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Fatores explicativos do suicídio pela visão indígena: uma revisão de literatura

Resumo

Objetivo

O suicídio indígena no Brasil é um fenômeno epidemiológico, complexo e multifatorial, e a busca pelos seus fatores de risco ainda não trouxe respostas conclusivas. A partir de revisão de literatura, buscou-se levantar os fatores explicativos para o suicídio segundo o ponto de vista dos indígenas a respeito desse fenômeno.

Método

Adotou-se o modelo PRISMA nas bases de dados Scientific Electronic Library Online, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde e na base de Periódicos da Capes, entre agosto e novembro de 2022, com os descritores “indígena AND suicídio”, “índio AND suicídio” e “indígena OR suicídio OR Brasil”.

Resultados

Dos 235 artigos encontrados, restaram 14 após terem sido adotados critérios de exclusão e inclusão, a partir dos quais foram elaboradas as seguintes categorias que indicam os fatores explicativos dos indígenas ao suicídio, sendo os primeiros três compartilhados com as explicações científicas ocidentais: perdas do bem viver, especialmente pelos jovens; consumo de bebidas alcoólicas; abandono das tradições indígenas; universo simbólico e mitos; feitiço e estrago; suicídio coletivo.

Conclusão

Foram tecidas críticas à visão meramente ocidental e à psicologia, apontando a necessidade de integrar as perspectivas indígenas sobre o fenômeno às interpretações científicas.

Palavras-chave
Brasil; Fatores de risco; Indígenas; Suicídio

Abstract

Objective

Indigenous suicide in Brazil is an epidemiological, complex, and multifactorial phenomenon for which conclusive answers to risk factors remain elusive. Based on a literature review, the objective is to identify factors that contribute to the phenomenon of suicide from the perspective of Indigenous people.

Method

The PRISMA model was employed, and literature was sought in the Scientific Electronic Library Online, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde, and the Periódicos Capes databases between August and November 2022, utilizing the Portuguese descriptors “indígena AND suicídio” (indigenous AND suicide), “índio AND suicídio” (indian AND suicide), and “indígena OR suicídio OR Brasil” (indigenous OR suicide OR Brazil).

Results

The search yielded 235 articles, and after applying exclusion and inclusion criteria, 14 were retained. These articles formed the basis for identifying several categories which indicate the explanatory factors of indigenous people’s suicide, the first three of which are shared with Western scientific explanations: loss of “good living”, especially among young people; alcohol consumption; abandonment of Indigenous traditions; symbolic universe and myths; witchcraft and harm; and collective suicide.

Conclusion

Our analysis critiques the exclusively Western perspective and psychological approach, emphasizing the need to embrace Indigenous perspectives on this phenomenon.

Keywords
Brazil; Indigenous; Risk factors; Suicide

O suicídio é entendido como um ato deliberado, consciente e intencional, executado pelo próprio indivíduo com a intenção da morte (Associação Brasileira de Psiquiatria, 2014Associação Brasileira de Psiquiatria (2014). Suicídio: informar para prevenir. CFM. http://www.flip3d.com.br/web/pub/cfm/index9/?numero=14
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). Durante muito tempo foi classicamente entendido como um “fato social total” típico de um grupo social que mantém taxas mais ou menos estáveis no tempo (Durkheim, 1897/2000Durkheim, E. (2000). O suicídio: estudo de Sociologia. Martins Fontes. ((Originalmente publicado em 1897)). Atualmente, é considerado complexo e multifatorial e envolve integradamente aspectos biomédicos; ausência de redes de apoio social; concepções religiosas; construções subjetivas fragilizadas; condições socioeconômicas; determinantes sociais da saúde; fatores psicológicos profundos, culturais, de gênero e geração; fragilização do sentido de pertença; história de vida dos sujeitos; mudanças identitárias e símbolos ligados à morte (Cavalcante et al., 2015Cavalcante, F. G., Minayo, M. C. S., Gutierrez, D. M. D., Sousa, G. S., Silva, R. M., Moura, R., Meneghel, S. N., Grubits, S., Conte, M., Cavalcante, A. C. S., Figueiredo, A. E. B., Mangas, R. M. N., Fachola, M. C. H., & Izquierdo, G. M. (2015). Instrumentos, estratégias e método de abordagem qualitativa sobre tentativas e ideações suicidas de pessoas idosas. Ciência & Saúde Coletiva, 20(6), 1667-1680. https://doi.org/10.1590/1413-81232015206.03022015
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; Marquetti, 2014Marquetti, F. C. (2014). O suicídio e sua essência transgressora. Psicologia USP, 25(3), 237-245. https://doi.org/10.1590/0103-6564D20140006
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).

O suicídio é um problema mundial que afeta famílias, comunidades e países inteiros, com prevalência em nações mais pobres, entre jovens de 15-29 anos e em grupos sociais específicos, entre os quais figuram os povos indígenas (World Health Organization, 2021World Health Organization (2021, Agosto 28). Suicide. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/suicide
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). Entre esses, as taxas de suicídio são bem mais elevadas do que da população em geral, atingindo proporções quase epidêmicas (Ramírez et al., 2018Ramírez, M. O. S., Puerto, L. J. S., Rojas, V. M. R., Villamizar, G. J. C., Vargas, E. L. A., & Urrego, M. Z. C. (2018). El suicidio de indígenas desde la determinación social en salud. Revista Facultad Nacional De Salud Pública, 36(1), 55-65. https://doi.org/10.17533/udea.rfnsp.v36n1a07
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). No Brasil, tem havido um aumento do número de suicídios entre a população geral, porém de modo mais acentuado entre os povos indígenas. Entre 2010 e 2018, no primeiro grupo a taxa aumentou de 5,2 para 6,3/100 mil habitantes (acréscimo de 20,0%) – o que coloca o Brasil entre os de maiores taxas mundiais. Já no segundo grupo aumentou de 12,2 para 18/100 mil habitantes (acréscimo de 50,9%) (Ministério da Saúde, 2020Ministério da Saúde (Brasil). (2020). Mortalidade por suicídio na população indígena no Brasil, 2015 a 2018. Boletim Epidemiológico, 51(37). https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2020/boletim-epidemiologico-vol-51-no37/view
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).

Conforme a região do Brasil, pode haver taxas semelhantes de suicídio entre a população indígena e não indígena, como no Pará (17,9 e 18,3/100 mil hab., respectivamente) (Braga et al., 2020Braga, C. M. R., Nogueira, L. M. V., Trindade, L. N. M., Rodrigues, I. L. A., André, S. R., Da Silva, I. F. S., & Paiva, B. L. (2020). Suicídio na população indígena e não indígena: uma contribuição para a gestão em saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, 73, 2021. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0186
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), ou díspares, como em Roraima (15 e 8,6/100 mil hab., respectivamente) (Souza & Onety, 2017Souza, M. L. P., & Onety, R. T. S., Jr. (2017). Caracterização da mortalidade por suicídio entre indígenas e não indígenas em Roraima, Brasil, 2009-2013. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 26(4), 887-893. https://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742017000400019
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) ou no Amazonas (18,4 e 4,2/100 mil hab., respectivamente) (Souza & Orellana, 2013Orellana, J. D. Y., Basta, P. C., & Souza, M. L. P. (2013). Mortalidade por Suicídio: um enfoque em municípios com alta proporção de população autodeclarada indígena no Estado do Amazonas, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 16(3), 658-669.). Nesse último, a discrepância da taxa de suicídio indígena aumenta ainda mais conforme o município, como em Tabatinga (25,2/100 mil hab.), São Gabriel da Cachoeira (27,6/100 mil hab.) e Santa Isabel do Rio Negro (36,4/100 mil hab.) (Orellana et al., 2013Orellana, J. D. Y., Basta, P. C., & Souza, M. L. P. (2013). Mortalidade por Suicídio: um enfoque em municípios com alta proporção de população autodeclarada indígena no Estado do Amazonas, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 16(3), 658-669.), sendo que a questão é considerada, nessas localidades, como um problema de saúde pública.

De modo geral, entre os indígenas brasileiros a taxa de suicídios é maior nas regiões Centro-Oeste (35,6/100 mil hab.) e Norte (24,1/100 mil hab.), com menores taxas no Nordeste, Sudeste e Sul (3,8; 4,1; 9,7/100 mil hab., respectivamente), ocorrendo majoritariamente entre homens; 15-29 anos; solteiros; de baixa escolaridade e prioritariamente por enforcamento (Ministério da Saúde, 2020Ministério da Saúde (Brasil). (2020). Mortalidade por suicídio na população indígena no Brasil, 2015 a 2018. Boletim Epidemiológico, 51(37). https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2020/boletim-epidemiologico-vol-51-no37/view
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). Não obstante, entre jovens e adultos indígenas as taxas são mais elevadas. Souza (2019)Souza, M. L. P. (2019). Mortalidade por suicídio entre crianças indígenas no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 35, e00019219. https://doi.org/10.1590/0102-311X00019219
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destacou que entre as crianças indígenas a quantidade de suicídios observada foi de 11/100 mil hab., o que é 18,5 vezes maior do que a observada entre crianças não indígenas (0,6/100 mil hab.), havendo a ressalva de variação para mais ou para menos conforme a região ou os municípios.

