Disponível em: https://generoeeducacao.org.br/mude-sua-escola/pesquisa-educacao-valores-e-direitos/. Acesso em: 10 maio 2023.
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).

Mobilizando diversas estratégias e atuando em nível transnacional prioritariamente em três frentes — aparelhamento das estruturas de Estado, incidência política em casas legislativas e disputa cultural no cotidiano das escolas e comunidades —, definimos a atuação de grupos ultraconservadores na educação como aquela orientada à manipulação e à disseminação de informações falsas e preconceituosas, sobretudo em períodos eleitorais, que estimulam perseguições a professores, censura nas escolas e pânico moral, de maneira especial com relação às agendas de igualdade de gênero, sexualidade e raça, atacando princípios básicos de uma educação crítica e dialógica (Ação Educativa; Cenpec, 2022AÇÃO EDUCATIVA; CENPEC. Pesquisa Educação, Valores e Direitos. São Paulo: Ação Educativa, 2022. Disponível em: https://generoeeducacao.org.br/mude-sua-escola/pesquisa-educacao-valores-e-direitos/. Acesso em: 10 maio 2023.
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; Carreira, 2022CARREIRA, D. Tempos terríveis: memória e produção de resistências em educação no governo Bolsonaro. In: CARREIRA, Denise; LOPES, Barbara (org.). Gênero e educação: ofensivas reacionárias, resistências democráticas e anúncios pelo direito à educação. São Paulo: Ação Educativa, 2022. p. 14-36.).

Realizada no primeiro semestre de 2022, antes da campanha eleitoral, a pesquisa “Educação, Valores e Direitos” utilizou métodos mistos e combinou análises quantitativa e qualitativa. A etapa qualitativa ocorreu por meio de 42 minigrupos focais etnográficos, cada um deles constituído de três pessoas que se conhecem, favorecendo que os participantes se sentissem à vontade para expressar as opiniões sobre temas polêmicos. Para os minigrupos focais, foram mobilizadas pessoas consideradas conservadoras médias, utilizando um formulário prévio de questões que possibilitou filtrar participantes de perfis de extrema-direita e de esquerda. Com base nesse estudo qualitativo, foi elaborado o instrumento empregado em survey nacional sobre temas ligados à educação, aplicado em 130 municípios das cinco regiões do país, com 2.090 respondentes.

A pesquisa revelou que a adesão da maioria da população às agendas de educação da extrema-direita é limitada, contrastando com o discurso alardeado por tais movimentos de um suposto predomínio popular de suas posições. Constatou-se que, muitas vezes, quando há adesão de parte da população a alguns aspectos da agenda de extrema-direita para a educação, não há em outros, evidenciando-se brechas e contradições.

Uma delas se refere à abordagem de questões políticas e de direitos na escola. O survey nacional revelou que 55,6% das pessoas entrevistadas pela pesquisa nacional de opinião pública afirmaram que os professores devem evitar falar de política em sala de aula, e 53,5% que os pais devem ter direito de proibir as escolas de ensinar temas que não aprovam. Porém, quando questionados se a escola deveria tratar temas como pobreza e as desigualdades, 92,8% disseram que sim; direitos dos estudantes, 91,9% aprovaram; discriminação racial, 91,2%; e desigualdades entre mulheres e homens, 89,1%. Dessa forma, verifica-se uma dissociação entre a noção de política e questões centrais de democracia e interesse público, eminentemente políticas, algo fundamental a ser trabalhado pelos currículos escolares.

Por meio da etapa qualitativa, foi possível indagar os sentidos de política manejados por grande parte da população, muitos dos quais se articulam entre si. Identificou-se a penetração de sentidos negativos, como o entendimento de política como “baderna”, vinculada à atuação de movimentos sociais que questionam hierarquias naturalizadas que organizam a ordem social; como sinônimo de “politicagem”, especialmente de apropriação de instâncias e recursos públicos para fins de interesses privados por parte de certos indivíduos e setores da sociedade; de “desencantamento da política pela economia” (Davies, 2017DAVIES, W. The limits of neoliberalism: authority, sovereignty and the logic of competition. Los Angeles; Londres: Sage, 2017., p. 19) ligada ao discurso neoliberal que prega a desconfiança com relação às políticas públicas e afirma saídas individualistas e meritocráticas para os problemas das desigualdades sociais; como sinônimo de política partidária, defesa de determinados partidos políticos; e um sentido abstrato de política, muitas vezes desconectado de decisões e ações que afetam o cotidiano. A pesquisa revelou que questões sensíveis que mobilizam rejeição quando abordadas de forma abstrata ganham em adesão quando aterrissadas em situações cotidianas e evidenciados seus efeitos na vida concreta das pessoas.

