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Estado funcional de crianças e adolescentes com COVID-19 em um hospital de referência no sul do Brasil

Resumo

Introdução

A COVID-19 pode deixar sequelas impor-tantes, como declínio funcional.

Objetivo

Avaliar a funcionalidade dos pacientes pediátricos internados com COVID-19 e correlacionar com variáveis clínicas.

Métodos

Estudo longitudinal retrospectivo e prospectivo, com pacientes pediátricos com COVID-19. Os dados de internação hospitalar foram coletados a partir da revisão de prontuários e os dados pós-alta através de contato telefônico. A funcionalidade foi avaliada através da Escala de Estado Funcional Pediátrica (FSS-Brasil) em três momentos (admissão, alta e pós-alta hospitalar). A correlação entre as variáveis contínuas foi avaliada pelo teste de Spearman e utilizou-se o modelo linear com equações de estimação generalizada para verificar as diferenças nas proporções de ocorrência de prejuízo funcional (FSS-Brasil ≥ 8) nos diferentes momentos do estudo e na presença de doenças prévias.

Resultados

Foram incluídos 232 pacientes, 56% do sexo masculino, mediana de 5 anos de idade. Foram obtidos dados de seguimento pós-alta hospitalar de 70 (30,2%) crianças. O escore global médio da FSS-Brasil foi de 7,3 na admissão, 6,8 na alta e 6,8 após a alta. A funcionalidade apresentou-se adequada nos três momentos de avalia-ção em 75% da amostra. A necessidade de suporte ven-tilatório não foi correlacionado com a funcionalidade, e o tempo de internação e oxigenoterapia apresentaram correlações fracas com a funcionalidade. A inexistência de doenças prévias reduziu em 94% o risco de prejuízo funcional.

Conclusão

A maioria das crianças manteve funcionalidade adequada. Não ter doenças prévias foi um fator de proteção para o prejuízo funcional em longo prazo.

Criança; COVID-19; Estudo longitudinal; Estado funcional; Pediatria

Abstract

Introduction

COVID-19 could leave important consequences, including functional decline.

Objective

Eval-uate functional status in pediatric patients hospitalized with COVID-19 and correlate with clinical variables.

Methods

Prospective and retrospective longitudinal study with patients with COVID-19. Hospitalization data were collected from medical record review and post discharge data were collected by telephone contact. Functional status was evaluated by Functional Status Scale (FSS-Brazil) in three moments (hospital admission, hospi-tal discharge and after hospital discharge). Spearman test was used to correlate continuous variables and the linear model with generalized estimation equations was used to verify differences in the proportion of functional impairment occurrence (FSS-Brazil ≥ 8) at different mo-ments of the study and previous disease presence.

Results

It was included 232 patients, 56% male, median age of five years old. Seventy (30.2%) patients had post discharge data. The mean global score of FSS-Brazil was 7.3 at hospital admission, 6.8 at discharge hospital and 6.8 after discharge hospital. Functional status was adequate in the three different moments evaluated in 75% of the sample. The ventilatory support needed was not correlated with functional status and the length of hos-pital stay and oxygen therapy showed weak correlations with functional status. Having no previous disease reduced the risk of functional impairment by 94%.

Conclusion

The majority of the patients maintained adequate functional status. Absence of previous disease was a protective factor for long term functional impairment.

