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A propósito do universal deprimente: estudo de um caso de resistência ameríndia à captura biomédica

Resumo

Objetivo

Em meio a investidas assimilacionistas, os Xavante determinaram a migração de crianças para Ribeirão Preto/SP, no intuito de estudarem os brancos. Um dos protagonistas recentes desse intercâmbio experienciou intenso sofrimento psíquico, diagnosticado e tratado pela medicina branca. Apresentou melhoras expressivas, contudo, somente quando retornou em definitivo à aldeia de origem. Objetivou-se, nesse contexto, ultrapassar a narrativa biomédica canônica, evidenciando como a consideração de múltiplas formas de “tradução” permite vislumbrar um fenômeno indígena em sua complexidade.

Método

Para esse efeito, foram analisadas dez entrevistas não estruturadas realizadas com o jovem e alguns de seus principais interlocutores no meio urbano (família de acolhimento, colegas de escola, espaço religioso).

Resultados

Emergiram narrativas plurais que incidem sobre o vivenciado, suprimidas pela discursividade universalizante biomédica.

Conclusão

O jovem experienciou um processo de negociação entre universos de significação, cuja síntese culminou no fortalecimento da autoafirmação Xavante e na apropriação de uma voz própria, de permeio às demais.

Palavras-chave
Etnopsicologia; Povos indígenas; Saúde de populações indígenas; Saúde mental

Abstract

Objective

In the midst of assimilationist onslaughts, the Xavante determined the migration of children to Ribeirão Preto/SP, where they would grow and observe the white people. One of the recent protagonists of this migration experienced intense psychic suffering, diagnosed and treated by western medicine. He showed significant improvements; however, only when he finally returned to the village of origin he got completely rehabilitated. The objective of this work was to go beyond the canonical biomedical narrative, showing how the consideration of multiple forms of “translation” allows us to glimpse an indigenous phenomenon in its complexity.

Method

For this purpose, ten unstructured interviews conducted with this young indigenous individual and some of his main interlocutors in the urban environment (host family, schoolmates, religious space) were reviewed.

Results

Plural narratives have emerged that focus on what is experienced but it is suppressed by the universalizing biomedical discourse.

Conclusion

The youth experienced a process of negotiation between universes of meaning, whose synthesis culminated in enhancing the Xavante peoples self-assertion and appropriating their own voice, among others.

Keywords
Ethnopsychology; Health of indigenous peoples; Indigenous peoples; Mental health

O postulado da universalidade do conhecimento científico remonta a Aristóteles e, portanto, à Antiguidade grega (branca), estando na raiz do entendimento tradicional de ciência. Raramente questionada no âmbito das chamadas ciências “naturais”, tal premissa constituiu-se um desafio ao estabelecimento científico das chamadas ciências “humanas”. No caso da psicologia, frequentemente, não hesitou-se em decepar de seu corpo teórico a enorme diversidade de concepções de sujeito e desconsiderar a intrínseca dependência de seus termos teóricos a uma história e cultura próprias, também atreladas às matrizes linguísticas dos seus étimos.

Por outro lado, a resistência a esse processo é coetânea ao surgimento da disciplina, tendo se disseminado e reinventado ao longo da história em uma multiplicidade de terminologias, tal como psicologia dos povos, etnopsicologia, psicologia intercultural, psicologia cultural (há várias) e, mais recentemente, nas chamadas “psicologias indígenas”. Estas, no quadro da tradição anti-hegemônica, dão destaque ao necessário protagonismo dos “nativos” e suas culturas no estabelecimento e desenvolvimentos dos etnosaberes psicológicos; contrapondo-se à presunção de universalismo e correlato etnocentrismo.

Alguns autores têm dado destaque ao fato de que a própria ciência psicológica é uma etnopsicologia, na qualidade de uma psicologia indígena da cultura (europeia e da diáspora branca pela América do Norte) (Lutz, 1985Lutz, C. (1985). Ethnopsychology compared to what? Explaining behavior and consciouness among the Ifaluk. In G. M. White & J. Kirkpatrick (Orgs.), Person, self and experience exploring Pacific ethnopshychologies. University of California Press.). No caso da ciência ocidental hegemônica, Guimarães (2021)Guimarães, D. S. (2021) Psicologia Indígena: multiplicando diálogos. In M. Calegare, P. R. Suárez, G., P. A. Pérez, & L. E. L .Romero (Orgs.), Por los caminos de las psicologias ancestrales nativoamericanas (Vol. 1, pp. 27-49). EDUA. sublinha as raízes míticas do saber científico em psicologia, disfarçadas sob o biombo da pretendida e presumida universalidade. A abordagem etnopsicológica pressupõe diálogo e, mediante o enfoque etnopsicanalítico, previne sobrepor a voz de um comentador ou analista ao jogo das interações discursivas, diminuindo o volume da voz teórica por sobre o caso.

Este artigo não pretende resolver esse complexo desafio teórico, mas chamar a atenção para o efeito de que, em existências concretas, a impessoalidade ou suposta neutralidade diagnóstica pode ter ressonâncias em biografias indígenas, de matrizes culturais que não aquelas em que se formulou a universalidade do etnosaber psicológico ocidental, mediante estudo de caso de um jovem Xavante. O objetivo é, mediante o estudo de um episódio de saúde mental de um indígena em contexto branco, discutir a suposta inocuidade e ou utilidade de categorias diagnósticas supostamente universais, no caso ilustrada pela depressão.

Não se trata de entrar no mérito em si desse diagnóstico, mas de examinar o impacto do seu uso, tendo em vista, no limite, um questionamento de pretensões da ciência psicológica a uma universalidade na ausência de diálogo e contextualização com uma pluralidade de vozes e autorias que, necessariamente, incluem o protagonismo das psicologias indígenas.

Dentro de um quadro de investidas assimilacionistas constantes, a história do povo Xavante (os A’uwê) frente à sociedade envolvente evidencia as paulatinas tentativas de expansão desta sobre seus territórios físicos e simbólicos, material e imaterialmente. Contrapondo-se à narrativa de que os povos indígenas permaneceram indefesos às investidas dos brancos, nesse processo, tal etnia demonstrou extrema habilidade em respondê-las: passou a desenvolver diversas estratégias de relacionamento com os não indígenas, despendendo esforços para um aprendizado mais sistemático de seu universo, com toda a complexidade a ele inerente, e apropriando-se de meios para que se pudessem retomar e fortalecer suas capacidades de ação. Historicamente, a contiguidade com a estrutura nacional deu-se, dessarte, aliada à manutenção e atualização de características culturais próprias, essenciais às suas percepções enquanto sujeitos, além da significação das progressivas transformações em curso, organização das estratégias e ações estabelecidas diante dessas e, por conseguinte, à sua preservação estrutural enquanto sociedade (Gordon, 2014Gordon, C. (2014). Os Xavante e suas circunstâncias. In C. E. A. Jr. Coimbra & J. R. Welch (Orgs.), Antropologia e História Xavante em perspectiva (pp. 11-15). Museu do Índio – Funai.; Lopes da Silva, 1992Lopes da Silva, A. (1992). Dois séculos e meio de História Xavante. In M. Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil. Companhia das Letras.).