A temática do suicídio indígena passou desapercebida até os anos 1980, não obstante o fenômeno tenha sido recorrente entre muitas etnias (Poz, 2000Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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). A partir dos anos 1990, com o recrudescimento do uso excessivo de álcool e do suicídio por indígenas, passou a haver interesse midiático e acadêmico sobre esse e outros fenômenos relacionados à saúde indígena. Dos anos 2000 em diante, se consolidou o interesse científico pela saúde indígena em diálogo com as políticas públicas e as preocupações sociais voltadas a esses povos, tornando-se uma temática estudada no campo da Saúde Coletiva (Kabad et al., 2020Kabad, J. F., Pontes, A. L. M., & Monteiro, S. (2020). Relações entre produção cientifica e políticas públicas: o caso da área da saúde dos povos indígenas no campo da saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 25(5), 1653-1665. https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.33762019
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) e, progressivamente, tema de interesse da Psicologia, especialmente pela questão da “saúde mental indígena”, temática ainda com poucas pesquisas (Batista & Zanello, 2016Batista, M. Q., & Zanello, V. (2016). Saúde mental em contextos indígenas: escassez de pesquisas brasileiras, invisibilidade das diferenças. Estudos de Psicologia (Natal), 21(4), 403-414. https://doi.org/10.5935/1678-4669.20160039
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).

Do ponto da atuação do Estado brasileiro, a saúde indígena esteve sob a tutela de diferentes políticas e órgãos: Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967); Fundação Nacional do Índio (1967-1999) e Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, criado em 1999 e ainda vigente (Pontes et al., 2019Pontes, A. L. M., Machado, F. R. S., Santos, R. V., & Brito, C. A. G. (2019). Diálogos entre indigenismo e Reforma Sanitária: bases discursivas da criação do subsistema de saúde indígena. Saúde em Debate, 43, 146-159. https://doi.org/10.1590/0103-11042019S811
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). Tendo passado por algumas reformulações desde sua instauração, esse último tem como diretriz a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (criada em 2002), coordenada e executada pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (criada em 2010), gerida por unidades do Distrito Sanitário Especial Indígena (criadas em 1999) através das unidades básicas de saúde indígena, polos bases e Casas de Saúde Indígena (Nóbrega, 2016Nóbrega, L. S. (2016). A atuação da Psicologia na atenção psicossocial em contextos indígenas. In M. G. A. Calegare, & M. I. G. Higuchi (Eds.), Nos interiores da Amazônia: leituras psicossociais (pp. 249-270). CRV.).

Apenas em 2017 foi consolidada a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas (portaria de consolidação nº 2 de 28/09/2017, originalmente publicada em 2007), com a posterior publicação de uma cartilha operacionalizando o modelo de atenção psicossocial que deve ser oferecida a essa população (Ministério da Saúde, 2019aMinistério da Saúde (Brasil). (2019a). Atenção psicossocial aos povos indígenas: tecendo redes para promoção do bem viver. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Atencao_Psicossocial_Povos_Indigenas.pdf
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). Correlacionada à saúde mental está a questão do suicídio indígena, também com uma cartilha orientada à sua prevenção (Ministério da Saúde, 2019b). Compreendidos atualmente pela ótica do bem viver, as questões de saúde mental e do suicídio indígena se agravaram em decorrência da pandemia de COVID-19, demandando novos olhares e novas estratégias de enfrentamento (Kabad et al., 2021Kabad, J. F., Pessoa, L. D., Ferreira, L. O., Souza, M. S., André, E. F., Almeida, G. R., Siqueira, O., & Cardoso, Y. C. (2021). Suicídio e povos indígenas em tempos pandêmicos. In M. R. El Kadri, S. E. S. Silva, A. S. Pereira, & R. T. S. Lima (Eds.), Bem viver: saúde mental indígena (pp. 139-149). Editora Rede Unidas.).

Considerando que o suicídio indígena é um fenômeno epidemiológico, complexo e multifatorial, explicações que revelem os fatores causais e de risco para as altas taxas entre esses povos têm sido buscadas, porém sem respostas conclusivas até o momento. Na revisão de artigos em âmbito mundial feita por Pollock et al. (2018)Pollock, N. J., Naicker, K., Loro, A., Mulay, S., & Colman, I. (2018). Global incidence of suicide among Indigenous peoples: a systematic review. BMC Medicine, 16(145), 1-17. https://doi.org/10.1186/s12916-018-1115-6
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, evidenciou-se que há grandes variações nas taxas, indicando não ser esse um problema universal ou intratável entre os distintos povos indígenas. Os autores apontaram, porém, que os níveis mais elevados estão relacionados aos homens, em contextos de discriminação estrutural, desigualdade social, profundas disparidades e de falta de equidade no acesso à saúde.

Na revisão de Azuero et al. (2017)Azuero, A. J., Arreaza-Kaufman, D., Coriat, J., Tassinari, S., Faria, A., Castañeda-Cardona, C., & Rosselli, D. (2017). Suicide in the indigenous population of Latin America: a systematic review. Revista Colombinana de Psiquiatría, 26(4), 237-242. http://dx.doi.org/10.1016/j.rcp.2016.12.002
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sobre pesquisas em alguns países da América Latina, apontou-se como fator explicativo a “morte cultural” decorrente das mudanças culturais, dos estilos de vida, da industrialização, da invasão do meio ambiente e do consumo de bebida alcoólica. Entretanto, nenhum desses trabalhos evidenciou os modelos explicativos segundo o próprio ponto de vista indígena. Já na revisão de Souza et al. (2020)Souza, R. S. B., Oliveira, J. C., Alvares-Teodoro, J., & Teodoro, M. L. M. (2020). Suicídio e povos indígenas brasileiros: revisão sistemática. Revista Panamericana de Salud Pública, 44, 1-7. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.58
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sobre pesquisas no Brasil com a temática, os autores categorizaram 13 fatores de risco encontrados na literatura, mas nenhum desses indicou as singularidades, cosmovisões e explicações dadas pelos próprios indígenas, apesar de os autores terem levantado algumas pesquisas que trouxeram relatos dessa população.

Já em Ministério da Saúde (2019b)Ministério da Saúde (Brasil). (2019b). Estratégias de prevenção do suicídio em povos indígenas. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Estrategia_Prevencao_Suicidio_Povos_Indigenas.pdf
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, que agrega saberes científicos relacionados à experiência profissional de indígenas e não indígenas nas políticas públicas, são apontados aspectos determinantes e fatores de risco em três dimensões: 1) questões relacionais (passagem para a vida adulta; conflitos conjugais; conflitos geracionais); 2) socioculturais (contexto de violência física e simbólica; imbricação com a sociedade envolvente; dificuldade de inserção socioeconômica; discriminação); 3) perspectivas indígenas (feitiço; memória do morto; espíritos da floresta). Observa-se, dessa feita, a consideração do ponto de vista indígena sobre o suicídio na terceira dimensão, apesar de no documento não haver um aprofundamento e explicações a respeito desses fatores.

Nesse sentido, Kabad et al. (2021)Kabad, J. F., Pessoa, L. D., Ferreira, L. O., Souza, M. S., André, E. F., Almeida, G. R., Siqueira, O., & Cardoso, Y. C. (2021). Suicídio e povos indígenas em tempos pandêmicos. In M. R. El Kadri, S. E. S. Silva, A. S. Pereira, & R. T. S. Lima (Eds.), Bem viver: saúde mental indígena (pp. 139-149). Editora Rede Unidas. apontaram pesquisas recentes que trazem modelos explicativos indígenas sobre o fenômeno da morte autoinfligida, indicando particularidades de cada povo: sobre o povo Iny (Karajá), lembraram a ruptura da transmissão de valores e rituais pelos jovens; com relação aos Guarani-Kaiowá, ressaltaram condições emotivas caracterizadas pela tristeza e perturbação espiritual dos jovens e entre povos do Alto Rio Negro disseram estar relacionado ao não cumprimento dos rituais de passagem da infância para a vida adulta, além do uso abusivo de bebida alcoólica por jovens.

