Acessibilidade / Reportar erro

Grupo de apoio a mulheres vítimas de violência: uma perspectiva psicanalítica

Support group for women victims of violence: a psychoanalytic perspective

Grupo de apoyo a mujeres víctimas de violencia: una perspectiva psicoanalítica

Resumo

O presente trabalho dedicou-se ao tema da violência doméstica. Identificou-se, por meio de uma pesquisa qualitativa, com base nos estudos de Vigário e Paulino-Pereira, a técnica de grupo de apoio, que pode ser adequada para favorecer o trabalho terapêutico com vítimas de violência. Participaram da pesquisa cinco moradoras de um abrigo localizado na periferia de São Paulo. Todas responderam a um questionário para identificação de seu perfil e da situação de violência sofrida. Posteriormente, participaram de cinco encontros de um grupo de apoio, nos quais foram trabalhadas diferentes temáticas. Em relação ao perfil, elas têm entre 34 e 39 anos, e escolaridade variando do ensino fundamental até o ensino médio completo. Três estão desempregadas e duas trabalham em atividades que lhes propiciam uma renda limitada. Todas têm pelo menos um filho, sendo que uma delas tem seis filhos, e todas foram agredidas por seus companheiros. Essa situação econômica e social contribui para que permaneçam na situação de violência, pois temem não poder sustentar sua família. Os encontros do grupo de apoio revelaram-se como uma importante estratégia para compartilhamento da experiência de violência sofrida e possibilitaram uma alteração significativa na percepção que tinham sobre seu potencial para o enfrentamento da situação vivida e sobre sua autoestima.

Palavras-chave:
mulheres; violência; Casas Abrigo; acolhimento; grupo de apoio

Abstract

This paper addresses the question of domestic violence and aims to verify whether support group techniques can benefit therapeutic work with women who have been victims of violence. The participants were five women victims of violence, dwellers of a shelter located in an outlying area of São Paulo. A questionnaire was applied, aiming to identify their profile and type of violence endured. Afterwards, they participated in five support group meetings, which involved different themes. When it comes to profile, their age varies from 34 to 39 years, and level of education varies from Middle School to complete High School. Three of them are unemployed and two of them have limited income. All of the have at least one child, and one of them has six children; all of them have been assaulted by their domestic partners. The social and economic situation seems to cause women to stay in situations of violence, since they fear not being able to provide for their children. The support group meetings resulted as an important strategy for sharing experiences related to domestic violence, which enabled a significant change in the perception they had of the situations endured and of their self-esteem.

Keywords:
women; violence; Shelter Houses; shelter; support group

Resumen

El presente trabajo estuvo dedicado al tema de la violencia intrafamiliar. A través de una investigación cualitativa, basada en estudios de Vigário y Paulino-Pereira, se identificó la técnica del grupo de apoyo, que puede ser adecuada para favorecer el trabajo terapéutico con víctimas de violencia. Participaron de la investigación cinco residentes de un albergue ubicado en las afueras de São Paulo. Todos contestaron un cuestionario para identificar su perfil y la situación de violencia sufrida. Posteriormente, participaron de cinco reuniones de un grupo de apoyo, en las que se trabajaron diferentes temas. En cuanto al perfil, tienen entre 34 y 39 años, y estudios que van desde la primaria hasta la secundaria completa. Tres están desempleados y dos trabajan en actividades que les proporcionan ingresos limitados. Todos tienen al menos un hijo, uno de los cuales tiene seis hijos, y todos fueron agredidos por sus parejas. Esta situación económica y social contribuye a que permanezcan en una situación de violencia, ya que temen no poder mantener a su familia. Las reuniones del grupo de apoyo demostraron ser una estrategia importante para compartir la experiencia de violencia sufrida y posibilitaron un cambio significativo en la percepción de su potencial para enfrentar la situación vivida y su autoestima.

Palabras clave:
mujeres; violencia; Casas de Refugio; recepción; grupo de apoyo

Introdução

A violência contra a mulher é um fenômeno que vem sendo alvo de amplas discussões, que se intensificaram a partir de 1985 (LEANDRO, 2014LEANDRO, Ursula Fiess Amaranto. Implementação de políticas públicas e desafios ao enfrentamento da violência contra a mulher. In: II SEMANA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS POLÍTICAS: REPENSANDO A TRAJETÓRIA DO ESTADO BRASILEIRO, 2014. Universidade Federal de São Carlos. Anais... São Carlos, 2014. p. 1-20., p. 2), quando foi criado o Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Embora no Brasil não tenham sido realizadas pesquisas sistemáticas e oficiais sobre o tema, dados da Fundação Perseu de Abramo (BRASIL, 2010BRASIL. Fundação Perseu de Abramo. Mulheres Brasileiras no Espaço Público e Privado, 2010. https://apublica.org/wp-content/uploads/2013/03/www.fpa_.org_.br_sites_default_files_pesquisaintegra.pdf. Acesso em: 20 ago. 2018.
https://apublica.org/wp-content/uploads/...
. p. 235) indicam que pelo menos duas em cada quatro mulheres tenham sofrido algum tipo de violência ao menos uma vez na vida, sendo que, destas, 24% se referem à violência física.

De acordo com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (BRASIL, 2011BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, 2011a. https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em: 20 ago. 2018.
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
), é possível definir a violência contra a mulher como a prática de condutas baseadas no gênero que podem ocasionar sofrimento psicológico, físico, sexual, morte ou dano, em esfera pública ou privada (BRASIL, 2011aBRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, 2011a. https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em: 20 ago. 2018.
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
, p. 20).

