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ULTRACONSERVADORISMO E EDUCAÇÃO: REFLEXÕES DE ESTUDO EMPÍRICO

ULTRACONSERVATISM AND EDUCATION: REFLECTIONS FROM AN EMPIRICAL STUDY

ULTRACONSERVADURISMO Y EDUCACIÓN: REFLEXIONES A PARTIR DE UN ESTUDIO EMPÍRICO

RESUMO

Este artigo teve como objetivo analisar como os discursos oriundos da extrema-direita sobre educação são compreendidos pelos eleitores conservadores. Por meio de minigrupos focais com professores, mães e pais de estudantes da rede pública classificados como conservadores moderados, buscou-se compreender: até que ponto esses discursos são conhecidos; e qual é o grau de aderência a esses temas de um eleitor médio. Os tópicos abordados incluíram: homeschooling, militarização das escolas, entre outros. Concluiu-se que há pouca familiaridade e baixo conhecimento sobre os temas abordados, com algumas exceções. Apesar de a linguagem e de o pensamento conservador permearem os discursos de forma geral, é possível identificar nuanças e contradições nas crenças e opiniões desse público.

Palavras-chave
Educação; Conservadorismo; Discurso conservador

ABSTRACT

This article aimed to analyze how right-wing extremist discourses on education are understood by conservative voters. Through mini-focus groups with teachers, mothers, and fathers of students from the public school system classified as moderate conservatives, the objective was to understand: to what extent these discourses are known, and the degree of adherence to these topics among the average voter. The topics addressed included homeschooling, school militarization, among others. It is concluded that there are little familiarity and low knowledge about the discussed topics, with some exceptions. Despite the language and conservative thinking permeating the discourses overall, it is possible to identify nuances and contradictions in the beliefs and opinions of this audience.

Keywords
Education; Conservatism; Conservative discourse

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar cómo los discursos de extrema derecha sobre educación son comprendidos por los electores conservadores. A través de minigrupos focales con profesores, madres y padres de estudiantes de la red pública clasificados como “conservadores moderados”, se buscó comprender: 1) el nivel de conocimiento de estos discursos y 2) el grado de adhesión de estos temas en un “elector promedio”. Los temas incluidos son: educación en el hogar, militarización de las escuelas, entre otros. Se concluye que hay poca familiaridad y escaso conocimiento sobre los temas abordados, con algunas excepciones. Aunque en general los discursos están impregnados de lenguaje y pensamiento conservador, se pueden identificar matices y contradicciones en las creencias y opiniones de este público.

Palabras clave
Educación; Conservadurismo; Discurso conservador

Introdução

O crescimento da extrema-direita no mundo é pauta de diversos estudos e reflexões. Nos países do Norte Global, o fenômeno já foi observado por vários pontos de vista, como o papel dos movimentos identitários como catalisadores de uma reação conservadora (Lilla, 2018LILLA, M. O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), o advento de um regime político orientado por emoções em detrimento do consenso racional que teria guiado o século XX (Davies, 2019DAVIES, W. Nervous states: democracy and the decline of reason. Nova York: W. W. Norton & Company, 2019.), ou a forma como novas estruturas de desigualdade desorganizaram o entendimento comum de justiça e identidades nos países desenvolvidos, levando a ressentimentos profundos (Dubet, 2019DUBET, F. Le Temps des passions tristes. Paris: Seuil, 2019.), para citar alguns.

A tese do ressentimento dos perdedores da globalização é amplamente aceita nas ciências sociais dos países desenvolvidos. Basicamente, o argumento é de que a abertura comercial e a interdependência crescente da economia global teriam gerado um efeito deletério para as classes trabalhadoras das nações mais ricas – que teriam visto seus empregos industriais migrarem para a periferia global, enquanto no âmbito interno a economia teria mudado radicalmente. Esse processo fortaleceu alguns perfis de trabalhadores mais intelectualizados, urbanos, ligados a setores financeiros e de alta tecnologia.

Tal perspectiva parece sustentar-se quando olhamos algumas estatísticas oficiais. A renda média1 1 Dado extraído de Davies (2019, p. 80). Por renda média, o autor refere-se à estatística oficial da renda total dividida pela população adulta. americana, por exemplo, cresceu 58% entre 1978 e 2015, o que parece contraditório com a retórica do então candidato à Casa Branca Donald Trump de que a “América” nunca teria estado tão mal. No entanto, no mesmo período, a renda média da metade de baixo da pirâmide social do país caiu 1% (Davies, 2019DAVIES, W. Nervous states: democracy and the decline of reason. Nova York: W. W. Norton & Company, 2019., p. 80). A diferença entre o que os especialistas dizem sobre a economia e a sensação individual das famílias que vivenciam outra realidade explicaria, ainda, o aumento da desconfiança sobre instituições como a imprensa, as universidades, entre outros.

A história no Sul Global é outra. O crescimento da extrema-direita sucedeu um período de redução de desigualdades e expansão do acesso ao ensino superior, a empregos formais, a bens de consumo e a outros avanços da primeira década deste século. Assim, a hipótese do ressentimento não parece sustentar-se. Pinheiro-Machado e Scalco (2023)PINHEIRO-MACHADO, R.; SCALCO, L. The right to shine: poverty, consumption and (de)politicization in neoliberal Brazil. Journal of Consumer Culture, v. 23, n. 2, p. 312-330, 2023. https://doi.org/10.1177/14695405221086066
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apontam para o “direito de brilhar” que acompanhou o acesso a novos bens pelas classes trabalhadoras brasileiras, em que o consumo não seria uma forma de despolitização, mas sim de ressignificação subjetiva de autoidentificação, em um processo de trazer visibilidade para grupos tradicionalmente subalternos (Pinheiro-Machado; Scalco, 2023PINHEIRO-MACHADO, R.; SCALCO, L. The right to shine: poverty, consumption and (de)politicization in neoliberal Brazil. Journal of Consumer Culture, v. 23, n. 2, p. 312-330, 2023. https://doi.org/10.1177/14695405221086066
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, p. 313). A chave para o entendimento da reação no Sul Global seria o surgimento, então, de uma “classe aspiracional” que buscou, via consumo, um lugar de resistência à posição social em que esses novos consumidores (a chamada “Classe C”, ou “nova classe média”) seriam relegados pelos grupos dominantes (Pinheiro-Machado, 2021PINHEIRO-MACHADO, R. O que Lula deu e Bolsonaro abocanhou. El País, 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-06-21/o-que-lula-deu-e-bolsonaro-abocanhou.html. Acesso em: 23 maio 2023.
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).