Nesse sentido, é possível observar a expansão de características essenciais à organização social e política interna Xavante aos contextos de contato com o universo não indígena (Fernandes, 2012Fernandes, E. R. (2012). “Eles querem é nos por na briga deles!”: Um estudo de caso sobre faccionalismo e estratégias entre os índios Xavante (MT). Campos - Revista de Antropologia, 13(1), 23-39. http://dx.doi.org/10.5380/cam.v13i1.30874
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). Comumente aos demais povos do tronco linguístico Jê, a sociedade Xavante é caracterizada por uma sofisticada rede de relações dualistas, segmentada em metades clânicas opositivas e complementares que, sincronamente, contrapõem-se e estabelecem alianças. Deste modo, é visada a manutenção de uma tensão dinâmica e harmoniosa de forma a beneficiar a coesão do grupo, obedecendo a uma lógica de se “dividir para somar”, em que “o nós” não existe sem “o outro”: “Xavante não existe sozinho” (Fernandes, 2012Fernandes, E. R. (2012). “Eles querem é nos por na briga deles!”: Um estudo de caso sobre faccionalismo e estratégias entre os índios Xavante (MT). Campos - Revista de Antropologia, 13(1), 23-39. http://dx.doi.org/10.5380/cam.v13i1.30874
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; Soares, 2008Soares, J. (2008). Aspectos comuns da organização social Kaingang, Xavante e Bororo. Espaço Ameríndio, 2(1), 44-67.). Os Xavante aparentam, desse modo, ter vasto domínio acerca do jogo sutil e arriscado das relações mutuamente constitutivas entre eu e outro, de forma a manter os “antagonismos em equilíbrio” (Gordon, 2014Gordon, C. (2014). Os Xavante e suas circunstâncias. In C. E. A. Jr. Coimbra & J. R. Welch (Orgs.), Antropologia e História Xavante em perspectiva (pp. 11-15). Museu do Índio – Funai.).

Dentro desse contexto, o povo em questão passou a engendrar processos migratórios para centros urbanos em diversas regiões do país. Sendo a cidade o locus do conhecimento do branco, representação de sua perspectiva, tais processos de imersão urbana se configurariam nos pontos mais intensivos e privilegiados de experimentação e tentativa de controle desse conhecimento, acesso a tal perspectiva (Nunes, 2010Nunes, E. S. (2010). Aldeias urbanas ou cidades indígenas? Reflexões sobre índios e cidades. Espaço Ameríndio, 4(1), 9-30.). A capacidade de obter melhoramentos por meio dos deslocamentos fora da aldeia tornou-se assim qualidade imprescindível na determinação da competência de um líder (Toral, 1986Toral, A. A. (1986). “Xavantaço ou Funailaço?”. In Centro Encumênico de Documentação e Informação. Aconteceu (pp. 344-47). CEDI. [Povos Indígenas no Brasil – 85/86, Especial 17]. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/povos-indigenas-no-brasil-1985-1986
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). Por esse prisma, o cacique Apöena, da Terra Indígena de Pimentel Barbosa, estabeleceu contato e vinculação com um grupo de brancos de Ribeirão Preto/SP, em visita às aldeias, ao final da década de 50 e início da conseguinte. Cognominada a “capital brasileira do agronegócio”, a cidade situa-se em uma região do interior paulistano primordialmente habitada pelos indígenas Caiapós – assim como os Xavante, pertencentes ao tronco linguístico Macro-Jê – dizimados pelas investidas bandeirantes que alicerçaram sua posterior fundação (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, 2013Assembleia Legislativa de São Paulo (2013, Janeiro 14). Ribeirão Preto surgiu como povoamento Caiapó-Bandeirante e rota para Goiás. Alesp. https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=332308
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). Mediante tentativas de expansão agrícola em outras regiões do país que se mostrassem economicamente viáveis, a trajetória de alguns moradores ribeirão-pretanos entrelaçou-se à dos Xavante no centro-oeste brasileiro, possibilitando a reedição das relações anteriormente conturbadas entre os povos em uma aliança sinérgica de respeito mútuo.

Alicerçada a essa proximidade, o líder indígena determinou o envio de oito de seus netos, todos do sexo masculino, para a cidade de origem do grupo. A missão que lhes foi designada tinha como escopo a aprendizagem da língua e a cultura branca sob tutela de famílias não indígenas, as quais, em comum acordo, se dispuseram a zelar pelas crianças e lhes fornecer a educação formal do branco (Franca, 2006Franca, B. (2006). Estratégia Xavante [Vídeo]. Vimeo. https://vimeo.com/216711158
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).

Essa política teve continuidade em tempos recentes. Com o intuito de viver e de se socializar no mundo branco, jovens Xavante residem hodiernamente na cidade de Ribeirão Preto, inseridos em famílias não indígenas. Para efeito do presente escrito, optou-se pelo enfoque numa dessas famílias, que recebeu duas gerações de meninos Xavante. O mais novo destes, em sua trajetória entre os não indígenas, desenvolveu um quadro de intenso sofrimento atravessado por discursos que se complementam ou colidem na tentativa de explicá-lo ou corrigi-lo. Na tentativa de ter acesso à perspectiva do branco, de deter conhecimento a partir de suas lentes, os indígenas acabam por ficarem eles mesmos sujeitos a estes olhares, à interpretação por este sistema conceitual específico de ordenação do mundo.

Através do caso do jovem anteriormente mencionado, o presente artigo tenciona evidenciar como a consideração de múltiplas formas de “tradução” permite vislumbrar um fenômeno indígena em sua complexidade de maneira mais efetiva, em oposição a uma perspectiva universalizante, no caso a psiquiátrica usual. As problemáticas envolvidas na transladação entre dois universos simbólicos mostram-se amplamente patentes no âmbito do tratamento indígena em diversos serviços de saúde permeados pela lógica branca, como exemplificado em Garnelo (2011)Garnelo, L. (2011). Aspectos socioculturais de vacinação em área indígena. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 18(1), 175-190. e Ferreira (2011)Ferreira, L. O. (2011). Jurupari ou “visagens”: reflexões sobre os descompassos interpretativos existentes entre os pontos de vista psiquiátrico e indígenas. Mediações, 16(2), 249-265.. Por conseguinte, acredita-se que a abordagem do caso em relação às diversas interpretações e traduções que o transpassam configura-se uma maneira efetiva de trazer contribuições a este campo.

Método

Foram realizadas entrevistas não estruturadas com o principal personagem do caso, além de seu irmão mais velho – vivente da mesma experiência de trânsito abordada –, membros de sua família branca, e personagens de seu ambiente escolar. Outrossim, foram realizadas imersões em campo em um Centro Espírita frequentado pelos jovens indígenas em questão e sua família branca, no intuito de compreender a inserção e especificidade simbólica do entrevistado, em um quadro de encontros e desencontros interculturais. Todos os diálogos foram estabelecidos na região de Ribeirão Preto, ambiente urbano habitado pelos jovens.

Participantes

No total foram entrevistadas sete pessoas. Dois jovens indígenas, a sua mãe branca, dois colegas de escola e dois participantes do centro espírita frequentado pela sua família branca (escolhida pala família indígena, por ter sido considerada parecida com eles) que, tal como os frequentadores do centro espírita, pode ser descrita como classe média, média baixa. A maioria dos estudantes do colegio particular frequentado pelos jovens é originaria de famílias de classe média, media alta, ou mesmo alta (funcionários públicos, profissionais liberais, empresários).