Em suma, o suicídio entre povos indígenas está relacionado a fatores muito diversos, o que modifica radicalmente sua epidemiologia e etiologia (Souza et al., 2020Souza, R. S. B., Oliveira, J. C., Alvares-Teodoro, J., & Teodoro, M. L. M. (2020). Suicídio e povos indígenas brasileiros: revisão sistemática. Revista Panamericana de Salud Pública, 44, 1-7. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.58
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). Nesse sentido, este artigo de revisão da literatura no contexto brasileiro tem o objetivo de levantar os fatores explicativos para o suicídio segundo o ponto de vista dos indígenas.

Método

Esta revisão sistemática da literatura seguiu o modelo PRISMA (Moher et al., 2009Moher, D., Liberati, A., Tetzlaff, J., Altman, D. G., & Group PRISMA. (2009). Preferred reporting items for systematic reviews and meta-analyses: the PRISMA statement. Plos Medicine, 6(7), 2-9. https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1000097
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). Na etapa de identificação, foram utilizadas as bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e de Periódicos da Capes, consultadas entre os meses de agosto e novembro de 2022, a partir dos descritores “indígena AND suicídio”, “índio AND suicídio” e “indígena OR suicídio OR Brasil”. Foram encontrados 235 trabalhos e os duplicados foram excluídos (55). Dos 180 artigos restantes da etapa de seleção, 90 foram eliminados após a leitura do título 40 foram deletados por tratarem da população não indígena e 20 após a leitura do resumo. Restando 30 textos, na etapa de elegibilidade foi realizada a leitura completa de todos, tendo sido retirados 16 por inadequação com o objetivo desta revisão: abordar fatores explicativos para o suicídio indígena segundo a ótica indígena. Na etapa final, de inclusão, restaram 14 artigos (Figura 1).

Figura 1
Fluxo da informação com as diferentes fases da revisão sistemática

Procedeu-se à escrita dos resultados apontando aspectos quantitativos gerais das publicações e, na sequência, o ponto de vista indígena dos autores foi considerado para apresentar a análise qualitativa por categorias eleitas por eles para explicar o fenômeno (Tabela 1).

Tabela 1
Dados dos artigos e categorização dos fatores explicativos do suicídio

Resultados

Aspectos Gerais das Publicações

A avaliação quantitativa teve início a partir do apontamento do ano de publicação dos artigos selecionados: três artigos haviam sido publicados entre os anos de 2000 e 2009; dez entre os anos de 2010 e 2019 e apenas um entre os anos de 2020 e 2022. Isso indica que o suicídio indígena passou, de fato, a ser alvo do interesse científico e de ações de políticas públicas a partir dos anos 2000 (Kabad et al., 2020Kabad, J. F., Pontes, A. L. M., & Monteiro, S. (2020). Relações entre produção cientifica e políticas públicas: o caso da área da saúde dos povos indígenas no campo da saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 25(5), 1653-1665. https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.33762019
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). Acredita-se que, no final da presente década, mais artigos terão sido publicados do que na década anterior.

A respeito da área de origem dos estudos, predominam as áreas da saúde (9): Epidemiologia (3), Saúde Coletiva (3), Saúde Pública (2) e Psiquiatria (1). A Psicologia, uma disciplina que transita entre a área da saúde e das Ciências Humanas e Sociais, apresentou três produções, enquanto a Antropologia teve duas produções. Isso revela que a temática do suicídio, apesar da necessidade da multiplicidade de olhares, é vista prioritariamente dentro da alçada das áreas da saúde (Batista & Zanello, 2016Batista, M. Q., & Zanello, V. (2016). Saúde mental em contextos indígenas: escassez de pesquisas brasileiras, invisibilidade das diferenças. Estudos de Psicologia (Natal), 21(4), 403-414. https://doi.org/10.5935/1678-4669.20160039
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; Kabad et al., 2020Kabad, J. F., Pontes, A. L. M., & Monteiro, S. (2020). Relações entre produção cientifica e políticas públicas: o caso da área da saúde dos povos indígenas no campo da saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 25(5), 1653-1665. https://doi.org/10.1590/1413-81232020255.33762019
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; Kabad et al., 2021Kabad, J. F., Pessoa, L. D., Ferreira, L. O., Souza, M. S., André, E. F., Almeida, G. R., Siqueira, O., & Cardoso, Y. C. (2021). Suicídio e povos indígenas em tempos pandêmicos. In M. R. El Kadri, S. E. S. Silva, A. S. Pereira, & R. T. S. Lima (Eds.), Bem viver: saúde mental indígena (pp. 139-149). Editora Rede Unidas.; Ministério da Saúde, 2020Ministério da Saúde (Brasil). (2020). Mortalidade por suicídio na população indígena no Brasil, 2015 a 2018. Boletim Epidemiológico, 51(37). https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/edicoes/2020/boletim-epidemiologico-vol-51-no37/view
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), sem contribuições de outras áreas com leituras históricas, geopolíticas ou socioeconômicas, por exemplo.

Sobre a metodologia utilizada, foram encontradas: cinco pesquisas qualitativas, sendo três etnografias; quatro ensaios teóricos; três revisões de literatura e dois estudos retrospectivos. Observa-se que as pesquisas qualitativas, que lidam diretamente com os povos indígenas, ainda são minoria. A maioria dos artigos abordaram o fenômeno do suicídio a partir de dados secundários, que, apesar de serem importantes para uma visão mais geral, foram interpretados como reveladores do distanciamento existente entre pesquisadores e povos indígenas. Como consequência disso, poucos estudos conseguiram trazer as explicações e cosmovisões próprias dos indígenas sobre o fenômeno do suicídio.

Quanto aos povos estudados, foram identificadas nos artigos apenas sete etnias: Amanyé, Aruak, Guarani/Kaiowá, Maku, Sorowaha, Tikuna, Tukano. Sete publicações não mencionaram etnias específicas. A respeito das regiões brasileiras pesquisadas, oito estudos eram sobre o estado do Amazonas: dois do Amazonas em geral, dois do alto rio Negro, dois do rio Purus, um do alto Solimões e um da fronteira com a Colômbia. Os outros estudos tratavam do Brasil em geral (3), do Mato Grosso do Sul (2) e do Pará (1). Levantou-se como hipótese a proximidade, no estado do Amazonas, de pesquisadores de centros de pesquisa públicos – como a Fundação Oswaldo Cruz, a Universidade do Estado do Amazonas e a Universidade Federal do Amazonas – e povos indígenas, inclusive o fato de o Amazonas possuir o maior número de etnias e pessoas indígenas no Brasil. A falta de estudos em outros estados brasileiros indica o quanto a temática ainda é negligenciada, além de haver a crença de que existem poucos – ou não existem – povos indígenas vivendo nos demais estados brasileiros.

Quanto aos fatores explicativos indígenas, isto é, aqueles que os autores identificaram nos artigos como atribuídos pela própria ótica indígena, foram obtidos: (A) perdas do bem viver, especialmente pelos jovens (11); (B) consumo de bebidas alcoólicas (5); (C) abandono das tradições indígenas (8); (D) universo simbólico e mitos (6); (E) feitiço e estrago (7); (F) suicídio coletivo (7). Esses fatores serão explicados qualitativamente a seguir.

Fatores Explicativos Indígenas

Nesta seção serão descritas as categorias de fatores de suicídio encontradas nos artigos revisados e que os autores, representantes de povos indígenas, acreditam ser explicativos do fenômeno. Os primeiros três são compartilhados com a visão da ciência e sociedade ocidental, enquanto os últimos três remetem a aspectos intrínsecos à cultura indígena. Ressalta-se, de antemão, que as categorias elencadas abaixo estão longe de abranger a totalidade do universo simbólico explicativo do suicídio indígena, pois esse é vasto, multideterminado e tem diversas faces.

A. Perda do Bem Viver, Especialmente Pelos Jovens

Para Adsuara et al. (2019)Adsuara, C. H. C., Araújo, G. H. M., & Oliveira, P. T. R. (2019). Nas fronteiras dos impactos expansionistas do capital sobre a saúde dos povos indígenas no brasil: questões para a compreensão do suicídio. Saúde em Redes, 5(2), 325-338. https://doi.org/10.18310/2446-4813.2019v5n2p325-338
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, o bem viver refere-se aos princípios vitais que organizam a vida de um povo de acordo com o próprio projeto de existência coletiva; visa salvaguardar o bem-estar das populações e tem relação com o território, os seres humanos e não humanos. Nesse sentido, Silva et al. (2019)Silva, D. L., Palha, A. P. P., Jr., & Feitosa, M. Z. S. (2019). Juventude indígena e suicídio: diálogos transdisciplinares, campos de possibilidades e superação de vulnerabilidades. Revista Psicologia Política, 19(46), 556-569. reforçam que o território e a comunidade são essenciais para a vida indígena, pois desses provém a sobrevivência e o cuidado com todos os seres, sendo, portanto, condição para o bem viver, para a vida comunitária e com todos os seres do cosmos.