Uma consequência desse ganho de status via consumo inclui um olhar de cunho individualista para a transformação social. Em um estudo da Plano CDE (Fundação Tide Setubal, 2019FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Conservadorismo e as questões sociais. Plano CDE, 2019. Disponível em: https://www.planocde.com.br/pesquisa-conservadorismo/. Acesso em: 23 maio 2023.
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), foi possível identificar como esse estrato social (que chamaremos aqui de classe média) desconfia de políticas públicas como forma de combate à pobreza e à desigualdade, olhando com maior confiança para discursos sobre conquistas pessoais para explicar a ascensão social de suas famílias. Diferentemente dos argumentos levantados por Pinheiro-Machado e Scalco (2023)PINHEIRO-MACHADO, R.; SCALCO, L. The right to shine: poverty, consumption and (de)politicization in neoliberal Brazil. Journal of Consumer Culture, v. 23, n. 2, p. 312-330, 2023. https://doi.org/10.1177/14695405221086066
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, entendemos que essa classe aspiracional se enxerga e se revolta por se entender como uma classe descartável. Mais do que sonhar com a aquisição de novos bens de consumo (além de com avanço nos estudos pelos filhos), esse público sente-se abandonado pelo Estado, sem formação adequada para alcançar bons empregos e sob risco constante da violência urbana.

Essa descartabilidade é acompanhada não por rejeição ao papel do Estado, mas pela sensação de que todas as políticas públicas são direcionadas a algum outro privilegiado. Por vezes, o outro é um político corrupto, mas muitas vezes é simplesmente outro grupo social ainda mais desfavorecido, embora beneficiado por políticas públicas focalizadas. Isto é, além da aspiração ao consumo, haveria, nos grupos que se alinharam ao conservadorismo a partir de 2016 no Brasil, o desejo de um atendimento mais adequado pelo Estado – daí a sensação de “descarte” que foi possível identificar em estudos etnográficos (Fundação Tide Setubal, 2019FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Conservadorismo e as questões sociais. Plano CDE, 2019. Disponível em: https://www.planocde.com.br/pesquisa-conservadorismo/. Acesso em: 23 maio 2023.
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).

Em outro estudo, foi abordado como o auxílio-emergencial criado pelo governo federal em 2020 trouxe o risco de aumentar essa sensação. Mesmo com a ampliação de beneficiários em relação ao Programa Bolsa Família, o auxílio-emergencial ainda ignorou 50 milhões de pessoas cujos rendimentos eram predominantemente informais e variáveis, fora dos critérios do benefício (Barlach, 2020BARLACH, B. A pandemia e o topo da classe C, os esquecidos da desigualdade. Nexo Jornal, 7 maio 2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/a-pandemia-e-o-topo-da-classe-c-os-esquecidos-da-desigualdade. Acesso em: 26 abr. 2024.
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)2 2 Essa estimativa foi elaborada com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua e da Pesquisa de Orçamentos Familiares. Por volta de 30% das famílias brasileiras seriam elegíveis ao auxílio-emergencial, ou 70 milhões de pessoas. A faixa de renda imediatamente acima dos critérios do benefício (renda familiar entre R$ 3.135 e R$ 6.000) contém 50 milhões de pessoas, cuja maior parte dos rendimentos (60%) seria informal ou incerta. Esse público entende-se em situação de vulnerabilidade e risco de cair na pobreza, mas não se viu contemplado por uma política de transferência de renda, fomentando o entendimento de que esse tipo de política seria sempre direcionado a “privilegiados”. . Esse é o público que seria descrito como uma classe aspiracional, que em estudos etnográficos mostrou ter a sensação de abandono pelo poder público em detrimento dos estratos “privilegiados”, em suas próprias palavras.

A sensação de abandono, aliada às conquistas materiais, que dão novo significado às desigualdades, alimentou com muita força os discursos de empreendedorismo da base da pirâmide. O ganho como fruto do próprio trabalho e esforço individual é a base do que chamaremos de libertarianismo conservador: uma visão de mundo em que qualquer tipo de barreira, como políticas de restrição à compra de armas, leis ambientais ou trabalhistas, entre outros, passa a ser vista como uma intrusão do Estado na liberdade de trabalhar, de pensar, de educar a família etc. Assim, algumas mudanças na estrutura de classes brasileira explicam a adesão das classes médias (nova classe C) ao conservadorismo e à extrema-direita.

O que parece contraditório é a adesão, no discurso desse libertarianismo conservador, à linguagem da igualdade em detrimento do enfoque nas diferenças. Como discutiu o sociólogo Antônio Flávio Pierucci (1999)PIERUCCI, A. F. O. Ciladas da diferença. São Paulo: 34, 1999., nos anos 1980 houve um realinhamento de discursos à direita e à esquerda, de modo que, enquanto os movimentos progressistas começaram a ressaltar as diferenças entre grupos sociais a fim de reclamar por direitos e políticas públicas direcionadas, o conservadorismo se apropriou de uma linguagem que ressalta a igualdade e, portanto, nega o direcionamento de esforços específicos para grupos menos favorecidos. No tópico educação, o melhor exemplo é a política de cotas, amplamente rechaçada pelos movimentos conservadores com argumentos sobre um racismo inerente a uma política que reconhece barreiras históricas enfrentadas por negros para ingressarem na universidade (Fundação Tide Setubal, 2019FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Conservadorismo e as questões sociais. Plano CDE, 2019. Disponível em: https://www.planocde.com.br/pesquisa-conservadorismo/. Acesso em: 23 maio 2023.
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).

Neste artigo, discutimos como esse público pensa especificamente sobre educação, com base no pressuposto de que a classe média conservadora consome conteúdos elaborados por elites políticas (partidárias ou não) para organizar sua visão de mundo. A cientista política Camila Rocha (2021)ROCHA, C. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia, 2021. descreveu, em seu livro Menos Marx, mais Mises, a organização dessas elites políticas desde os anos 1990 e sua consolidação na chamada nova direita. Neste artigo, analisamos como esses discursos públicos são apreendidos e ressignificados por um público pouco escolarizado, próximo da educação pública, mas alinhado a preceitos conservadores e, por vezes, reacionários. Vemos que há muitos pontos de resistência entre a linguagem ultraconservadora e as opiniões dos entrevistados em uma pesquisa nacional de opinião pública, apontando para a maneira como a vivência do concreto cria formas de entendimento do mundo.