A violência física implica a ocorrência de empurrões, tapas, murros, perfurações, chutes, queimaduras, dentre outros atos; já a sexual ocorre quando o agressor obriga a mulher a manter, presenciar ou participar de relação sexual indesejada. A violência patrimonial traduz-se por meio da ocorrência de atos que provoquem a destruição de bens materiais, documentos, objetos ou aquisição de empréstimos em nome da mulher, entre outros, enquanto a violência moral identifica-se nos episódios de difamação, calúnia ou injúria. A presença de atos que impliquem imposições, coação, humilhação, xingamentos, gritos, desrespeito, jogos de poder, dentre outros, caracteriza a violência psicológica (FONSECA; RIBEIRO; LEAL, 2012FONSECA, Denire Holanda da; RIBEIRO, Cristine Galvão; LEAL, Noêmia Soares Barbosa. Violência doméstica contra a mulher: realidades e representações sociais. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 24, n. 2, p. 307-314, 2012. https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000200008
https://doi.org/10.1590/S0102-7182201200...
, p. 308).

A publicação da Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha). Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 13 jul. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, conhecida como “Lei Maria da Penha”, ampliou o conceito de violência contra a mulher e possibilitou que as mulheres fossem resguardadas juridicamente, pois tornou pública a ideia de que a violência doméstica se configura também como uma forma de violência contra a mulher, constituindo uma violação aos direitos humanos (CARNEIRO; FRAGA, 2012CARNEIRO, Alessandra Acosta; FRAGA, Cristina Kologeski. A Lei Maria da Penha e a proteção legal à mulher vítima em São Borja no Rio Grande do Sul: da violência denunciada à violência silenciada. Serviço Social & Sociedade, Rio Grande do Sul, n. 110, p. 369-397, 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-66282012000200008
https://doi.org/10.1590/S0101-6628201200...
, p. 370).

O histórico das políticas públicas voltadas para a questão da violência contra a mulher está em consonância com o processo de democratização do Brasil, ocorrido a partir de 1988, assim como revela coerência em relação ao espírito da Constituição da República, que se configurou em respeito aos direitos humanos, atendendo às tendências e ideais pactuados por meio de acordos internacionais, voltados para as políticas de prevenção e combate à violência de gênero (LEANDRO, 2014LEANDRO, Ursula Fiess Amaranto. Implementação de políticas públicas e desafios ao enfrentamento da violência contra a mulher. In: II SEMANA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS POLÍTICAS: REPENSANDO A TRAJETÓRIA DO ESTADO BRASILEIRO, 2014. Universidade Federal de São Carlos. Anais... São Carlos, 2014. p. 1-20., p. 10).

A rede de atendimento às mulheres que sofrem violência no contexto atual organiza-se a partir da articulação dos seguintes dispositivos: Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Núcleos de atendimento à Mulher, Casas Abrigo, Defensorias da Mulher, Juizados de Violência Doméstica e Familiar, Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 Ouvidorias, dentre outros serviços (BRASIL, 2011aBRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, 2011a. https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em: 20 ago. 2018.
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
, p. 30).

A instalação de Casas Abrigo em diferentes regiões do país foi uma primeira resposta do Estado brasileiro para intervir de forma significativa na situação enfrentada por mulheres que sofrem violência doméstica envolvendo risco de vida e grave ameaça. Esses equipamentos da assistência social possuem caráter sigiloso, seguro e temporário, e nesses locais as mulheres acolhidas permanecem por volta de seis meses, para conseguirem se estruturar e retomar suas vidas, protegidas da violência que sofriam (BRASIL, 2011bBRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e Violência. 2011b. https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/diretrizes-nacionais-para-o-abrigamento-de-mulheres-em-situacao-de-risco-e-de-violencia. Acesso em: 20 ago. 2018.
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
, p. 33).

Uma das pesquisadoras recebeu, em função de uma atividade de estágio realizada em um serviço de acolhimento a mulheres vítimas de violência, um convite para a realização de uma intervenção que oferecesse suporte psicológico às mulheres acolhidas, e, a partir desse convite, surgiu a ideia da realização de grupos de apoio no Centro de Acolhida, o que poderia, além de oferecer uma oportunidade de acolhimento a essas mulheres, permitir o levantamento de dados sobre a experiência do grupo.

Os grupos de apoio têm como finalidade a consolidação de defesas diante de situações de crise, auxiliando os indivíduos em sua adaptação às situações de pressão que enfrentam (GABBARD, 2006GABBARD, Owens Glen. Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica. Porto Alegre: Artmed, 2006., p. 152). Por meio dessa estratégia, é possível estimular o compartilhamento de experiências vividas, de opiniões, possibilitando trocas de orientações, encorajamento e informações para a superação das situações críticas experimentadas (MOSCHETA, 2012MOSCHETA, Murilo dos Santos; SANTOS, Manoel Antônio dos. Grupos de apoio para homens com câncer de próstata: revisão integrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 5, p. 1225-1233, 2012. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000500016
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201200...
, p. 1226). A técnica de grupos de apoio aumenta a sensação de suporte social, aumenta o nível de informações para lidar com as situações adversas, permite a discussão de questões existenciais, promovendo a educação e o desenvolvimento de habilidades para enfrentamento de situações difíceis (SANTOS et al., 2011SANTOS, Manoel Antônio dos et al. Grupo de apoio a mulheres mastectomizadas: cuidando das dimensões subjetivas do adoecer. Revista SPAGESP: Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo, v. 12, n. 2, p. 27-33, 2011. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702011000200004. Acesso em: 4 dez. 2018.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 30).

A ideia do presente trabalho previu a realização de um grupo de apoio fechado, com as mulheres abrigadas em um serviço de acolhimento de caráter sigiloso, todas vítimas de violência doméstica enfrentando o desafio de retomarem a sua vida cotidiana. O intuito foi o de acolher essa demanda e refletir sobre as possibilidades de utilizar a estratégia de atendimento grupal, como forma de promover a reinserção social dessas mulheres.

Metodologia

Para atender aos objetivos do presente levantamento, foi realizado um estudo de caso de abordagem qualitativa, de maneira a permitir o conhecimento amplo e detalhado da situação que é o alvo da pesquisa (GIL, 1999GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999., p. 58). O caso definido para estudo é a situação das mulheres que se encontram em um serviço de acolhimento; a coleta de dados incluiu a caracterização do perfil das mulheres do grupo, assim como a intervenção (e participação como coordenadoras) dos encontros do grupo de apoio, e, posteriormente, o registro dos dados eleitos como significativos para o propósito da presente pesquisa permitiram a análise do material obtido a partir do referencial psicanalítico.