Entretanto, as condições objetivas e sociais, como o processo colonizador, perda dos territórios, contato intercultural, falta de efetividade das políticas públicas etc., comprometem a vida tradicional indígena, impondo limitações ao bem viver (Souza et al., 2020Souza, R. S. B., Oliveira, J. C., Alvares-Teodoro, J., & Teodoro, M. L. M. (2020). Suicídio e povos indígenas brasileiros: revisão sistemática. Revista Panamericana de Salud Pública, 44, 1-7. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.58
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). Adiciona-se a isso a imposição religiosa, por meio da qual há proibições e o abandono de práticas e comportamentos culturalmente específicos das populações indígenas (Erthal, 2001Erthal, R. M. C. (2001). O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17(2), 299-311. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2001000200005
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; Souza, 2016Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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). Portanto, a invasão de terras indígenas, expropriação de comunidades e os projetos de desenvolvimento regional e nacional interferem diretamente no processo saúde-doença e vida-morte, produzindo sofrimento psicossocial nas populações indígenas e caracterizando seu genocídio (Adsuara et al., 2019Adsuara, C. H. C., Araújo, G. H. M., & Oliveira, P. T. R. (2019). Nas fronteiras dos impactos expansionistas do capital sobre a saúde dos povos indígenas no brasil: questões para a compreensão do suicídio. Saúde em Redes, 5(2), 325-338. https://doi.org/10.18310/2446-4813.2019v5n2p325-338
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; Staliano et al., 2019Staliano, P., Mondardo, M. L., & Lopes, R. C. (2019). Onde e como se suicidam os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul: Confinamento, Jejuvy e Tekoha. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 9-21. https://doi.org/10.1590/1982-3703003221674
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).

Posto isso, a perda das condições de bem viver, em linhas gerais, remete à confusão que os indígenas, especialmente os jovens, sofrem devido à interferência da sociedade envolvente nos modos de vida tradicionais – o que em alguns artigos são chamados de fatores de risco (Ramírez et al., 2018Ramírez, M. O. S., Puerto, L. J. S., Rojas, V. M. R., Villamizar, G. J. C., Vargas, E. L. A., & Urrego, M. Z. C. (2018). El suicidio de indígenas desde la determinación social en salud. Revista Facultad Nacional De Salud Pública, 36(1), 55-65. https://doi.org/10.17533/udea.rfnsp.v36n1a07
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; Souza & Orellana, 2013Orellana, J. D. Y., Basta, P. C., & Souza, M. L. P. (2013). Mortalidade por Suicídio: um enfoque em municípios com alta proporção de população autodeclarada indígena no Estado do Amazonas, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 16(3), 658-669.). Isso envolve: migração para o meio urbano; conflitos em seus territórios; insuficiência de infraestrutura e serviços de saúde e educação; dificuldades de inserção no mercado de trabalho; desarticulação familiar; falta de perspectiva de futuro e falta de alternativas de lazer. Todos esses elementos promovem desequilíbrio e desarmonia, ocasionando adoecimentos e mortes por suicídio (Coimbra & Santos, 2000Coimbra, C. E. A., Jr., & Santos, R. V. (2000). Saúde, minorias e desigualdade: algumas teias de inter-relações, com ênfase nos povos indígenas no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 5, 125-132. https://doi.org/10.1590/S1413-81232000000100011
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; Ramírez et al., 2018Ramírez, M. O. S., Puerto, L. J. S., Rojas, V. M. R., Villamizar, G. J. C., Vargas, E. L. A., & Urrego, M. Z. C. (2018). El suicidio de indígenas desde la determinación social en salud. Revista Facultad Nacional De Salud Pública, 36(1), 55-65. https://doi.org/10.17533/udea.rfnsp.v36n1a07
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; Silva et al., 2019Silva, D. L., Palha, A. P. P., Jr., & Feitosa, M. Z. S. (2019). Juventude indígena e suicídio: diálogos transdisciplinares, campos de possibilidades e superação de vulnerabilidades. Revista Psicologia Política, 19(46), 556-569.; Souza et al., 2020Souza, R. S. B., Oliveira, J. C., Alvares-Teodoro, J., & Teodoro, M. L. M. (2020). Suicídio e povos indígenas brasileiros: revisão sistemática. Revista Panamericana de Salud Pública, 44, 1-7. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.58
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; Souza & Orellana, 2013Orellana, J. D. Y., Basta, P. C., & Souza, M. L. P. (2013). Mortalidade por Suicídio: um enfoque em municípios com alta proporção de população autodeclarada indígena no Estado do Amazonas, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 16(3), 658-669.).

Ramírez et al. (2018)Ramírez, M. O. S., Puerto, L. J. S., Rojas, V. M. R., Villamizar, G. J. C., Vargas, E. L. A., & Urrego, M. Z. C. (2018). El suicidio de indígenas desde la determinación social en salud. Revista Facultad Nacional De Salud Pública, 36(1), 55-65. https://doi.org/10.17533/udea.rfnsp.v36n1a07
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apontam que os jovens indígenas, em suas respectivas tradições, são preparados e orientados a seguir costumes, regras e rituais conforme a cosmologia ancestral de seu povo. Ao entrar em contato com a sociedade envolvente, o jovem se depara com um mundo diferente, que exige dele outros comportamentos, pensamentos, ações e cuidados, interferindo na construção de sua identidade, seu pertencimento e no seu modo de vida. Isso se agrava pela utilização de drogas e consumo exacerbado de bebidas alcoólicas, que acentuam esses problemas do contato com a sociedade envolvente, conduzindo-o ao ato suicida.

Agrega-se a isso o cenário de escassez alimentar e de adoecimento que se reflete, por exemplo, na ocorrência de suicídios cometidos por jovens Kanamari, no Vale do Javari/AM (Adsuara et al., 2019Adsuara, C. H. C., Araújo, G. H. M., & Oliveira, P. T. R. (2019). Nas fronteiras dos impactos expansionistas do capital sobre a saúde dos povos indígenas no brasil: questões para a compreensão do suicídio. Saúde em Redes, 5(2), 325-338. https://doi.org/10.18310/2446-4813.2019v5n2p325-338
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). Já com relação ao povo Sorowaha, como ressaltou Poz (2000)Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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, a ênfase nas virtudes físicas e morais, incluindo o desempenho individual (força física, habilidade, disposição, beleza, controle da sexualidade etc.), pode levar os jovens a se tornarem vulneráveis a desavenças e desgostos, o que pode conduzi-los ao suicídio.

Grubits et al. (2011)Grubits S., Freire, H. B. G., & Noriega, J. A. V. (2011). Suicídios de Jovens Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(3), 504-517. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000300006
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descrevem que, entre os jovens Guarani-Kaiowá, foram observados, antes das tentativas de suicídio, comportamentos de desânimo, desajuste, melancolia e tristeza. Esse período de descontrole, segundo os autores, durou em torno de duas semanas a um mês, caracterizando-se por momentos em que os jovens relataram terem ouvido vozes e ruídos de maneira persecutória que os impulsionavam à autoexterminação e que não permitiam que eles reagissem. Eles não se lembravam do momento em que tentaram tirar a própria vida e disseram que não tinham controle do que estavam fazendo. Os jovens relataram que os cantos, as rezas e as danças feitos por seus familiares com orientação de religiosos contribuíram para o retorno deles à normalidade. Dessa feita, para esse povo o suicídio é entendido como algo sobrenatural, quando forças do bem e do mal se enfrentam – como será abordado em outra seção.

B. Consumo de Bebidas Alcoólicas

Outro problema sério presente entre os povos indígenas e que contribui para os suicídios é o consumo abusivo de bebida alcoólica, havendo incidência do uso dessas substâncias anteriormente à prática do ato suicida e, em geral, por jovens homens durante o final de semana (Erthal, 2001Erthal, R. M. C. (2001). O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17(2), 299-311. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2001000200005
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; Orellana et al., 2013Orellana, J. D. Y., Basta, P. C., & Souza, M. L. P. (2013). Mortalidade por Suicídio: um enfoque em municípios com alta proporção de população autodeclarada indígena no Estado do Amazonas, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 16(3), 658-669.; Souza, 2016Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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). De acordo com Grubits et al. (2011)Grubits S., Freire, H. B. G., & Noriega, J. A. V. (2011). Suicídios de Jovens Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(3), 504-517. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000300006
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, a imposição de novas religiões, que desorganiza a população e decorre em conflitos e desajustes, também contribui para a adoção de vícios como o alcoolismo.