Metodologia

Nesta pesquisa nacional, foi realizada uma série de minigrupos focais a fim de explorar como os discursos oriundos da extrema-direita são compreendidos e apreendidos pelos eleitores conservadores. A escolha por uma metodologia qualitativa, de inspiração etnográfica, passa por entender que há nuanças nos discursos dos nossos interlocutores incapazes de serem capturadas em surveys estruturados. A etapa qualitativa desta pesquisa informou a elaboração de questionário para estudo posterior.

As perguntas de pesquisa que guiaram os roteiros de discussão são:

  • Até que ponto esses discursos são conhecidos;

  • Qual é o grau de aderência a esses temas em um eleitor médio.

Para isso, baseamo-nos em dois pressupostos em relação ao perfil dos entrevistados.

Em primeiro lugar, buscamos um perfil de pessoas conservadoras médias, definido por uma bateria de frases de concordância de temas políticos e morais que nos permitiu excluir tanto indivíduos potencialmente de extrema-direita como aqueles que poderiam ser classificados como progressistas ou de esquerda. Essa bateria de afirmações foi uma construção ad hoc dos pesquisadores com base em estudos de opinião pública divulgados pelos institutos de pesquisa Datafolha e Ibope ao longo dos últimos anos.

Além disso, os potenciais participantes eram também classificados em relação à renda familiar per capita. Essa segunda estratificação teve como objetivo selecionar apenas indivíduos que pertencessem aos dois quartis intermediários de renda brasileira, a saber, com renda familiar per capita entre R$ 429 e R$ 1.499 mensais. Além desses critérios, selecionamos 96 pais e mães de alunos da escola pública, divididos entre ensino fundamental (anos iniciais e finais) e ensino médio, e 30 professores da rede pública. O perfil dos selecionados foi ainda controlado por gênero e religião (Tabela 1). Os minigrupos focais foram realizados ao final de 2021 por meio de plataforma de videoconferência, em decorrência da pandemia de Covid-19, em cinco capitais de todas as regiões do país.

Tabela 1
Detalhamento dos minigrupos focais.

A técnica de pesquisa utilizada, denominada pelos autores de minigrupos focais etnográficos, consiste em selecionar um pequeno grupo (três a cinco participantes) de pessoas que se conhecem, normalmente em um ambiente comum, de mesmo perfil demográfico, para debaterem temas trazidos pelo pesquisador. À diferença do grupo focal tradicional, realizado em ambiente controlado e neutro entre indivíduos que não se conhecem, pretendeu-se aqui que a empatia já estabelecida entre os entrevistados permitisse com maior facilidade a entrada em assuntos entendidos como polêmicos.

A definição da amostra não pretendeu garantir análises separadas por região, religião, gênero etc. Pela natureza da análise qualitativa indutiva, cada entrevistado e entrevistada traz percepções individuais sobre os temas tratados que, ainda que permitam a identificação de padrões, não podem ser segmentadas em percepções em razão do gênero, ou percepções em razão da religião. O intuito da amostra foi garantir a constituição de um grupo relativamente representativo das diferenças sociais do perfil selecionado. Quando relevante e identificável pelas entrevistas, destacaremos as distinções entre os perfis.

Em relação à religião, a decisão de incluir evangélicos e não evangélicos como parte da amostra se justifica pelo pressuposto – confirmado em parte pela pesquisa empírica – de que a filiação a igrejas evangélicas impacta as percepções sobre os temas tratados, no entanto nossa amostra continha inúmeras denominações, não podendo ser generalizada como os evangélicos, ou, ainda, os neopentecostais.

Nosso roteiro de entrevista dos grupos focais passava pelos seguintes tópicos:

  • Introdução:

    • Estrutura familiar;

    • Relacionamento com vizinhança.

  • Visão sobre o passado e expectativas:

    • Papel dos jovens na sociedade;

    • Condições materiais de vida;

    • Planos para o futuro;

    • Percepções e discussão sobre economia e política.

  • Escola:

    • Percepções sobre clima escolar;

    • Gênero e sexualidade;

    • Militarização das escolas;

    • Homeschooling;

    • Escola sem partido;

    • Ensino de história afro-brasileira;

    • Ensino religioso;

    • Inclusão de alunos com deficiência.

Discutíamos de forma espontânea cada um dos tópicos e depois estimulávamos a relação desses temas com a escola frequentada pelos filhos dos entrevistados. Por último, apresentávamos uma notícia real sobre o assunto, para seguir com o debate entre os participantes.

Apoiamos a exposição dos dados nos preceitos de pesquisa qualitativa conforme apresentados em Cardano (2017)CARDANO, M. Manual de pesquisa qualitativa: a contribuição da teoria da argumentação. Petrópolis: Vozes, 2017.. O autor explica a diferença entre os métodos indutivos por meio do uso de uma teoria da argumentação que não visa estabelecer relações demonstráveis, que seriam típicas dos estudos quantitativos. O objetivo do nosso estudo foi encontrar alguns padrões de resposta que indicassem os conceitos ao redor dos quais a linguagem do ultraconservadorismo é decantada no discurso cotidiano de um público conservador mediano, conforme nossa definição. Assim, exceto quando muito relevante, a exposição dos argumentos não vai discutir se determinado perfil da nossa amostra é mais ou menos aberto a esse ou aquele elemento do discurso conservador.

O objetivo deste artigo foi apresentar evidências empíricas que descrevessem o discurso ultraconservador em geral e seu papel nos debates sobre a escola e a educação, especificamente. O foco interpretativo, típico da pesquisa qualitativa, pretendeu lançar luz sobre elementos do discurso e dar ferramentas para estudos quantitativos que pudessem mensurar de forma mais efetiva a adesão das percepções mapeadas na população em geral. Ao longo do texto, apresentamos alguns exemplos de falas dos entrevistados, que visam apenas ilustrar os conceitos elaborados pela análise de todas as entrevistas em conjunto. Quando relevante, destacamos diferenças específicas entre perfis demográficos.

O Conservadorismo Moderado

Em linha com o que foi mapeado em estudos anteriores (Fundação Tide Setubal, 2019FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Conservadorismo e as questões sociais. Plano CDE, 2019. Disponível em: https://www.planocde.com.br/pesquisa-conservadorismo/. Acesso em: 23 maio 2023.
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), ao longo das conversas com esse perfil conservadores moderados apareceram dois temas transversais a qualquer tema específico de que tratávamos: nostalgia do passado e um libertarianismo conservador. Nesta seção, apresentamos, de modo resumido, os eixos argumentativos que emergiram dos grupos focais ao redor de diversos dos temas discutidos. Nossas entrevistas não se detiveram em tópicos externos à educação; utilizamos uma discussão mais ampla sobre a vida dos entrevistados – seus bairros, a violência urbana, a expectativa sobre a economia – como aquecimento para os tópicos mais relevantes da nossa pesquisa. Ainda que haja nuanças entre as percepções dos 126 entrevistados, há de forma bem consolidada a apresentação de argumentos desse conceito que chamamos libertarianismo conservador.