Esse é o caso das agendas referentes às questões de gênero e diversidade sexual, manipuladas por grupos ultraconservadores sobretudo em períodos eleitorais, com o objetivo de gerar pânico moral. Os dados do survey nacional revelam um cenário promissor: 88% acreditam que é importante que a escola discuta as desigualdades entre homens e mulheres; 81% afirmam que as escolas devem promover os direitos de as pessoas viverem livremente sua sexualidade, sejam elas heterossexuais, sejam LGBTs; 92,9%, que as escolas precisam ensinar os meninos a dividirem o trabalho doméstico com meninas e mulheres; e 96,3%, que os estudantes devem receber informações nas escolas sobre leis que punem a violência contra mulheres.

Educação Sexual: Diálogos Entre Brasil, Peru, Colômbia e América Central

A pesquisa “Educação, Valores e Direitos” revelou que 73% defendem que a educação sexual seja abordada nas escolas; 71% acreditam que as escolas estão mais preparadas que os pais para explicar temas como puberdade e sexualidade; 91%, que a educação sexual nas escolas ajuda as crianças e adolescentes a se prevenirem contra o abuso sexual; 96,1%, que a escola deve oferecer informação sobre doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e formas de prevenção; e 92,5%, que os estudantes devem receber na escola informações sobre como evitar uma gravidez indesejada. Mesmo os pais contrários à educação sexual nas escolas manifestaram necessitar de ajuda para abordar questões como abuso sexual, DSTs e gravidez na adolescência.

A educação sexual é definida com base na noção de educação integral em sexualidade, compreendida como aprendizagens que acontecem informalmente na família e formalmente por meio de processos de ensino e aprendizagem em escolas orientados por um currículo que considere as experiências dos sujeitos e os aspectos cognitivos, emocionais, físicos e sociais da sexualidade (Louro, 2008LOURO, G. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v. 19, n. 2, p. 17-23, maio 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pp/a/fZwcZDzPFNctPLxjzSgYvVC/?format=pdf⟨=pt
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; Figueiró, 2010FIGUEIRÓ, M.N.D. Educação sexual: retomando uma proposta, um desafio. Londrina: Eduel, 2010.; Furlani, 2011FURLANI, J. Educação sexual na sala de aula: relações de gênero, orientação sexual e igualdade étnico-racial numa proposta de respeito às diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.). Tem por objetivo transmitir conhecimentos, habilidades, atitudes e valores a crianças, adolescentes e jovens de forma a fornecer-lhes autonomia para: garantir a própria saúde, o bem-estar e a dignidade; desenvolver relacionamentos sociais e sexuais de respeito; considerar como suas escolhas afetam o bem-estar próprio e o de outras pessoas; e entender e garantir a proteção de seus direitos ao longo de toda a vida (Unesco, 2019ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Orientações técnicas internacionais de educação em sexualidade: uma abordagem baseada em evidências. 2. ed. Paris: Unesco, 2019.).

Os resultados da pesquisa brasileira dialogam com levantamentos similares promovidos pela organização colombiana Sentiido e por articulações de direitos humanos latino-americanas entre 2022 e 2024 no Peru, na Colômbia e na região da América Central, países que enfrentam ofensivas antigênero de grupos ultraconservadores na educação, como o movimento transnacional Con mis Hijos no te Metas.

Criado em Lima (Peru) em 2016 por grupos cristãos conservadores em uma campanha contrária ao novo currículo nacional da educação básica, proposto em 2013 pelo Ministério da Educação do Peru (Meneses, 2019MENESES, D. Con Mis Hijos No Te Metas: un estudio de discurso y poder en un grupo de Facebook peruano opuesto a la “ideología de género”. Anthropologica, v. 37, n. 42, p. 129-154, 2019. https://doi.org/10.18800/anthropologica.201901.006
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), o movimento Con Mis Hijos no te Metas defende a supressão da “política” na escola, o direito dos pais de definirem quais conteúdos devem ser abordados no currículo e a interdição do debate sobre igualdade de gênero, diversidade sexual e educação sexual nas instituições educativas, compreendido como uma ataque à família cristã. O movimento ganhou força transnacional no continente, expandindo suas articulações com grupos de extrema-direita na Colômbia, Equador, Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai, Costa Rica, México, entre outros países (Observatório de Sexualidade e Política, 2021; Quequejana Melo, 2021QUEQUEJANA MELO, L.S. Contra la “ideología de género”: Transnacionalización de Con mis hijos no te metas en el activismo anti-género latinoamericano entre el 2016 y 2020. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, Facultad de Ciencias Sociales, 2021.), e estabelecendo relações no Brasil, com o então movimento Escola sem Partido, criado em 2004.