Souza e Ferreira (2014)Souza, M. L. P., & Ferreira, L. O. (2014). Jurupari se suicidou? Notas para investigação do suicídio no contexto indígena. Saúde e Sociedade, 23(3), 1064-1076. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300026
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apontam a intencionalidade do ato daqueles que se encontram sob efeito de álcool, que, estando intoxicados, teriam sua capacidade de julgamento comprometida. Para Souza e Orellana (2013)Orellana, J. D. Y., Basta, P. C., & Souza, M. L. P. (2013). Mortalidade por Suicídio: um enfoque em municípios com alta proporção de população autodeclarada indígena no Estado do Amazonas, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 16(3), 658-669., essas substâncias promovem alterações comportamentais, acarretando ações que não se apresentariam costumeiramente e convertendo-se em uma conduta de coragem que impulsiona o usuário à prática do suicídio. Nesse sentido, Souza (2016)Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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descreve que, embora o consumo de álcool seja um elemento importante para a compreensão do suicídio indígena, esse não deveria ser um fator explicativo, mas ser visto como um incentivador de conflitos. Dessa feita, apesar de os povos indígenas tradicionalmente fazerem uso de bebidas alcoólicas, o uso abusivo dessas substâncias tem causado problemas físicos, psicológicos, sociais, econômicos e culturais.

É possível constatar essa situação entre os Tikunas, cujos jovens cometem suicídio após discussões e desentendimentos com os familiares, em uma espécie de “perda de razão” que, segundo os pais, está atrelada ao consumo de bebidas alcoólicas (Souza & Ferreira, 2014Souza, M. L. P., & Ferreira, L. O. (2014). Jurupari se suicidou? Notas para investigação do suicídio no contexto indígena. Saúde e Sociedade, 23(3), 1064-1076. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300026
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). Esse fator também foi identificado na narrativa de um pai cujo filho frequentemente bebia até altas horas da noite e, tendo sido repreendido por desobedecer às normas do pai, entristeceu-se e cometeu suicídio (Souza, 2016Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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).

Mesmo que tenham se passado anos, a bebida alcoólica parece ainda servir como uma arma contra a vida dos povos indígenas, tornando o alcoolismo outro problema sério de saúde pública atual. Souza (2016)Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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aponta que o consumo de bebidas alcoólicas tradicionais começa somente após a passagem pelos rituais de iniciação. O autor complementa que há prevalência de início mais precoce do consumo de álcool por indígenas do sexo masculino e falou sobre as dificuldades que os adultos têm de disciplinar esse consumo. Entretanto, sabe-se que em alguns territórios indígenas e em algumas etnias existe o consumo de bebida alcoólica entre as idades mais baixas, constatado conforme relatos de experiências pessoais dos autores deste artigo.

Erthal (2001)Erthal, R. M. C. (2001). O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17(2), 299-311. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2001000200005
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atribui o consumo de bebidas alcoólicas às perdas de padrões culturais e diz que esse consumo favorece diversos tipos de violência entre os Tikunas, incluindo o suicídio. De modo semelhante, Souza (2016)Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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aponta que, entre indígenas da região do Alto Rio Negro, o momento do consumo da bebida alcoólica é propicio para trazer à tona conflitos do cotidiano e, nesse sentido, o consumo de álcool seria uma espécie de “libertação” de sentimentos negativos. O autor argumenta que os adultos se queixam que os jovens são desobedientes, enquanto os jovens, por outro lado, dizem que fazem o que veem os pais fazendo. Assim, os conselhos direcionados aos jovens não têm surtido efeito porque a “fumaça de cigarro”, que era usada antigamente para aconselhar os mais novos durante os rituais, não tem sido mais utilizada.

C. Abandono das Tradições Indígenas

O abandono das tradições indígenas refere-se, especialmente entre os jovens, ao fato de eles não mais se guiarem pelas práticas e rituais de iniciação e nos demais ciclos da vida, como na passagem da vida infantil para a vida adulta, o que engloba a imposição religiosa e cultural da sociedade envolvente (Erthal, 2001Erthal, R. M. C. (2001). O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17(2), 299-311. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2001000200005
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). Como exemplos, há a iniciação dos meninos Guarani-Kaiowá, que consiste na perfuração do lábio inferior e que é um segredo desse povo (Grubits et al., 2011Grubits S., Freire, H. B. G., & Noriega, J. A. V. (2011). Suicídios de Jovens Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(3), 504-517. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000300006
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), e a colocação, entre os Sorowaha, do sokoady (suspensório peniano) – rituais que não são mais executados (Poz, 2000Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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). Assim, na ausência dos rituais de iniciação, o jovem indígena pode apresentar confusão e desorientação a respeito de sua posição na organização de seu povo (Souza, 2016Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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).

Dessa feita, Souza (2016)Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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e Souza e Orellana (2013)Orellana, J. D. Y., Basta, P. C., & Souza, M. L. P. (2013). Mortalidade por Suicídio: um enfoque em municípios com alta proporção de população autodeclarada indígena no Estado do Amazonas, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 16(3), 658-669. argumentam que, atualmente, o fato de os jovens não seguirem certos rituais de proteção diante do contato com a alteridade, seja por desobediência ou por não terem aprendido com os pais ou avós, torna-os vulneráveis. Nesse sentido, existe ainda a ideia de que a perda de certas crenças antigas está relacionada a conflitos existentes atualmente, gerando o fenômeno do suicídio. Isso tudo configura o abandono das formas de organização cultural que dão sentido à identidade indígena e norteiam o jovem numa linha de continuidade, considerando o passado de seu povo e seu futuro (Grubits et al., 2011Grubits S., Freire, H. B. G., & Noriega, J. A. V. (2011). Suicídios de Jovens Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(3), 504-517. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000300006
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).

O contato com a sociedade envolvente trouxe ainda outras mudanças. Como descreveu Erthal (2001)Erthal, R. M. C. (2001). O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17(2), 299-311. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2001000200005
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, os jovens do povo Tikuna da faixa etária de 10 a 15 anos, por exemplo, estariam se matando por causa de regras de casamentos tradicionais já defasadas, que teriam se tornado “problemas de nação”. Por terem suas escolhas limitadas, sendo proibidos de certos comportamentos, esses jovens estariam procurando a morte por enforcamento ou envenenamento. Outro exemplo é a limitante e insuficiente prática do teko (modo de ser) entre o povo Guarani devido à expropriação de seus territórios sagrados, o que os impossibilita de seguirem com seus costumes, crenças, rituais e práticas de subsistência (Staliano et al., 2019Staliano, P., Mondardo, M. L., & Lopes, R. C. (2019). Onde e como se suicidam os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul: Confinamento, Jejuvy e Tekoha. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 9-21. https://doi.org/10.1590/1982-3703003221674
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).

Souza (2016)Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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descreve que o suicídio na região do Alto Rio Negro sempre existiu, mas sofreu transformações diante das mudanças socioculturais e históricas presentes na sociedade, especialmente em função do contato com a sociedade envolvente. Assim, tem-se uma visão de que os tempos antigos eram perfeitos, enquanto os tempos atuais são vistos como ruinosos, o que repercute na atribuição de causas banais aos suicídios no presente. Nesse sentido, Souza et al. (2020)Souza, R. S. B., Oliveira, J. C., Alvares-Teodoro, J., & Teodoro, M. L. M. (2020). Suicídio e povos indígenas brasileiros: revisão sistemática. Revista Panamericana de Salud Pública, 44, 1-7. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.58
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discorrem que a possível explicação para o atual tempo “ruinoso” e para a prática do suicídio pode estar relacionada às mudanças nos territórios indígenas, a partir do aumento da presença de não indígenas e da urbanização da população indígena.

Além desses fatores, Silva et al. (2019)Silva, D. L., Palha, A. P. P., Jr., & Feitosa, M. Z. S. (2019). Juventude indígena e suicídio: diálogos transdisciplinares, campos de possibilidades e superação de vulnerabilidades. Revista Psicologia Política, 19(46), 556-569. apontam a ridicularização e a promoção do sentimento de vergonha de ser indígena diante da cultura ocidental dominante, que aprisionam os indígenas a um modelo colonialista e brancocêntrico. Além da desvalorização cultural que os povos vêm sofrendo ao longo dos anos, a dificuldade de adaptação de grupos étnicos às áreas urbanas também tem sido descrita na literatura científica como fator potencializador para a prática de violência autoprovocada (Braga et al., 2020Braga, C. M. R., Nogueira, L. M. V., Trindade, L. N. M., Rodrigues, I. L. A., André, S. R., Da Silva, I. F. S., & Paiva, B. L. (2020). Suicídio na população indígena e não indígena: uma contribuição para a gestão em saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, 73, 2021. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0186
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0...
).