Child; COVID-19; Follow up studies; Func-tional status; Pediatrics

Introdução

O SARS-CoV-2 faz parte da família dos coronavírus e é um agente causador da síndrome respiratória aguda grave.11. Shen KL, Yang YH. Diagnosis and treatment of 2019 novel coronavirus infection in children: a pressing issue. World J Pediatr. 2020;16(3):219-21. https://doi.org/10.1007/s12519-020-00344-6
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A disseminação do vírus teve início em dezembro de 2019 em Wuhan, China, embora sua identificação tenha ocorrido apenas em janeiro de 2020. Em março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decla-rou a existência de uma pandemia decorrente do novo coronavírus, que se estendeu por dois anos e enfrentou desafios com as novas cepas do vírus e resistência da população às vacinas.11. Shen KL, Yang YH. Diagnosis and treatment of 2019 novel coronavirus infection in children: a pressing issue. World J Pediatr. 2020;16(3):219-21. https://doi.org/10.1007/s12519-020-00344-6
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Apesar de as manifestações clínicas da doença por coronavírus 2019 (COVID-19) serem mais leves do que em indivíduos adultos, e em muitos casos assintomáticas, pela grande disseminação do vírus, muitas crianças foram infectadas.22. Ding Y, Yan H, Guo W. Clinical characteristics of children with COVID-19: A meta-analysis. Front Pediatr. 2020;8:431. https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fped.2020.00431/full
https://www.frontiersin.org/articles/10....
Na América Latina, cerca de 47% das crianças necessitaram de internação hospitalar e 12,7% ncessitaram de tratamento intensivo.33. Antúnez-Montes OY, Escamilla MI, Figueroa-Uribe AF, Arteaga-Menchaca E, Lavariega-Saráchaga M, Salcedo-Lozada P, et al. COVID-19 and multisystem inflammatory syndrome in Latin American children: A multinational study. Pediatr Infect Dis J. 2021;40(1):e1-6. https://doi.org/10.1097/inf.0000000000002949
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No Brasil, 41% das crianças que necessitaram de internação em unidade de terapia intensiva (UTI) apresentavam comorbidades, considerado o único fator associado com a pior gravi-dade da doença.44. Prata-Barbosa A, Lima-Setta F, Santos GR, Lanziotti VS, Castro REV, Souza DC, et al. Pediatric patients with COVID-19 admitted to intensive care units in Brazil: a prospective multicenter study. J Pediatr (Rio J). 2020;96(5):582-92. https://doi.org/10.1016/j.jped.2020.07.002
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Além dos danos relacionados à própria doença, a necessidade de internação hospitalar nesta faixa etária, especialmente por longos períodos, pode ocasionar prejuízos funcionais55. Ong C, Lee JH, Leow MKS, Puthucheary ZA. Functional outcomes and physical impairments in pediatric critical care survivors: a scoping review. Pediatr Crit Care Med. 2016;17(5): e247-59. https://doi.org/10.1097/pcc.0000000000000706
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,66. Pereira GA, Schaan CW, Ferrari RS. Functional evaluation of pediatric patients after discharge from the intensive care unit using the Functional Status Scale. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(4):460-5. https://doi.org/10.5935/0103-507x.20170066
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que podem afetar o desempenho da criança nas dimensões de saúde física, cognitiva, emocional e social, refletindo em sua qualidade de vida.7 Oliveira et al.88. Oliveira JK, Schaan CW, Campos CM, Vieira N, Rodrigues RS, Moraes LS, et al. Funcionalidade após internação em unidade de terapia intensiva pediátrica - Seguimento de seis meses: um estudo multicêntrico. Rev Pesq Fisio. 2022;12:e4768. https://doi.org/10.17267/2238-2704rpf.2022.e4768
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encontraram a presença de nova morbidade após alta hospitalar em 11,5% das crianças que necessitaram de internação em UTI.

Poucos dados sobre a funcionalidade em pacientes pediátricos com COVID-19 foram publicados. Pinto et al.99. Pinto NP, Rhinesmith EW, Kim TY, Ladner PH, Pollack MM. Long-term function after pediatric critical illness: results from the survivor outcomes study. Pediatr Crit Care Med. 2017;18(3): e122-30. https://doi.org/10.1097/pcc.0000000000001070
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relataram que menos de 10% das crianças obtiveram ganhos funcionais em um período de três anos após a alta hospitalar. Casassola et al.1010. Casassola GM, Schmidt CJ, Affeldt GH, Morais DS, Alvarenga LKB, Miller C, et al. Functional status of hospitalized pediatric patients with COVID-19 in southern Brazil: a prospective cohort study. J Bras Pneumol. 2023;48(6):e20220153. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20220153%20
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observaram que cerca de 45% de crianças com COVID-19 apresentavam funcionalidade adequada nas primeiras 24 horas de internação hospitalar. Além disso, estudos já têm observado que o prejuízo funcional após alta hospitalar está associado à necessidade de reinternação.1111. Silva PSL, Fonseca MCM. Which children account for re-peated admissions within 1 year in a Brazilian pediatric inten-sive care unit? J Pediatr (Rio J). 2019;95(5):559-66. DOI

