Open-access Michael White: marcos teóricos da Prática Narrativa*

Michael White: theoretical references of the Narrative Practice

Michael White: marcos teóricos de la Práctica Narrativa

Resumo

A pós-modernidade, o giro narrativo e os paradigmas construtivista e construcionista deram origem a variadas formas de intervenção psicoterapêutica, entre as quais se dará destaque ao conhecimento teórico que embasa a Prática Narrativa produzida por David Epston e Michael White, com ênfase para a contribuição de Michael White, autor que propõe coconstrução narrativa entre terapeuta e pessoa em terapia. A Prática Narrativa caracteriza-se pela desconstrução da estória saturada pelo problema, reconstrução narrativa e reautoria do self por meio de estórias preferidas e a partir da experiência vivida pela pessoa em terapia. O objetivo da pesquisa foi reconhecer, integrar e organizar as várias informações dispersas na literatura sobre a Prática Narrativa. Foi realizada revisão de literatura com destaque para a caracterização do panorama teórico da pós-modernidade e para a interlocução de Michael White com Bruner, Bateson, Foucault, Vygotsky e Derrida. O método utilizado foi levantamento bibliográfico de livros, artigos, dissertações e teses. O estudo teórico pode favorecer que o terapeuta crie contextos propiciadores de mudança, o que pode contribuir para o processo psicoterapêutico.

Palavras-chave: prática narrativa; Michael White; pós-modernidade; psicologia clínica

Abstract

Post-modernity, narrative turn, constructivist and constructionist paradigms have opened various perspectives for the psychotherapeutic intervention. This study will highlight the theoretical knowledge that reinforces the Narrative Practice produced by David Epston and Michael White, with emphasis on the contribution of Michael White, an author who plans narrative co-construction between therapist and person in therapy. The Narrative Pratice is characterized for desconstruction of the saturated story, the narrative reconstruction and self reautoring through favorite stories basing on the experience of the person in therapy. The survey objective was to recognize, integrate and organize the diverse information dispersed throughout the Narrative Practice literature. It was performed a literature review emphasizing postmodernity characterization and Michael White’s dialogue with Bruner, Bateson, Foucault, Vygotsky, and Derrida. The method used was the bibliographic survey of books, articles, dissertations, and theses. The theoretical study may favor the therapist to create contexts conducive to change, which may contribute to the psychotherapeutic process.

Keywords: narrative practice; Michael White; post-modernity; clinical psychology

Resumen

La posmodernidad, el giro narrativo y los paradigmas constructivista y construccionista dieron lugar a diversas formas de intervención psicoterapéutica, entre las que destacan el conocimiento teórico que subyace a la Práctica Narrativa producido por David Epston y Michael White, con énfasis en el aporte de Michael White, autor que propone co-construcción narrativa entre terapeuta y persona en terapia. La Práctica Narrativa se caracteriza por la deconstrucción del relato saturado por el problema, la reconstrucción narrativa y la reautoría del yo a partir de los relatos favoritos y de la experiencia vivida por la persona en terapia. El objetivo de la investigación fue reconocer, integrar y organizar las diversas informaciones dispersas en la literatura sobre Práctica Narrativa. Se realizó una revisión bibliográfica, destacando la caracterización del panorama teórico de la posmodernidad y el diálogo entre Michael White y Bruner, Bateson, Foucault, Vygotsky y Derrida. El método utilizado fue el levantamiento bibliográfico de libros, artículos, disertaciones y tesis. El estudio teórico puede favorecer al terapeuta para crear contextos propicios para el cambio, que pueden contribuir al proceso psicoterapéutico.

Palabras clave: práctica narrativa; Michel White; posmodernidad; psicología clínica

Tudo começou com a expectativa de avançar na construção de instrumentos que facilitem a construção de contexto terapêutico propiciatório de avanços na direção preferida pela pessoa em terapia. Logo, ficou evidente que antes de pensar em recursos terapêuticos se fazia imprescindível uma revisão sobre a teoria que embasa a prática. A Prática Narrativa de Michael White foi a primeira escolha neste projeto. Serão abordadas referências sobre a pós-modernidade, sobre o giro narrativo e as influências de Bruner, Bateson, Foucault, Derrida e Vygotsky às contribuições de Michael White na construção do modelo Práticas Narrativas.

O método utilizado foi a revisão bibliográfica da produção de Michel White e de livros, artigos, dissertações e teses que tratam do panorama teórico da Prática Narrativa. O objetivo é reconhecer, integrar e organizar as várias informações dispersas na literatura. O principal resultado esperado foi o de obter um panorama sobre as bases teóricas da Prática Narrativa, o que possibilitará aumentar a clareza sobre dimensões importantes do sistema terapêutico na perspectiva proposta por Michael White. Tais conhecimentos podem favorecer que o terapeuta crie contextos propiciadores de mudança, o que pode ampliar a eficácia e a rapidez do processo psicoterapêutico.

Construtivismo, construcionismo social, epistemologia da complexidade...