Esse libertarianismo é caracterizado por uma ênfase muito forte no indivíduo como eixo explicativo de questões sociais e de opiniões políticas. Estão no bojo desse conceito ideias como um extremo liberalismo individual, focado em uma linguagem da liberdade, mas que inclui liberdade de excluir os outros. Por exemplo, podemos citar a liberdade de as famílias definirem, sozinhas, a forma de educar os filhos. Outro é uma liberdade de pensamento conservador, contra o politicamente correto e que inclui o direito de ofensa ou de ter opiniões preconceituosas. Essa liberdade de ferir direitos dos outros explica o não uso de máscaras durante a pandemia de Covid-19, a ideia de escolha sobre tomar ou não vacinas ou de portar armas em detrimento da segurança dos demais. Cabe nesse conceito ainda o direito de não pagar impostos ou empreender livremente sem depender de autorizações do governo, como licenças ambientais, regras trabalhistas etc.

Essa valorização do indivíduo, se incluídas noções de liberdade, passa também pela ênfase do esforço e do mérito de explicar e justificar temas como desigualdade, pobreza e violência. Serve também para pensar a sexualidade como uma escolha individual. Se, por um lado, essa linguagem parece alinhada com ideias mais conservadoras, esse individualismo moral funciona, ao menos de forma retórica, como justificativa para a adesão a valores como pluralidade e tolerância – principalmente religiosa – e terão impacto sobre como nossos entrevistados pensam a educação.

É daí que surge o fundamento conceitual para que os conservadores sejam contra políticas públicas focalizadas. Como já explorado em outros estudos (Barlach; Mendes, 2022BARLACH, B.; MENDES, V. O conservadorismo dos excluídos. Folha de S.Paulo, 22 set. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/09/discurso-empreendedor-da-classe-c-mascara-exclusao-social-e-acena-a-bolsonaro.shtml. Acesso em: 26 abr. 2024.
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), a ideia de que o Estado (ou, nos termos dos entrevistados, “o governo”) promova iniciativas direcionadas a públicos específicos caracterizaria privilégios desses segmentos. Com isso, cotas raciais, políticas de contratação de pessoas trans e mesmo a Lei Maria da Penha são observadas como formas de grupos minoritários garantirem benefícios que não estão disponíveis para todos – “todos” no linguajar desses conservadores moderados de classe média (classe C) incluem pessoas pobres “como eles”, sem tais privilégios, como no exemplo a seguir:

Você tem que ser tratado igual ao trans lá, com o mesmo direito, não privilégio. Que nem cota, tem que ser igual para todos isso. Se você tem cota pra negro, é um privilégio. Então tinha que ter cota pra gordo, para careca (Pai).

O segundo tema central nos argumentos que ouvimos dos conservadores é a supervalorização do passado, que aparece em dois eixos. Por um lado, o passado seria melhor do ponto de vista material: menos desemprego, menos violência, menor custo de vida etc. Por outro, o passado também teria sido uma época de mais respeito, mais ordem e hierarquias mais claras.

Começando por esse segundo item, o da moralização do passado, algo que chama a atenção dos entrevistados é que as famílias eram, segundo eles, mais unidas em gerações anteriores. Ao contrário de passarem o dia olhando para as telas dos celulares ou tablets, os jovens confraternizavam mais com os mais velhos, aprendendo a respeitá-los e a socializar com a diferença. O respeito pelos mais velhos funciona como uma metonímia de uma sociedade de mais respeito em geral, especificamente às hierarquias preestabelecidas. Respeitavam-se mais os pais, os professores, os mais velhos, enfim. Sem essas hierarquias, abre-se, na visão dos entrevistados, a possibilidade de uma sociedade mais violenta, com jovens “soltos”:

A gente ensina uma coisa em casa e infelizmente a gente não pode privar o filho de ir para o mundo. E eles aprender uma coisa totalmente diferente fora, que contradiz demais sobre o que a gente explica em casa (Mãe).

Essa diferença seria perceptível também em relação à escola. “Antigamente”, dizem nossos entrevistados, as escolas eram mais rígidas, contavam com infraestrutura melhor, e os alunos tinham medo de professores e de bedéis, os quais impunham respeito por meio de medidas mais duras. Isto é, essa geração “mais violenta” também se mostraria na forma de interação com a escola:

Naquela época existia muita cobrança. Agora parece que os professores têm medo dos alunos (Mãe);

A professora ficava do lado até você terminar de copiar. E, se não copiasse, levava bilhete para casa e não entrava na aula (Mãe).

O sucesso familiar em relação a conquistas materiais e simbólicas (como diplomas) é entendido como uma batalha entre um mundo “do lado de fora de casa”, pressionando jovens ao uso de drogas, à violência, à sexualização precoce, e o mérito da família de seguir pelo caminho do esforço e do trabalho.

Percepções Gerais Sobre a Escola

Em um marco conceitual marcado por discursos centrados no libertarianismo conservador, conforme apresentado anteriormente, a discussão sobre elementos da educação e da escola mostrou mais espaços para discordâncias e nuanças entre os entrevistados, dado que os grupos focais se detiveram por mais tempo ao redor desses tópicos.

A escola é valorizada pelos pais principalmente por proporcionar acesso ao ensino superior, mas também a empregos, boa renda, viagens, casa, carros etc.

Mas a valorização geral (e genérica) da escola expõe pontos de discordância entre os entrevistados. Há um aspecto que media a forma como a escola será valorizada, que é a definição pouco clara do seu papel para a vida dos estudantes. Para a maior parte dos entrevistados, a escola deve somente passar conteúdos e conhecimentos estritamente acadêmicos, deixando a família responsável pelos valores e bons modos no trato com os outros. Essa limitação do papel da escola já nos informa sobre alguns dos achados qualitativos que apresentamos na sequência.

A visão da escola e da educação em geral é permeada pela nostalgia do passado mencionada anteriormente. Hoje em dia, sentem os conservadores, há mais limites para a forma como se podem educar seus filhos. Isso se revela com força na conhecida “Lei da Palmada”, criticada por limitar as liberdades de criação dos pais. Esses limites criam jovens “soltos” que materializam uma escola também “caótica”.