Apesar de toda a campanha agressiva, que mobilizou marchas de ativistas nas ruas, a pesquisa de opinião pública realizada em 2022 no Peru (Sensata Ux Research, 2022aSENSATA UX RESEARCH. Estudio de audiências en el Peru: la educación entre dos visiones del mundo. Sensata Ux Research, 2022a.) revelou que 76% das pessoas entrevistadas com filhos em escolas públicas apoiavam o Ministério da Educação do país e acreditavam que especialistas em educação devem decidir o que será ensinado nas escolas. Com 94%, os jovens de 18 a 25 anos representavam o grupo da população que mais considerava serem os especialistas em educação os mais adequados a decidirem o que se ensina nas escolas. Os evangélicos eram os que mais defendiam que essa responsabilidade cabe aos pais, com 26% do total das pessoas entrevistadas.

A pesquisa apontou que mais da metade da população (56%) considerava que, se pais e mães elegessem os conteúdos de biologia e história do Peru a serem abordados nas escolas, a educação do país sofreria piora de qualidade. Oitenta por cento defendia que o período de conflito armado no país, ocorrido entre as décadas de 1980 e 2000, deveria ser abordado em aulas de história, posição contrária à de movimentos ultraconservadores do Peru. Mais da metade (54%) dos peruanos entrevistados manifestou ser contrária às posições do movimento Con mis Hijos no te Metas, porém 50% alertavam sobre a percepção de as famílias não contarem com espaços suficientes de participação nas escolas.

Sobre a importância da educação sexual, 81% e 88% das pessoas entrevistadas no Peru afirmaram que ela contribui para a prevenção, respectivamente, da violência sexual contra crianças e adolescentes e da gravidez na adolescência, sendo esta última compreendida por 85% dos entrevistados como um dos problemas prioritários no Peru. Porém, quando perguntados sobre qual é o melhor lugar para aprender sobre sexualidade, 51% disseram que em casa e 45% na escola. As respostas apresentaram grande variação conforme a idade e o nível educativo da mãe, com os mais jovens (18 a 25 anos) defendendo que a escola é o lugar mais adequado (63%).

A pesquisa concluiu traçando um perfil da população peruana com relação à agenda de gênero e educação sexual nas escolas, sendo 42% classificada como simpatizante, 27% persuasível, 10% indecisa e 21% antagonista. Os simpatizantes são pessoas que defendem uma educação livre e independente, têm valores progressistas e acreditam na importância da educação sexual nas escolas; os persuasíveis creem nos especialistas em educação e estão indecisos sobre o papel dos pais, estão divididos entre valores progressistas e tradicionalistas e defendem a educação sexual, mas preferencialmente em casa; os indecisos querem um educação tradicional, mas preferem não se envolver diretamente, têm valores que tendem aos progressistas e são a favor da educação sexual nas escolas, porém com supervisão dos pais; e os antagonistas querem controlar a educação para manter a ordem atual, defendem a obediência e a disciplina como princípios orientadores, têm valores tradicionais e não querem educação sexual nem reconhecem a problemática das desigualdades de gênero.

Em 2022, a pesquisa de opinião pública realizada na Colômbia explorou questões similares (Sensata Ux Research, 2022bSENSATA UX RESEARCH. La educación sexual y política en el colégio: actitudes, apoyo y resistência en el publico colombiano. Sensata Ux Research, 2022b.), visando compreender os impactos restritivos ao direito à educação de projetos de lei promovidos por grupos ultraconservadores do país que integram o movimento transnacional Con mis Hijos no te Metas, a maior parte vinculada ao partido colombiano de direita Centro Democrático. Como no Brasil e em outros países, tais movimentos vêm propondo projetos de lei nos parlamentos que proíbem a abordagem crítica da história política do país, particularmente dos resultados da comissão da verdade sobre os conflitos armados na Colômbia; da educação sexual, gênero e diversidade sexual; e de outras agendas vinculadas ao enfrentamento das desigualdades.

Como no Peru, a pesquisa traçou o perfil da população colombiana entrevistada, organizando-a em quatro grupos: simpatizantes; flexíveis indecisos; flexíveis conservadores; e antagonistas. Os simpatizantes (27%) são pessoas que valorizam os direitos, as liberdades, a igualdade e uma educação independente, aprovam a educação sexual desde cedo e acreditam no ensino da história crítica baseado em perspectivas plurais; os flexíveis indecisos (34%) valorizam a liberdade – com algumas restrições à igualdade – e a participação das famílias, praticam a religião de forma moderada, defendem a educação sexual, mais bem realizada em casa e em idade mais tardia, são indiferentes quanto à importância das aulas de história nas escolas, mas aprovam o ensino com base em perspectivas plurais; os flexíveis conservadores (28%) valorizam a ordem, a autoridade, a educação formal e as hierarquias, mas apoiam a igualdade de gênero, aprovam a educação sexual integral desde cedo, mas em casa, e valorizam as aulas de história que tratem das diferentes ideologias; e os antagonistas (11%) valorizam a ordem e a obediência e acreditam menos nas liberdades, são mais tradicionais com relação à religião e à família, rechaçam a educação sexual, mas quando necessária ela deve ocorrer em casa e não abordar a diversidade sexual, e creem na importância do ensino de história que não trate das diferentes perspectivas.