O final do século XX presenciou mudanças marcantes na forma de fazer psicoterapia. O mundo moderno caracterizado pela objetividade, certeza, verdade, hierarquia e padrões a serem descobertos cedeu espaço para a complexidade (o todo não é igual à soma das partes), a instabilidade (impermanência, imprevisibilidade) e a intersubjetividade (objetividade entre parênteses) (VASCONCELLOS, 2013). Grandesso (2011) esclarece que a pós-modernidade trouxe transformações tanto no nível epistemológico como no ontológico e com importantes reflexos para a forma como a linguagem é compreendida. No mundo moderno, o sujeito cognoscente, separado do objeto do conhecimento (dualismo sujeito/objeto), com acesso à realidade considerada independente de si mesmo, toma a linguagem, representação icônica do mundo real, como meio de transporte do conhecimento. No mundo pós-moderno, o sujeito cognoscente e o objeto conhecido são interdependentes. A linguagem constitui a experiência e o sujeito.

O mundo pós-moderno viu surgir várias formas de terapia, dentre as quais Grandesso (2001) destaca: 1. as “abordagens narrativas”, que tem como representantes para as terapias narrativas White e Epston (núcleo de interesse deste artigo); Sluzki, que propõe ênfase nas micropráticas transformativas; Tom Anderesen, que desenvolveu a terapia por meio dos processos reflexivos; e a organizada por Peggy Penn; 2. as “abordagens pós-modernas críticas”, com destaque para a Just Therapy, que dá ênfase à luta pela justiça social; 3. as “abordagens estruturais e estratégicas pós-modernas”, como a Terapia Centrada nas Soluções de Shazer e; 4. a “abordagem colaborativa”, de Anderson e Goolishian. Brito e Germano (2013) descrevem algumas semelhanças destas abordagens, tais como: a postura hermenêutica (ênfase na interpretação dada pelo sujeito), a defesa de que os significados são construídos dialogicamente na linguagem, a rejeição à noção essencialista do self, a crença de que o diálogo seja uma prática social transformadora, a reflexão como meio para construir mudança, o terapeuta como coconstrutor de significados e o cliente como autoridade máxima de sua vida. Brito e Germano (2013) salientam diferenças epistemológicas quanto à linguagem, à subjetividade e aos processos psicológicos que constituíram duas visões com diferentes formas de abordar a prática clínica. Tais enfoques foram nomeados como construtivismo, com viés experiencial e focado no sujeito, e construcionismo social, que privilegia a constituição social do self e as redes de sentido mais amplas.

A epistemologia construtivista remete ao conceito de autopoiese e acoplamento estrutural proposto por Maturana e Varella (VASCONCELLOS, 2013). Moreira (2004) apresenta os conceitos centrais da Teoria da Autopoiese, ou Biologia do Conhecer, que, apoiada na visão sistêmica (importância central do contexto), considera os seres vivos como máquinas autopoiéticas que produzem sua própria organização em acoplamento estrutural com o meio. Moreira (2004) destaca que a teoria da autopoiese considera a experiência do observador o ponto de partida do fenômeno do conhecer e distingue a experiência da explicação sobre a experiência. A explicação ocorre na linguagem que captura a experiência e lhe oferece contornos. A ciência é compreendida como um modo particular de explicar. Maturana e Varella (VASCONCELLOS, 2013), apoiados no pressuposto de que não há realidade independente do observador, pensam a ciência como objetividade entre parênteses.

Ao analisar o construtivismo, Grandesso (2011) destaca que, nesta proposta, o conhecimento é construção individual ativa, que sujeito e objeto de conhecimento são inseparáveis e estão intimamente ligados e que o significado seria produto da atividade do indivíduo em interação com o meio. Diante da pluralidade de enfoques construtivistas, Grandesso (2011) conclui que, embora haja especificidades e alguma confusão conceitual, os vários rótulos ligados ao construtivismo refletem variações em torno da ideia central de que o significado é construído pelo indivíduo na linguagem.

O construtivismo, assim como o construcionismo social, descartam a existência de realidade ontológica objetiva passível de ser conhecida e representada. Rasera e Japur (2004) destacam que o construcionismo social é um conjunto de contribuições teóricas que se apoiam em quatro ideias centrais: 1. a cultura e a história como eixos privilegiados de conhecer o mundo; 2. os relacionamentos produzindo e sustentando o conhecimento; 3. o conhecimento interligado à ação no mundo e; 4. a postura crítica e reflexiva. Rasera e Japur (2004) consideram que as terapias baseadas nos pressupostos do construcionismo social dão forte atenção aos significados trazidos pelos clientes e à construção social dos significados. Tais terapias colocam foco nos relacionamentos interpessoais e nos sentidos produzidos nestas relações. Consideram o processo de significação como aberto e em constante mudança, o que contribui para a ênfase nas potencialidades dos clientes. Dão destaque à polifonia de vozes que constituem o sujeito. Concebem múltiplas formas de descrever o problema e compreender o self. São sensíveis a ação no mundo, uma vez que compreendem que a produção dos significados é continua, em constante transformação e dependente das relações. Compreendem a terapia como processo de coconstrução entre terapeuta, especialista que cria condições para conversas geradoras de novos sentidos, e a pessoa que busca terapia, considerada especialista em sua própria vida. As terapias construcionistas sociais estão atentas aos valores e formas de poder que podem influenciar o contexto de geração de sentidos no setting terapêutico e têm preocupação com as consequências da prática clínica.

