Open-access Editorial

Editorial

Este número especial de E&S focaliza a Educação Básica, analisando-a através do prisma das políticas públicas de regulação. É uma escolha que decorre do exame que o Comitê Editorial fez dos números especiais dos últimos três anos: "Políticas públicas para a educação: olhares diversos sobre o período de 1995 a 2002" (v. 23, n. 80 2002); "Educação: de direito de cidadania a mercadoria" (v. 24, n. 84, 2003); "Universidade: reforma e/ou rendição ao mercado?" (v. 25, n. 88, 2004) e dos dossiês: "Globalização e educação: precarização do trabalho docente", publicados em duas partes (v. 25, n.87, 2004; e v.25, n. 89, 2004)

A produção do conhecimento sobre a Educação Básica brasileira, especialmente a partir dos anos de 1980, reúne um considerável acervo de aquisições sobre ângulos relevantes: políticas educativas, escola como instituição complexa, ensino/aprendizagem/aula e formação de profissionais da educação. Todavia, podemos perguntar se esse esforço de investigação já trouxe resultados proveitosos no sentido de apontar possíveis soluções para a formulação de políticas voltadas à construção de uma educação de qualidade para todos. A escola pública brasileira não alcança ainda a educação de qualidade para todos os brasileiros. Tanto o financiamento para educação básica, quanto as políticas de formação de professores e sua profissionalização e políticas pedagógicas, incluindo as estratégias de transformação nas escolas, continuam bastante distantes dessa meta.

Os grandes desafios do contexto histórico e social que hoje vivemos não são devidamente enfrentados para poder-se evitar a avassaladora transformação da educação em produto mercantil. Não se conseguiu ainda fazer da pesquisa um instrumento que ajude a formular e implementar planos estratégicos para uma educação que vá além do espaço do mercado, condição essa necessária para realizar uma política educacional ampla e emancipadora, empenhada em tornar efetiva a igualdade de direitos, formalmente garantida pela Constituição.

O que tem ocorrido, no Brasil, é a implantação de políticas públicas de regulação bastante peculiares, formuladas pelos governos de inspiração neoliberal, a partir da segunda metade dos anos de 1990. A marca da intensificação neoliberal na formulação de políticas públicas de regulação da educação no Brasil está presente na NLDB, Lei n. 9.394, de 20/12/96, explicitando-se, a nosso ver, no documento "Planejamento Político-Estratégico 1995/1998" (MEC, maio 1995) que ressalta a "necessidade de rever e simplificar o arcabouço legal, normativo e regulamentar para estimular (e não tolher) a ação dos agentes públicos e privados na promoção da qualidade do ensino". Decorreu destas orientações a estratégia desenvolvida pelo governo Fernando Henrique Cardoso com o objetivo de aprovar uma nova Lei de Diretrizes e Bases, que possibilitasse a diversificação institucional: criar novos cursos, novos programas, novas modalidades, retirar da Constituição dispositivos que "engessam a gestão do sistema educacional, instituir um novo Conselho Nacional de Educação, mais ágil e menos burocrático; modificar regulamentações para garantir maior autonomia à escola (...) e transferir a ênfase dos controles formais e burocráticos para a avaliação de resultados". Tratava-se de introduzir modificações ao projeto de lei que facultassem ao MEC dispor de bases e diretrizes para a nova concepção do papel do Estado na sua relação com a educação, a sociedade e o modelo econômico adotado por aquele governo, que perdura, em seus traços essenciais, até os dias de hoje. Ademais, as transformações introduzidas no novo projeto da LDB permitiram a articulação da lei com as políticas formuladas conjuntamente com o MEC. A ruptura social ocorrida nesse processo indicou que o governo precisava impedir a aprovação do projeto elaborado em "conciliação aberta" (Florestan Fernandes) para introduzir as reformas no sistema educativo do país, nos níveis de sua organização e gestão, pedagógica e política; na organização da educação nacional, eliminando-se a concepção do sistema nacional; no âmbito pedagógico, redefinindo-se poder e conhecimento; no nível político e de gestão dos sistemas, dividindo-se o poder entre as esferas federal, estaduais e municipais no intuito de recuperar sua competência para "formular e executar as políticas", cabendo às outras esferas a atuação no "nível estratégico-gerencial do sistema educativo". Configurava-se, assim, a concepção "nova" de descentralização centralizada e desconcentrada. O rechaço pelo Governo FHC, em 1995, do projeto de LDB em construção no Congresso Nacional, com participação do Fórum Nacional da Educação na LDB em defesa da Escola Pública, em prol de um novo projeto construído pelo PSDB, com o apoio do senador Darcy Ribeiro, que, além de assumir sua elaboração, foi seu relator, introduzindo-lhe as bases para uma nova concepção de função social do Estado e de governança e criando, assim, as condições efetivas para a implantação da política neoliberal na educação brasileira. Foram assim concebidas as primeiras orientações efetivamente neoliberais na legislação educacional e realizados grandes esforços governamentais para implementá-las, sobretudo a pretexto de melhorar a posição do país no âmbito dos dados estatísticos internacionais.