Em 2024, uma nova pesquisa de opinião pública foi realizada na Colômbia (Sentiido et al., 2024SENTIIDO; MARTINEZ, J.; GARDNER, A.; GÓMEZ, V. “Sí” a la educación sexual y a los derechos de las personas LGBT: encuesta sobre las actitudes de padres y madres de familia en Colombia sobre la Educación Sexual Integral (ESI) y la diversidad sexual y de género. Colômbia: Sentiido, 2024.) sobre as atitudes de pais e mães acerca de educação sexual integral, gênero e diversidade sexual, revelando maior adesão da população a essas agendas. A pesquisa registrou o apoio de 95% das famílias à abordagem da educação sexual integral nas escolas e de 90% à igualdade de direitos para a população LGBTQIA+, apesar de somente 58% se manifestarem favoráveis ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e 69% afirmarem que não teriam problema para aceitar um filho LGBT.

A pesquisa revelou também a maior confiança com relação às pessoas LGBTs: cerca de 60% de pais e mães reconhecem que as pessoas gays não têm maiores probabilidades de abusar sexualmente das crianças, e 61% estão de acordo de que um professor gay não representa nenhum perigo às crianças. A investigação recomenda que, para se ter uma perspectiva mais nítida dos posicionamentos da população, é necessário que as pesquisas de opinião pública sejam feitas fora do período eleitoral, momento no qual os movimentos ultraconservadores intensificam o processo de desinformação visando gerar pânico moral contra essas agendas com fins de obter mais votos por candidaturas de direita e extrema-direita.

Em novembro de 2023, a pesquisa foi realizada em países da América Central (Sensata Ux Research, 2023SENSATA UX RESEARCH. Actitudes hacia la educacion sexual em Centroamérica. Sensata Ux Research, 2023.) e revelou uma realidade mais conservadora: 81,9% acreditam na importância da educação sexual, mas 88% da população defende que a casa seja o lugar mais apropriado para aprender sobre sexualidade. Contrastando com as pesquisas de outros países da América Latina, surpreende na região o número de entrevistados que acreditam que pais e mães sabem o necessário para educar seus filhos sobre sexualidade (58%), e 68% afirmavam que as famílias não necessitam de apoio para falar sobre sexualidade com crianças e adolescentes. Somente 28% das pessoas entrevistadas valorizam a opinião de especialistas e 10% de professores.

A pesquisa identificou diferenças significativas entre os países, sendo a Costa Rica o país com posições mais progressistas favoráveis à educação sexual nas escolas, casamento entre pessoas do mesmo sexo, rechaço ao Estado religioso, contrastando com países como Panamá, Honduras e Guatemala, com o predomínio de posições mais conservadoras. Como nas pesquisas anteriores, foram definidos quatro perfis de entrevistados: fundamentalistas, conservadores pró-educação sexual integral, flexíveis conservadores e simpatizantes da educação sexual integral.

Os fundamentalistas na região da América Central (9%) são contrários à educação sexual integral e ao reconhecimento da diversidade sexual, consideram que a melhor maneira de evitar a gravidez na adolescência é a abstinência, que a violência contra a mulher não é um problema prioritário e defendem um Estado religioso; os conservadores pró-educação sexual integral (38%) defendem ser importante educar as meninas para serem boas donas de casa e esposas, são predominantemente favoráveis a um Estado religioso e acreditam na importância da educação sexual como forma de prevenir a gravidez na adolescência, acreditam que pais e mães sabem o suficiente sobre sexualidade e são o grupo que mais prioriza a obediência; os flexíveis conservadores (29%) são indecisos em relação à educação sexual integral como direito, ao combate às desigualdades entre mulheres e homens e ao Estado religioso, mas defendem que a educação sexual é efetiva na prevenção da gravidez na adolescência, são contrários ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e justificam o aborto em casos específicos; e os simpatizantes (24%) defendem uma educação para autonomia dos filhos, acreditam que o casamento entre pessoas do mesmo sexo também constitui uma família, defendem o uso de anticonceptivos como prevenção da gravidez na adolescência e a importância da educação sexual integral pautada por especialistas.