Por outro lado, mesmo que a escola sofra pela degradação moral que ocorre na sociedade como um todo, ela ainda é muito valorizada como espaço de socialização e de ascensão social. O mesmo ocorre com os professores, que são respeitados (especialmente após o tempo de ensino remoto), mas com ressalvas sobre a qualidade de seu trabalho:

É importante para socialização. Prepara as crianças para o mundo. Prepara para um emprego (Mãe);

Quero que minha filha estude e tenha uma profissão, eu não tive isso. Tive que trabalhar para ajudar em casa (Mãe).

Na percepção de pais e professores, há uma diferenciação grande entre, por um lado, quem enxerga a escola como tendo um papel exclusivamente conteudista (o que eles chamam de “ensinar”) e quem vê a possibilidade de a comunidade escolar exercer um papel de transmissão de valores (no jargão dos entrevistados, “educar”). Pais e mães, em geral, estão filiados à ideia de uma escola exclusivamente dedicada ao conteúdo pedagógico, no entanto também há quem defenda a necessidade de compartilhar a responsabilidade com a escola em relação a valores como “respeito ao próximo”, por exemplo. A importância da socialização também é lembrada como parte do processo de convivência com a diferença, fundamental para o desenvolvimento das crianças – e será lembrada na discussão sobre ensino domiciliar. A quantificação não é o objetivo do estudo qualitativo, que pretendeu elucidar as tensões no discurso conservador, a ponto de permitir melhores mensurações em pesquisas quantitativas.

Papel da escola é dar conteúdo, português, matemática. Os valores vêm de casa (Mãe);

Respeito, obedecer, vem de casa. Colégio dá conteúdo, matemática, português, mas também ensina a ter educação e respeito pela convivência com os outros. Acho importante para isso também (Mãe);

Eu acho que na escola tem que ser passado o respeito ao próximo. Isso tinha que ser trabalhado muito com as crianças pequenas (Mãe).

Nessa perspectiva, é interessante notar algumas contradições. Por um lado, as famílias afirmam que são elas que devem transmitir valores morais para os filhos, e não as escolas, mas que noções básicas de respeito devem ser abordadas no ambiente escolar. Por outro lado, os professores reclamam que os alunos são desrespeitosos e que as famílias pouco se importam com essa situação: elas seriam pouco participativas, relegando toda a “educação” para a escola – educação aqui com sentido de transmissão de valores. Ou seja, a ideia de que os alunos deveriam ser educados por uma comunidade formada pela escola, suas famílias e o entorno do bairro, na prática dificilmente ocorre. Cada qual sente que o outro transfere o ônus de sua responsabilidade: famílias que acusam a escola de adentrar demais no âmbito dos valores familiares, e professores conservadores que criticam famílias por não “formarem” seus filhos adequadamente. Mais do que quantificar quantos acreditam no papel “educativo” (no sentido de formação de valores) da escola, nosso estudo mostra que há em comum a percepção de inadequação entre os valores familiares e o que é ofertado pela escola – seja no sentido de que a escola não deveria “se meter” na educação moral das crianças e adolescentes, seja no sentido de que a escola não consegue educá-los sem o apoio dos pais.

De qualquer forma, a maioria dos pais confia no trabalho dos professores e passou a valorizar a profissão ainda mais depois da pandemia. Lamenta os baixos salários, além da falta de respeito dos alunos pelos professores, mas enfatiza que estes têm formação, recursos e metodologia para lidar com a educação dos filhos, algo que eles próprios não possuem:

Eu sempre valorizei o professor, mas, depois da pandemia, valorizo ainda mais. Eles ganham muito pouco por tudo que fazem (Mãe).

A dicotomia entre o papel de ensinar (conteúdos) e o de educar (valores), com um peso maior do primeiro, marca um olhar geral sobre a escola e a educação. Essa dicotomia repete-se, de forma paralela, no julgamento sobre os professores, valorizados pelo seu conhecimento e papel de transmissores de conhecimento, mas desvalorizados como potenciais educadores, no sentido da construção de valores.

Ensino Domiciliar

No decorrer da pandemia, os entrevistados enfatizam que passaram a dar maior importância ao ensino público e aos professores à medida que precisaram se responsabilizar diretamente pela educação dos filhos, com a interrupção do ensino presencial no sistema público. A opinião deles é que o profissional especializado deve ser o principal responsável pela educação de crianças e jovens, dado que os pais não possuem recursos pedagógicos e emocionais para tanto:

Pandemia foi estressante, professora estuda, tem dom para criança. Não me sinto preparada para substituir um professor (Mãe).

Em meio à pandemia, a despeito de a discussão a respeito do ensino domiciliar – proposta defendida pelo governo Bolsonaro e por movimentos conservadores no Congresso Nacional de garantir o direito das famílias de tirarem seus filhos das escolas para serem educadas somente por suas famílias – ter se tornado mais frequente na esfera pública, havia baixíssimo conhecimento do tema por parte dos entrevistados. Algumas pessoas afirmaram ter ouvido falar, mas não souberam dar detalhes sobre a prática, indicando limitações sobre o significado desse ouvir falar. O termo em inglês homeschooling é desconhecido, e frequentemente se associava para os entrevistados o ensino domiciliar ao ensino remoto praticado na pandemia, ainda que ambos sejam duas práticas distintas.

De qualquer forma, a grande maioria recusa essa prática, enfatizando a necessidade de as crianças frequentarem o ambiente escolar para que sejam socializadas, sobretudo considerando o tempo que as crianças passam sozinhas em frente a celulares, tablets e computadores com acesso à internet, e para que tenham acesso aos profissionais qualificados para o processo de aprendizado, pois pais não substituiriam os professores; além disso, não teriam tempo disponível para tanto. Assim, podemos encontrar, nas falas dos entrevistados, três argumentos contrários à educação domiciliar:

  • Falta de qualificação dos pais e mães para a transmissão dos conteúdos;

  • Falta de recursos (tempo) para exercerem esse trabalho;

  • Receio de que os filhos fiquem ainda mais tempo no celular ou computador.

Ressaltamos, mais uma vez, que nosso estudo encontrou padrões na construção de um eixo argumentativo pelos entrevistados para defenderem seus pontos de vista. Por vezes, em um mesmo minigrupo focal, havia pessoas com pontos de vista opostos, no entanto nosso objetivo era elucidar os argumentos utilizados, e não mensurar a relevância quantitativa de cada um deles.