Procedimentos

Os encontros foram registrados mediante a produção contínua de um diário de campo, contendo as transcrições das interlocuções, observações (para além de sua dimensão visual) impressões e sensações experienciadas. O momento de escrita etnográfica constituiu o estabelecimento de um segundo campo distinto, mas coabitável ao vivenciado na coleta de dados. O diário constitui-se, nessa perspectiva, num relato de si atravessado pelo Outro, através do qual se é capaz de promover uma recriação imaginativa do efeito do campo em sua concretude (Strathern, 2014Strathern, M. (2014). O efeito etnográfico. In F. Ferrari (Ed.), O efeito etnográfico e outros ensaios. Cosac Naify.) e, consequentemente, uma “re-afetação” deste em seu autor.

Análise de Dados

A coleta e análise de dados embasaram-se no método etnopsicanalítico, localizado na confluência entre os métodos psicanalítico e etnográfico. A abordagem etnopsicanalítica conjuga psicanálise e etnografia, de forma tal que nenhuma das abordagens pretende ter acesso a um real em si, o que abre espaço para dar ouvidos a outras cosmologias. A psicanalise da forma como é aplicada nesse dispositivo é apenas um arcabouço metodológico para dar ouvidos a outros mundos e agências diversas do figurino moderno-colonial, sem sobrepor uma voz analítica ao outro. A ideia de inconsciente, levada a sério como uma limitação ao monopólio monológico e cognitivo de qualquer psicologia, sem exceção das hegemônicas, interdita um uso da psicologia como uma arma ao serviço da imposição de um entendimento de mundo colonial e opressivo. Foram consideradas na análise relações e repetições dentre os relatos obtidos, bem como associações livres, conteúdos implícitos, e até mesmo silêncios, conteúdos não efetivamente proferidos. Considerando-se as noções acima descritas, e entendendo-se que o significante em psicanálise é o que perfaz sentido e não mera e exclusivamente algo atrelado à linguagem verbal (Bairrão, 2011Bairrão, J. F. M. H. (2011). Nominação e agência sem palavras: o audível não verbal num transe de possessão. In F. V. Bocca, F. Caropreso, & R. T. Simanke (Orgs.), O movimento de um pensamento: ensaios em homenagem a Luiz Roberto Monzani (pp. 155-172). Editora CRV.), entende-se que pensar nos sentidos dos fenômenos indígenas em suas especificidades sóciocosmológicas, atentando-se às suas diversas formas de expressão e abrindo-se às diversas possibilidades de “tradução”, é factível mediante uma escuta sustentada no exercício da etnopsicanálise em suas bases epistemológicas, antropológica e psicanalítica. A partir dessa escuta, o campo constrói um sentido para a pesquisa e estabelece um lugar para o pesquisador, o que permite lidar com universos diversos, de modo a ultrapassar a tradução do que se apresenta em campo em significados (Bairrão, 2015Bairrão, J. F. M. H. (2015). Etnografar com Psicanálise. Psicologias de um ponto de vista empírico. Cultures-Kairós. Anthropologie et Psychanalyse: Débats et Pratiques. https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.1197
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).

Resultados e Discussão

Os conteúdos aqui descritos foram obtidos, sobretudo, através do contato com o jovem enfocado para o estudo, seu irmão indígena e membros de sua família branca, cujas trajetórias serão brevemente explanadas a fins de contextualização.

V., avó branca do jovem, relata que iniciou o contato com os Xavante em 1984 através de um anúncio na televisão, em que membros da etnia buscavam uma família para abrigar e ficar responsável por C., pai dos dois jovens em situação de trânsito hodiernamente. Na época, V. era recém-casada, estava cheia de dívidas e não pensava em ter filhos. Ao ouvir o anúncio (nem chegou a vê-lo), contudo, foi tomada por uma força que julga ter sido espiritual, e foi ao encontro dos Xavante imediatamente. Já é evidenciado, desde o início, o prisma espírita da visão de V. sobre os fatos que se sucederam, questão importante no entendimento dos conteúdos que surgiram ao longo das entrevistas, além de indicativo da relevância do papel que o Centro Espírita, que a família frequenta, assume nessa relação interétnica estabelecida.

Os Xavante mais velhos escolheram V. por ser parecida com eles (fisicamente, segundo ela). C. (pai) viveu com a família de V. por vinte anos, retornando à aldeia em todas as suas férias escolares. Formou-se em enfermagem e regressou à aldeia como acordado, aplicando os conhecimentos adquiridos em sua formação em prol de seu povo, até vir a falecer pouco tempo depois por causas desconhecidas. O fato parece ter abalado imensamente a família de V., que o relata carregada de intensa emoção, assim como os membros da aldeia de origem, que aguardaram seu retorno por tanto tempo.

C. deixara o primeiro filho, de dois anos e meio, S., e a esposa grávida de cinco meses do segundo filho, também chamado C.. Quando o mais novo deles completara dois anos e meio, a família ficou doente e buscou tratamento em Ribeirão Preto. V. os acolheu em sua casa por cinco anos, quando a mãe retornou à aldeia, deixando os meninos. A história produz seus ecos até a presente geração, em que os jovens filhos seguem o mesmo caminho do pai. No presente estudo pôde-se ouvir o ressoar desse percurso pela voz de S. e de C. (filho).

Através das entrevistas, tomou-se conhecimento de que C. experienciou intenso sofrimento durante sua permanência no ambiente citadino, chegando a automutilar-se e a apresentar indícios de considerar suicídio. Na vivência urbana, foi encaminhado a atendimento psicológico e psiquiátrico. Dentre as categorizações empregadas na descrição desse processo pela medicina eurocêntrica, pode-se observar a descrição da ocorrência de um “quadro depressivo”, um “surto psicótico” e possibilidade de um diagnóstico de “transtorno de personalidade borderline” pelo psiquiatra do jovem. Neste contexto, foi tratado via medicamentos controlados e atendimento psicológico semanal.

O último acompanhamento mencionado possibilitou a C. uma vivência bastante díspar se comparada à dos demais Xavante em situação de sofrimento: segundo o próprio jovem, os demais indivíduos de seu povo guardam seus sentimentos mais “para si, para dentro”, não compartilhando suas angústias com quaisquer pessoas. A inserção do indivíduo Xavante em sociedade, desde sua infância, age de forma a valorizar a força e a coragem, o enfrentamento dos próprios medos, controle da agressividade e balanceamento das emoções. Essas dimensões estão presentes no ambiente que os rodeia (a dureza do cerrado), no ambiente em que habitam (os meninos, quando no , a casa dos solteiros, dormem em camas de taquara revestida com uma esteira, maciça) e nos rituais pelos quais passam sucessivamente (constituídos, majoritariamente, por exercícios corporais de força e resistência física) (Carrara, 2010Carrara, E. (2010). Metamorfose A’uwê (Xavante): o álcool e o devir do sentimento coletivo [Dissertação de doutorado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). Apesar de uma possibilidade diferenciada de auxílio, todavia, C. declarou não ter apreciado o acompanhamento terapêutico.

Não obstante todo o subsídio recebido em contexto citadino, o jovem obteve apenas uma melhora significativa em seu quadro quando decidiu por seu regresso definitivo à aldeia. Antes de fazê-lo, é importante pontuar aqui a existência da primeira e mais difundida forma de significação do processo vivenciado por C. no meio urbano: o da psiquiatria orientada pelo modelo biomédico.