A pesquisa registrou uma aparente contradição nas respostas do conjunto dos países da América Central, que aponta a necessidade de uma educação voltada à obediência (61,5%) e à criatividade (53,5%), colocando o desafio de um aprofundamento sobre os diferentes significados desses termos para a população e de possíveis articulações no cotidiano.

Reconhecendo os complexos desafios para o fortalecimento de regimes democráticos na América Latina, sob ameaças de um crescente ativismo de extrema-direita, as pesquisas abordadas revelam possibilidades, questões e desafios para o aprimoramento de políticas educativas e a centralidade da agenda da educação sexual, gênero e diversidade sexual para a defesa da democracia. A manipulação dessas agendas tem servido como base de ataque ao conjunto das agendas progressistas no continente voltadas ao enfrentamento das desigualdades históricas. Considerando esse quadro ameaçador, qual é o papel das políticas educacionais na defesa da democracia e no enfrentamento de forças de extrema-direita? Que noção de qualidade educacional deve pautar as políticas educacionais? Problematiza-se neste texto a incompatibilidade da noção hegemônica de qualidade educacional com o fortalecimento da democracia.

Qual é a Noção de Qualidade Educacional para o Fortalecimentoda Democracia?

Ancorada na agenda neoliberal, da primazia do privado sobre o público, a noção hegemônica de qualidade educacional, que nas últimas décadas tem pautado os sistemas educacionais, vincula-se à chamada nova gestão pública, perspectiva que ganhou força na agenda educacional nos anos de 1990, induzindo à adoção de princípios e práticas do setor privado pelas instituições públicas; redução do tamanho e do papel do Estado, com base no discurso do aumento da eficiência com diminuição de custos; e diversificação das formas de privatização de serviços públicos, direitos e bens comuns (Ball, 2005BALL, S.J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 126, p. 539-564, set./dez. 2005. https://doi.org/10.1590/S0100-15742005000300002
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; 2014BALL, S.J. Educação global S.A. novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Ponta Grossa: Uepg, 2014.; Adrião; Pinheiro, 2012ADRIÃO, T.; PINHEIRO, D. A presença do setor privado na gestão da educação pública: refletindo sobre experiências brasileiras. Educação e Políticas em Debate, v. 1, n. 1, p. 55-66, 2012. https://doi.org/10.14393/REPOD-v1n1a2012-17363.
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; Laval, 2019LAVAL, C. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo, 2019.; Cóssio, 2020CÓSSIO, M.F. A nova gestão pública: alguns impactos nas políticas educacionais e na formação de professores. Educação, v. 41, n. 1, p. 66-73, 2018. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.1.29528
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).

A noção hegemônica de qualidade predominantemente se centra em uma racionalidade econômica em prol do mercado, em uma hipervalorização de resultados de desempenho de estudantes aferidos por meio de testes padronizados geridos por sistemas de avaliação educacional de larga escala. Tal perspectiva, de forma dominante, privilegia o mérito, o esforço individual, a competição; naturaliza desigualdades sociais, raciais e de gênero; sequestra o tempo e as prioridades das escolas; despolitiza a gestão escolar e educacional em prol de uma perspectiva burocrática, sem sentido e de controle e vigilância centralizados, imposta por meio da ditadura das plataformas digitais (Torres, 2023TORRES, L. Conferência de Abertura. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO DE POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO, 7, 2023. Lisboa, fev. 2023.) e de outros mecanismos; e desvaloriza os processos educativos e o papel formativo das vivências democráticas, induzindo à contraposição entre eficiência e participação ativa.

No mundo todo, essa perspectiva hegemônica de qualidade educacional tem sido abraçada por governos situados em diferentes lugares do espectro político – de direita à esquerda –, atualizada e ressignificada nos variados contextos, como se deu nos governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2010) e de Dilma Rousseff (2011–2016).

No Brasil, apesar de a qualidade educacional referenciada em resultados de avaliações de larga escala se constituir em noção hegemônica desde o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995–2002), vinculada às reformas educacionais dos anos de 1990, outras noções de qualidade educacional estiveram presentes, disputaram e se articularam nas últimas décadas no debate educacional, sobretudo nos governos petistas, promovidas por diferentes sujeitos políticos, entre eles os movimentos sociais de educação, negros, feministas, LGBTQIA+, de direitos humanos, de comunidades do campo, indígenas e quilombolas, de pessoas com deficiências, ambientalistas (Carreira, 2015CARREIRA, D. Igualdade e diferenças nas políticas educacionais: a agenda das diversidades nos governos Lula e Dilma. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. https://doi.org/10.11606/T.48.2016.tde-20042016-101028
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; 2019CARREIRA, D. A execução orçamentária das políticas de diversidade nos governos Lula e Dilma: obstáculos e desafios. Revista Brasileira de Educação, v. 24, e240010, 2019. https://doi.org/10.1590/S1413-4782019240010
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; Gomes, 2017GOMES, N.L. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.). Ou seja, por sujeitos que sofrem os efeitos do limitado processo de democratização de poder, de recursos e condições de vida; da discriminação, da violência sistemática, da necropolítica (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.); da destruição ambiental e da apropriação privada de bens públicos.