Por outro lado, houve algumas poucas pessoas que afirmaram que o ensino domiciliar poderia ser positivo, pois ocorreria sob a supervisão dos pais, caso estes tenham condição para tanto. Portanto, caberia à família a decisão de adotar a prática ou não, considerando que as famílias possuem seus próprios valores, que deveriam ser necessariamente respeitados. A decisão individual, além de alinhada com o libertarianismo identificado, também abre brechas para uma identificação do homeschooling com uma classe com maior poder aquisitivo: pais e mães mais ricos poderiam se dedicar à educação domiciliar. A vantagem seria poder controlar a transmissão de valores da família para as crianças, sem mediação da escola – uma vantagem que está incorporada nos valores mais centrais de seu conservadorismo, ou seja, a prevalência das decisões individuais (família) sobre as soluções coletivas (escola).

Escolas Militarizadas

A maior parte dos entrevistados compartilha um imaginário positivo ligado à associação entre escola e militares tendo em vista aspectos relacionados à ordem e disciplina. No que tange à ordem, as escolas comuns transmitem uma imagem muito negativa. No que se refere à indisciplina, esta apareceria tanto no contexto escolar quanto fora dele, considerando as opiniões negativas de pessoas conservadoras acerca dos jovens de hoje, que estariam muito “soltos”, como pôde ser constatado anteriormente. Lembramos que, no plano do discurso, os entrevistados estão sempre confrontando diferentes imaginários sobre a realidade – a sensação de que os jovens estão “soltos” e muito indisciplinados, por exemplo, diz mais respeito ao eixo narrativo de que o passado seria melhor do que a uma descrição empírica da realidade escolar.

Os entrevistados acreditam que os militares proporcionam um ensino de melhor qualidade, oferecem estrutura qualificada, como piscinas, quadras e demais espaços em ordem e sem depredação, além de uniformes obrigatórios. Tudo aquilo que é considerado positivo na escola militar é contraposto àquilo visto como negativo na escola comum. Pouco conhecidas de fato, as escolas militares ganham apelo por essa associação a dois elementos que faltariam não somente às escolas comuns, mas à sociedade em geral: ordem e disciplina.

Eu acho que todas as escolas deveriam ser militares, para que a pessoa possa ter, primeiramente, compromisso, entendeu? Para respeitar o próximo, porque na escola pública é uma bagunça (Pai);

No colégio público é tudo liberal, você pode matar aula, vai embora no recreio. No militar, não (Mãe).

Imagina-se que nas escolas militares o professor seria mais respeitado, pois respeito e hierarquia seriam valores fundamentais no militarismo, o que evitaria casos de bullying (incluindo de alunos LGBT+). O bullying é um dos temas mais citados como problemas de indisciplina e violência nas escolas. Muitas pessoas entrevistadas afirmaram que gostariam de colocar seus filhos em uma escola militar, ressaltando que nesse ambiente a separação mais rígida entre atividades para meninos e meninas seria positiva.

Quanto a isso, é importante salientar o quanto a ordem e a disciplina também foram relacionadas ao controle da sexualidade. Veremos a seguir a centralidade do tema da educação sexual para os entrevistados, no entanto apontamos como a ideia de um controle maior dos comportamentos poderia evitar que jovens se tornassem – ou explicitassem ser – homossexuais. Esse receio, do incentivo à homossexualidade, também se associa ao libertarianismo conservador. Dado que há centralidade das ideias de esforço, escolhas e mérito, também a sexualidade seria uma escolha e, como tal, poderia ser evitada, ou incentivada. A escola militar, tal como a exclusão da educação sexual, seria uma forma de controlar potenciais escolhas ruins dos jovens.

[À escola militar] não pode ir todo bagunçado, nada de cabelo pintado, brinco na orelha, vai ser uma coisa padrão. Eu apoiaria se tivesse mais escolas militares (Pai);

Eles são mais criteriosos. A gente não teria esse problema de menino querendo ser menina na escola militar. Mesmo que eles sejam, vão ficar mais quietinho, na deles (Mãe).

Poucos foram os que se mostraram apreensivos em relação ao modelo. Estes usavam argumentos similares ao que vimos no caso do ensino domiciliar – ausência de pluralidade e seu impacto negativo na socialização das crianças. Isso é, no que tange ao argumento estruturante da valorização do passado e da ordem, o imaginário das escolas militarizadas parece oferecer uma resposta mais efetiva do que, comparativamente, o homeschooling em relação à valorização da escolha individual.

Diversidade nas Escolas

Diversidade Política

Em primeiro lugar, há grande distanciamento do tema diversidade política para a maioria dos pais e mães. Muitos não souberam se posicionar no início da conversa, dependendo de mais estímulos para esboçar opiniões, no entanto observa-se que há uma rejeição da discussão de política partidária nas escolas, embora temas ligados a instituições políticas (importância do voto, funcionamento das instâncias de governo, direitos etc.) e desigualdade social e pobreza sejam bem-vindos.

Escola não é lugar de falar de política. Tem que explicar sobre voto, mas não pode influenciar. Isso é pessoal, mas a partir dos 15 anos em diante, deveria ensinar sobre o que é a lei, do que tem direito e deveres (Mãe).

É frequente a ideia de que cabe à escola ensinar valores como respeito e tolerância para além dos conteúdos pedagógicos. Essa aparente contradição com o que foi exposto a respeito da hegemonia familiar sobre valores se resolveu quando tentávamos explorar como tais temas deveriam ser tratados. Para os pais e mães entrevistados, assuntos como tolerância e respeito devem ser parte do currículo, mas sempre de maneira genérica, evitando qualquer tipo de “tema polêmico”, de forma a impedir brigas entre os alunos. Um exemplo nesse sentido seria condenar genericamente o bullying, porém sem fazer nenhum debate sobre LGBTfobia ou combater violências sexuais, discriminações de gênero ou racismo com os alunos.

Esses assuntos, que se aproximam mais da fronteira do que deve ser tratado exclusivamente pela família, seriam, assim, temas para a esfera privada. Religião e política partidária deveriam ficar restritas também, pela mesma lógica, ao âmbito doméstico, pois há medo da influência da opinião do professor sobre os jovens. Mais uma vez, um temor sobre o controle do conteúdo transmitido na escola aparece nas falas dos entrevistados.