Dentre essas políticas de regulação, indicadoras dos compromissos do governo brasileiro com agências internacionais, podemos considerar mais relevantes as referentes aos seguintes aspectos: (1) reorganização do espaço e tempo escolar em suas diferentes dimensões (gestão, ciclos escolares, classes de aceleração, parâmetros curriculares nacionais - PCNs -, projetos pedagógicos); (2) avaliação do sistema, das escolas e dos alunos; (3) financiamento, particularmente o FUNDEF e atualmente o FUNDEB e sua distribuição regional; (4) educação infantil e desobrigação do governo; (5) formação inicial e continuada do professor e a sua profissionalização/valorização que, articulando-se aos efeitos de outras políticas de regulação, afetam o trabalho docente, provocando a precarização do seu trabalho.

A idéia geral desse número especial é de que, apesar das grandes mudanças ocorridas no mundo globalizado e da visibilidade alcançada pela educação, a Educação Básica recebe do Estado, de um modo geral, um tratamento apoiado nas exigências do programa neoliberal, norteadoras das políticas de regulação implementadas ou em implementação nos últimos anos, tanto na esfera governamental, em sentido amplo, quanto na esfera das escolas públicas, num plano mais específico e localizado. Estas últimas, com seu descompromisso com a qualidade da educação, vêm efetivando, aprofundando e legitimando diferenças e desigualdades já brutais da sociedade brasileira.

Tendo em vista os problemas de distorção regional no país, decorrentes da distribuição do financiamento para a Educação Básica, é examinada a organização federativa da política de financiamento, posterior a 1996, e seus resultados contraditórios, procurando mostrar que a maior autonomia, descentralização da gestão e a adoção local de programas definidos centralmente convivem com a incapacidade de redução das desigualdades de recursos intersistemas e interescolares de ensino. A organização federativa da política de financiamento na regulação dos sistemas públicos é responsável pela oferta de serviços destinados a efetivar o direito à Educação Básica e à educação de qualidade de todos os brasileiros e brasileiras. Todavia, as comparações internacionais mostram, com base em dados estatísticos relativos à distribuição e aplicação de recursos, que o Brasil "encontra-se, neste campo, bem abaixo da maioria dos países da OCDE e dos principais países da América Latina, evidenciando que a educação no nosso país não está no centro da agenda política", embora os discursos governamentais tenham afirmado seu importante papel como promotora do "desenvolvimento sustentado". Ademais, não se pode afirmar que o acesso à Educação Básica tenha sido concretizado no país, pois os dados estatísticos indicam o aumento da evasão escolar ao longo dos quatro primeiros anos, mostrando que a ampliação do acesso não significou uma efetiva democratização do ensino, nem uma melhoria da qualidade do ensino para todos.

Esses impasses exigem o exame dos desafios históricos e sociais nos espaços em que ocorrem as transformações da educação, levando a investigar de que forma a sociedade, o governo e as suas políticas educativas, a escola e a sala de aula podem operar as mudanças na e da educação necessárias para que o povo possa exercer sua cidadania.