Participantes

Foram convidadas a participar do grupo de apoio todas as mulheres que residiam no centro de acolhida para mulheres vítimas de violência doméstica, localizado em um dos bairros da periferia do município de São Paulo, na zona leste. Sua localização é sigilosa para que a segurança das acolhidas e da equipe técnica do local seja mantida. Os grupos de apoio aconteceram em cinco encontros, e todas as cinco mulheres acolhidas naquele momento participaram de todos os encontros.

Instrumentos para coleta de dados

Foi utilizado como instrumento para coleta de dados um questionário com perguntas sobre o perfil sociodemográfico das participantes (idade, escolaridade, religião, se trabalha atualmente e renda mensal), assim como sobre a estrutura de suas famílias (quantos filhos) e a situação de violência por elas sofrida (quem foi o agressor, grau de parentesco e tipo de violência). Além desse questionário, as pesquisadoras criaram uma folha para o registro dos encontros do grupo de apoio, para padronizar a coleta dos dados eleitos como significativos para o propósito da pesquisa, que foram: número do encontro; tema abordado, dentre os que foram escolhidos pelas participantes; relato síntese do encontro e dinâmica observada; papel assumido por cada uma das integrantes do grupo em relação ao tema proposto; qualidade da relação estabelecida entre as participantes e as coordenadoras do grupo e da relação estabelecida entre as participantes, e, por fim, a forma de encerramento.

Procedimento

Primeiramente, a ideia da realização de um grupo de apoio com as mulheres residentes no serviço de acolhimento foi apresentada à gerente do local por uma das pesquisadoras, que formalizou seu consentimento para a realização da pesquisa por meio de uma carta de autorização. O projeto foi então encaminhado ao Comitê de Ética da Universidade São Judas Tadeu e aprovado pelo Parecer de número 2.658.447. Os recursos financeiros para a realização da pesquisa foram custeados pelas pesquisadoras.

A seguir, foi agendado um encontro com todas as residentes do serviço (na época residiam no local seis participantes), em grupo, para que elas tomassem conhecimento da ideia da pesquisa e dos procedimentos para a sua realização. Com as mulheres interessadas em participar do grupo (ofertamos às seis residentes, sendo que todas se interessaram), foi agendado um encontro individual, nas dependências da Casa Abrigo, para a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, bem como para o preenchimento do questionário para a identificação do perfil sociodemográfico e da estrutura familiar. Após a avaliação, uma das mulheres foi excluída da pesquisa por se encaixar nos critérios de inclusão e exclusão, permanecendo cinco mulheres, ao todo.

Em seguida, as participantes foram convocadas para a realização de um primeiro encontro, também nas dependências da Casa Abrigo. Nesse primeiro encontro do grupo de apoio, foram discutidas as regras que orientaram a realização de cada encontro, o que ocorreu em conjunto com as participantes. Nessa ocasião também foram eleitos, pelas mulheres atendidas, os temas que gostariam de tratar, para que as coordenadoras do grupo pudessem elaborar as dinâmicas necessárias para o trabalho com cada um dos temas eleitos, utilizando o método de análise descritivo como norteador da pesquisa.

Após esse primeiro encontro, foram realizados mais cinco, nos quais cada um dos temas levantados foi discutido pelo grupo, com a orientação das coordenadoras do grupo. Cada encontro teve duração de duas horas, durante as quais as coordenadoras tiveram o papel de auxiliar o contato e mediar as discussões, estimulando a participação das usuárias e o compartilhamento de experiências.

Os registros eram realizados logo após o término dos encontros para que todas as informações realmente retratassem os movimentos que ocorreram no grupo. Cada um dos relatos foi analisado e supervisionado por um profissional psicólogo, com experiência em trabalhos com grupos.

No último encontro, as participantes avaliaram sua experiência no grupo de apoio, para que as coordenadoras pudessem identificar se este tipo de grupo as ajudou e se essa técnica poderia beneficiar outras mulheres na mesma situação.

Os dados sobre a caracterização do perfil sociodemográfico, de estrutura familiar e da violência sofrida pelas participantes serão apresentados de forma descritiva.

Em relação aos itens eleitos para compor a folha de registro, cada um será analisado de acordo com o referencial teórico adotado, que procurou identificar, por meio de elementos específicos da dinâmica grupal, se a participação no grupo trouxe benefícios às participantes. Reforça-se a ideia de que cada um dos elementos da folha de registro remete a um dos indicadores de sucesso ou fracasso do processo grupal. Desse modo, analisar como cada um dos elementos registrados evoluiu ao longo do processo revelou dados significativos em relação à adequação da estratégia da técnica adotada para acolhimento e fortalecimento das defesas das mulheres que sofreram violência.

Resultados e discussão

A caracterização das participantes do grupo de apoio em relação ao seu perfil sociodemográfico identificou idade entre 34 anos e 39 anos. Considerando-se a escolaridade, duas participantes concluíram o primeiro ano do ensino médio, duas não completaram o ensino fundamental e uma tem ensino médio completo. Duas das participantes trabalham, enquanto três delas não estão trabalhando no momento. Entre as que trabalham, uma delas exerce a função de empregada doméstica, enquanto a outra trabalha como orientadora socioeducativa em um abrigo.

Das cinco participantes, quatro nasceram fora do Estado de São Paulo. Todas professam alguma religião, sendo que duas delas são evangélicas, duas são umbandistas e uma segue a doutrina kardecista. Todas são mães; duas delas têm um filho, e três, de dois a seis filhos. No total, as participantes têm treze filhos; contudo, na casa se encontram abrigados com as mães oito deles. Entre os cinco filhos que não estão abrigados, três são maiores de idade e já constituíram suas famílias; um foi encaminhado para a casa de seu pai, após o acolhimento da mãe (nesse caso, o pai da criança não era o agressor da usuária da Casa Abrigo); e um dos filhos das acolhidas, que tem 16 anos, decidiu morar com o pai; este adolescente também agredia a mãe física e moralmente.