A expressão escola sem partido é desconhecida pelos entrevistados, porém a menção ao termo é associada a algo positivo, pois sugere que a escola é um espaço de neutralidade, visto como algo bom pelos pais. Alguns deles consideram que é importante que os alunos conheçam diferentes pontos de vista e possam pensar por conta própria, mas também julgam que qualquer tema potencialmente polêmico deva ser evitado.

Chama a atenção o quanto os pais e mães conservadores buscam evitar que os filhos tenham contato com temas que possam gerar conflitos. Política, religião e, para usar o jargão mencionado em algumas entrevistas, futebol seriam temas do âmbito privado. Esses assuntos, quando tratados de maneira pública, explicitariam rupturas sociais que os conservadores entrevistados veem como grandes ameaças. Como já foi destacado (Rogin, 1988ROGIN, M. Ronald Reagan, the movie and other episodes in political demonology. Berkeley: University of California Press, 1988., p. 278), há no pensamento conservador um desejo de fusão das diferenças morais, políticas e sociais3 3 Ver Rogin (1988), especialmente páginas 278 a 280. Nelas, o filósofo faz uma análise de como o que ele chama de “contrassubversivos”, que seriam nossos “conservadores”, buscam em seus discursos uma linguagem de união e apagamento das diferenças, ao mesmo tempo que a criação de fronteiras claras com o que não é bem-vindo – como “bandidos”, “corruptos” e outros. , que ficou evidenciado nos nossos grupos focais – ainda que o formato da discussão incentivasse a discordância entre os entrevistados.

Ensino de História

Temas relativos ao currículo são ainda mais distantes da realidade dos entrevistados. Há passividade em aceitar o que é proposto no currículo, de maneira acrítica, em parte pelo baixo conhecimento sobre os temas. Não há nenhuma contrariedade ou oposição no que tange ao ensino de história ou ciências, já que conteúdos deveriam ser elaborados exclusivamente por professores que teriam competência para tanto. Ressaltamos que, dos nossos 96 entrevistados (excluindo professores), apenas 21 tinham ensino superior completo (22%). Entre os demais, 11% não tinham ensino médio completo. Os demais 66% concluíram apenas o médio. Então, há relação entre o distanciamento dos conteúdos e a escolaridade. Todavia, o formato do nosso estudo não permite encontrar correlações entre mudanças de escolaridade e maior ou menor grau de adesão a alguma das opiniões expostas aqui. Como já expusemos, a pesquisa qualitativa teve como objetivo mapear os conceitos ao redor dos argumentos conservadores, e não quantificar esses fenômenos, o que foi feito em estudo separado, ainda não publicado.

A maioria dos pais entrevistados não se sente apta a opinar sobre o currículo, sobretudo aqueles de menor escolaridade, e acha que isso deve ser feito pelos especialistas – que estudaram e têm conhecimento para decidir. Muitos deles sentem que não estão aptos para discutir temas escolares. Esse distanciamento diz respeito à escolaridade, mas também à relação com a escola dos filhos de forma geral. Com isso, não há rejeição ao ensino de história ou ciências na escola. Os pais acreditam que os temas devam ser tratados considerando os conceitos tradicionalmente empregados na academia brasileira para descrever fenômenos sociais, como o uso da palavra ditadura para descrever o regime militar brasileiro entre 1964–1984. Em sua visão, a escola é o lugar para se ter acesso ao conhecimento; não há questionamento a esse respeito, e com isso concordam os professores entrevistados.

Mesmo quanto ao ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, alterada pela Lei nº 10.639/2003, há um consenso acerca da sua importância, bem como sobre discutir racismo no Brasil, porém sem “exageros”. Tem-se uma rejeição de sua conexão com religiões e cultura afro-brasileiras. Isto é, mais uma vez, há pouco conhecimento sobre o tema, tendendo à aceitação passiva. Na visão dos pais e mães, mesmo aqueles que se mostravam mais radicais (por volta de 10% da amostra), o ensino de história afro-brasileira poderia ajudar a combater o racismo entre as crianças. A barreira de aceitação aparecia quando era explicitada, pelos entrevistados ou pelos pesquisadores, a relação entre cultura afro-brasileira e religiões de matriz africana. Nesse caso, muitos entrevistados, concentrados nos 48 entrevistados de denominações evangélicas, condenavam o que seria, na visão deles, a redução do negro a essas religiões:

Nessa semana da consciência negra eu não vejo a escola falando sobre o negro. Eu vejo falar sobre candomblé, sobre religião. Eles botam os negros como se fossem todos macumbeiros (Mãe).

Nossos entrevistados reconheciam o racismo na sociedade brasileira, e muitos tinham relatos sobre momentos em que foram vítimas de atitudes racistas, no entanto houve entrevistados negros que afirmaram que o preconceito seria sobretudo em virtude da classe social, e entrevistados brancos que apontaram o exagero da mídia em relação ao racismo existente na sociedade e se posicionam contra cotas raciais e qualquer outro tipo de ação afirmativa de cunho racial. Assim como abordado em estudos anteriores (Fundação Tide Setubal, 2019FUNDAÇÃO TIDE SETUBAL. Conservadorismo e as questões sociais. Plano CDE, 2019. Disponível em: https://www.planocde.com.br/pesquisa-conservadorismo/. Acesso em: 23 maio 2023.
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), o preconceito “social” foi mais enfatizado do que o racial. O enfoque no “social” reforçava a rejeição a políticas públicas voltadas para a população negra no Brasil. A comparação do racismo com o bullying em geral foi comum, o que gerou argumentos caricatos de que outros públicos – carecas, gordos etc. – deveriam ser beneficiados por cotas.

De qualquer modo, na visão da maioria dos pais, as escolas tendem a ser omissas em relação a casos de racismo. Em sua opinião, elas deveriam posicionar-se a respeito de ofensas chamando os pais, punindo alunos e oferecendo um retorno a respeito do encaminhamento dos casos aos pais do aluno ofendido. Um discurso a favor da punição do indivíduo racista vai ao encontro das defesas do mérito, do esforço e das escolhas individuais, e contrário ao entendimento estrutural de problemas sociais. Também está alinhado com a defesa das escolas militares, que trariam de volta à ordem e à disciplina escolas que hoje seriam terras de ninguém.

Educação Sexual e de Gênero

Único tema com alta relevância para famílias, a educação sexual e para a igualdade de gênero costuma ser um tabu, já que representa uma ameaça potencial aos valores familiares, que deveriam ser transmitidos somente pela família. Na visão das famílias, a educação sexual pode “desencadear” a sexualização precoce, quando não a “homossexualidade”, nos alunos. Ao mesmo tempo, ela é valorizada considerando a proteção contra a violência e o assédio sexual, sobretudo das meninas. Outro ponto de valorização do tema é o constrangimento que mães e pais sentem ao tratar de questões referentes à sexualidade com seus filhos e filhas.