A perspectiva biomédica se sustenta por um prisma universalizante da realidade, fruto do desenvolvimento do pensamento grego incorporado pela tradição ocidental nas grandes frentes de progressão de seu pensamento – a filosofia, a religião cristã e a ciência (Marcondes, 2009Marcondes, D. (2009). Apresentação da edição brasileira. In F. Jullien (Org.), O diálogo entre as culturas: do universal ao multiculturalismo. Zahar.). Neste contexto, a ideia de saúde mental emerge como um bem a ser auferido em um direcionamento totalmente corretivo do que seria o considerado patológico, em um processo de reificação das perspectivas subjetivas (sintomas) desconsiderando as trajetórias culturais e biográficas da pessoa em sofrimento (Ferreira, 2011Ferreira, L. O. (2011). Jurupari ou “visagens”: reflexões sobre os descompassos interpretativos existentes entre os pontos de vista psiquiátrico e indígenas. Mediações, 16(2), 249-265.; Izaguirre, 2011Izaguirre, G. (2011). Elogio ao DSM-IV. In A. Jerusalinky & S. Fendrik (Orgs.), O livro negro da psicopatologia contemporânea (pp. 13-22). Via Lettera.). O acatamento de categorias psiquiátricas universalizantes, desse modo, produz uma prática médica padronizada, anulando especificidades. No caso eleito, optou-se pela atribuição de diagnósticos, prescrição de medicamentos e prática psicológica generalizante, sem consideração às particularidades socioculturais do caso.

A investida assimilacionista inicialmente mencionada no presente escrito prioriza determinada concepção de ser e de mundo, visando aniquilar as que não lhe correspondem, e se perpetua com outras nuances em novas roupagens. Seeger et al. (1987, p. 4)Seeger, A., Da Matta, R., & Viveiros de Castro, E. (1987). A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. In J. P. Oliveira Filho. Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil (pp. 11-29). Ufrj/Marco Zero. discorrem sobre a questão aplicada à área do conhecimento antropológico, mas essa pode ser estendida a muitas outras ciências concernentes a questões humanas:

Por ser básica e central, a concepção do que seja o ser humano que nós, ocidentais, entretemos, tende a ser projetada em algum nível sobre as sociedades que estudamos, com o resultado que as noções nativas sobre a pessoa passam a ser consideradas como ‘ideologia’, enquanto que nossas pré-concepções (sic), não analisadas, vão constituir a base das teorias ‘científicas’.

É importante salientar que, durante as entrevistas, C. jamais se referiu ao seu quadro expressamente como fruto de uma depressão, empregando expressões como “aquela coisa que eu tive” ou “meu problema” para mencioná-lo. Considerando-se a concepção tradicional Xavante de que o ato de nomear é possibilitar a existência de uma coisa, sendo a criação incompleta sem a fala (Lopes da Silva, 2014Lopes da Silva, A. (2014). Praticas Sociais e ontologia na nominação e no mito dos Akwẽ- Xavante. In C. E. A. Jr. Coimbra & J. R. Welch (Orgs.), Antropologia e História Xavante em perspectiva (pp. 107-122). Museu do Índio – Funai.), a recusa pela referência à categorização biomédica branca pode assinalar um cuidado com a linguagem que traduz também um meio de resistência política e cultural a uma forma de conhecimento colonizadora.

As concepções e tratamentos do modelo biomédico produzem efeitos em nossas enfermidades também porque é desta forma que é estruturada a nossa realidade: o academicismo e cientificismo podem ser lidos como os equivalentes do mito coletivo na sociedade ocidental. Cabe questionar, então, qual seria a eficácia dos símbolos que constituem este mito em um indivíduo que não está inserido nessa lógica ou, no caso aqui abordado, que se encontra em trânsito entre uma diversidade desses sistemas.

Além disso, o universo branco é também um caleidoscópio multifacetado. Assim como alguns outros viventes da experiência engendrada pela estratégia Xavante, C. frequentou um Centro Espírita juntamente a sua família branca na região de Ribeirão Preto. A Casa em questão difere das demais pelo uso recorrente de metáforas e símbolos da natureza em suas atividades. Através dessas correspondências simbólicas, conceitos naturais, tais como a vegetação, clima e topografia, simbolizam processos psicológicos como identidade, aprendizagem, sentimentos e comportamentos (Jorge, 2020Jorge, R. S. (2020). Natureza e espiritualidade em um centro espírita kardecista [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade de São Paulo.). A afinidade com os elementos da natureza parece ter facilitado uma aproximação entre os dois grupos.

O discurso espírita proveniente deste sistema é enunciado principalmente por V. – como anteriormente mencionada, avó branca do jovem, que recebera também seu pai anos antes de modo a concretizar a estratégia Xavante – quando se tratando do quadro de sofrimento experienciado pelo neto indígena:

É o que a gente fala de estar de verdade ajustado com o planejamento, né? Então, porque que ele teve isso? Porque ele ‘tava’ fora do planejamento dele. Então, a força de um planejamento reencarnatório faz isso. Essa foi uma prova, porque ele estava tomando remédios muito fortes.

(V., a avó branca do jovem)

Planejamento reencarnatório refere-se ao princípio espírita em que o próprio espírito ou outro mais avançado nas questões de moralidade e conhecimento delineia seu plano para a vida – envolvendo seus escopos e provações – como reencarnante, prevendo apenas os principais acontecimentos que poderão ocorrer no mundo físico e ligando-se às consequências de um livre-arbítrio parcial (visto que nada ocorre sem a permissão de Deus) (Rocha, 2020Rocha, C. (2020). Estudo sistematizado da doutrina espírita: programa fundamental. FEB.). Dentro dessa perspectiva, para além da missão designada pelos Xavante, o jovem faria parte de uma ainda maior, referente a linha em que deve seguir rumo à sua evolução espiritual.

Outros fatores foram incluídos nessa equação ao longo da trajetória de C., englobando sistemas que propiciaram aproximações com a visão indígena de mundo. Verifica-se, nesse sentido, o ingresso do jovem em uma instituição de ensino antroposófica, corrente pedagógica que apresenta paralelos com a aprendizagem Xavante1 1 Vide Fernandes (2013) na questão da importância da dimensão corporal na aprendizagem Xavante e Carrara (2002) acerca da relação com a natureza na educação desse povo. , na medida em que promove uma valorização e aproximação estreita com a natureza, desenvolvendo atividades direcionadas à integração entre homem e ambiente – embasando-se em uma perceção desses sistemas como coordenados e constituintes de um sistema organizado, não hierarquizado – e a inclusão da dimensão corpóreo-sensorial na aprendizagem, em atividades empíricas e estimulantes da dimensão do fazer, pensar e sentir (Oliveira, 2006Oliveira, F. M. C. (2006). A relação entre homem e natureza na pedagogia Waldorf [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade Federal do Paraná.).