12. Peiter APD, Schaan CW, Campos C, Oliveira JK, Rosa NV, Rodrigues RS, et al. Functional status and hospital readmission after pediatric critical disease: a year follow-up. Pediatr Crit Care Med. 2022;23(10):831-5. https://doi.org/10.1016/j.jped.2018.04.009
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-1313. Watson RS, Asaro LA, Hutchins L, Bysani GK, Killien EY, Angus DC, et al. Risk factors for functional decline and impaired quality of life after pediatric respiratory failure. Am J Respir Crit Care Med. 2019;200(7):900-9. https://doi.org/10.1164/rccm.201810-1881OC
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Nesse contexto, o impacto sobre a funcionalidade de crianças que estiveram internadas em razão da COVID-19 é de fundamental importância, visto que os estudos ainda são escassos. O objetivo do presente trabalho, portanto, foi avaliar a funcionalidade dos pacientes pediátricos internados com COVID-19 na internação, alta e pós-alta hospitalar. Além disso, objetivou-se veri-ficar possíveis correlações entre a funcionalidade pós-alta hospitalar e a presença de doenças prévias, tempo de internação, necessidade de terapia intensiva, uso de suporte ventilatório e oxigenoterapia, além de fatores associados ao prejuízo funcional após a alta hospitalar.

Métodos

Trata-se de um estudo longitudinal retrospectivo e prospectivo, realizado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do HCPA sob parecer 35890820.7. 1001.5327.

Este trabalho faz parte de um projeto intitulado NUTRICOVID, em subamostra de pacientes pediátricos, e foi realizado em acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)1414. Brasil. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília: Diário Oficial da União; 2018 Aug 15. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm
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para pesquisa em seres humanos durante a pandemia de COVID-19.

A amostra foi composta por pacientes pediátricos com registro de internação no HCPA, com reação da transcriptase reversa seguida pela reação em cadeia da polimerase (RT-PCR) positiva para COVID-19. Foram incluídos pacientes de ambos os sexos, de um mês a 18 anos, 11 meses e 29 dias completos, hospitalizados de março de 2020 a março de 2022. Foram excluídos os pacientes com tempo de internação menor que 24 ho-ras, crianças institucionalizadas, gestantes e prontuários com restrição de acesso.

Os dados foram obtidos em duas etapas. Na pri-meira, realizou-se a revisão e coleta dos dados de prontuários eletrônicos hospitalares. A segunda etapa, correspondente à coleta de dados via entrevista telefônica com o familiar/responsável pelo paciente, ocorreu no período entre seis e 18 meses após a alta hospitalar. Para a coleta e armazenamento dos dados dos dois questionários desenvolvidos, utilizou-se a plataforma Research Electronic Data Capture (RedCap). O questio-nário 1 foi utilizado para coletar os dados dos prontuários (etapa 1) e o questionário 2 para a coleta de dados via entrevista telefônica (etapa 2).

No questionário 1 foram coletados dados pessoais e demográficos, presença de doenças prévias (conforme diagnóstico médico informado no prontuário), motivo de internação, sintomas, tempo total de hospitalização, necessidade e tempo de internação na unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP), necessidade de oxigenoterapia, ventilação mecânica não invasiva e invasiva e período de uso, bem como a avaliação da funciona-lidade pela Escala de Estado Funcional Pediátrica (FSS- Brasil) no momento da admissão e alta hospitalar.