A desvalorização cultural indígena pode ser atribuída à progressiva supervalorização da cultura ocidental, da tecnologia e da modernidade, contribuindo para que muitos jovens estejam deixando de lado as tradições de seus povos (Silva et al., 2019Silva, D. L., Palha, A. P. P., Jr., & Feitosa, M. Z. S. (2019). Juventude indígena e suicídio: diálogos transdisciplinares, campos de possibilidades e superação de vulnerabilidades. Revista Psicologia Política, 19(46), 556-569.). Assim, as elevadas expectativas juvenis, contrastadas com a realidade que esses jovens encontram, principalmente nas cidades de pequeno porte, explicam a dificuldade enfrentada por essa população ao se deparar com a falta de políticas públicas que poderiam auxiliar no enfrentamento das vulnerabilidades, como o suicídio (Souza, 2016Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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).

D. Universo Simbólico e Mitos

Cada comunidade ou povo indígena possui simbologias próprias que culturalmente explicam o fenômeno do suicídio. Algumas interpretações de um povo se assemelham a outras; entretanto, cada povo significa a questão de modo particular, dependendo de sua historicidade, cosmovisão e simbologia. Logo, o suicídio indígena é um fenômeno que afeta comunidades e etnias específicas e não deve ser visto de modo generalista e simplista, pois corresponde aos contextos e momentos específicos em que ocorrem.

Para que haja entendimento acerca do suicídio indígena, é necessário considerar as características do universo simbólico e os mitos indígenas. No contexto indígena rionegrino, por exemplo, os indígenas mais velhos, denominados kumus pelo povo Tukano ou pajés em outras etnias, são detentores de saberes ancestrais importantes para a compreensão dos processos saúde-doença e vida-morte (Souza, 2016Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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). Recorre-se a eles em caso de morte súbita ou de suicídio para descoberta do responsável pelo feitiço, para avaliação das circunstâncias ou para atribuição de culpa pelo ocorrido.

Nesse sentido, Souza e Ferreira (2014)Souza, M. L. P., & Ferreira, L. O. (2014). Jurupari se suicidou? Notas para investigação do suicídio no contexto indígena. Saúde e Sociedade, 23(3), 1064-1076. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300026
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e Souza (2016)Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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explicam que entre os indígenas rionegrinos é comum ouvir dos mais velhos histórias sobre o que aconteceu com alguma pessoa que se suicidou: que se transformou em algum animal, em espírito encantado ou até mesmo em matéria-prima, assim como no mito de Jurupari. Portanto, os mitos, além de serem descritos como um acontecimento passado, podem ser usados para dar explicações sobre situações vividas no presente.

Já entre os Sorowaha, Poz (2000)Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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argumenta que eles acreditam que após esta vida existe outra, a verdadeira, que dependerá de como foi a morte da pessoa. Após a morte, a alma abandonaria o corpo e seguiria para as águas dos pequenos igarapés, e, com a chegada do período das chuvas, alcançaria os rios maiores para alcançar os céus. Esse trajeto pode ser feito por três caminhos diferentes, que conduzirão a destinos igualmente distintos: o mazaro agi (caminho da morte), para os que morrem de velhice; o konaha agi (caminho do timbó), por onde vão os suicidas e o koiri agiri (caminho da cobra), para os que morrem de picada de cobra.

O timbó, usado para pesca de pequenos peixes em igarapés, é a maneira que os Sorowaha utilizam para pôr fim à vida, através da sua ingestão. Para Adsuara et al. (2019)Adsuara, C. H. C., Araújo, G. H. M., & Oliveira, P. T. R. (2019). Nas fronteiras dos impactos expansionistas do capital sobre a saúde dos povos indígenas no brasil: questões para a compreensão do suicídio. Saúde em Redes, 5(2), 325-338. https://doi.org/10.18310/2446-4813.2019v5n2p325-338
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, o consumo da raiz do timbó constitui-se em um ritual que leva os Sorowaha ao outro mundo, a um reencontro com os antepassados. Isso é o que Souza e Ferreira (2014)Souza, M. L. P., & Ferreira, L. O. (2014). Jurupari se suicidou? Notas para investigação do suicídio no contexto indígena. Saúde e Sociedade, 23(3), 1064-1076. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300026
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descrevem como o caminho que conduz à casa do trovão, onde os espíritos reencontram o povo do timbó e se transformam em peixes. Como complementado por Aparício (2015)Aparício, M. (2015). As metamorfoses dos humanos em presas do timbó. Os Suruwaha e a morte por envenenamento. Revista de Antropologia, 58(2), 314-344. https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/108576
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, há um mito que relata toda a transformação do humano em peixe a partir da ingestão do timbó. Poz (2000)Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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traz a relação entre o veneno konaha (timbó), as águas e os peixes, como uma metáfora que relaciona os peixes aos humanos, apontando a reflexão sobre a noção de pessoa entre os Sorowaha.

Segundo Erthal (2001)Erthal, R. M. C. (2001). O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17(2), 299-311. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2001000200005
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, na sociedade Tikuna uma parte da alma (nacii’) do suicida permanece no lugar no qual o indígena morre, podendo levar quem entra em contato com o suicida a acontecimentos desastrosos, à infelicidade ou mesmo à morte. Em suma, como apontado nos artigos desta seção e de acordo com o conhecimento pessoal dos autores deste artigo enquanto indígenas, muitos povos originários não consideramos a morte como o fim da vida. Portanto, no contexto ameríndio brasileiro é difícil afirmar o que acontece com a pessoa após seu suicídio, pois as concepções variam de acordo com cada povo e região, bem como com o que antecedeu o ato.

E. Feitiço e Estrago

Comumente encontra-se a explicação de que nem sempre no suicídio indígena a própria pessoa é considerada a autora do ato; outra pessoa pode ser responsável pela morte, o que é, então, visto como homicídio e que traduz o significado de feitiço (Souza, 2016Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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; Souza & Ferreira, 2014Souza, M. L. P., & Ferreira, L. O. (2014). Jurupari se suicidou? Notas para investigação do suicídio no contexto indígena. Saúde e Sociedade, 23(3), 1064-1076. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300026
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). Como exemplo, Erthal (2001)Erthal, R. M. C. (2001). O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cadernos de Saúde Pública, 17(2), 299-311. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2001000200005
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atribui a concepção do suicídio Tikuna ao ato de feitiço, que pode atingir não somente os mais jovens, que são mais vulneráveis, mas também aqueles que tenham acumulado alguns bens ou conseguido condição de vida melhor do que o conjunto da comunidade, atraindo inveja. O feitiço, dentro da ótica Tikuna, parece então funcionar como mecanismo de controle social, uma vez que o feiticeiro capta, em alguns momentos, a insatisfação do grupo, que se transfere para o plano espiritual do feitiço. Através das alianças com maus espíritos, há a indução de pessoas a comportamentos suicidas.

Coisa semelhante ocorre entre os Guarani-Kaiowá. Segundo Souza e Ferreira (2014)Souza, M. L. P., & Ferreira, L. O. (2014). Jurupari se suicidou? Notas para investigação do suicídio no contexto indígena. Saúde e Sociedade, 23(3), 1064-1076. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300026
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, esse povo relaciona o suicídio à terminologia nativa tajuru: o sufixo “ju” está associado a enviado ou sagrado, enquanto “taju” indica a ideia de dano ou malefício. Por isso, o suicídio é considerado um dano causado a alguém pela ação do feitiço, o que leva esses indígenas a reivindicarem respostas das autoridades policiais para saberem quem foi o responsável pela morte. Por outro lado, Staliano et al. (2019)Staliano, P., Mondardo, M. L., & Lopes, R. C. (2019). Onde e como se suicidam os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul: Confinamento, Jejuvy e Tekoha. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 9-21. https://doi.org/10.1590/1982-3703003221674
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apontam outra explicação entre os indígenas Guarani-Kaiowá, que direcionam o ato suicida ao jejuvy, compreendido como o ato de enforcar-se, ou ao angué, entendido como um espírito maligno que se abriga na garganta e que podem acabar assumindo o controle das ações da pessoa e levá-la a cometer o suicídio. Assim, os casos de autoextermínio geram indignação nos familiares, amigos e pessoas próximas do falecido, levando-os à retaliação, o que culmina numa continuidade de intrigas e em uma sequência de feitiços e estragos.