Essas noções contra-hegemônicas conquistaram avanços importantes nos governos Lula e Dilma – nos marcos legais e normativos, programas e políticas públicas –, mas que foram restritos, com limitado nível de institucionalização, com baixo impacto sistêmico no conjunto das políticas educacionais, sofrendo forte resistência de sistemas de ensino dissonantes com relação às políticas de avaliação e a outras políticas macroeducacionais, gerando um profundo quadro de incoerência que esvaziou em grande parte seu potencial de transformação.

No governo Bolsonaro (2019–2022), tais avanços foram objeto de ataques, perseguições e destruição e vivem atualmente – no contexto do governo Lula (2023–2026) – uma retomada, limitada pelos desafios complexos de um governo de ampla coalizão e por ataques sistemáticos e vigilância de grupos de direita e extrema-direita, com forte atuação no Congresso Nacional (Carreira, 2022CARREIRA, D. Tempos terríveis: memória e produção de resistências em educação no governo Bolsonaro. In: CARREIRA, Denise; LOPES, Barbara (org.). Gênero e educação: ofensivas reacionárias, resistências democráticas e anúncios pelo direito à educação. São Paulo: Ação Educativa, 2022. p. 14-36.).

Diante desse quadro, como avançar rumo a uma noção de qualidade educacional que favoreça a construção e sustentação de projetos de justiça racial, social, de gênero, climática, orientada para o enfrentamento de desigualdades, dos processos de privatização e de destruição do bem comum?

Gustavo Pereira (2010)PEREIRA, G. Las voces de la igualdad: Bases para una teoría crítica de la justicia. Montevidéu: Proteus, 2010., filósofo uruguaio que tem envidado esforços de formular teorias críticas de justiça com base nas realidades latino-americanas, propõe em sua obra o conceito-chave de eticidade democrática. O autor afirma que o avanço e a sustentação de um projeto de justiça social dependem necessariamente da promoção de um ethos igualitário e democrático, a chamada eticidade democrática. A eticidade democrática é compreendida por ele como cultura democrática, como um transfundo de crenças e valores compartilhados socialmente que possibilite a autorrealização, a autonomia e a solidariedade entre sujeitos de igual dignidade. Essa construção é necessariamente conflitiva e exige medidas que vão do plano institucional e das políticas públicas ao estímulo e reconhecimento da importância transformadora dos intercâmbios e das construções intersubjetivas que ocorrem no cotidiano com o potencial de promover comportamentos pessoais e coletivos comprometidos com uma cultura democrática.

Visando ao desenvolvimento de um transfundo igualitário e da eticidade democrática no Brasil, e considerando-se os resultados da pesquisa “Educação, Valores e Direitos” (Ação Educativa; Cenpec, 2022AÇÃO EDUCATIVA; CENPEC. Pesquisa Educação, Valores e Direitos. São Paulo: Ação Educativa, 2022. Disponível em: https://generoeeducacao.org.br/mude-sua-escola/pesquisa-educacao-valores-e-direitos/. Acesso em: 10 maio 2023.
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), compreende-se que constitui um dos desafios urgentes para as políticas educacionais a retomada da importância e do sentido da política como eixo estruturador da noção de qualidade educacional para a democracia e para a promoção da agenda de valores – sequestrada por discursos falaciosos de grupos de extrema-direita – baseada nas noções de direitos humanos e de direitos da natureza, consagrados na Constituição Federal de 1988 e nas normativas internacionais. A pesquisa demonstrou que há indícios da valorização da escola pela maior parte da população como espaço coletivo, para além da perspectiva centrada na família e na esfera privada, e forte percepção sobre a função social da escola no combate às desigualdades. São brechas e contradições que criam condições favoráveis à formação à cidadania ativa e ao letramento político-democrático no país.

Tendo como ponto de partida a definição de Rildo Cosson (2011)COSSON, R. Letramento político: trilhas abertas em campo minado. E-Legis, Brasília, v. 4, n. 7, p. 49-58, 2011. https://doi.org/10.51206/e-legis.v7i7.90
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, mas indo além dela, compreende-se como letramento político o processo de apropriação e desenvolvimento de conhecimentos (direitos humanos, instituições políticas, democracia, desigualdades, sujeitos e lutas políticas, perspectiva crítica da história), capacidades (reflexão sobre as próprias práticas, exame de temas controversos, participação decisória, diálogo, escuta ativa, negociação, corresponsabilidade), valores (equidade, liberdade, cuidado) e emoções (alteridade, solidariedade, respeito e autorrespeito) para a manutenção e o aprimoramento da democracia: do cotidiano das relações sociais às macroinstâncias sociais.