Rasera e Japur (2004) apresentam a Prática Narrativa de White e Epston como construcionista social; no entanto, Michael White (1998, 2004) prefere descrever a Prática Narrativa como “constitucionalista”. O termo faz referência à perspectiva antiessencialista (CRUZ, 2008), segundo a qual o self é constituído pelos significados atribuídos à experiência, pela situação da pessoa na estrutura social, pelos relacionamentos e pelas práticas culturais e discursivas sobre o self. Ao propor a perspectiva antiessencialista, Michael White (1998, 2004) destaca a constituição do self por meio da atribuição de significados à experiência vivida, remete à constituição narrativa do self, à reescritura de estórias preferidas e à reautoria da identidade.

Grandesso (2011), ao realizar a arqueologia das vertentes construcionismo social e construtivismo, na qual detalha semelhanças e diferenças, escolhe escapar da lógica disjuntiva. A autora propõe considerarmos estas vertentes dentro da lógica da epistemologia da complexidade. Faz notar que não é preciso optar por construcionismo ou construtivismo e que é possível falar que tanto o sujeito como o contexto social são construtores de significados, são complementares e interdependentes e constituem-se reciprocamente. A autora destaca que priorizar as construções individuais pode fazer perder a interação sujeito/objeto na constituição do conhecimento e cair no objetivismo moderno; por outro lado destaca que a ênfase no intercâmbio social não pode prescindir do indivíduo, as pessoas são únicas, e essa singularidade faz diferença, assim como faz diferença as comunidades em que vivem. Grandesso (2011) conclui que há uma relação colaborativa e complementar na constituição do conhecimento entre os níveis individual (micro) e cultural (macro), o que faz pensar em uma nova síntese na qual a construção do significado seja pensada tanto no âmbito do indivíduo como no contexto das relações. A prática terapêutica de Michael White parece encaixar-se melhor se considerada na perspectiva dessa epistemologia da complexidade.

O giro narrativo

A Prática Narrativa de Michael White e David Epston foi gestada no contexto de efervescência e mudança do mundo pós-moderno e está apoiada no giro narrativo, o qual, segundo Brito (2014) e Ibáñez (2005), foi impulsionado pelo giro linguístico, movimento que tomou a linguagem como objeto de análise. Os primeiros teóricos buscaram encontrar a linguagem que dissesse as coisas sem ambiguidades e sem omissões lógicas de acordo com a realidade empírica. Neste processo, concluíram que a linguagem ideal, válida para todas as ciências, era inviável. Este empreendimento promoveu a substituição da inspeção do interior do sujeito como forma de conhecer o mundo exterior, baseada na filosofia de Descartes e na dicotomia res cogitans e res extensa, pela investigação da linguagem como forma de conhecer. Com o giro linguístico a relação ideia-mundo foi substituída pela relação linguagem-mundo: não são as ideias que correspondem à realidade, mas sim as palavras que constroem a realidade. Brito (2014, p. 24) sintetiza: “A virada narrativa impulsionou a abertura da Psicologia à hermenêutica”.

Bruner, importante teórico do giro narrativo e influência marcante no conjunto da obra das Práticas Narrativas de Michael White, argumenta que, ao invés de procurar a causa da ação humana na biologia, a qual pode ser vista como condição de possibilidade, deve-se buscá-la na cultura e, mais especificamente, na identificação de significados dentro da cultura (BRUNER, 1997). Com este argumento, o autor lança as bases do que denominou de psicologia cultural. Considera que o senso comum (psicologia popular), conjunto de crenças, premissas e regras que organizam a vida social, lança as condições de possibilidade para a constituição dos integrantes da cultura. Defende que o ser humano tem “aptidão pré-linguística para o significado” (BRUNER, 1997, p. 69) e “aptidão proto-linguística para a organização da narrativa” (BRUNER, 1997, p. 74) e que a cultura com seu kit de ferramentas (linguagem, símbolos, mitos, narrativas...) rapidamente o equipa para produzir estórias, as quais não são meramente expositivas, tem finalidades retóricas de convencimento em favor de alguma interpretação em particular. Bruner (1997, p. 85) conclui que “estar em uma cultura viável é estar inserido em um conjunto de estórias conectadas, capazes de estabelecer vínculos mesmo que estas estórias não representem um consenso”.

No processo de conhecer, Bruner (1998) distingue dois modos de funcionamento cognitivo: o paradigmático e o narrativo. O modo paradigmático caracteriza-se pela argumentação, descrição, provas empíricas e consistência. O modo narrativo organiza a experiência em estórias reais ou imaginárias, as quais devem ser verossímeis e lidam com a intenção, com a relação entre o que é canônico e o excepcional e com sequências ao longo do tempo. Esses dois modos de pensamento são complementares e irredutíveis um ao outro. Bruner (2004) relaciona o esforço de dar sentido à vida e de organizar a experiência vivida ao modo narrativo e distingue duas teses. A primeira postula que não há outra forma de descrever o tempo vivido a não ser na forma de uma narrativa. A segunda considera que ao mesmo tempo que a experiência estrutura a narrativa, a narrativa estrutura a experiência, uma vez que, ao produzir um recorte da realidade, este influencia quais aspectos passarão a ser mais destacados, quais ficarão invisíveis, bem como quais comportamentos terão maior probabilidade de ocorrer. Em síntese, a narrativa, ao mesmo tempo que relata a experiência, em processo recursivo, constrói a experiência. Na perspectiva de Bruner (2004), as narrativas podem ser vistas como moldes formados de significados que fornecem trilhas para os relacionamentos e para a construção do eu.