A criança mais nova na casa tem um ano, e a mais velha dezesseis anos. Quatro das cinco participantes foram agredidas por companheiros com os quais mantinham convívio e com quem tiveram filhos. Somente uma delas sofreu violência de parte de um companheiro com o qual não convivia, e uma das acolhidas não teve filhos com seu agressor. Como a violência contra a mulher é geralmente perpetuada por pessoas de seu convívio íntimo, frequentemente companheiros, o ciclo de violência é dificilmente rompido (VIGÁRIO; PAULINO-PEREIRA, 2014VIGÁRIO, Carolina Barbosa; PAULINO-PEREIRA, Fernando César. Violência contra a mulher: análise da identidade de mulheres que sofrem violência doméstica. Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 5, n. 2, p. 153-172, 2014. http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/1483. Acesso em: 4. Dez. 2018.
http://www.periodicos.ufc.br/psicologiau...
, p. 166).

Todas as participantes relataram terem sofrido violência de natureza moral e psicológica, e três delas relataram que também sofreram violência física. Apenas uma relatou ter sofrido violência sexual e patrimonial. Esses dados corroboram os dados publicados sobre o tema da violência doméstica, que apontam que o fato de as mulheres terem filhos, assim como baixa escolaridade, associadas ao desemprego ou baixa remuneração pelo trabalho realizado, colabora para que permaneçam em relacionamentos que as expõem à situação de violência. A dependência financeira influencia o silenciamento da mulher, que teme desagradar o agressor de quem depende para manutenção dos filhos, evitando, com uma atitude passiva, sofrer punições dos companheiros violentos. Essa condição faz com que, por muitas vezes, se sintam impotentes para denunciar seus agressores à justiça (MOURA; NETTO; SOUZA, 2012MOURA, Maria Aparecida Vasconcelos; NETTO, Leônidas de Albuquerque; SOUZA, Maria Helena Nascimento. Perfil sociodemográfico de mulheres em situação de violência assistidas nas delegacias especializadas. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 435-442, 2012. https://doi.org/10.1590/S1414-81452012000300002
https://doi.org/10.1590/S1414-8145201200...
, p. 440).

A primeira informação relevante sobre os encontros se refere aos temas sugeridos para discussão em grupo e à sequência definida para abordar cada um dos temas, que foram: moradia, autoestima, discriminação em relação à sexualidade e religião, racismo e criação dos filhos (maternidade). Importante destacar que nem todos os conteúdos sugeridos foram abordados, uma vez que o tema autoestima mobilizou em demasia as participantes do grupo e precisou de três encontros para ser discutido. Identifica-se, pelos temas escolhidos e pela sequência definida para discussão durante os encontros, que a preocupação fundamental das mulheres abrigadas se refere às questões de ordem prática: onde morar e como sobreviver após o acolhimento, que é provisório. Uma vez que, em função da violência sofrida, elas não podem retornar às suas moradias, torna-se constante o medo do desamparo e a preocupação com as parcerias que terão que constituir para enfrentar os primeiros tempos após deixarem a Casa Abrigo (pedirem ajuda a parentes e amigos). Essa situação pode ser ilustrada pelo relato de Margarida:1 1 Para preservar a identidade das participantes, todas receberam nomes fictícios. “Pretendo morar próximo a minha irmã, mas não como um estorvo e sim como um apoio, alguém que olhe os meus filhos num momento de necessidade”. As pesquisadoras levantaram a hipótese de que o fato de estarem afastadas de seus companheiros violentos, com quem mantinham relação de muita dependência, faz com que elas procurem, em um primeiro momento, outras figuras nas quais se apoiar, uma vez que ainda não se sentem fortalecidas para assumirem o comando de suas vidas.

Durante os encontros, todas enfatizaram a necessidade de se sentirem acolhidas e amparadas após sua passagem na Casa Abrigo, uma vez que, após o abrigamento, não poderão contar com o apoio das profissionais do serviço de proteção. Essa ausência traz a sensação de desamparo, caracterizada como “sentimento de abandono, que é experimentado na descoberta do eu do indivíduo com o mundo” (RESSTEL, 2015RESSTEL, Cizina Célia Fernandes Pereira. Desamparo psíquico nos filhos de dekasseguis no retorno ao Brasil. São Paulo: UNESP; Cultura Acadêmica, 2015. http://books.scielo.org/id/xky8j/pdf/resstel-9788579836749.pdf. Acesso em: 15 out. 2018.
http://books.scielo.org/id/xky8j/pdf/res...
, p. 87).

As coordenadoras do grupo também acreditam que o fato de a gerente e a psicóloga do serviço de acolhimento sempre dialogarem com as mulheres abrigadas sobre a violência sofrida, sobre suas perspectivas futuras e suas estratégias para lidar com a própria vida quando saírem do serviço de acolhimento, despertou sentimentos ambivalentes nessas mulheres. Esse diálogo as coloca diante da ausência do outro como sustentação simbólica, o que pode gerar muita angústia (GARCIA; COUTINHO, 2004GARCIA, Claudia Amorim; COUTINHO, Luciana Gageiro. Os novos rumos do individualismo e o desamparo do sujeito contemporâneo. Psychê, São Paulo, v. 8, n. 5, p. 125-140, 2004. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382004000100011. Acesso em: 15 out. 2018.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 133). Por outro lado, as ações das técnicas da Casa Abrigo as mobilizaram para que encontrassem meios para ressignificarem as experiências pelas quais passaram, se dando conta de que não existe justificativa para que sejam maltratadas.

Os demais temas escolhidos pelas participantes, que tratam de estratégias para melhorarem a sua autoestima, evitarem e se protegerem de situações de discriminação e racismo, demonstram o quanto desejam olhar para si mesmas de uma forma valorizada, buscando recursos para a realização de seus projetos de vida. Esse movimento parece ganhar força quando essas mulheres falam sobre a sua preocupação com a imagem que estão transmitindo aos filhos. Como enfatizou Margarida: “Tenho medo de não responder às expectativas dos meus filhos como mãe”.