Em sintonia com essa perspectiva, propõe-se aqui uma noção de qualidade educacional que valorize o letramento político-democrático da população em articulação com o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos, em uma perspectiva alargada e freiriana de capacidade de leitura crítica do mundo (Freire, 1992FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1992.); o acesso a conhecimentos humanísticos, científicos e sobre direitos e sua apropriação e reinvenção pelos diversos sujeitos em seus diferentes contextos; a superação dos epistemicídios coloniais e a valorização dos conhecimentos, saberes e experiências negados, invisibilizados, daqueles produzidos nos territórios populares, nos cotidianos e diferentes contextos; a promoção de uma educação para alteridade que amplie a noção de humanidade e se paute explicitamente antirracista, antissexista, antiLGBTfóbica, anticapacitista, que mobilize a indignação e a intolerância para quaisquer formas de discriminação e desigualdades; e que contribua decisivamente para a superação da cisão ser humano-natureza e do consumismo, ampliando as possibilidades para ações políticas transformadoras.

Uma noção que tenha como base a implementação de mudanças propostas nas Diretrizes Curriculares Nacionais: Diversidade e Inclusão – na educação básica e na educação superior –, construídas pelo Conselho Nacional de Educação em interlocução com movimentos sociais ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, bem como a revitalização da gestão democrática como processo formativo das comunidades escolares e como fator de aprimoramento das políticas educacionais na perspectiva de garantia de direitos constitucionais – e nunca seu uso para restrição ou negação desses direitos. Ou seja, trata-se de uma gestão escolar democrática de “alta intensidade”, não apenas na “quantidade” de participação dos membros da comunidade escolar, mas que tenha o sentido de construção de autonomia e de redistribuição do poder político.

Ainda nesse sentido, é fundamental provocar, desestabilizar e ampliar o que se entende por universal, compreendendo que os referenciais que orientam predominantemente as políticas educacionais vigentes são produtores de desigualdades. Para isso, é necessário indagar toda e qualquer política que se pretenda universal sobre: quais são os referenciais de pessoa, estudante, famílias, comunidade que orientam essas políticas? Quais diferenças são reconhecidas e admitidas? Quais matrizes de conhecimento são priorizadas? O que significa sucesso? Como a política educacional responde ao impacto das desigualdades raciais, sociais, de gênero, regionais nas pessoas com deficiências, entre outras, nas trajetórias escolares, em uma perspectiva equalizadora que paute o financiamento educacional?

Enfrentando o “Fantasma”: Igualdade de Gênero, DiversidadeSexual e Educação

As pesquisas brasileiras e de outros países da América Latina citadas indicam que a defesa e a promoção da democracia em tempos de avanço autoritário exigem que os sistemas educacionais se comprometam efetivamente com políticas e programas de promoção da igualdade de gênero e diversidade sexual, enfrentando o “fantasma” manipulado pelas forças de extrema-direita como forma não somente de atacar os direitos das mulheres e da população LGBTQIA+, mas de gerar pânico moral e desestabilizar regimes democráticos. Silenciar sobre essas agendas é abrir espaço para que elas continuem sendo capturadas por movimentos autoritários em uma perspectiva regressiva. Abordar essas agendas no atual contexto exige que os sistemas de ensino assumam a responsabilidade de desenvolver programas de fomento de experiências e de formação e proteção de profissionais de educação – que atuam em creches, escolas e universidades – diante de movimentos autoritários que promovem desinformação, perseguições, censura e autocensura, em associação a medidas que visem à desmilitarização de escolas e da vida cotidiana.

No contexto brasileiro de construção do novo Plano Nacional de Educação (Plano et al. 2025–2035), é necessário reconhecer que a perspectiva de qualidade educacional para a democracia exige mudanças estruturais no conjunto das políticas educacionais e no funcionamento dos sistemas educacionais e das instituições educativas, compreendidas em sua profunda articulação, visando superar o quadro de descoordenação e incoerências, que fragiliza o seu poder de transformação. Nesse sentido, é urgente a constituição de um Sistema Nacional de Educação orientado profundamente para o enfrentamento do racismo estrutural e das demais desigualdades e para a promoção de culturas democráticas e comprometidas com a transição ecológica, em um contexto de aceleração das mudanças climáticas que configura o chamado “decênio decisivo” (Marques, 2023MARQUES, L. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Elefante, 2023.).