No questionário 2 foram coletados dados sociode-mográficos, acompanhamento em serviço de saúde, aspectos clínicos como sintomas de perda de olfato/paladar e gastrointestinais, reinfecção por COVID-19 e reinternação hospitalar. Adicionalmente, realizou-se uma nova avaliação da funcionalidade através da FSS-Brasil. Foram realizadas três tentativas de contato tele-fônico com cada paciente, em diferentes horários e dias, a fim de reduzir as perdas de seguimento.

A avaliação da funcionalidade foi realizada por pesquisadores capacitados para a função através da aplicação da FSS-Brasil no momento da admissão, alta e pós-alta hospitalar, esta sendo pontuada com base nas evoluções de todos os profissionais da saúde envolvi-dos e no relato dos pais/responsáveis. Os pacientes que foram internados na UTIP já tinham a FSS-Brasil realizada pelos fisioterapeutas responsáveis pela unidade. Para a aplicação no momento pós-alta, os pesquisadores foram capacitados para aplicar um roteiro telefônico padronizado, baseado em estudo prévio.99. Pinto NP, Rhinesmith EW, Kim TY, Ladner PH, Pollack MM. Long-term function after pediatric critical illness: results from the survivor outcomes study. Pediatr Crit Care Med. 2017;18(3): e122-30. https://doi.org/10.1097/pcc.0000000000001070
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A FSS-Brasil é um instrumento de avaliação da funcionalidade já traduzido e validado para a popu-lação brasileira,1515. Pereira GA, Schaan CW, Ferrari RS, Normann TC, Rosa NV, Ricachinevsky CP, et al. Functional Status Scale: cross-cultural adaptation and validation in Brazil. Pediatr Crit Care Med. 2019; 20(10):e457-63. https://doi.org/10.1097/pcc.0000000000002051
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sendo composto por seis domínios: estado mental, sensorial, comunicação, função motora, alimentação e respiração. Em cada domínio a pontuação varia de 1 (normal) a 6 (disfunção muito grave), sendo o escore global entre 6 e 30. A classificação final é feita conforme segue: 6 – 7 pontos = função adequada; 8 – 9 pontos = disfunção leve; 10 – 15 pontos = disfunção moderada; 16 – 21 pontos = disfunção grave; e mais de 21 pontos = disfunção muito grave.1616. Pollack MM, Holubkov R, Glass P, Dean JM, Meert KL, Zimmerman J, et al. Functional Status Scale: new pediatric outcome measure. Pediatrics. 2009;124(1):e18-28. https://doi.org/10.1542/peds.2008-1987
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O banco de dados foi construído na plataforma RED Cap e exportado para o programa Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 22.0 para Windows, onde foram analisados os dados. As variáveis contínuas foram descritas como médias e desvio padrão ou medianas e intervalo interquartil, e as categóricas como frequência absoluta e relativa. O teste de normalidade Shapiro-Wilk foi realizado; para os dados com distribuição anormal foram utilizados testes não paramétricos.

Para testar as correlações entre as variáveis contí-nuas, utilizou-se o teste de Spearman. O teste de Mann-Whitney foi utilizado para comparação da FSS-Brasil e dos dados categóricos. Utilizou-se o modelo linear com equações de estimação generalizada com desfecho binário, modelado através de função de ligação logito, para verificar diferenças nas proporções de ocorrência de prejuízo funcional (FSS-Brasil ≥ 8)1616. Pollack MM, Holubkov R, Glass P, Dean JM, Meert KL, Zimmerman J, et al. Functional Status Scale: new pediatric outcome measure. Pediatrics. 2009;124(1):e18-28. https://doi.org/10.1542/peds.2008-1987
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nos diferentes momentos (admissão, alta e pós-alta hospitalar) e na presença de doenças prévias, ajustando para idade e sexo. Considerou-se como estatisticamente significativo p < 0,05.

Resultados

Foram potencialmente elegíveis 337 pacientes com diagnóstico de COVID-19, sendo 105 excluídos devido a tempo de internação menor do que 24 horas (n = 54), gestantes (n = 19) e institucionalizados (n = 2). Além disso, 30 pacientes recusaram por não concordarem com a LGPD. Portanto, no total, 232 crianças foram in- cluídas no estudo.