Quando o tema autoestima foi abordado, identificou-se a emergência de conteúdos mais profundos no grupo, o que favoreceu a ocorrência de trocas e discussões significativas entre as participantes. Durante os encontros que trataram desse tema, as mulheres comentaram sobre o caráter negativo de suas vivências passadas em relação à autoestima, e destacaram a importância das relações que constituíram entre si na Casa Abrigo, que elas avaliam como muito positivas para a construção de uma imagem favorável a respeito de seu potencial e de sua capacidade para superar a violência sofrida. Essa constatação reforça a ideia de que a técnica de grupos de apoio aumenta a sensação de suporte social das pessoas que deles participam, aumentando o nível de informações disponíveis para lidarem com as situações adversas e possibilitando a discussão de questões existenciais, que promovem o desenvolvimento de habilidades para o enfrentamento de situações difíceis (SANTOS et al., 2011SANTOS, Manoel Antônio dos et al. Grupo de apoio a mulheres mastectomizadas: cuidando das dimensões subjetivas do adoecer. Revista SPAGESP: Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo, v. 12, n. 2, p. 27-33, 2011. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702011000200004. Acesso em: 4 dez. 2018.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 30).

As participantes também enfatizaram que, antes de sua chegada à Casa Abrigo, não cuidavam da própria aparência ou, caso o fizessem, isso se relacionava aos desejos de seus parceiros e não aos próprios. Essa ideia revela coerência com a constatação de que um dos fatores predominantemente afetados em mulheres que sofrem violência é a autoestima, consequência das situações sofridas ao longo da vida (GUIMARÃES et al., 2018GUIMARÃES, Renata Cavalcante Santos et al. Impacto na autoestima de mulheres em situação de violência doméstica atendidas em Campina Grande, Brasil. Revista Cuidarte, Bucaramanga, Colômbia. v. 9, n. 1, p. 1988-1997, 2018. http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.v9i1.438
https://doi.org/10.15649/cuidarte.v9i1.4...
, p. 1995). Esse fato pode ser ilustrado pelo relato de Margarida: “Me vejo linda, uma pessoa muito bonita, antes eu não via não, eu não conseguia me ver”.

A partir do terceiro encontro, como o tema autoestima sensibilizou as participantes, todas decidiram, nos encontros seguintes, falar sobre sua incapacidade de expressarem seus desejos e vontades, tentando com essa atitude agradar a outras pessoas, especialmente seus antigos companheiros. Além de enfatizarem suas dificuldades para lidar com as expectativas do outro, sempre sentindo desconfiança quando elogiadas, ou quando são alvo de comentários positivos, também revelaram sua dificuldade para aceitarem elogios. Essa dificuldade em aceitar comentários positivos sobre si mesmas pode revelar seus sentimentos inconscientes de que não são merecedoras de atenção, situação que favorece a sua aproximação e relação com figuras que as desqualificam e maltratam. Como essas mulheres acreditam que não merecem ser bem tratadas, entendem que os elogios a elas dirigidos são falsos e proferidos no sentido de as ridicularizarem. Como ilustra o relato de Rosa: “Quando alguém vinha falar alguma coisa pra mim era deboche, pra mim é mais fácil aceitar a crítica do que o elogio”.

Por diversas vezes foi possível identificar que as mulheres do grupo parecem aceitar com naturalidade que os outros as magoem e não as tratem com respeito, situação que o comentário de Rosa exemplifica: “O outro tem o direito de me maltratar, de me tratar mal, eu só tenho que ir embora”. Esse relato ilustra, de forma muito contundente, que, para as mulheres que sofrem violência em uma relação amorosa, o desrespeito e a violência são justificados. Isso pode ser explicado pelo fato de que a escolha dos parceiros amorosos está inconscientemente associada à forma como se constituíram os vínculos com as figuras parentais.

É na primeira relação objetal que se organiza o vínculo com o outro (RAMOS, 2006RAMOS, Magdalena. Introdução a terapia de casal. São Paulo: Claridade, 2006., p. 34). Quando o indivíduo ainda é um bebê, encontra-se em um estado de total dependência em relação ao outro (papel normalmente exercido pela mãe). Nesse momento, a criança estabelece com o objeto de investimento libidinal um tipo de vínculo no qual a ausência do outro mobiliza fortes sentimentos de desamparo, já que ele sente que necessita inteiramente do outro para sobreviver. A escolha do parceiro amoroso reativa a vontade de reviver esse vínculo primitivo, na medida em que reativa o desejo inconsciente de retomar essa sensação de conforto, que protege o indivíduo de sentimentos de desamparo e abandono. Se as relações primitivas não se constituíram de forma positiva, a sensação de desamparo pode mobilizar muita agressividade, que, não podendo ser direcionada aos objetos primitivos, pode favorecer nos indivíduos o aparecimento de uma autoimagem muito negativa e destrutiva sobre si mesmos.

A forma como os vínculos iniciais se configura contamina os relacionamentos atuais de uma pessoa e pode distanciá-la de uma percepção apropriada sobre o seu objeto de investimento amoroso no presente (RAMOS, 2006RAMOS, Magdalena. Introdução a terapia de casal. São Paulo: Claridade, 2006., p. 35). Nesse sentido, pode-se compreender como essas mulheres, que passaram por situações de violência, se envolvem em relacionamentos abusivos, que se configuram como uma possibilidade para lidarem com suas fantasias primitivas sobre os relacionamentos. Refletir sobre as características que aprovam e não aprovam em si mesmas, em função do tema autoestima, mobilizou a agressividade das participantes, contra si mesmas e contra os parceiros agressores. Quando questionadas sobre o fato, muitas trouxeram relatos que revelaram que elas têm medo de si mesmas, medo de sua própria destrutividade, que é projetada nos companheiros abusivos. Esse conteúdo pode ser identificado no relato de Tulipa, que afirmou, em um primeiro momento: “Tenho medo de ser violenta comigo mesma, nem sei explicar”. Quando solicitada a se aprofundar no assunto, complementou “Tenho medo de que sejam violentos comigo”.