Bruner (2004) considera a narrativa do ponto de vista da abordagem construtivista, o que remete para o processo de intersubjetividade e para a narrativa não como uma cópia da realidade, e sim como interpretação e reinterpretação contínua da experiência pelos interlocutores. Nas palavras de Bruner (1998, p. 7), “pode-se reler uma história de infindáveis modos diferentes”. Além da polifonia, tal perspectiva aborda o que Bruner (1998, p. 27) denominou de “subjuntivar a realidade”, ou seja, “designação de uma disposição... estar negociando possibilidades humanas e não certezas estabelecidas”. Subjuntivar a realidade é uma característica fundamental do texto de mérito literário. Bruner (1998, p. 25) evidencia que as estórias de mérito literário “tornam o mundo estranho de uma forma nova, resgatam-no da obviedade, preenchem-no com lacunas que convidam o leitor ... a tornar-se um escritor... em resposta ao [texto] real”. Apoiado nestas considerações, White (2004, p. 74) propõe a “terapia de mérito literário” em consonância com o pressuposto de que “as pessoas dão significado a suas vidas convertendo suas vivências em relatos, e esses relatos dão forma a suas vidas e relações” (WHITE; EPSTON, 1993, p. 91).

Na terapia de mérito literário, o principal objetivo do terapeuta é ajudar as pessoas que buscam terapia a serem suas próprias autoras na escritura de estórias preferidas. As lacunas, a ambiguidade da estória dominante, as metáforas, as pressuposições e as perspectivas dos diferentes interlocutores são as portas de entrada para a modificação da estória saturada pelo problema. White (2012, p. 89) considera que a “terapia eficaz diz respeito a envolver pessoas na reautoria de tramas [...e incitar] a curiosidade sobre a possibilidade humana de modo que invoquem... a imaginação”. White (2012, p. 94) adverte, no entanto, que a metáfora narrativa não implica pensar que a vida das pessoas se resume a um texto, mas que “podem ser traçados paralelos entre a estrutura de textos literários e a estrutura de produção de significado na vida diária”. Também não propõe que a atividade do terapeuta seja similar à de um autor, uma vez que, diferentemente dos autores, não são os terapeutas que originam a narrativa e sim a pessoa em terapia. O terapeuta é deslocado do centro de produção de sentidos e participa como coautor, produzindo contexto propiciador para a produção de estórias preferidas pelas pessoas que o consultam. Nesta construção, a voz da pessoa em terapia é privilegiada.

Percurso teórico realizado por Michael White

No percurso realizado por Michael White, Hart (apud CRUZ, 2008) identifica três períodos distintos. A primeira fase, até 1986, é informada pela Cibernética de 1ª Ordem, sob a influência de Bateson e da terapia familiar estratégica. Vasconcellos (2013) esclarece que a Cibernética de 1ª Ordem, caracterizada pela ênfase na complexidade e na objetividade, teve dois momentos distintos: 1ª Cibernética, com ênfase na estabilidade e retroalimentação negativa, isto é, quando o terapeuta cria contexto para a diminuição do conflito e para que o sistema volte às condições de homeostase; e a 2ª Cibernética, com ênfase na instabilidade e retroalimentação positiva, marcada pela transformação do sistema por meio do aumento das condições propiciatórias de mudança. De acordo com o Quadro 1, o trabalho realizado por Michael White até 1986 é mais bem compreendido na perspectiva teórica da Cibernética de 1ª ordem dentro do período da 2ª Cibernética.

Quadro 1
Trajetoria teorica realizada por Michael White.

A segunda fase de Michael White é informada pela Cibernética de 2ª ordem e pela adoção da metáfora narrativa. Vasconcellos (2013) salienta que a Cibernética de 2ª ordem, diferentemente da Cibernética de 1ª Ordem, está localizada no paradigma pós-moderno e é caracterizada pela complexidade, instabilidade e intersubjetividade. A segunda fase, conforme descrito por Hart (apud CRUZ, 2008), foi marcada também pela influência de Bruner, de Foucault e pelos pressupostos do construcionismo e seus teóricos. A terceira fase, a partir de 1990, foi mais amplamente marcada por transformações na escuta do terapeuta, pelas investigações e desenvolvimentos relacionados às práticas desconstrucionistas, e foi fortemente influenciada por Derrida. Cruz (2008) considera que, após 1995, Michael White não alterou o caminho teórico e avançou na realização de formulações sobre eventos extraordinários, reconstrução de estórias preferidas e mapas de conversação.

O Quadro 1 evidencia que, na primeira fase, o enfoque teórico utilizado por Michael White esteva apoiado na metáfora sistêmica e, desde a segunda fase, esta base foi substituída pela metáfora narrativa. Essa mudança teve consequências relevantes na forma de fazer terapia.