A mediana de idade foi de 5 anos e 56% eram do sexo masculino. Os sintomas de COVID-19 foram prevalentes em 189 (81,5%) pacientes. Os óbitos (incluindo outras causas) representaram 6% da população avalia-da (n = 14), sendo que oito deles ocorreram durante a internação e seis após a alta hospitalar. Do total de pacientes internados, obtiveram-se dados de segui-mento após a alta hospitalar via contato telefônico de 70 (30,2%) crianças (Figura 1). As características clínicas estão descritas na Tabela 1.

Figura 1
Fluxograma dos pacientes. Rio Grande do Sul, Brasil.

Tabela 1
Características sociodemográficas e clínicas da amostra total e no pós-alta hospitalar de crianças e adolescentes com internação por COVID-19. Rio Grande do Sul, Brasil

A Figura 2 apresenta a classificação funcional de acordo com a FSS-Brasil nos diferentes momentos avaliados (admissão, alta e pós-alta hospitalar). A funcionalidade adequada foi a mais prevalente nos três momentos da avaliação, embora cerca de 13% e 19% das crianças tenham apresentado algum grau de prejuízo funcional na alta e após a alta hospitalar, respectivamente.

Figura 2
Classificação da funcionalidade de acordo com a Escala de Estado Funcional Pediátrica (FSS-Brasil) nos diferentes momentos avaliados do estudo (admissão, alta e pós-alta hospitalar) de crianças e adolescentes com internação por COVID-19. Rio Grande do Sul, Brasil.

As crianças que apresentavam doenças prévias ti-veram pior escore global funcional do que as crianças previamente hígidas, tanto na admissão quanto na alta hospitalar. Os pacientes que necessitaram de UTIP e oxigenoterapia apresentaram pior escore global funcional apenas na admissão hospitalar. Já entre as crianças que necessitaram ou não de ventilação mecânica invasiva (VMI), a funcionalidade foi semelhante nos três momen-tos avaliados (Tabela 2).

Tabela 2
Mediana do escore global da Escala de Estado Funcional Pediátrica (FSS-Brasil) segundo variáveis rela-cionadas à internação hospitaral e doenças prévias nos diferentes momentos do estudo de crianças e adolescentes com internação por COVID-19. Rio Grande do Sul, Brasil

O tempo de internação hospitalar teve correlação positiva, porém fraca, com a FSS-Brasil na admissão (p < 0,001; r = 0,247) e na alta hospitalar (p < 0,004; r = 0,190). O tempo de oxigenoterapia também teve correlação positiva e fraca com o escore global da FSS-Brasil (p < 0,001; r = 0,317), mas apenas no momento da admissão hospitalar, sugerindo que quanto maior o prejuízo funcional, maior o tempo de oxigenoterapia. As demais correlações entre idade, tempo de internação, oxigenoterapia e FSS-Brasil não foram significativas em nenhum momento avaliado.

Na Tabela 3 compara-se a ocorrência de algum grau de prejuízo funcional (FSS-Brasil ≥ 8) entre os diferentes momentos (admissão, alta e pós-alta hospitalar) e a presença de doenças prévias. Crianças sem doenças prévias possuem 94% de proteção no risco de apresentar algum grau de prejuízo funcional após a alta hospitalar.

Tabela 3
Diferença nas proporções de ocorrência de algum grau de prejuízo funcional (FSS-Brasil ≥ 8) de acordo com a avaliação funcional nos diferentes momentos do estudo e doenças prévias de crianças e adolescentes com internação por COVID-19. Rio Grande do Sul, Brasil

Discussão

Os resultados do presente estudo demonstraram que a maioria das crianças com COVID-19 que neces-sitaram de internação hospitalar apresentaram melhora funcional na alta hospitalar. Após a alta, cerca de 19% das crianças apresentaram algum grau de prejuízo funcional. A ausência de doenças prévias foi fator de proteção associado a algum grau de prejuízo funcional no acompanhamento em longo prazo.