Esse exame exige também um esforço de compreensão do mundo globalizado, naqueles aspectos que afetam particularmente a educação. A idéia da "qualidade negociada", associada à construção da gestão democrática nas escolas, reconhecendo sua organização complexa e suas especificidades, contrariamente às estratégias de "difusão" das mudanças, em voga nas ações governamentais, recoloca, teórica e politicamente, concepções de avaliação institucional que se contrapõem à sua utilização como políticas de regulação da e na educação. Neste espaço, torna-se aparente a importante dimensão dos "projetos político-pedagógicos emancipadores", entendidos como o tempo pedagógico para construções locais de novas culturas do trabalho docente nas escolas, onde o professor e seus saberes tecerão o espaço coletivo, imprescindível para o desenvolvimento de estratégias dirigidas à construção de uma nova educação.

A revista especial "Políticas públicas de regulação: problemas e perspectivas da Educação Básica" foi concebida em duas partes, articuladas entre si. A primeira focaliza as "Políticas de regulação e a educação contemporânea", enquanto que a segunda, analisando as produções de sínteses, considera os "Estados da arte: problemas e perspectivas da Educação Básica".

Os artigos iniciais analisam o conceito de regulação com sua característica polissêmica e seus usos nas políticas da educação, na Europa e na América Latina. Enfocando resultados de pesquisas em cinco países europeus sobre a "emergência dos novos modos de regulação das políticas educativas", é apresentada uma síntese das principais transformações em Portugal e na Europa. Na América Latina, um estudo documental e de revisão bibliográfica procura caracterizar o debate sobre a nova regulação das políticas educativas e suas conseqüências para os trabalhadores docentes. O direito à educação é analisado no seu tempo, considerando as implicações das políticas de regulação que contribuem para mercantilizar a educação, contrapondo-lhe o universalismo do processo da construção da democratização do ensino e buscando alternativas para uma nova socialização, que aponte, possivelmente, para uma nova cidadania.

Segue-se o exame das políticas que regulamentam a relação entre educação e trabalho, sob o prisma da certificação de conhecimentos e saberes e do direito à educação e à formação profissional. A formação do profissional da educação é analisada a partir de uma discussão da centralidade da Pedagogia à base de um amplo projeto político-pedagógico da instituição universitária, como um caminho possível que tenha como norte a emancipação humana e a democracia.

Esta parte encerra-se com o artigo sobre Educação e valores no mundo contemporâneo, o qual destaca que, diante das grandes implicações para os rumos da ciência e tecnologia, para os saberes de modo geral e as opções políticas, a ética tornou-se um tema de grande relevância e urgência no mundo contemporâneo. O aspecto central do debate ético, e que perpassa todas as dimensões do educativo, é a relação entre o individual e o social, que tanto pode ser profundamente comprometedora quanto fecundante para o futuro da sociedade.

A segunda parte da revista trata das sínteses de cada um dos níveis e etapas da Educação Básica e modalidades de Ensino (Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional) acentuando seus problemas e examinando possíveis respostas aos grandes desafios colocados à sociedade brasileira para efetivação de políticas públicas de educação menos mercantilistas, e mais libertadoras e emancipadoras. Esse conjunto de artigos aponta os pontos nevrálgicos e os grandes desafios para a elaboração de políticas educativas e pedagógicas, tendo em conta: financiamento adequado, formação e profissionalização, construção dos equipamentos escolares e forte desenvolvimento dos projetos político-pedagógicos para uma escola reconhecida em sua organização complexa e específica.

Os editores da Revista consideram que, mesmo sendo ainda escassas no Brasil as produções de pesquisas sobre políticas de regulação na educação, a publicação de um número especial, garimpando as produções recentes dos pesquisadores sobre o tema, no Brasil e América Latina, e trazendo resultados de importantes investigações e debates, na Europa, sobre esta problemática, estará cumprindo com um de seus compromissos básicos como periódico científico, o de difusão de resultados de pesquisa no campo das Ciências da Educação.

IVANY PINO

PEDRO GOERGEN

PATRIZIA PIOZZI

VALDEMAR SGUISSARDI

SILVIO GALLO

(Organizadores)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Out 2005
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