White e Epston (1993) discutem as implicações e consequências do uso de metáforas para representar os diversos paradigmas de conhecimento nas ciências. Consideram que o panorama criado pelo giro narrativo gerou condições de possibilidade para a prática terapêutica que, salientam, são diferentes daquelas criadas por outras metáforas para a abordagem dos fenômenos psicológicos. Argumentam que as analogias colocam foco para determinados aspectos do evento em detrimento de outros, prescrevem caminhos e dão contorno para a realidade. White (1998) evidencia que a metáfora sistêmica focaliza o padrão e a função do comportamento, as regras e o equilíbrio do sistema, enquanto a metáfora narrativa remete ao significado, a conectar a ação ao sentido, o que encoraja as pessoas a pensarem no que fazem, seus desejos, intenções, propósitos, objetivos e planos. Cada perspectiva traz consequências políticas diferentes que devem ser distinguidas para informar mais completamente o terapeuta, antes de ele adotar um ou outro modelo.

Bateson

White (2002a) conta que teve uma gama variada de interlocutores e que interagiu com muitos campos de conhecimento e variados autores. Até os anos 70, ele buscou apoio nas escolas de terapia familiar e, depois, deu um passo atrás e fez sua própria interpretação dos teóricos que davam apoio a essas escolas. Buscou inspiração fora dos autores do campo da psicoterapia; envolveu-se com a teoria feminista, teoria literária, antropologia cultural e teoria crítica. Bateson, biólogo e antropólogo de formação, a partir do final dos anos 70 forneceu, nos dizeres de Grandesso (2008, p. 4), uma “espécie de epistemologia e de hermenêutica para [White] decifrar o mundo”. White (2002a) relata que foi sob a inspiração de algumas propostas de Bateson - tais como: não há uma realidade a ser descoberta; todo conhecimento pode ser compreendido como um ato de interpretação; a informação decorre da percepção de diferenças; a diferença que ocorre ao longo do tempo é uma mudança (em outras palavras, para a compreensão da mudança é preciso situar os eventos ao longo do tempo) - que, na década de 70, apreendeu a importância do relato e do significado atribuído à experiência humana.

Pistóia (2009) informa sobre a vida e trajetória de Bateson nas ciências, sobre os vários conceitos por ele trabalhados e sobre os avanços que suas investigações propiciaram para vários campos de conhecimento. Conta que a preocupação de Bateson com a comunicação e com o funcionamento da mente traçaram os contornos de suas diversas iniciativas. Pistóia (2009) narra que Bateson considera vida e mente como manifestações do mesmo conjunto de propriedades sistêmicas e que o ambiente está vivo e é dotado de mente. Avalia que a mente é vazia, um modelo de organização, um processo interativo e contínuo de adaptação que não está localizado no corpo e que pressupõe relações do organismo com o ambiente. A mente é vista por Bateson como um sistema cibernético, não no sentido de controle, mas no sentido de um circuito complexo composto de muitos níveis decorrentes da interação do organismo vivo e seu ambiente. No caso do homem, Bateson considera que a mente é operada pelo pensamento e pela linguagem e a interação entre as ideias não é regida pela lógica. Considera que a interação entre as partes do sistema mente é desencadeada pela diferença, compreendida como a unidade mínima de informação. A recepção de notícias do mundo depende de se estabelecer diferenças. Situar os eventos no tempo é essencial para a percepção da diferença. Tal conceito remete à importância da narrativa: diferenças (eventos) situadas ao longo do tempo.

Pistóia (2009) destaca alguns conceitos que são transversais ao trabalho que Bateson realizou e que foram fundamentais para Michael White, entre eles os conceitos de contexto e de mapa mental. Bateson considera, conforme elucida Pistóia (2009), que os mapas mentais são modelos da realidade dependentes da percepção, da cultura e da interpretação. Bateson avalia que os mapas mentais são criados na interação entre o organismo e o ambiente, são o resultado do processamento da informação e compostos pelas experiências, lembranças, crenças, valores, objetivos, generalizações e comportamentos. White e Epson (1993) relacionam o conceito de contexto e mapa mental e, em consonância com Bateson, consideram que o significado que atribuímos a um evento é determinado pelo contexto, ou seja, é dependente do encaixe deste evento em pautas conhecidas, rede de premissas que constitui o mapa mental. Bateson chamou este processo de “codificação da parte pelo todo”.

Michael Foucault

Na década de 80, White (2002a, 2012) teve contato com as ideias do filósofo Michel Foucault e foi fortemente influenciado pelas teorias que relacionam poder e conhecimento a formas de controle social. White e Epston (1993) descrevem os caminhos usados pelo poder moderno, muito mais eficaz que o poder do soberano, para subjugar o indivíduo com práticas sociais e culturais que o transformam em coisas, que impõem formas de expressão socialmente aceitas e que definem tanto a expressão pessoal como o self. Como uma contraprática ao sistema de poder que submete a vida da pessoa em terapia e auxiliando-a a superá-lo em favor de maior autonomia, White e Epson (1993) propuseram as conversações externalizadoras. Tal prática transforma os problemas em coisas, que estão separadas da pessoa e possibilitam que a pessoa fique mais livre do controle dos discursos sociais para criar modos preferidos de existir. Neste processo se distingue o problema do indivíduo. Problema é o problema. A pessoa e suas relações não são o problema.