A agressividade apareceu em diversos momentos dos encontros, e pôde ser identificada no tom de voz das participantes, assim como na maneira como conversam entre si. Em certos momentos, elas mesmas se questionaram se eram pessoas agressivas ou se sua agressividade é uma forma de se defenderem; ao mesmo tempo, justificavam conscientemente sua atitude agressiva, afirmando que ainda não sabiam como lidar com a situação de violência que sofreram. Essa situação pode ser ilustrada pela atitude de Tulipa, que demonstrava, pelo conteúdo de seus relatos, pouco discernimento sobre a situação de violência por ela vivida. Em uma situação do grupo, relatou, com naturalidade, que tentava ser uma mulher vaidosa, mas com o tempo abriu mão disso, pois seu ex-marido era muito ciumento. Exemplificou que, entre as tentativas para burlar a proibição dele, “dormia de maquiagem e quando acordava estava um pouco maquiada e ele não podia reclamar comigo”. Sua atitude procurava dar conta de seu desejo sem que entrasse em conflito com seu companheiro, que “podia fazer isso, pois sentia ciúmes”.

A escolha do objeto amoroso das participantes está diretamente ligada à violência, à agressividade e a um potencial transgressor que foi reprimido. Por meio dessa repressão, o potencial agressivo, enraizado na estrutura psíquica dessas mulheres, só pode se manifestar na atitude do outro, que, dessa forma, fica autorizado a desrespeitá-las. Essa dinâmica explica por que a autodepreciação é uma característica marcante das participantes, para quem os elogios são vistos com desconfiança e dúvida, e as críticas são aceitas com naturalidade.

Percebeu-se, após a manifestação de sentimentos agressivos no grupo, o incremento de atitudes defensivas entre as participantes, principalmente manifestada pela utilização de mecanismos de defesa como regressão e idealização, pois os seus comportamentos assumiam formas características de momentos anteriores do desenvolvimento. E, por vezes, ao falarem sobre os seus relacionamentos passados, enfatizavam qualidades positivas de seus companheiros violentos ou de si mesmas. Também se identificou entre elas uma tendência a expressarem sua agressividade de forma passiva, pois manifestavam sua hostilidade utilizando-se de métodos indiretos e dissimulação. Após esse momento do grupo, todas passaram, juntas, a refletir sobre como gostariam de ser, refletindo sobre possibilidades de mudança e tratando, concretamente, de situações e dados da realidade. O grupo de apoio tem como uma de suas principais finalidades a consolidação de defesas, e pode promover o aparecimento dessas defesas nas mulheres acolhidas, que, mesmo não sendo maduras, podem instalar um movimento positivo na dinâmica psíquica dessas mulheres.

Os papéis assumidos inicialmente por cada uma das participantes se mantiveram, ao longo dos encontros, como uma tendência, e não de forma rígida. No entanto, com o passar do tempo, esses papéis foram se diluindo. Este é um indicador positivo na dinâmica grupal, o que possibilita o diálogo de maneira mais integrada.

Inicialmente, a relação que as participantes estabeleceram com as coordenadoras do grupo foi de resistência e descrédito. Elas testaram e atacaram as coordenadoras e o próprio setting. Essa atitude pode ser identificada na fala de Tulipa: “Se eu pudesse saía agora pra comprar cigarro e não voltava mais”; e “Nossa, esse grupo não acaba mais não?”. Com o decorrer dos encontros, de maneira progressiva, passou a existir uma maior interação entre as participantes e as coordenadoras do grupo, o que possibilitou a construção de um vínculo sólido e permitiu o trabalho com os temas propostos, propiciando a aproximação entre todas as integrantes do grupo. Essa tendência pôde ser identificada pelo desejo das participantes de conversar com as coordenadoras do grupo ao final dos encontros, e pelo desejo e disponibilidade para compartilharem confidências, que explicaram alguns movimentos que ocorreram dentro do grupo, demonstrando uma maior confiança na relação que foi estabelecida entre todas.

A formação do vínculo também permitiu, durante a execução dos encontros, que as coordenadoras do grupo pudessem ser assertivas em momentos oportunos com as participantes, como por exemplo o encontro cujo tema foi relacionamento, no qual as participantes divagaram sobre o “relacionamento perfeito” e no qual algumas delas afirmaram a existência de uma relação perfeita. Nesse momento, as coordenadoras do grupo puderam refletir com as participantes sobre o quanto essa questão influenciou a formação de seus vínculos afetivos e estimulou a interação entre elas, sendo essas as principais funções dos grupos de apoio (GUANAES; JAPUR, 2001GUANAES, Carla; JAPUR, Marisa. Fatores terapêuticos em um grupo de apoio para pacientes psiquiátricos ambulatoriais. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 23, n. 3, p. 134-140, 2001. https://doi.org/10.1590/S1516-44462001000300005
https://doi.org/10.1590/S1516-4446200100...
, p. 138).

Inicialmente houve pouca interação entre as participantes do grupo, com falas voltadas apenas às suas próprias expectativas e planos pessoais. No primeiro encontro, que tratou do tema moradia, elas falaram de forma individualizada, com pouca interação umas com as outras. Essa dinâmica não ocorreu no segundo encontro, cujo tema foi autoestima, quando as participantes trocaram sugestões entre si e refletiram sobre a importância de momentos que compartilharam dentro da casa de acolhimento. Essa mudança se manteve durante todos os outros encontros, nos quais todas puderam desfrutar de discussões durante as quais receberam e ofereceram contribuições. No entanto, as coordenadoras do grupo não previram que o fato de elas terem um relacionamento anterior, pois moram na mesma residência, poderia interferir no desenvolvimento do grupo. Considerou-se que esse fato interferiu na dinâmica grupal, pois, quando algum desentendimento ocorria fora do grupo de apoio, a troca de experiências, a escuta e o apoio mútuo ficavam diretamente prejudicados. Desse modo, o fato de todas as participantes estarem abrigadas no mesmo serviço, por um lado, favoreceu o estabelecimento de vínculos no grupo de apoio, por outro lado, contaminou o setting com eventos que ocorriam na casa e, em alguns momentos, algumas intrigas, conflitos e eventos geradores de tensão precisaram ser abordados durante os encontros. Esse fato pode ser considerado como um prejuízo para a dinâmica grupal, mas também pode ser vivido como um padrão para condução dos futuros conflitos, que supera o modelo violento de solução de divergências.