Uma das principais preocupações dos pais mais radicais a respeito da educação sexual nas escolas é a adequação de certos conhecimentos levando-se em conta a idade dos alunos. Em sua visão, assuntos como infecções sexualmente transmissíveis, menstruação e mudanças no corpo devem ser abordados em aulas de biologia ou palestras específicas.

Todavia, vê-se alguma ambivalência no tema, especialmente entre os entrevistados menos radicais, que consideram que o assunto possa ser debatido na escola, em primeiro lugar porque os professores teriam maior conhecimento e sensibilidade para tratar do assunto. Aqui, há o argumento, similar ao que vimos quanto ao ensino de história, de que professores seriam mais capacitados e, portanto, poderiam liderar a discussão desses assuntos com os jovens. Soma-se a esse argumento a sensação de constrangimento para trazer esse assunto à tona com os filhos, sobretudo quando de gênero diferente (mães com filhos e pais com filhas).

Minha filha tem 6 anos e se tiver esse assunto na escola eu não vou achar ruim, eu vou superapoiar. Talvez eu não seja tão delicada falando sobre isso para ela, não saiba me expressar direito. Talvez na escola, como eles têm mais conhecimento, mais um preparatório para passar aquilo para criança, não é de qualquer forma que eles vão passar. Eu concordo que tenha (Mãe).

A preocupação sobre como a educação sexual pode prevenir violências contra meninas não interfere, no entanto, na rejeição sobre a inclusão de temas relativos à diversidade sexual nas escolas. A própria ideia de diversidade sexual é apontada como uma parte das mudanças morais ocorridas na última geração que tornaram o mundo moderno pior que o passado, nostálgico, de maior controle, ordem e hierarquias mais nítidas ancoradas na heteronormatividade e na cisnormatividade claras.

Conclusões

O sociólogo François Dubet (2019, p. 16)DUBET, F. Le Temps des passions tristes. Paris: Seuil, 2019. escreveu que vivemos em tempos de paixões tristes. Sob o pretexto de fugir do “politicamente correto”, seria permitido todo tipo de agressão ou ofensa. Essas paixões talvez sejam geradas, nos países do Norte Global, por mudanças em suas estruturas de desigualdade, mais difusas e sentidas de maneira mais individual que em outros tempos. No Brasil, vimos, por meio de estudos qualitativos, como as paixões tristes também ocorrem, mas gestadas por uma promessa de ascensão social via unicamente os esforços individuais.

Os efeitos dessas paixões vão muito além das opiniões da população conservadora sobre a educação. Como nosso estudo mostrou, ainda que a visão sobre a escola seja guiada pelo libertarianismo conservador que organiza o pensamento dos nossos interlocutores, há muito mais brechas e rachaduras do que o discurso hegemônico da extrema-direita deixaria transparecer.

A experiência cotidiana das famílias da tal classe C brasileira traz nuanças em seu conservadorismo, que não se deixa abraçar totalmente por jargões nem por discursos prontos. Quando o governo Bolsonaro defendeu a separação de crianças com deficiência em escolas “especiais”, foram os pais e mães das crianças típicas da escola pública conservadores que ajudaram a barrar a ideia. O convívio com a diferença é entendido como um benefício da escola – sequer há entendimento sobre o que é o homeschooling.

Todavia, a rejeição ao homeschooling, pela ótica da reprodução do ensino remoto realizado durante a pandemia, esconde a valorização da escolha individual de cada família. Mesmo que poucos defendam explicitamente a educação domiciliar, a ênfase no libertarianismo conservador ainda ajuda a mediar o imaginário dos nossos entrevistados sobre temas centrais do ultraconservadorismo. O mesmo ocorre em relação às escolas militares, que, ainda que pouco conhecidas, trazem na forma como são descritas pelos participantes a solução para problemas enfrentados pelas famílias: a indisciplina e a violência. Por um lado, a escola militarizada responde aos anseios de quem valoriza uma ideia de um passado mais bem ordenado que o presente. Por outro, e aí encontramos nuanças relevantes, é a associação à ordem que justifica a presença de militares nas escolas – outras soluções que enfrentem a percepção de desordem poderiam também fazer sentido para esse público, se bem comunicadas.

Além dos achados apresentados ao longo deste artigo, um dos nossos principais aprendizados é o valor da pesquisa empírica qualitativa e etnográfica para entender fenômenos sociais complexos, de maneira especial aqueles que envolvem disputas por significados de discursos e linguagens políticas.

Notas

  • 1
    Dado extraído de Davies (2019, p. 80)DAVIES, W. Nervous states: democracy and the decline of reason. Nova York: W. W. Norton & Company, 2019.. Por renda média, o autor refere-se à estatística oficial da renda total dividida pela população adulta.
  • 2
    Essa estimativa foi elaborada com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua e da Pesquisa de Orçamentos Familiares. Por volta de 30% das famílias brasileiras seriam elegíveis ao auxílio-emergencial, ou 70 milhões de pessoas. A faixa de renda imediatamente acima dos critérios do benefício (renda familiar entre R$ 3.135 e R$ 6.000) contém 50 milhões de pessoas, cuja maior parte dos rendimentos (60%) seria informal ou incerta. Esse público entende-se em situação de vulnerabilidade e risco de cair na pobreza, mas não se viu contemplado por uma política de transferência de renda, fomentando o entendimento de que esse tipo de política seria sempre direcionado a “privilegiados”.
  • 3
    Ver Rogin (1988)ROGIN, M. Ronald Reagan, the movie and other episodes in political demonology. Berkeley: University of California Press, 1988., especialmente páginas 278 a 280. Nelas, o filósofo faz uma análise de como o que ele chama de “contrassubversivos”, que seriam nossos “conservadores”, buscam em seus discursos uma linguagem de união e apagamento das diferenças, ao mesmo tempo que a criação de fronteiras claras com o que não é bem-vindo – como “bandidos”, “corruptos” e outros.
  • Este artigo foi realizado por meio da pesquisa Educação, valores e direitos, coordenada pela Ação Educativa e pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária e produzida no âmbito da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, com apoio da Fundação Malala.

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Editor de seção: Roberto Leher https://orcid.org/0000-0002-5063-8753

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2023
  • Aceito
    04 Abr 2024
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