A maioria das crianças com COVID-19 apresentou funcionalidade adequada na alta e pós-alta hospitalar, corroborando estudos prévios, nos quais a maioria dos pacientes retornou ao seu estado funcional anterior à internação no momento da alta hospitalar.88. Oliveira JK, Schaan CW, Campos CM, Vieira N, Rodrigues RS, Moraes LS, et al. Funcionalidade após internação em unidade de terapia intensiva pediátrica - Seguimento de seis meses: um estudo multicêntrico. Rev Pesq Fisio. 2022;12:e4768. https://doi.org/10.17267/2238-2704rpf.2022.e4768
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,1717. Pollack MM, Holubkov R, Funai T, Clark A, Berger JT, Meert K, et al. Pediatric intensive care outcomes: development of new morbidities during pediatric critical care. Pediatr Crit Care Med. 2014;15(9):821-7. https://doi.org/10.1097/pcc.0000000000000250
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Outros estudos, entrretanto, observaram que uma parcela significativa de crianças após a alta hospitalar não retornou ao seu estado funcional prévio em longo prazo.1818. Choong K, Fraser D, Al-Harbi S, Borham A, Cameron J, Cameron S, et al. Functional recovery in critically Ill children, the "WeeCover" multicenter study. Pediatr Crit Care Med. 2018; 19(2):145-54. https://doi.org/10.1097/pcc.0000000000001421
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,1919. Dannenberg VC, Rovedder PME, Carvalho PRA. Long-term functional outcomes of children after critical illnesses: A cohort study. Med Intensiva (Engl Ed). 2023;47(5):280-8. https://doi.org/10.1016/j.medine.2022.02.022
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A diferença entre os achados pode ser expli-cada pelos diferentes momentos em longo prazo que a funcionalidade foi avaliada. Além disso, todos os pacientes dos estudos citados eram egressos de UTIP.

No presente estudo, as crianças e adolescentes que necessitaram de internação na UTIP e oxigenoterapia apresentaram pior funcionalidade apenas no momento da admissão. Pollack et al.1717. Pollack MM, Holubkov R, Funai T, Clark A, Berger JT, Meert K, et al. Pediatric intensive care outcomes: development of new morbidities during pediatric critical care. Pediatr Crit Care Med. 2014;15(9):821-7. https://doi.org/10.1097/pcc.0000000000000250
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observaram que crianças após a alta da UTIP possuíam um maior déficit funcional, mas melhoraram até a alta hospitalar. Já Cassassola et al.1010. Casassola GM, Schmidt CJ, Affeldt GH, Morais DS, Alvarenga LKB, Miller C, et al. Functional status of hospitalized pediatric patients with COVID-19 in southern Brazil: a prospective cohort study. J Bras Pneumol. 2023;48(6):e20220153. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20220153%20
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observaram pior funcionalidade avaliada na internação hospitalar de crianças com COVID-19 entre os que necessitaram de oxigenoterapia, corroborando os achados do presente estudo.

Com relação à necessidade de VMI, a funcionalidade foi semelhante nos três momentos avaliados entre as crianças que necessitaram ou não de suporte ventilató-rio invasivo, o que diverge de estudos prévios que verificaram associação entre a necessidade e o maior tempo de VMI e piores desfechos funcionais em longo prazo.88. Oliveira JK, Schaan CW, Campos CM, Vieira N, Rodrigues RS, Moraes LS, et al. Funcionalidade após internação em unidade de terapia intensiva pediátrica - Seguimento de seis meses: um estudo multicêntrico. Rev Pesq Fisio. 2022;12:e4768. https://doi.org/10.17267/2238-2704rpf.2022.e4768
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,1313. Watson RS, Asaro LA, Hutchins L, Bysani GK, Killien EY, Angus DC, et al. Risk factors for functional decline and impaired quality of life after pediatric respiratory failure. Am J Respir Crit Care Med. 2019;200(7):900-9. https://doi.org/10.1164/rccm.201810-1881OC
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Além disso, em população pediátrica com COVID-19, um estudo anterior também demonstrou pior funcionalidade entre os que necessitaram de VMI.1010. Casassola GM, Schmidt CJ, Affeldt GH, Morais DS, Alvarenga LKB, Miller C, et al. Functional status of hospitalized pediatric patients with COVID-19 in southern Brazil: a prospective cohort study. J Bras Pneumol. 2023;48(6):e20220153. https://doi.org/10.36416/1806-3756/e20220153%20
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A divergência entre o presente estudo e os demais pode ser explicada pelo fato de apenas 10% (n = 24/232) dos pacientes incluídos neste estudo terem necessitado de VMI, não sendo possível identificar diferença entre os grupos.

