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EDITORIAL

A figura do professor tem sido objeto de contínuas políticas e programas governamentais. Sua imagem é difundida constantemente pelos meios de comunicação de massa. Na leitura das páginas do novo Plano Nacional de Educação (PNE, 2011/2020) destacam-se, dentre suas diretrizes, a melhoria da qualidade do ensino e a valorização dos profissionais da educação.

Se a página do portal do professor, do Ministério da Educação, for acessada na internet sobreleva-se, logo no seu início, o vídeo com imagens espetaculares de países tais como Inglaterra, Finlândia, Alemanha, Coréia do Sul, Espanha e Holanda. Uma voz narrativa constata o intenso desenvolvimento social e econômico nos últimos trinta anos desses países e pergunta: "Se fosse possível identificar um profissional responsável por tal progresso, quem seria?". Logo em seguida, várias pessoas respondem em diversas línguas que esse profissional é o professor. No final do vídeo, uma professora de ensino fundamental faz o seguinte convite: "Venha ajudar a construir um país mais desenvolvido, mais justo e com oportunidades para todos. Seja um professor!"

A verdade de que o professor possa contribuir para a construção de tal país não pode servir como justificativa da ideologia de que ele é o único profissional responsável por este desenvolvimento. A personalização dos problemas socioeducacionais na figura do professor, rotulado como alguém capaz de, por meio do exercício de seu livre arbítrio, solucionar os problemas socioeducacionais das mais diversas ordens, compactua, pois, com o arrefecimento da luta por políticas educacionais públicas que possam, ao ser efetivamente concretizadas, fornecer as condições estruturais para que os professores exerçam dignamente sua profissão; a mesma profissão que, historicamente, foi associada à imagem do carrasco que punia seus alunos, fosse por meio de castigos físicos, fosse pela aplicação de agressões de conotação psicológica.

Com efeito, a atribuição de representações aversivas dos alunos em relação aos seus mestres é bem mais antiga do que possa parecer à primeira vista. O paidagogos, ou seja, o pedagogo que acompanhava o rapaz (pais) às escolas da Grécia antiga era o escravo encarregado pelos seus senhores para o exercício de tal função. Na humanitas cristã, o mestre era o responsável por fazer com que seus discípulos internalizassem determinados conhecimentos que os fariam se aproximar mais de ideias transcendentais. Na escola moderna, o professor se torna figura fundamental para o desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem de seus alunos reunidos nas denominadas escolas de massa. Foram várias as metodologias e procedimentos historicamente utilizados pelos professores para que fossem exitosos na tarefa de fazer com que os alunos se interessassem pelos conteúdos das mais variadas disciplinas ministradas nas salas de aula.

Quer o vetor do processo de ensino e aprendizagem fosse mais direcionado para a figura do professor, tal como fora colocado pelos partícipes da chamada pedagogia humanista tradicional, quer os interesses dos alunos fossem mais destacados pelos partidários da denominada pedagogia humanista moderna, a figura do professor sempre foi determinante no processo de ensino e aprendizagem, a despeito de uma menor ou maior aproximação com os interesses de seus respectivos alunos.

Porém, na sociedade atual, a insistência midiática na valorização do professor parece afirmar, nas entrelinhas, o quanto sua identidade profissional se arrefece cada vez mais. A crença no poder de resolução das contradições sociais por parte do professor é acirradamente confirmada, justamente porque, na realidade, há muito seu poder de intervenção não corresponde ao que é cotidianamente idealizado. É nesse contexto que a lógica da meritocracia encontra um terreno fértil para vicejar, sobretudo em programas que destacam professores cujos esforços na formação de seus alunos foram recompensados com aumentos de ganhos que, novamente, corroboram a ideologia de que basta querer para poder.

Os êxitos de alunos bem sucedidos em certas matérias escolares não são mais considerados como exceções que confirmam as regras da exclusão escolar ou da inclusão em condições de produção de semianalfabetos, mas sim como exemplos que são espetacularmente distinguidos; como se fossem vitórias que dependessem exclusivamente da disposição de cada um dos amigos da escola. Mas a afirmação de tal ideologia, na verdade, contribui para a diluição da imagem do professor, principalmente se o consideramos como um profissional cuja insuficiência do ganho salarial é combatida por meio de jornadas de trabalho absolutamente extenuantes e realizadas, em muitas ocasiões, em diferentes instituições escolares. É como se tais condições de precariedade da profissão de ensinar pudessem ser dissimuladas diante da imagem do sorriso do professor "vencedor" transmitida ao vivo e em cores pelas câmeras de televisão.