A perspectiva trazida por Foucault também colaborou para White pensar sobre a relação de poder na relação terapêutica. White posiciona-se fortemente contra o exercício da terapia como forma de dominar as pessoas (WHITE; EPSTON, 1993; WHITE, 2004). A fim de compreender mais profundamente a relação terapêutica proposta por White, é possível recorrer a Morgan (2006), em especial na caracterização da forma de interação entre pessoa em terapia e terapeuta, denominada “descentrada” e “influente”. O termo “descentrada” é usado com o sentido de conversação descentrada do terapeuta e centrada na pessoa em terapia; a pessoa em terapia é considerada especialista em sua vida. O termo “influente” tem o sentido de ser o terapeuta um especialista em conversação, e isso implica ter comportamento ativo na criação de contextos que irão favorecer que a pessoa em terapia engrosse as estórias preferidas e gere novos significados e narrativas.

White (2012) e Grandesso (2011) explicitam que a pessoa em terapia ocupa o centro do processo, é expert em sua vida, e o terapeuta é um mediador na construção de narrativas alternativas preferidas pelo cliente, e neste processo é um expert da conversação. White (2012) considera que a responsabilidade compartilhada e a postura respeitosa do terapeuta de não-saber sobre a vida da pessoa em terapia conduzem o terapeuta e a pessoa em terapia em uma viagem para a qual não há destino certo. Tal posicionamento está em consonância com os postulados pós-modernos, em especial a intersubjetividade, segundo a qual não há uma realidade a ser descoberta e tão pouco há significados a priori que devem ser encontrados. O conhecimento é construído na interação social. Na Prática Narrativa o terapeuta é parte do sistema (é afetado e, também, afeta), e na postura de não-saber apreende a singularidade narrativa do cliente. Os mapas narrativos propostos por White (2012), molduras no processo terapêutico, são importantes apoios para a posição descentrada e influente.

O cuidado com as práticas de poder na relação terapêutica pode ser notado em White (2002b) quando ele se posiciona a favor da concepção de influência da terapia, tanto na vida do cliente como na vida do terapeuta, e da responsabilidade do terapeuta de explicitar a contribuição real e potencial da relação terapêutica em sua vida. Argumenta que a influência unidirecional estrutura relações de poder relativamente inflexíveis, ao passo que a influência recíproca contribui para descrições mais ricas da vida das pessoas em terapia, além de comprometer o terapeuta na reescritura de sua própria vida. Tal postura, além de refletir os postulados pós-modernos, também aponta para princípios da teoria vygotskiana, com ênfase especial para os conceitos de colaboração social e mediação nos processos de aprendizagem, segundo os quais todos os participantes da interação realizam aprendizagens.

Lev Vygotsky

Vygostsky está presente na proposta terapêutica de Michael White, notadamente com os conceitos de colaboração social, zona de desenvolvimento proximal (ZDP), andaime e agência social. White (2006; 2012) estabelece nexos importantes entre esses conceitos e a prática clínica, com destaque para o conceito de zona de desenvolvimento proximal: caminho a ser percorrido entre o familiar, narrado na estória dominante, e o novo, aquilo que será construído no processo terapêutico. White (2006; 2012) indica que na tarefa de caminhar da estória dominante, saturada pelo problema, em direção a estórias preferidas que abram possibilidades para novas expressões na vida, a pessoa em terapia será conduzida pelo terapeuta por patamares, chamados andaimes, de complexidade crescente, designados sequencialmente conforme segue: 1. narrar a experiência imediata do mundo, a estória dominante a qual inclui elementos indiferenciados pela pessoa, atribuir significados a eventos, nomear os objetos; 2. formar nexos que diferenciem ainda mais o objeto; 3. refletir, avaliar e realizar aprendizagens; 4. formular conceitos sobre a vida e a identidade e; 5. propostas de ação: planejamento e avaliação de possíveis resultados. Neste processo, são acessados pela pessoa em terapia aspectos de sua experiência que estavam invisíveis, o que abre espaço para novas narrativas e, consequentemente, outras percepções, outros comportamentos e outras identidades.

White (2012) considera que o patamar representado pelo pensamento conceitual dá acesso à pessoa em terapia a importante ampliação do agenciamento pessoal. O que White chama de agenciamento pessoal é nomeado por Vygotsky como autodomínio, fundamento para atenção deliberada, lógica, abstração, habilidade de comparar e criar. White (2012) explicita que o desenvolvimento de conceitos é mediado pela construção dialógica do significado das palavras. A palavra é, dessa forma, fundamento para a formação do conceito e é uma ferramenta funcional fundamental na prática terapêutica.

No contexto terapêutico, as palavras podem ser compreendidas como “pacotes de significados”, que, ao serem desenredados, abrem caminho para estórias preferidas e novas expressões e modos de ser. Entre os vários usos da palavra, a figura de linguagem metafórica tem especial notoriedade. Na metáfora, uma palavra ou expressão é retirada de um contexto para oferecer sentidos a outro; por exemplo, um desenho, uma música, uma estória passam a representar a situação ou significado vivido. A metáfora expressa o conhecido e familiar de uma maneira nova.

Paschoal e Grandesso (2016) estudam o uso da metáfora na Prática Narrativa e ressaltam a sua relevância para quatro aspectos em especial: 1. facilita o entendimento do terapeuta; 2. facilita a expressão de experiências difíceis pelo cliente; 3. facilita a construção de novas narrativas e; 4. ao facilitar o acesso a aspectos invisíveis da experiência, amplia as possibilidades existenciais da pessoa que busca terapia. Uma joia no discurso, que possibilita externalizar a situação em que o cliente se encontra, olhar com distanciamento e sem misturar o problema com o self. Em síntese, a metáfora constrói uma imagem que ajuda o cliente a ver o que a narrativa dominante está escondendo, a construir novos nexos e a abrir o campo de sentidos para construir estórias preferidas e novas expressões e modos de ser. As metáforas são um instrumento de alta relevância na Prática Narrativa.