Tais aproximações, paradoxalmente, pareciam fazer C. sentir ainda mais o distanciamento de seu povo, na medida em que este foi se apropriando dos elementos tradicionais culturais Xavante em suas visitas à Terra Indígena durante o período de férias. Foi após uma excursão promovida pela escola para as cavernas do Petar que o jovem decidiu, pela primeira vez, pelo retorno a sua aldeia de origem, como relatado por N., uma colega de sua sala:

Nós fomos às cavernas e tinha cavernas com árvores e tal, e pra andar na maioria das cavernas a gente só usava uma lanterna na cabeça. Foi um momento que a gente tava muito em contato, assim. Encostando muito nas pedras, nas cavernas, passando por dentro, mesmo com roupa se molhando e tal, dava pra ver que... eu conseguia reparar pelo menos que ele fazia isso com muita normalidade, sabe, gostando de fazer isso. Mas... eu não... mas na viagem, assim, ele não comentou nada sobre a tribo, nada. Quando a gente voltou de viagem, dois dias depois que todo mundo tava indo pra aula e tal ele começou a faltar.

Após alguns dias, C. compareceu à sala de aula informando que a viagem o lembrara muito de casa, de sua mãe e, por isso, havia optado por partir. Retornou a Ribeirão Preto pouco tempo depois e, após mais um semestre, reiterou sua decisão. Proximamente a esse segundo momento de retorno, o jovem havia passado por um importante processo inerente aos homens Xavante, composto por diversos rituais determinantes na transformação e entrada na vida adulta. No caso de C., esse processo simbolizou não apenas uma mudança em seu grupo de idade, mas em sua auto-imagem e concepção de ser: havia encontrado seu espírito a’uwe, se descoberto, de fato, um Xavante.

Participara do ritual culminante de todo esse trajeto, o de furação de orelhas, evento que marca a passagem de determinado grupo de idade da condição de jovens para adultos, homens plenos. A furação das orelhas representa o poder de transformação característico da sociedade Xavante, visto que os adolescentes tornam-se nele pessoas com papéis socialmente definidos na comunidade, logo se tornando nominadores, pais e com capacidade de participar da vida política da aldeia (Fernandes, 2010aFernandes, E. R. (2010a). Do Tsihuri ao Waradzu: o que as ideologias xavante de concepção, substância e formação da pessoa nos dizem sobre o estatuto ontológico do outro? Horizontes Antropológicos, 16(34), 453-77.). O ritual em questão é precedido pela reclusão no , a casa dos solteiros, que dura aproximadamente cinco anos, e pelo Wate’wa, uma cerimônia de duração aproximada de um mês, em que os jovens permanecem realizando movimentos na água durante quase todo o tempo, parando por vezes para descansar e comer alimentos específicos. C. conta que conseguiu participar do Wate’wa tranquilamente, acreditando não ter tido mais dificuldade se comparado aos outros e ressaltando que podia sair da água para descansar quando quisesse.

Como discorrido inicialmente, a cosmopráxis Xavante volta-se a uma abertura para o outro, de forma a transformar o Outro em Eu, mais do que seu inverso (Fernandes, 2010aFernandes, E. R. (2010a). Do Tsihuri ao Waradzu: o que as ideologias xavante de concepção, substância e formação da pessoa nos dizem sobre o estatuto ontológico do outro? Horizontes Antropológicos, 16(34), 453-77.; 2010bFernandes, E. R. (2010b). Cosmologias indígenas, exterioridade e educação em contexto culturalmente diferenciado: um olhar a partir dos Xavante, MT. Tellus, 10(19), 97-110.; 2015Fernandes, E. R. (2015). Alimentação, corporalidade e doença: regimes de subjetivação do outro a partir de um estudo entre os índios Xavante (Mato Grosso, Brasil). Tessituras, 3(2), 301-24. https://doi.org/10.15210/tes.v3i2.5922
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). A partir deste pressuposto, pode-se inferir que a esfera pública e ritual de C. na cidade é concretamente outra, se comparada à encontrada na aldeia. C. está entre os brancos, no universo dos brancos, seguindo seu cotidiano e suas regras. Mas considerando-se as ideias acima descritas, é possível depreender que as vivências de C. na cidade passam, em certa medida, por essa transformação do Outro em Eu. C. não deixa, desse modo, de vivenciar sua vida pública e ritual quando na cidade, mas pode o fazer de modo a “traduzir” essa vivência a partir da cosmologia Xavante. De qualquer maneira, essa transformação pode ser custosa, principalmente se considerarmos que juntamente a essa transposição se carregam todas as obrigações, deveres, a cobrança de si mesmo e dos outros, inerentes à vida pública da aldeia.

Da mesma forma que os jovens Xavante, através de rituais que exigem elevadas condições físicas, resistência e tônus muscular, como os mencionados anteriormente, dedicam-se à fabricação de um corpo guerreiro e caçador, ou seja, um corpo adulto; C., possivelmente ressemantizando essa passagem da fase infantil para a vida adulta, almejava obter melhores desempenhos e notas em suas avaliações escolares e, por isso, se cobrava em demasia. Ou seja, em vez de um corpo fortificado, fabricava o seu fortalecimento intelectual.

Nesse sentido, em sua vivência na cidade, C. tem sua esfera exterior evidenciada e sublinhada: considerando-se a representação dessa pela esfera pública e ritual, pelo nome, pelo parentesco (Fernandes, 2015Fernandes, E. R. (2015). Alimentação, corporalidade e doença: regimes de subjetivação do outro a partir de um estudo entre os índios Xavante (Mato Grosso, Brasil). Tessituras, 3(2), 301-24. https://doi.org/10.15210/tes.v3i2.5922
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), pode-se atestar o fato de que o jovem, por ser filho de lideranças, tem uma forte carga agregada a esses aspetos, e junto a ela as responsabilidades, compromissos e deveres, que são transportados a sua vida citadina. Ele deve cumprir o que é esperado, afinal, de um filho de lideranças, cumprir sua “missão” no contato com o mundo branco.

O jovem contou, ainda, que quando ia à aldeia anteriormente sentia-se um pouco entediado, atestando não ter muitas atividades para se ocupar, e ressaltando que na vivência do cotidiano da aldeia cada um determina seu tempo de fazer suas atividades. Nessas ocasiões, havia até pedido para voltar para Ribeirão Preto. Tal cenário é contrastado com a vivência citadina, apresentada por ele como repleta de horários, prazos, “correria”, pressão. Também levando seu próprio tempo, C. (filho) relata o contraste encontrado em seu meio de origem:

Aí lá é meio solto, cada um faz… sua hora, seu tempo. Tipo… tipo… lá os homem, tipo, vai caçar. Eles vão de manhã, aí fica até… até a tarde, volta tarde… no pôr do sol. Aí que nem a mulher, leva roupa pra lavar, lava no rio, um monte. Não tá nem aí com a hora. Ela… ela não se importa. Ela lava devagar, no tempo dela. Até… uma hora, uma certa hora.

Na medida em que fora se apropriando do universo indígena, C. conta que, durante o cotidiano escolar, acordava às 5:00 da manhã (mais cedo que o necessário) para conseguir fazer as coisas com calma, em seu tempo, inserido em uma sociedade que não respeita essa dimensão, por sempre acelerá-la ou tentar controlá-la. Os horários, o “compromisso”, são explanados pelo próprio e por seu irmão mais velho como uma das maiores dificuldades na vivência do universo branco. A eliminação de tais reguladores que, de certa forma, vem a limitar e exercer pressão sobre os modos de vida dos jovens, pode apresentar-se como um importante fator para a reversão do quadro. A experiência do tempo Xavante é agora vista como positiva pelo jovem, que dedica-se a atividades como o capinar, à qual tem muito apreço, sem demais preocupações. Retomando as relações simbólicas envolvidas, a proximidade entre alguns pontos das duas mundividências envolvidas – Xavante e antroposófica – pode ter vindo, por outro lado, a salientar ainda mais suas divergências durante esse processo.