Em relação à dinâmica observada no elo entre as participantes, inicialmente houve um movimento que indicou a necessidade de se manterem mais resguardadas, falando pouco. Com o passar dos encontros, com o estreitamento dos vínculos entre as mulheres do grupo, foi possível uma troca de experiências, ideias, opiniões, com o objetivo de buscarem orientações, encorajamento e informações. Foi possível identificar que se estabeleceu entre o grupo uma disposição para se escutarem e conversarem sobre suas vivências e opiniões, o que colaborou para a formação de um vínculo positivo entre elas. A partir das trocas de vivências, o grupo passou a demonstrar que os comportamentos que anteriormente não eram percebidos como violentos hoje já seriam vistos de tal forma.

O potencial transgressor é uma questão marcante entre essas mulheres, que chegaram a solicitar a uma das coordenadoras do grupo que conversasse com a gerente do serviço de acolhimento para que fosse permitido o consumo de bebida alcoólica na Casa Abrigo, assim como a presença de relatos sobre momentos nos quais elas infringiram as regras da casa. Em um desses momentos, nos quais as participantes se sentiram confortáveis para falar de seu potencial destrutivo, Rosa chegou a afirmar que não deseja, mas pode vir a matar seu ex-marido, visando se proteger.

Em todos os encontros, as integrantes demonstraram agressividade em relação às coordenadoras do grupo e entre elas, o que pôde ser identificado nas expressões corporais e verbais. Todas as participantes se colocavam de maneira agressiva, às vezes diretamente, por meio de xingamentos e palavrões, e às vezes de maneira indireta, fazendo comentários irônicos, como no caso de Margarida: “Hoje me vejo bonita, isso começou a mudar aqui nessa casa, essa casa pelo menos serviu pra isso, tô brincando mas é verdade”. Apenas Hortênsia afirmou ser uma pessoa agressiva; já Rosa afirmou que “tem gente aqui que merece o coro que levou, pois é muita maldade de graça”, comentário que ilustra, de forma muito significativa, a dinâmica psíquica dessas mulheres, que, inconscientemente, acreditam que merecem ser maltratadas.

Um fato trazido continuamente no grupo pelas participantes foi o de que o serviço de acolhimento no qual elas estão abrigadas segue as normas técnicas de acolhimento, pois oferece uma boa estrutura e é muito organizado, permitindo uma reestruturação das mulheres por ele atendidas em relação aos seus aspectos psíquicos, físicos e financeiros. As participantes destacaram a importância da convivência com as funcionárias da Casa Abrigo, enfatizando que a estrutura do local permite que elas possam planejar com mais cuidado sua vida após o abrigamento, de modo a se tornarem mais independentes.

Os comentários das mulheres abrigadas sobre a importância da própria estrutura da Casa Abrigo reforçam a importância da instalação desse tipo de centros de acolhida e de que seu funcionamento ocorra conforme as Diretrizes Nacionais para Abrigamento às Mulheres em Situação de Risco e Violência (BRASIL, 2011bBRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e Violência. 2011b. https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/diretrizes-nacionais-para-o-abrigamento-de-mulheres-em-situacao-de-risco-e-de-violencia. Acesso em: 20 ago. 2018.
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
), pois apenas serviços que se dedicam ao cumprimento dessas diretrizes possibilitam um trabalho eficaz, capaz de permitir que as mulheres que sofreram violência, quando acolhidas, possam ressignificar a situação de violência por elas sofrida e modificar o conceito sobre si mesmas e sobre o seu potencial para a superação de suas dificuldades.

Considerações finais

O presente trabalho teve como objetivo identificar a adequação da estratégia de grupo de apoio para o atendimento às demandas de mulheres em situação de violência, pois não foram encontradas referências bibliográficas sobre o tema, e há ainda pouca literatura sobre a utilização de técnicas de grupos com essa população.

A análise, através da leitura exaustiva dos dados coletados e registrados pelas pesquisadoras, identificou pontos positivos e negativos da utilização dessa estratégia para esse tipo de população.

Utilizando-se da técnica de grupo de apoio, foi possível trabalhar com as participantes questões voltadas à sua autoestima, relacionamentos interpessoais e seus desdobramentos, o que fortaleceu os vínculos entre as mulheres abrigadas, que puderam oferecer apoio umas às outras em relação à situação de violência que enfrentaram. Ao longo do processo grupal, identificou-se uma maior interação entre as usuárias do serviço, por meio da qual as experiências vividas puderam ser ressignificadas, assim como foi possível uma reflexão acerca de questões pessoais das participantes.

Além disso, a estratégia promoveu o fortalecimento das defesas no grupo de mulheres, o que se torna muito benéfico, considerando que sua estadia na casa não é permanente, por isso a necessidade de se prepararem para o momento de saída do serviço de proteção para retomarem suas vidas. O suporte social oferecido pelo grupo promoveu mudanças no repertório para a solução de problemas das mulheres abrigadas, antes muito limitado em função dos anos de violência sofridos. Os encontros também possibilitaram uma reflexão sobre questões existenciais, o que fortaleceu as mulheres para enfrentarem as situações com as quais irão se deparar ao deixarem o serviço de acolhimento.

Como ponto negativo, identificou-se que o fato de as mulheres abrigadas conviverem diariamente no mesmo ambiente pode contaminar o setting, prejudicando a dinâmica grupal, pois as situações ocorridas na casa e no dia a dia acabam sendo discutidas durante os encontros, o que aumenta a tensão durante sua realização. Por isso, para a formação de novos grupos de apoio com essa população, seria importante que ocorressem fora da Casa Abrigo, proporcionando às participantes um distanciamento em relação aos conflitos presentes no cotidiano da casa. Ademais, seria interessante a realização de grupos abertos, que possibilitassem a entrada de novas integrantes, visto que a casa é transitória e recebe novas acolhidas de tempos em tempos.