Jacques Derrida

A escuta do terapeuta tem um lugar de destaque na Prática Narrativa. Drewery e Winslade (1997 apud GRANDESSO, 2008, p. 7) indicam que a escuta do terapeuta narrativo vai além de refletir a fala do cliente. Grandesso (2008) e Carey, Walther e Russell (2010) destacam que, apoiado no conceito de “ausente, mas implícito”, de Jacques Derrida, o terapeuta narrativo busca na fala do cliente pelo que dá o contorno ao que foi dito, o implícito (significado subjugado), o que abre portas para a construção da estória preferida. O implícito se apresenta em dois formatos principais. Aparece na forma do fundo indiferenciado de onde é destacada a figura relatada pela pessoa (significado privilegiado). Neste sentido, o implícito é aquilo que existe no campo de expressão do vivido, e a pessoa não diferencia, por exemplo, os significados escondidos, as contradições e lacunas. No segundo formato, o implícito apresenta-se na forma do conteúdo oposto ao que é narrado como problema, uma vez que este oposto pode indicar o desejo, o valor, a intenção cuja ausência faz aparecer o problema. Por exemplo, ao falar da falta, o cliente indica que há coisas importantes para ele, as quais não estão presentes; ou, ao falar da dor da separação, poderá estar implícito que viveu experiências que lhe são caras, ou que conhece a experiência de proximidade, e esta é importante para ele. Nas palavras de Grandesso (2008, p. 8), “Todo dito remete ao não dito. Ou seja, o significado de uma palavra ou frase é contingente às palavras e frases que a circundam”. Carey, Walther e Russell (2010, p. 5) afirmam que, de acordo com o conceito “implícito, mas ausente”, “as pessoas somente podem dar uma descrição particular de suas vidas quando fazem distinções com o que sua experiência não é”. Em síntese, o conceito de “implícito, mas ausente” remete a uma escuta que vai além do que foi dito, sem colocar palavras ou significados na fala da pessoa em terapia; em uma postura descentrada e influente, o terapeuta narrativo não apenas reflete a fala do cliente, mas busca pelo “ausente, mas implícito”, sem centrar a narrativa em sua experiência e escutando de forma ampla o que a pessoa em terapia narra.

A interlocução de Michael White com Derrida data do final dos anos 90. A escuta do “ausente, mas implícito”, técnica denominada de dupla escuta, além de abrir portas para a estória preferida e reescritura do self (CAREY; WALTHER: RUSSELL, 2010), é instrumento para a desconstrução da narrativa dominante. A desconstrução da narrativa, um método para opor-se às narrativas que oprimem e manipulam, também é conceito de Derrida, que, com este método, apoiado no conceito de “ausente, mas implícito”, coloca em evidência as contradições ocultas e os significados invisíveis dos textos (GRANDESSO, 2008). No método de desconstrução, o interlocutor fica atento ao significado que faz oposição ao que está sendo dito. A perspectiva aberta por Derrida está em consonância com as influências de Bateson e de Foucault na interlocução com Michael White. Remete a Bateson quando afirma que as coisas não são vistas como algo em si, mas como uma distinção realizada em relação a outros elementos presentes, algo que foi diferenciado do seu meio, e, desta forma, sempre há mais a ser visto daquilo que é narrado por alguém. Remete também a Foucault, em especial aos conceitos de controle social, quando Derrida propõe o método de desconstrução do discurso como meio de evidenciar o discurso que subjuga.

Jerome Bruner

Grandesso (2008) considera a influência de Bruner transversal na Prática Narrativa de Michael White. Aqui vamos ressaltar dois aspectos dessa contribuição: 1. a construção de estórias alternativas em substituição às estórias saturadas pelos problemas e; 2. os dois panoramas de composição das estórias: panorama de ação e panorama de identidade. Para melhor situar a interlocução entre White e Bruner, é importante lembrar que Bruner (1997, 1998) postula que na narrativa ocorre vivências que estão na sombra e não fazem parte do relato dominante, há lacunas, ambiguidades, indeterminação, que são portas de entrada para a construção de estórias preferidas. É fundamental também lembrar que, ao falar sobre a definição de “problema”, White e Epston (1993, p. 31) consideram que “as pessoas experimentam problema... quando as narrativas dentro das quais relatam sua experiência e/ou dentro das quais sua experiência é relata por outros não representam suficientemente suas vivências”. Grandesso (2008) reitera que White considera que os problemas estão relacionados aos significados atribuídos aos fatos da vida, e não a uma suposta disfunção situada no indivíduo ou na família

Apoiado nos conceitos de indeterminação do relato, de negociação dos significados, White (2004) destaca dois momentos principais no processo terapêutico: a desconstrução da narrativa saturada de problema e a construção da narrativa de reautoria. Descreve que, no primeiro momento, desconstrução da narrativa, coloca-se foco na influência do problema na vida da pessoa em terapia. O que o problema, objeto externo, tem feito com a pessoa, seus planos, a influência que exerce na forma como a pessoa se reconhece. No segundo momento, construção narrativa, o terapeuta destaca as experiências que contrariam a influência do problema, os eventos extraordinários, aquilo que não se encaixa na estória dominante. Neste segundo momento se processa a construção da estória preferida.