Outro elemento importante na trajetória de C. se dá logo em sua concepção: a nominação. De acordo com o próprio jovem, a eleição de seu nome como sendo o mesmo do pai teria sido resultado do desejo de V., em gesto de afeição ao filho falecido. Ao ser introduzido à linguagem pela nominação, desse modo, o jovem foi inserido em uma rede de significantes articulada ao contexto existencial Xavante, posicionado em determinado lugar discursivo (Mariani, 2014Mariani, B. (2014). Nome próprio e constituição dos sujeitos. Letras, 48, 131-141.), sobretudo relacionado à marcante memória do seu pai, tanto para o seu povo como para a família branca que acolheu a ambos. Seu nome próprio carrega consigo, portanto, múltiplos efeitos de significação, refratáveis segundo as leis de associação pertinentes aos dois universos em que transita, tendo a capacidade de evocar diversos sentidos naqueles com quem se inter-relaciona (Silva et al., 2017Silva, L. C., Carvalho, I. S., & Chatelard, D. S. (2017). Considerações sobre a noção de nome próprio em Lacan: entre o significante e a letra. Cadernos de Psicanálise, 39(36), 161-174.) e, em decorrência, nele próprio.

No que se refere à tradição do sistema de nominação Xavante, é comum a prática do recebimento de nomes dos antepassados por novas gerações de homens, uma herança transmitida por meio de laços preexistentes de parentesco. Vivos e mortos são postos em oposição, sem que deixe de existir continuidade e comunicação entre eles, na qual os nomes seriam meios e produtos. O sistema de nominação masculina Xavante, portanto, sublinha mais do que a identificação, a continuidade entre as gerações envolvidas (Lopes da Silva, 2014Lopes da Silva, A. (2014). Praticas Sociais e ontologia na nominação e no mito dos Akwẽ- Xavante. In C. E. A. Jr. Coimbra & J. R. Welch (Orgs.), Antropologia e História Xavante em perspectiva (pp. 107-122). Museu do Índio – Funai.). Nesse sentido, há possivelmente certo descompasso estrutural entre as lógicas Xavante de nominação e aquela que embasou o desejo de V., implicando cada qual em diferentes repercussões na vivência do jovem.

V. relata receber, por vezes, comunicações espirituais de C. (pai), dentro de uma lógica espírita que, dessarte, o presentifica a todo o momento no cotidiano familiar – seja pelo espírito, seja pelo nome, transmitido a C. (filho). Em oposição à lógica Xavante, segundo a qual vida e morte devem permanecer distintas e distantes – o que os impede, inclusive, de pronunciar o nome de um ente falecido recentemente, pois isso poderia o trazer de volta à vida, dificultando sua chegada à aldeia dos mortos (Lopes da Silva, 2014Lopes da Silva, A. (2014). Praticas Sociais e ontologia na nominação e no mito dos Akwẽ- Xavante. In C. E. A. Jr. Coimbra & J. R. Welch (Orgs.), Antropologia e História Xavante em perspectiva (pp. 107-122). Museu do Índio – Funai.) – a nominação de C. na lógica branca aproxima essas duas dimensões, a serviço da corporificação de uma memória, uma identificação, mais que uma continuidade.

Em outro âmbito, ainda, a figura de C. (pai) está entrelaçada a uma rede de sentidos perpetuados e difundidos dentro de sua comunidade. Segundo V., muitos indivíduos das aldeias de origem adoeceram profundamente após a sua morte, não tendo se recuperado, ao menos, até à época de seu depoimento. Neste contexto, a questão da “depressão” aparece como um problema coletivo das aldeias Xavante diante da morte de entes queridos. No caso de C. (pai), a comoção foi tamanha que, no dia do ocorrido, houve tentativas de invasão do hospital em que estava sendo tratado, mediadas por V..

O contexto que sucede seu nascimento e atravessa sua nominação pode ter implicações diretas na vivência de C., sobretudo no que se refere à missão a ele designada, a mesma traçada para o pai anteriormente: a vivência entre os brancos. As expectativas já existentes para com os jovens a que é designada tal tarefa já é relatada por seu irmão mais velho, S.:

Não, mas na verdade tem um pesinho. Porque cê estuda, cê vem pra cidade, porque todas as pessoas que são cacique lá, hoje, são pessoas que vieram estudar. Estudou aqui na cidade e foram pra lá. Então tem um pouquinho de peso porque eles esperam que a gente ajude.

No caso de C., sobretudo, além da expectativa comum, existe a força da memória do morto atualizada pela identidade do nome, que permeia sua constituição como sujeito desde antes do nascimento. As implicações destes ecos em sua vivência de distanciamento de seu povo e repetição da trajetória do pai podem fazer emergir muitas angústias, uma identificação somada em contrastividade a um desejo de diferenciação, de protagonismo da própria voz. Pode-se pensar na ênfase atribuída também pelas sociedades ameríndias à noção de indivíduo tomado por seu lado coletivo, em uma relação complementar e reativa à realidade social (Seeger et al., 1987Seeger, A., Da Matta, R., & Viveiros de Castro, E. (1987). A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. In J. P. Oliveira Filho. Sociedades Indígenas e Indigenismo no Brasil (pp. 11-29). Ufrj/Marco Zero.). Tal dimensão foi também explorada por Carrara (2010)Carrara, E. (2010). Metamorfose A’uwê (Xavante): o álcool e o devir do sentimento coletivo [Dissertação de doutorado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. entre os Xavante no que se refere a um sentir individual que é também coletivo, alicerçado pelo eixo físico e, logo, um sentir vivenciado e expresso no corpo. A expressão da dor de C. pelos cortes pode, isso posto, relacionar-se a esta dor coletiva a que está ligado pelo povo e pelo nome, em um modo de vivenciá-la que apenas superficialmente se confunde com o luto pelo morto experimentado na lógica branca, mais especificamente espírita, centrada em planejamentos reencarnatórios individuais.

Extrapolando a questão da dor coletiva, a experiência de trânsito de C. em sua totalidade pode ser vista, outrossim, como um ensaio de resposta às indagações de seu povo que motivaram a missão de sua vinda, relativas à complexidade da negociação entre dois mundos na condição de fronteira com o universo branco, que impõe ao povo sua extinção ou recriação. O enredamento dos universos envolvidos e certas angústias que advêm dessa relação são encarnadas na trajetória do jovem, mas dizem também respeito à totalidade do povo.