As derrotas e conquistas históricas dos professores, em relação a possíveis melhorias das condições do exercício da profissão de ensinar, são solapadas diante da difusão midiática do professor que exerceu sua "vocação" de ensinar, mesmo diante da barbárie objetivada tanto no desinteresse geral dos alunos, quanto nas escolas cujos muros pichados e vidros quebrados lembram mais prisões do que instituições de ensino. A discussão sobre próprias políticas públicas concernentes à profissão de ensinar, e que versam sobre formação inicial e continuada, definição de piso salarial da carreira e melhores condições de trabalho, é cada vez mais ressignificada em termos de espetacularização da imagem do professor. Ocorre que o esquecimento da trajetória de derrotas e vitórias dos professores não só corrobora o enfraquecimento de sua própria identidade profissional e dos movimentos coletivos dos quais deveriam participar, como também revitaliza a ideologia da vocação de ensinar, como se fosse um tipo de sacerdócio secularizado no contexto histórico da chamada "sociedade do espetáculo". A mesma sociedade na qual as denominadas tecnologias de informação e comunicação (TIc) são muitas vezes consideradas como o sujeito da relação de ensino e aprendizagem, ao invés de serem objetos produzidos por meio dos esforços físico e mental humanos.

Diante dessa nova forma de produção de fetiches tecnológicos, os professores dificilmente são consultados pelos órgãos públicos sobre que tipos de procedimentos teórico-metodológicos deveriam ser utilizados para que tais tecnologias pudessem ser empregadas para aproximar efetivamente os agentes educacionais. Atualmente, parece prevalecer a preocupação maior com a quantidade de pessoas que serão formadas, haja vista os investimentos governamentais nos programas de formação de professores a distância, do que com a qualidade desse tipo de formação. Esse é mais um exemplo do modo como as contribuições efetivas dos mestres são dirimidas concomitantemente à difusão das mesmas propagandas que exaltam a importância do papel do professor.

Evidentemente, novos desafios se avizinham quanto à relação entre os professores e o uso de tais tecnologias, inclusive em situações que acontecem no transcorrer do cotidiano escolar. Não são poucas as escolas que proibiram o uso de aparelhos celulares e notebooks durante a realização das aulas, em virtude do fato de que cada vez mais os alunos demonstram dificuldades de se concentrar nos conteúdos estudados. Há também vários filmes postados no You Tube, em que professores se desesperam, arrancam os celulares das mãos dos alunos e os arremessam furiosamente para o chão da sala de aula. De todo modo, o professor não pode mais se esquivar da discussão com seus alunos sobre o modo como tais tecnologias podem ser usadas conjuntamente, de tal maneira que a informação obtida possa ser refletida, a ponto de se tornar o esteio necessário para o desenvolvimento do processo formativo.

Essa preocupação adquire notória importância, sobretudo na sociedade na qual a tecnologia não pode mais ser exclusivamente definida como um conjunto de determinadas técnicas, mas sim se transforma numa forma de produção e reprodução de modos de vida em todas as relações sociais. Contra a corrente da redução dos problemas socioestruturais em meras idiossincrasias do professor, o Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) sempre se pautou pela crítica a esse processo de personalização que ora deifica, ora demoniza a imagem do mestre. Entende, pois, que a defesa de políticas públicas que garantam o direito universal à educação de qualidade não pode ser apartada da denúncia da contradição sobre o modo como a imagem do professor é enaltecida pelos atuais meios de comunicação de massa, ao mesmo tempo em que acontece o gradativo esfacelamento das condições que o capacitariam a contribuir efetivamente para o desenvolvimento do processo formativo de seus alunos.

Seguindo essa linha de raciocínio, a valorização e formação do profissional da educação devem enfatizar a defesa de formações inicial e continuada de qualidade, da definição de pisos salariais de carreira e de condições de trabalho infraestruturais que lhe permitam realizar dignamente suas atividades profissionais. Não por acaso, um dos principais objetivos do III Seminário de Educação Brasileira, realizado pelo CEDES nos dias 28 de fevereiro de 1 e 2 de março de 2011 na UNIcAMP, foi justamente refletir e propor emendas para o PNE sobre os balanços e desafios para a formação e valorização dos profissionais da educação.

O desafio da crítica da ideologia do professor identificado como herói ou vilão é algo que o CEDES não se furta de realizar, sobretudo em nome da possibilidade de que a profissão de ensinar seja de fato caracterizada como uma profissão, cujos partícipes sejam afeitos a direitos e deveres que os situem para além do discurso personalista e vocacional tão em voga na sociedade que, olhada mais de perto, não se revela tão espetacular. E por falar na temática das políticas educacionais, nesse número de Educação & Sociedade destaca-se o dossiê sobre tais políticas desenvolvidas em países da América Latina, uma vez que o CEDES tem como uma de suas práticas estimular o estudo comparado de políticas educacionais realizadas em países latinoamericanos, tais como Uruguai, Argentina, Chile, Equador, Brasil e Venezuela, para citar aqueles abordados nesse dossiê, lembrando ao leitor que em 2011 se comemora o ano da América Latina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
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