Com relação à sociedade indígena Sorowaha, Poz (2000)Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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aponta que o konaha (timbó) é utilizado com frequência entre os jovens e que esse comportamento é visto pelos mais velhos como normal e comum. A juventude é vista pelo povo como privilegiada, reforçando a afirmativa suscitada entre eles de que “não é bom morrer velho, é bom morrer jovem e forte” (Poz, 2000Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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, p. 100). Nesse sentido, a morte é entendida como um ato voluntario, um “autêntico ritual autoagressivo” que segue um método tradicional, feito por um número expressivo de jovens em decorrência de fatores individuais, culturais e sociais.

Aparício (2015)Aparício, M. (2015). As metamorfoses dos humanos em presas do timbó. Os Suruwaha e a morte por envenenamento. Revista de Antropologia, 58(2), 314-344. https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/108576
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acrescenta que, para os Sorowaha, a prática da ingestão de kunaha (timbó) representa o lugar que a pajelança desempenha na vida coletiva do povo. O processo do feitiço engloba dois aspectos: (1) a rede humana se altera, instalando uma cisão entre a posição predatória do pajé, mazaru agy, que causa a morte da vítima; (2) a posição da vítima da pajelança, mazaru babini, o morto como “presa do feitiço”. Em suma, a feitiçaria é um saber que é praticado por culturas indígenas distintas e que conduz uma pessoa, por intermédio de um terceiro, a tirar sua própria vida. Acabar com a feitiçaria significaria abandonar um elemento cultural, o que recai na perda das tradições, como indicado acima.

F. Suicídio Coletivo

Alguns povos indígenas vivem com a expectativa do suicídio como horizonte do seu destino pessoal e coletivo, como os Sorowaha, conforme descrito por Aparício (2015)Aparício, M. (2015). As metamorfoses dos humanos em presas do timbó. Os Suruwaha e a morte por envenenamento. Revista de Antropologia, 58(2), 314-344. https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/108576
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. Segundo o autor, a pessoa Sorowaha que busca a morte por envenenamento é capaz de provocar a morte de outras pessoas (dudy), causando uma reação contínua de pessoas à procura de timbó. Poz (2000)Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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explicou que, entre eles, é comum haver um sucessivo número de pessoas afetadas por um suicídio, que acabam também cometendo suicídio ou novas tentativas de suicídio logo em seguida, sendo esses, geralmente, pessoas próximas ao falecido. Trata-se de uma espécie de continuidade, dada não apenas por um indígena, mas, às vezes, por mais de dois, acontecendo inclusive no mesmo dia em que o familiar/amigo se suicidou.

Souza e Ferreira (2014)Souza, M. L. P., & Ferreira, L. O. (2014). Jurupari se suicidou? Notas para investigação do suicídio no contexto indígena. Saúde e Sociedade, 23(3), 1064-1076. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300026
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ressaltam que, em alguns contextos indígenas, as pessoas que participam da morte daquele que se mata na verdade são espíritos de pessoas que já morreram. Há uma retroalimentação de mortos, numa espécie de “chamado”, onde os mortos são responsáveis por levar os vivos para a morte, mediados pela angústia da saudade que se apresenta na memória e/ou nos sonhos dos vivos, induzindo-os a se suicidar logo após ou tempos depois da morte do ente querido.

Souza e Orellana (2013)Orellana, J. D. Y., Basta, P. C., & Souza, M. L. P. (2013). Mortalidade por Suicídio: um enfoque em municípios com alta proporção de população autodeclarada indígena no Estado do Amazonas, Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 16(3), 658-669. atribuem a influência do mundo sobrenatural ao fenômeno do suicídio indígena em São Gabriel da Cachoeira/AM, onde espíritos de jovens mortos viriam buscar outros jovens. Relatos de jovens indígenas em Poz (2000)Poz, J. D. (2000). Crônica de uma morte anunciada: do suicídio entre os Sorowaha. Revista de Antropologia, 43(1), 89-144. https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000100004
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e Souza (2016)Souza, M. L. P. (2016). Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, 25(1), 145-159. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902016145974
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revelam que espíritos se aproximam deles no período da noite com uma corda com o intuito de envolvê-los, levando-os a desmaiarem ou a perderem o sentido. Uma das narrativas descreve que um dos três espíritos que havia atacado um jovem era de um conhecido dele que havia se enforcado, enquanto os outros também tinham morrido assim. Essas afirmativas estão presentes no universo indígena e são explicitadas conforme o entendimento particular e cultural dos fenômenos na região.

Por outro lado, o suicídio coletivo não se ancora apenas no aspecto cultural, mas também no político. Como argumentam Adsuara et al. (2019)Adsuara, C. H. C., Araújo, G. H. M., & Oliveira, P. T. R. (2019). Nas fronteiras dos impactos expansionistas do capital sobre a saúde dos povos indígenas no brasil: questões para a compreensão do suicídio. Saúde em Redes, 5(2), 325-338. https://doi.org/10.18310/2446-4813.2019v5n2p325-338
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, no caso dos Guarani-Kaiowá, a morte suicida dos povos indígenas pode ser entendida como um efeito do processo colonial, e, portanto, deve ser considerada como genocídio. Por isso, na Carta dos Guarani-Kaiowá de tekoha Pyelito Kue/Mbarakay, de 2012, houve um protesto contra a retirada desse povo de seu território, através da qual reivindicava-se, então, que fosse decretado um suicídio coletivo, para que todos fossem enterrados ali, juntos aos ancestrais. Como reforça Ramírez et al. (2018)Ramírez, M. O. S., Puerto, L. J. S., Rojas, V. M. R., Villamizar, G. J. C., Vargas, E. L. A., & Urrego, M. Z. C. (2018). El suicidio de indígenas desde la determinación social en salud. Revista Facultad Nacional De Salud Pública, 36(1), 55-65. https://doi.org/10.17533/udea.rfnsp.v36n1a07
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, diante do ataque à cultura e da violação dos direitos deles, a ameaça de um suicídio coletivo foi utilizada como mecanismo legitimo de resistência.

Discussão

Na visão da ciência ocidental, costuma-se privilegiar a perspectiva biomédica correlacionando aspectos de saúde coletiva e de saúde pública, epidemiológicos, sócio-históricos e a conjuntura político-econômica, configurando-se um conjunto de fatores de risco que levam ao suicídio (Souza & Orellana, 2013Souza, M. L. P., & Orellana, J. D. Y. (2013). Desigualdades na mortalidade por suicídio entre indígenas e não indígenas no estado do Amazonas, Brasil. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 62(4), 245-252. https://doi.org/10.1590/S0047-20852013000400001
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; Souza et al., 2020Souza, R. S. B., Oliveira, J. C., Alvares-Teodoro, J., & Teodoro, M. L. M. (2020). Suicídio e povos indígenas brasileiros: revisão sistemática. Revista Panamericana de Salud Pública, 44, 1-7. https://doi.org/10.26633/RPSP.2020.58
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). Há, em algumas perspectivas, acento nos processos de colonialidade, inequidade e usurpação do território relacionados às dimensões socioeconômicas, histórico-políticas, socioculturais e geográficas que geram condições estruturais de violência e que impactam no bem-estar dos povos indígenas por processos destrutivos (Grubits et al., 2011Grubits S., Freire, H. B. G., & Noriega, J. A. V. (2011). Suicídios de Jovens Guarani/Kaiowá de Mato Grosso do Sul, Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(3), 504-517. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000300006
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; Souza & Ferreira, 2014Souza, M. L. P., & Ferreira, L. O. (2014). Jurupari se suicidou? Notas para investigação do suicídio no contexto indígena. Saúde e Sociedade, 23(3), 1064-1076. https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300026
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). Esses elementos todos configurariam a determinação social da saúde que gera o fenômeno do suicídio indígena na visão ocidental (Ramírez et al., 2018Ramírez, M. O. S., Puerto, L. J. S., Rojas, V. M. R., Villamizar, G. J. C., Vargas, E. L. A., & Urrego, M. Z. C. (2018). El suicidio de indígenas desde la determinación social en salud. Revista Facultad Nacional De Salud Pública, 36(1), 55-65. https://doi.org/10.17533/udea.rfnsp.v36n1a07
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).

Por outro lado, os povos indígenas consideram que esses fatores são importantes para as explicações a respeito do fenômeno do suicídio, porém há outros tão ou mais importante a serem ponderados. É necessário apreender também o sentido das cosmologias, dos mitos, das pajelanças (feitiço/estrago) e a relação com seres de outros planos próprios às distintas etnias (Ministério da Saúde, 2019bMinistério da Saúde (Brasil). (2019b). Estratégias de prevenção do suicídio em povos indígenas. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Estrategia_Prevencao_Suicidio_Povos_Indigenas.pdf
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). Nesse sentido, um fator muito importante que diferencia as culturas indígenas é a prevalência da noção de coletividade. Há o compartilhamento de diversas formas de existir, de alimentar-se, vestir-se, comunicar-se, relacionar-se e adoecer. O coletivo compõe o modo de ser e estar no mundo indígena, colaborando com a construção da identidade étnica/coletiva e com as interrelações no seu território e em outros ambientes. Essas interrelações são estabelecidas a partir do mundo real com o mundo simbólico/espiritual e descrevem os diversos eventos do cotidiano – como o suicídio, por exemplo.