É também pelo coletivo que se realiza uma atividade tida como de extrema importância para a melhora de seu quadro. A certa altura várias casas da aldeia da mãe, inclusive a sua, pegaram fogo devido à época de ventos, que levaram brasa à palha. Perdeu-se quase tudo, inclusive seus medicamentos, com o acidente. Após o ocorrido, construíram uma pequena morada com a ajuda da família e o jovem explicou detalhadamente o processo de construção de uma casa nos moldes da aldeia. Conta que foi um processo muito cansativo, mas satisfatório, pois aprendeu como se constrói uma habitação, onde tem madeira, entre outras habilidades, o que o deixou feliz. V. retomou o fato em outra entrevista, e disse ter certeza de que o fato de C. ter trabalhado muito na reconstrução de sua casa foi muito importante em sua recuperação, da “saída desse momento da depressão”. Segundo ela, foi uma ocasião em que acredita que C. se sentiu útil, trabalhou muito, se empenhou, e pode “se misturar mesmo” com os outros membros da aldeia. Sobre as habitações Xavante, Lopes da Silva (1983, p. 55)Lopes da Silva, A. (1983). Xavante: Casa-Aldeia-Chão-Terra-Vida. In S. Novaes (Org.), Habitações Indígenas. Livraria Nobel. discorre:

A casa Xavante é, enfim, o lócus da reprodução por excelência - e, nesse sentido, ela parece partilhar uma característica básica com outras casas, de outros muitos povos. É o espaço de repouso, do aconchego e da intimidade; da comida e da reposição de energias; dos carinhos e dos filhos. É na casa, por alguns momentos vazia de homens, que nascem as crianças. Amparada por outras mulheres queridas e experientes, uma mulher tem, de cócoras, o seu filho. E é no chão da casa, no ponto onde de manhã cedo o sol bate primeiro, que ela enterra a placenta e o sangue, selando, assim, seu compromisso com esse espaço que é seu e com a vida.

Destaca-se com a última frase, a forma de apropriação e vínculo territorial pelos Xavante expressa em sua microcosmologia. A casa vem, portanto, carregada de significado para a história de C., tanto pelas atividades que abriga na vida cotidiana da aldeia (principalmente o que diz respeito às relações familiares), quanto por traduzir a vinculação com o território, questão tão importante na trajetória do jovem. Neste ciclo de destruição através do fogo e reconstrução da habitação, morte e renascimento, C. pode, juntamente a seu povo, edificar seu novo lar, um lugar que pode reconhecer como pertencente a si e a ele pertencido.

A inovadora estratégia engendrada pelos Xavante como forma de resistência, perpetuação e renovação implica formas excepcionalmente complexas de ser no mundo, de existir e de estar com o outro. Podemos observar nas sociedades ameríndias, em que o interior e a identidade encontram-se hierarquicamente englobados pela exterioridade e pela diferença (Viveiros de Castro, 1992Viveiros de Castro, E. (1992). O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, 35, 21-74. http://dx.doi.org/10.11606/2179- 0892.ra.1992.111318
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), um destaque para a importância da alteridade na construção do seu ser e sua perspectiva. No caso dos Xavante, a abertura para o outro está intrinsecamente atrelada à construção de sua cosmopráxis: ao deparar-se com eventos e conhecimentos externos ao contexto ontológico Xavante, é feito um movimento em que suas explicações cosmológicas, míticas e históricas se voltam para essa exterioridade, abrangendo-a e posicionando-a em perspectiva de si, mais do que em oposição a si. Os sistemas explicativos, dessa maneira, fundem-se gerando uma nova cosmologia, ainda Xavante, agora renovada em um processo análogo a uma “xamanização” da realidade (Fernandes, 2010aFernandes, E. R. (2010a). Do Tsihuri ao Waradzu: o que as ideologias xavante de concepção, substância e formação da pessoa nos dizem sobre o estatuto ontológico do outro? Horizontes Antropológicos, 16(34), 453-77.; 2010bFernandes, E. R. (2010b). Cosmologias indígenas, exterioridade e educação em contexto culturalmente diferenciado: um olhar a partir dos Xavante, MT. Tellus, 10(19), 97-110.; 2015Fernandes, E. R. (2015). Alimentação, corporalidade e doença: regimes de subjetivação do outro a partir de um estudo entre os índios Xavante (Mato Grosso, Brasil). Tessituras, 3(2), 301-24. https://doi.org/10.15210/tes.v3i2.5922
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).

Nesse sentido, Carneiro da Cunha (1999, p. 227)Carneiro da Cunha, M. (1999). Xamanismo e tradução. In A. Novaes (Org.), A outra margem do ocidente (pp. 223-235). Companhia das Letras., dissertando sobre a questão da tradução no fenômeno do xamanismo, a descreve como ultrapassando o âmbito da simples ordenação, uma tarefa de arrumação de “guardar o novo em velhas gavetas”. Trata-se antes de um remanejamento, de uma disposição dos símbolos e códigos em ressonância, frutificando um novo sentido, para além da noção de um sistema de significação absoluto para o qual todas as linguagens (no presente caso não tratadas como restritamente referentes ao verbal) confluem.

Os instrumentos conceituais tradicionais são utilizados em benefício da reunião de mais de um ponto de vista, tendo o xamã, em contato com mundos disjuntos e alternativos, a possibilidade de vislumbrar múltiplos discursos, colocar-se em perspectiva (Carneiro da Cunha, 1999Carneiro da Cunha, M. (1999). Xamanismo e tradução. In A. Novaes (Org.), A outra margem do ocidente (pp. 223-235). Companhia das Letras.). Analogamente, os indígenas inseridos em meio urbano, sobretudo os viventes da experiência de trânsito entre estes e suas respectivas aldeias de origem, em contato com mundos física e culturalmente díspares, podem ter suas ações produzidas e entendidas sob um ponto de vista resultante desses sistemas conceituais.

Ademais, tem-se que esse processo de “xamanização” estaria por sua vez submetido ao desígnio de uma “xavantização”, ou seja, à produção de efeitos de ser Xavante. Através de tal processo, se promove uma reinterpretação e reconcatenação em termos de uma lógica de perpetuação de “ser Xavante”, na tentativa de assegurar que as mudanças e adaptações sobrevindas não se configurem subordinadas ao desejo branco de universalismo e anexação.

Dessa forma, com o intuito de preservar um espaço de identidade Xavante para além da superfície fenomênica das adaptações, a ação de “tradução” direciona-se à assimilação da “realidade branca” instituída pelo desejo civilizacional branco, de modo a ser deglutida pelo ser Xavante. O processo descrito entra em consonância com a sintaxe da realidade indígena: a preservação de um modo de vir a ser próprio que é orientado também ao tornar-se outro.

Se houver alguma perspectiva universalizante em psicologia, esta certamente não será encontrada na direção da generalização de categorias diagnósticas e clínicas previamente configuradas e supostamente transculturais (Fernandes & Calegare, 2018Fernandes, F. O. P., & Calegare, M. G. A. (2018). Psicologia e povos indígenas: breves apontamentos sobre as produções em psicologia e a constituição da pessoa Yepa Mahsã. In M. G. A. Calegare & R. Albuquerque (Orgs.), Processos psicossociais na Amazônia: reflexões sobre raça, etnia, saúde mental e educação (pp. 84-107). Alexa Cultural.). Embora esses enfrentamentos mobilizem não apenas “indivíduos empíricos, pois também reverberam memórias sociais, estereótipos, remorsos, preconceitos, atrações, temores, fascínios e vertigens que vão além da sua limitada individualidade e curto ciclo de vida” (Macedo & Bairrão, 2011Macedo, A. C., Bairrão, J. F. M. H., Mestriner, S. F., & Mestriner Junior, W. (2011). Ao encontro do Outro, a vertigem do eu: o etnopsicólogo em equipes de saúde indígena. Revista da SPAGESP, 12(2), 85-96., p. 94), as proposições teóricas, metodológicas e práticas da Psicologia precisam ser revistas e refeitas em estreita colaboração com comunidades e pessoas indígenas (Guimarães, 2021Guimarães, D. S. (2021) Psicologia Indígena: multiplicando diálogos. In M. Calegare, P. R. Suárez, G., P. A. Pérez, & L. E. L .Romero (Orgs.), Por los caminos de las psicologias ancestrales nativoamericanas (Vol. 1, pp. 27-49). EDUA.).