Ao verificar-se a associação entre doenças prévias e funcionalidade, não ter doenças prévias foi um fator de proteção para o prejuízo funcional. Um estudo recente demonstrou que pacientes com condições crônicas complexas apresentam um escore global da FSS-Brasil de 14,9 no momento da admissão na UTIP, com discreta melhora na alta da UTIP (12,0), embora a classificação funcional tenha se mantido em disfunção moderada.2020. Colleti Jr J, Prata-Barbosa A, Lima-Setta F, Araujo OR, Horigoshi NK, Cesar RG, et al. Prevalence and functional status of children with complex chronic conditions in Brazilian PICUs during the COVID-19 pandemic. J Pediatr (Rio J). 2022; 98(5):484-9. https://doi.org/10.1016/j.jped.2021.12.004
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Choi et al.2121. Choi JH, Choi SH, Yun KW. Risk factors for severe COVID-19 in children: A systematic review and meta-analysis. J Korean Med Sci. 2022;37(5):e35. https://doi.org/10.3346/jkms.2022.37.e35
https://doi.org/10.3346/jkms.2022.37.e35...
observaram que crianças com doenças prévias apresentaram uma maior gravidade da COVID-19 e maior taxa de mortalidade comparada àquelas sem doenças prévias. Embora não seja possível afirmar, é compreensível que crianças com doenças prévias já pudessem ter alterações funcionais prévias e desenvolvido COVID-19 em sua forma mais grave, impactando ainda mais o seu estado funcional em longo prazo.

O presente estudo apresenta algumas limitações. A perda da amostra no acompanhamento após a alta hospitalar foi elevada (70%), embora seja uma limitação do desenho de estudos que realizam acompanhamento em longo prazo. Entretanto foram realizadas análises comparando possíveis discrepâncias entre os dois gru-pos (os que seguiram acompanhamento vs. os que per-deram acompanhamento). Além disso, não foi possível avaliar o estado funcional prévio à internação hospitalar e verificar alterações funcionais prévias à internação. Por se tratar de amostra retrospectiva, com base nos prontuários e ligações telefônicas, a pontuação da FSS-Brasil foi realizada apenas através dessas informações, sem observação direta do paciente, embora os dados obtidos pelos prontuários e contatos telefônicos tenham seguido protocolos rigorosos e suprido todos os itens para pontuação. Adicionalmente, a avaliação presencial se tornou inviável visto que durante a pandemia houve restrição de contato com os pacientes, bem como de pesquisadores em ambiente hospitalar.

Vale ressaltar que o estudo tem pontos fortes, como a avaliação de um grande número de crianças com COVID-19 de um centro de referência para trata-mento da doença no Sul do Brasil, assim como o acompanhamento que permitiu a avaliação funcional ao longo do tempo e, até onde os autores têm ciência, ainda não avaliado nesta população.

Conclusão

Conclui-se que a maior parte das crianças internadas com COVID-19 não teve prejuízos funcionais ao longo do tempo. As correlações entre as variáveis clínicas e a funcionalidade, embora significativas, não foram clinicamente relevantes. A ausência de doenças prévias, entretanto, foi um fator importante para menor prejuízo funcional nesta população. Estudos com uma amostra maior, principalmente em longo prazo, são necessários para identificar possíveis déficits funcionais e fatores associados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2023
  • Revisado
    28 Mar 2024
  • Aceito
    9 Abr 2024
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