Para caminhar nestes dois momentos, de construção e desconstrução das estórias, Michael White (2012) desenvolveu mapas de conversação terapêutica para facilitar o processo de negociação de significados, desconstrução da narrativa saturada e construção narrativa de reautoria. Os mapas de conversação terapêutica utilizam o conceito de panoramas da narrativa desenvolvido por Bruner (1998). Este autor identifica nas estórias dois tipos de panorama: panorama de ação e panorama de consciência, que White (2012) prefere chamar de panorama de identidade. O panorama de ação é composto pela sequência de fatos da experiência vivida e relaciona-se com os acontecimentos e aspectos concretos que demarcam o que foi feito: quando, onde, por quem. O panorama de identidade trata daquilo que os personagens da trama “sabem, sentem, pensam, ou não sabem, não pensam, ou não sentem” (BRUNER, 1998, p. 14). O panorama de identidade é o campo dos significados no qual, conforme Grandesso (2008), o terapeuta procura o que ficou implícito na fala da pessoa em terapia. A busca do “ausente, mas implícito” ocorre por meio de perguntas sobre os valores, sonhos, expectativas, intenções, aprendizados da pessoa em terapia. White (2012, p. 97) reitera que os conceitos do panorama de ação e de identidade instrumentalizam o terapeuta a criar contexto para que as pessoas em terapia atribuam significados, acessem fatos que ficaram fora da narrativa dominante e cheguem a novas conclusões sobre sua vida e sobre suas possibilidades de expressão.

Considerações finais

A metáfora Prática Narrativa adotada por Michael White associa as estórias narradas com a vida e considera que as narrativas organizam a vida. A terapia é um contexto no qual as estórias podem ser renarradas, o que pode gerar novas organizações preferidas pelo cliente. Na Prática Narrativa, o sistema terapêutico é entendido como sistema linguístico no qual o terapeuta é um gerenciador da conversação. O objetivo da terapia deixa de ser a busca pela etiologia e consequências do problema e passa a ser a construção de narrativas alternativas para a superação do estado de paralisação do sistema, com ênfase nos recursos que já estão presentes na experiência de vida da pessoa em terapia. O problema é dissolvido, ao invés de ser solucionado, uma vez que, ao construir um outro significado e, desse modo, outra narrativa, abre-se campo para a mudança, para uma distinta forma de agir e de se relacionar.

White apoiou-se em vários campos de conhecimento na realização da prática terapêutica. Na década de 70, foi influenciado por Bateson, de quem apreendeu que a realidade não está dada, mas é construída na interação sujeito/ objeto. Os trabalhos de Bruner foram fundamentais para a concepção da metáfora narrativa, além de fornecer subsídios para a intervenção, especialmente por meio dos conceitos de panorama de ação e panorama de identidade. Vygotsky contribuiu para Michael White apreender as perguntas realizadas pelo terapeuta, para a pessoa em terapia acessar o fundo indiferenciado de sua experiência, distinguir intenções, propósitos, valores, sonhos, expectativas, e para construir as estórias preferidas. Foucault colaborou no posicionamento do “não saber” do terapeuta e na apreensão das forças que estão em jogo na determinação do problema. Derrida abriu o campo do “ausente, mas implícito”, considerado fundamental para ir além do que está exposto na estória dominante.

Essas poucas pinceladas sobre as teorias que apoiam a Prática Narrativa promovem um panorama geral que organiza e amplia a visão dos terapeutas em formação. Abrem possibilidades de expandir a compreensão sobre a parceria entre terapeuta e pessoa em terapia e sobre as responsabilidades do terapeuta. Abrem campo para perguntas sobre a reconstrução do self. Fazem observar a plasticidade do self, construído nas relações sociais, em um campo de significados culturais, e simultaneamente dependente das experiências e da ação no mundo. Fazem pensar sobre o processo de constituição do sujeito, sobre o papel do condicionamento na delimitação das formas de viver, sobre as limitações impostas pela vida em sociedade e sobre as possibilidades de expressão a que a vida em sociedade dá acesso. São muitas as perguntas que ficam em aberto.

Fica a sensação de que estamos apenas arranhando a superfície. Sensação de que a psicologia começa a ingressar em novas perspectivas sobre o modo de abordar o universo psicológico, como aprendizes, nas classes iniciais, deslumbrando processos básicos, apenas ingressando na complexidade do ser humano. Antes falávamos da objetividade, das regularidades, o observável que pode ser medido e identificado repetidamente. Agora, com a pós-modernidade, ingressamos no campo virtual, um espaço mais sutil de apreensão da constituição do humano. A psicoterapia tem ainda muito a descortinar e avançar!

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  • *
    Este manuscrito é oriundo da monografia de conclusão de curso da primeira autora, exigida para obtenção de diploma da Formação em Terapia Relacional Sistêmica do Familiare Instituto Sistêmico (SC).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2019
  • Revisado
    24 Jan 2022
  • Revisado
    26 Maio 2022
  • Aceito
    26 Maio 2022
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