Outro ponto importante foi a declaração das mulheres do grupo sobre a qualidade e boa estrutura do serviço em que estão abrigadas e sobre o acolhimento que lhes foi oferecido pelas profissionais que integram a equipe técnica da Casa Abrigo. Esse dado reforça a importância desse tipo de política pública para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, cujo objetivo é o de permitir a reestruturação dessas mulheres, não somente em relação às questões materiais, mas especialmente em relação aos seus recursos psicológicos.

Referências

  • BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha). Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em: 13 jul. 2020.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
  • BRASIL. Fundação Perseu de Abramo. Mulheres Brasileiras no Espaço Público e Privado, 2010. https://apublica.org/wp-content/uploads/2013/03/www.fpa_.org_.br_sites_default_files_pesquisaintegra.pdf Acesso em: 20 ago. 2018.
    » https://apublica.org/wp-content/uploads/2013/03/www.fpa_.org_.br_sites_default_files_pesquisaintegra.pdf
  • BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, 2011a. https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres Acesso em: 20 ago. 2018.
    » https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/politica-nacional-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
  • BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Diretrizes Nacionais para o Abrigamento de Mulheres em Situação de Risco e Violência 2011b. https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/diretrizes-nacionais-para-o-abrigamento-de-mulheres-em-situacao-de-risco-e-de-violencia Acesso em: 20 ago. 2018.
    » https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-a-violencia/pdfs/diretrizes-nacionais-para-o-abrigamento-de-mulheres-em-situacao-de-risco-e-de-violencia
  • CARNEIRO, Alessandra Acosta; FRAGA, Cristina Kologeski. A Lei Maria da Penha e a proteção legal à mulher vítima em São Borja no Rio Grande do Sul: da violência denunciada à violência silenciada. Serviço Social & Sociedade, Rio Grande do Sul, n. 110, p. 369-397, 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-66282012000200008
    » https://doi.org/10.1590/S0101-66282012000200008
  • FONSECA, Denire Holanda da; RIBEIRO, Cristine Galvão; LEAL, Noêmia Soares Barbosa. Violência doméstica contra a mulher: realidades e representações sociais. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 24, n. 2, p. 307-314, 2012. https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000200008
    » https://doi.org/10.1590/S0102-71822012000200008
  • GABBARD, Owens Glen. Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica Porto Alegre: Artmed, 2006.
  • GARCIA, Claudia Amorim; COUTINHO, Luciana Gageiro. Os novos rumos do individualismo e o desamparo do sujeito contemporâneo. Psychê, São Paulo, v. 8, n. 5, p. 125-140, 2004. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382004000100011 Acesso em: 15 out. 2018.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382004000100011
  • GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
  • GUANAES, Carla; JAPUR, Marisa. Fatores terapêuticos em um grupo de apoio para pacientes psiquiátricos ambulatoriais. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 23, n. 3, p. 134-140, 2001. https://doi.org/10.1590/S1516-44462001000300005
    » https://doi.org/10.1590/S1516-44462001000300005
  • GUIMARÃES, Renata Cavalcante Santos et al. Impacto na autoestima de mulheres em situação de violência doméstica atendidas em Campina Grande, Brasil. Revista Cuidarte, Bucaramanga, Colômbia. v. 9, n. 1, p. 1988-1997, 2018. http://dx.doi.org/10.15649/cuidarte.v9i1.438
    » https://doi.org/10.15649/cuidarte.v9i1.438
  • LEANDRO, Ursula Fiess Amaranto. Implementação de políticas públicas e desafios ao enfrentamento da violência contra a mulher. In: II SEMANA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS POLÍTICAS: REPENSANDO A TRAJETÓRIA DO ESTADO BRASILEIRO, 2014. Universidade Federal de São Carlos. Anais... São Carlos, 2014. p. 1-20.
  • MOSCHETA, Murilo dos Santos; SANTOS, Manoel Antônio dos. Grupos de apoio para homens com câncer de próstata: revisão integrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 5, p. 1225-1233, 2012. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000500016
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000500016
  • MOURA, Maria Aparecida Vasconcelos; NETTO, Leônidas de Albuquerque; SOUZA, Maria Helena Nascimento. Perfil sociodemográfico de mulheres em situação de violência assistidas nas delegacias especializadas. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 435-442, 2012. https://doi.org/10.1590/S1414-81452012000300002
    » https://doi.org/10.1590/S1414-81452012000300002
  • RAMOS, Magdalena. Introdução a terapia de casal São Paulo: Claridade, 2006.
  • RESSTEL, Cizina Célia Fernandes Pereira. Desamparo psíquico nos filhos de dekasseguis no retorno ao Brasil São Paulo: UNESP; Cultura Acadêmica, 2015. http://books.scielo.org/id/xky8j/pdf/resstel-9788579836749.pdf Acesso em: 15 out. 2018.
    » http://books.scielo.org/id/xky8j/pdf/resstel-9788579836749.pdf
  • SANTOS, Manoel Antônio dos et al. Grupo de apoio a mulheres mastectomizadas: cuidando das dimensões subjetivas do adoecer. Revista SPAGESP: Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo, v. 12, n. 2, p. 27-33, 2011. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702011000200004 Acesso em: 4 dez. 2018.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702011000200004
  • VIGÁRIO, Carolina Barbosa; PAULINO-PEREIRA, Fernando César. Violência contra a mulher: análise da identidade de mulheres que sofrem violência doméstica. Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 5, n. 2, p. 153-172, 2014. http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/1483 Acesso em: 4. Dez. 2018.
    » http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/1483
  • 1
    Para preservar a identidade das participantes, todas receberam nomes fictícios.

Editado por

Editora responsável pelo processo de avaliação:

Cláudia Castanheira de Figueiredo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2019
  • Revisado
    31 Dez 2021
  • Revisado
    11 Mar 2023
  • Aceito
    22 Maio 2023
Universidade Federal Fluminense, Departamento de Psicologia Campus do Gragoatá, bl O, sala 334, 24210-201 - Niterói - RJ - Brasil, Tel.: +55 21 2629-2845 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista_fractal@yahoo.com.br