Mostra-se necessário ter em vista que “uma psicologia efetivamente transformadora e progressista deve recuar as suas intervenções ao plano mesmo das coisas e do acontecido, não ficando apenas no patamar do seu significado histórico e psíquico” (Bairrão, 2017Bairrão, J. F. M. H. (2017). Protagonismo epistêmico dos povos indígenas: o papel da etnopsicología. Psicologia para América Latina, (Special), 53-62., p. 55), sob pena de se situar aquém do patamar ontológico requerido. Neste sentido, independentemente das intenções, os resultados das intervenções podem se tornar deletérios, na medida em que “quando não há diálogo com as etnoteorias psicológicas nativas [...] o indígena é destituído da sua compreensão de si e do mundo que habita e deste modo destruído no âmago do seu ser” (Bairrão, 2017Bairrão, J. F. M. H. (2017). Protagonismo epistêmico dos povos indígenas: o papel da etnopsicología. Psicologia para América Latina, (Special), 53-62., p. 53). Na luta pela reversão deste quadro, a psicologia tem o papel fundamental de buscar construir diálogos para a produção de referências que incluam a participação indígena, reconhecendo-os como sujeitos da própria história.

Considerações Finais

O caso em pauta patenteia quatro pontos cruciais para o advento e constituição de perspectivas indígenas em psicologia: o necessário protagonismo indígena na filtragem dos processos linguísticos e diagnósticos a que é submetido; a dimensão performativa e política da linguagem supostamente técnica e neutra em psicologia; o pseudonaturalismo de categorias diagnósticas, que não podem transitar incólumes entre realidades distintas; e a dimensão (intrinsecamente política), mais propriamente ontológica do que psicológica, em que tais embates se travam. Estão em pauta não meramente conteúdos subjetivos, mas mundos efetivamente vividos, mundividências diversas, que no caso dos contextos indígenas, como nossos interlocutores nunca se cansam de lembrar, envolvem para além de corpos e subjetividade, por exemplo, territorialidades.

A estratégia Xavante, engendrada há muitos anos e desempenhada até a hodiernidade, direciona jovens a uma espécie de “experimento social”. Analogamente, pode-se pensá-la como uma espécie de “etnografia reversa”, experiência em que o indígena imerge profundamente na sociedade envolvente para nela ter a possibilidade de aprender, conhecer, experimentar. Um trabalho de pesquisa ao qual dedicam suas existências, uma imersão radical que ultrapassa a mera sobrevivência e que, portanto, provoca perturbações ainda mais intensas no contato do “pesquisador” com a outra realidade que passa a vivenciar. Perturbações diversas para cada um deles, que se expressam em suas trajetórias, emoções e até mesmo em seus corpos.

O presente estudo constrói-se em uma confluência entre etnografias, uma etnografia que se debruça sobre uma “etnografia reversa”. Compõe-se em uma tentativa de traduzir as questões de tradução enfrentadas pelo jovem abordado. Dados esses entrelaçamentos e embaraços, desvendar as questões de tradução e seus limites pode configurar-se um exercício nebuloso na própria construção da pesquisa, enfrentando-se o risco de engessar a fala indígena em nossas concepções e interpretações e, possivelmente, para os próprios jovens do caso, localizados na linha de transição entre um multifacetado universo branco e a cosmologia Xavante.

Como se intencionou expor no presente artigo, a assunção de uma perspectiva universalizante para tratar desta complexidade faz aflorar inúmeros perigos de captura do Outro indígena, sobrepõe uma das vozes componentes desse encontro sobre a outra em uma nova forma de assimilacionismo. Há uma infinidade de prismas pelos quais se pode abordar essas interações dos povos indígenas com o meio branco. Devemos anteferir aquelas que levem em consideração as suas especificidades – os regimes de subjetivação daquela etnia, seu modelo de sociedade e a sociocosmologia a elas inerente. Em um caso como esse, ainda, perpassado por múltiplos horizontes simbólicos, a construção de um olhar sobre o fenômeno que diligencie esforços a fim de alinhavar todos os retalhos envolvidos tende a produzir um tecido muito mais rico e fértil, que faça jus a sua complexidade.

A melhora de C. é descrita pela medicina como uma impressionante exceção (visto a saída célere de um quadro grave, ainda diante da perda dos medicamentos pelo fogo); por sua avó branca como resultado de uma proteção aferida por “espíritos bons”; por seus próprios relatos como a retirada de uma lógica temporal e exterior ocidental para o retorno à vivência indígena em seu cerne. Caberia eleger uma leitura hegemônica, auto-suficiente na explicação do fenômeno, mais correta dentre as demais? Contrariamente, o mais prudente parece condescender que ressoem todas essas vozes, possibilitar a contínua reverberação dessas enunciações tal como se propõem, para então, mais do que atribuir significados, escutá-los.

No esforço despendido no presente artigo, de provocar a emersão de todas essas variadas vozes, busca-se também reconstruir o trajeto apresentado pelos olhos do “antropólogo reverso” que é o jovem Xavante, imerso nessas mesmas vozes. Vozes de um colorido multicultural que, ora chocam-se, ora confluem-se, extrapolando a habitual e histórica conflagração de seus encontros. Suscitam conflitos, mas permitem alianças, solidificam elos. O jovem Xavante recebe essas vozes, as filtra, pondera, recebe seu impacto. Não fica, entretanto, à deriva em meio a elas, subjugado aos seus desígnios. É protagonista de sua história e deve ser tratado como tal.

Sobretudo, tratando de questões relativas à saúde mental – com implicações tão relevantes e comumente tão impregnadas pelo discurso universalizante eurocêntrico – a consideração dessas nuances sublinha-se relevante para um exercício profissional crítico, englobante dos interlocutores em suas especificidades socioculturais e capaz de contribuir efetivamente em suas trajetórias individuais e coletivas.

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    Vide Fernandes (2013)Fernandes, E. R. (2013). Contexto e corporalidade nas pesquisas em educação indígena: algumas reflexões. CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, 7(15), 54-60. na questão da importância da dimensão corporal na aprendizagem Xavante e Carrara (2002)Carrara, E. (2002). Um pouco da educação ambiental Xavante. In A. Lopes da Silva (Org.), Crianças indígenas: ensaios antropológicos (pp. 100-116). FAPESP. acerca da relação com a natureza na educação desse povo.

Agradecimentos

Agradecemos aos entrevistados e a todos os membros do Laboratório de Etnopsicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

  • Como citar esse artigo: Campos, M. C., & Bairrão, J. F. M. H. (2024). A propósito do universal deprimente: estudo de um caso de resistência ameríndia à captura biomédica. Estudos de Psicologia (Campinas), 41, e230089. https://doi.org/10.1590/1982-0275202441e230089pt
  • Apoio

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo nº 2018/16016-7).

Referências

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  • Bairrão, J. F. M. H. (2017). Protagonismo epistêmico dos povos indígenas: o papel da etnopsicología. Psicologia para América Latina, (Special), 53-62.
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Editado por

Editor

Danilo Silva Guimarães

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    13 Maio 2024
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