Isso exige a necessária reorganização do tempo nas escolas. Associada à urgente melhoria das condições materiais das escolas por meio da concretização do Custo Aluno-Qualidade Inicial – que impacta na diminuição de crianças/estudantes por turma, na garantia das condições de infraestrutura e na valorização das profissionais de educação –, a reorganização do tempo e das prioridades das escolas visa possibilitar condições para que as instituições educativas consigam ter tempo para: fortalecer o trabalho coletivo, desenvolver processos de formação continuada, sistematizar conhecimentos e experiências construídos no âmbito escolar, priorizar vivências participativas, a formação para a cidadania democrática, o fortalecimento da relação com as famílias e com os territórios em que estão inseridas e a busca ativa de estudantes que enfrentam a exclusão escolar.

A escassez atual de tempo das escolas, a ansiedade, a sensação de sufocamento diante das demandas da realidade decorrem, em grande parte, da priorização das avaliações de larga escala e da ditadura das plataformas digitais de vigilância e controle burocráticos. Não há como avançar na promoção da qualidade educacional para a democracia sem mexer nessa equação. Disso decorre a necessidade de rever criticamente o processo de plataformização digital e as políticas de avaliação educacional, diminuindo drasticamente o peso das políticas de avaliação de larga escala em prol de outras formas de avaliação, como a avaliação institucional participativa, e reorientando-as para subsidiar políticas e ações de enfrentamento das desigualdades e transformações efetivas no cotidiano.

A retomada da construção do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, previsto no artigo 11 do novo Plano Nacional de Educação (2014–2024) – instituído por meio da Portaria nº 369/2016, revogada após o golpe institucional de maio de 2016 –, abre possibilidades para uma abordagem mais ampla das políticas de avaliação – políticas que contribuam para avaliações contextualizadas e que abordem não somente o desempenho e o fluxo dos alunos, mas os insumos, os processos, o acesso e a equidade, buscando tornar visível aquilo que muitas vezes é invisibilizado e naturalizado no cotidiano escolar e da gestão educacional.

O papel das políticas educacionais na promoção do letramento político-democrático da população exige que as políticas de educação básica e de educação superior sejam planejadas e desenvolvidas de forma intersetorial e articuladas às políticas de promoção da educação popular. É necessário avançar em uma perspectiva de educação popular em direitos humanos que dialogue não somente com os setores da população organizados politicamente, mas com aqueles que não estão organizados, e que esteja mais atenta ao cotidiano, aos desafios do “aqui e agora” (Carreira, 2015CARREIRA, D. Igualdade e diferenças nas políticas educacionais: a agenda das diversidades nos governos Lula e Dilma. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. https://doi.org/10.11606/T.48.2016.tde-20042016-101028
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). Nesse sentido, a política de educação de jovens e adultos, desmantelada nos últimos anos, deve ser revista e fortalecida em seu potencial de letramento político-democrático, em uma perspectiva territorial.

Para além de promover a capacidade de leitura crítica da realidade e a exigibilidade de direitos diante do Estado, sobretudo em realidades marcadas por tensas e precárias condições de vida, pela desregulamentação de direitos trabalhistas e de novas e velhas formas de segregação social e racial, intenciona-se uma educação popular que, devidamente contextualizada, promova a “agência possível” dos sujeitos em suas relações cotidianas, como espaço político de construção de solidariedade, cuidado, reflexão, resistência; de transformação de práticas discriminatórias e violentas; de tecituras de possibilidades e esperança; e de exercício de imaginação política.

Notas

  • 1
    Coordenada pela Ação Educativa, a Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação vem atuando há anos no enfrentamento do fenômeno da censura, perseguições e autocensura nas escolas, promovidas por movimentos ultraconservadores. A Articulação em Defesa do Direito à Educação e Contra a Censura nas Escolas tem atuado no âmbito do sistema de justiça e do Congresso Nacional, além de promover ações de comunicação, formação e produção de materiais. como o Manual de Defesa das Escolas contra a Censura. É constituída de: Artigo 19, Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos, Associação Mães pela Diversidade, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Associação Nacional pelos Direitos Humanos LGBTI, Associação Tamo Juntas – Assessoria Jurídica Gratuita para Mulheres Vítimas de Violência, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará, Centro Feminista de Estudos e Assessoria, Cenpec, Cidade Escola Aprendiz, Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres, Conectas Direitos Humanos, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, Confederação Nacional dos Trabalhadores dos Estabelecimentos em Educação, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Frente Nacional Escola Sem Mordaça, Geledés – Instituto da Mulher Negra, Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Instituto Alana, Instituto Brasileiro de Direito da Família, Movimento Educação Democrática, Observatório Sexualidade e Política da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, Plataforma de Direitos Humanos, Projeto Liberdade, Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde, Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior e Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero.

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Editor de Seção: Ivany Pino https://orcid.org/0000-0001-6227-972X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2024
  • Aceito
    13 Ago 2024
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