Em vista disso, enfatiza-se que o suicídio indígena não deve ser visto somente a partir de uma visão que privilegia os aspectos ocidentais, mas deve-se levar em consideração o universo simbólico indígena (Kabad et al., 2021Kabad, J. F., Pessoa, L. D., Ferreira, L. O., Souza, M. S., André, E. F., Almeida, G. R., Siqueira, O., & Cardoso, Y. C. (2021). Suicídio e povos indígenas em tempos pandêmicos. In M. R. El Kadri, S. E. S. Silva, A. S. Pereira, & R. T. S. Lima (Eds.), Bem viver: saúde mental indígena (pp. 139-149). Editora Rede Unidas.). Por exemplo, o suicídio é comumente discutido como algo negativo na literatura e nos espaços de debate sobre o tema (Ministério da Saúde, 2019aMinistério da Saúde (Brasil). (2019a). Atenção psicossocial aos povos indígenas: tecendo redes para promoção do bem viver. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Atencao_Psicossocial_Povos_Indigenas.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
). Entretanto, para algumas etnias indígenas, o ato suicida pode não simbolizar algo nocivo, podendo ser visto como um ritual e/ou uma expressão coletiva ou política (Ramírez et al., 2018Ramírez, M. O. S., Puerto, L. J. S., Rojas, V. M. R., Villamizar, G. J. C., Vargas, E. L. A., & Urrego, M. Z. C. (2018). El suicidio de indígenas desde la determinación social en salud. Revista Facultad Nacional De Salud Pública, 36(1), 55-65. https://doi.org/10.17533/udea.rfnsp.v36n1a07
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). Além disso, foi visto que o ato de tirar a própria vida pode ser dar em decorrência de uma prática da coletividade e ser induzido por terceiros, resultante das interrelações entre os saberes míticos, as práticas culturais, a pajelança, os espíritos dos mortos e desavenças inter e intrafamiliares.

Como exemplo, ressalta-se que o entendimento sobre o fenômeno do suicídio para os indígenas do Alto Rio Negro interrelaciona fatores de saúde, mente, corpo, espírito e coletividade. Essa visão/cosmologia própria acerca do suicídio foge da perspectiva ocidental de ser praticado própria pessoa, de maneira intencional, com o objetivo de colocar fim à vida. Entre as explicações dadas por eles, acentua-se o aspecto da espiritualidade, mais especificamente do estrago/feitiço, como foi conhecido e discutido nesta revisão – algo realizado por outra pessoa.

Dessa feita, há tempos a questão do suicídio no contexto indígena rionegrino é vista como uma espécie de “maldição”, onde terceiros se utilizam de preparados de ervas, plantas, métodos espirituais, benzimentos e rezas para assoprar/enfeitiçar uma outra pessoa por motivos próprios. Entre esses motivos, os mais comuns são as desavenças com outros parentes, entre membros de outras famílias, comunidades ou etnias. O ato, que tem como resultado levar a pessoa a cometer o suicídio, é visto na sociedade indígena como uma espécie de homicídio, já que partiu de um terceiro. Isso gera comoção e revolta nas pessoas próximas do suicida, levantando questionamentos e discussões na comunidade sobre o porquê e quem foi o autor.

Em suma, os indígenas possuem compreensões próprias sobre o viver e o morrer que vão além do entendimento ocidental, pois cada povo atribui características particulares e simbólicas aos fenômenos sociais e individuais. Considerar essas diferenças sem generalização e homogeneização das características do suicídio é uma forma de respeito. Por esses motivos, pondera-se que a adoção de novas teorias explicativas do ser humano pelas ciências ocidentais, em especial pela Psicologia, agregando a visão indígena a respeito do entendimento da constituição da pessoa/coletividade, da saúde integral e do bem viver, é muito importante (Baniwa & Calegare, 2023Baniwa, G., & Calegare, M. (2023). Saúde integral e bem viver sob a ótica indígena. In F. Scorsolini-Comin & J. F. M. H. Bairrão (Eds.), Etnopsicologia e saúde (pp. 199-224). Pedro e João Editores.).

Por fim, ao abordar o fenômeno do suicídio entre os povos indígenas, é necessário expandir e considerar outras dimensões sobre a determinação social da saúde: a etiologia das doenças nos mundos natural, social e espiritual (sobrenatural) pela perspectiva indígena; a relativização da intencionalidade, pois há diferentes concepções sobre morte e morrer, com complexa correlação entre suicídio/homicídio; o feitiço implicado nos conceitos de vida/morte e a imposição de crenças, valores e lideranças estranhos à cultura indígena que interferem no bem viver.

Conclusão

Buscou-se neste artigo dar ênfase a fatores explicativos encontrados nas pesquisas que enfocam elementos que os indígenas consideram como pertinentes. Na categorização, foram levantados três fatores compartilhados com a perspectiva da ciência ocidental: perdas do bem viver, especialmente pelos jovens; consumo de bebidas alcoólicas e abandono das tradições indígenas. Além desses, foi dada ênfase a outros três fatores que os autores consideram serem particulares ao ponto de vista indígena: o universo simbólico e os mitos; feitiço e estrago e suicídio coletivo. A morte autoinfringida é considerada como resultante de ações de terceiros (feitiços/estrago ou induzida por espíritos dos mortos) e, conforme o contexto cultural, pode ser uma expressão política coletiva ou uma maneira digna de seguir para outro plano existencial.

Uma crítica que é tecida a partir deste estudo vai ao encontro do que já apontaram outros autores a respeito do risco de adotar o modelo biomédico e “medicalizar” o suicídio e os próprios indígenas. Isso conduz à proposição de uma estratégia de enfrentamento da problemática, com a utilização de intervenções farmacológicas e psicoterapêuticas que não levam em consideração os aspectos sociais, culturais e históricos dos indígenas. Por outro, ao “antropologizar” a leitura do fenômeno, que tem a vantagem de conhecer nuances particulares de cada etnia, corre-se o risco de naturalizar e estagnar a cultura, restringindo o acesso da população a outros meios de serviço de saúde e/ou de ajuda.

Além disso, diante da prevalência de pesquisas das áreas da saúde (especialmente da Saúde Coletiva e da Epidemiologia), foram localizados poucos estudos dentro das Ciências Humanas e Sociais (incluindo a Psicologia, área na qual os autores deste artigo são formados) relacionados à questão do suicídio indígena e da “saúde mental” indígena. Nesse sentido, os autores se depararam com “traduções” feitas sobre os fatores explicativos do suicídio indígena e da “saúde mental” dessa população pelas ciências ocidentais: alguns estudos trouxeram explicações próprias dos indígenas, respeitando seus sistemas simbólicos. Por outro lado, ao não considerarem os pontos de vista indígenas, outras explicações sobre o fenômeno não alcançaram a complexidade necessária, o que, no entendimento dos autores deste artigo, pode levar à deslegitimação do conhecimento indígena sobre o tema e a leituras incompletas. Portanto, o ato de matar-se não deve ser visto de modo simplista ou relacionado apenas aos aspectos ocidentais, uma vez que o contexto indígena é permeado de significações e simbologias próprias. Nesse sentido, é interessante rever as teorias ocidentais, modificando-as ou ampliando-as pela adição dos saberes indígenas e suas concepções sobre o ser humano.

Por fim, procurou-se enfocar as simbologias e cosmovisões indígenas trazidas nas pesquisas científicas analisadas. Foi possível perceber que é necessário ter conhecimento cultural e social do contexto no qual os autoextermínios ocorrem, pois cada território carrega consigo marcas históricas e especificidades próprias. É importante salientar que não há um único fator determinante quando se trata do suicídio, ainda mais aquele praticado entre os povos indígenas, havendo um conjunto diversificado de fatores que podem vir a gerar o comportamento da morte autoinfringida.

  • Como citar esse artigo: Baniwa, G., & Calegare, M. (2024). Fatores explicativos do suicídio pela visão indígena: uma revisão de literatura. Estudos de Psicologia (Campinas), 41, e230084. https://doi.org/10.1590/1982-0275202441e230084pt
  • Suporte

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

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Editado por

Editor

Danilo Silva Guimarães

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2023
  • Aceito
    31 Jan 2024
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