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É preciso isolar-se? Alteridade e isolamento urbano na produção de subjetividades

Is isolation necessary?Alterity and urban isolation in the subjectivities production processes

¿Es necesario aislarse? Alteridad y aislamiento urbano en la producción de subjetividades

Resumo

O presente artigo visa discutir e problematizar a produção de subjetividade por meio da articulação entre obra literária, sua forma de construção e descrição, e os tensionamentos provenientes do encontro cotidiano com a diferença. Busca-se analisar contextos de valorização do isolamento urbano, refletindo sobre seus efeitos, como a individualização das formas de relação e o cerceamento e a restrição de possibilidades de afetar e ser afetado por outrem, bem como a emergência de novas formas de ser e estar no mundo. A reflexão aponta para os processos agenciados nos territórios existenciais, levando à manutenção do habitual ou à transformação pela diversidade.

Palavras-chave:
alteridade; produção de subjetividade; processos de urbanização; isolamento; territórios existenciais

Abstract

The present article aims to discuss and problematize the subjectivity production, articulating literary work, its form of construction and description, and the tensions arising from the daily encounter with the otherness. The objective is to analyze contexts which valorize urban isolation, reflecting on its effects, as an individualization of the forms of relation and restriction of the possibilities of affecting and being affected by others, as well as an emergence of new ways of being in society. The discussion is how the processes in the ‘existing territories’ leads to the maintenance of the habitual behavior or to its transformation by the diversity.

Keywords:
alterity; subjectivity production; urbanization processes; isolation; existential territories

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir y problematizar la producción de subjetividad a través de la articulación entre una obra literaria, su forma de construcción y descripción, y las tensiones que surgen del encuentro cotidiano con la diferencia. Busca-se analisar contextos de valorização do isolamento urbano, refletindo sobre seus efeitos, como a individualização das formas de relação e o cerceamento e a restrição de possibilidades de afetar e ser afetado por outrem, bem como a emergência de novas formas de ser e estar en el mundo. La reflexión apunta a los procesos dispuestos en los territorios existenciales, que conducen al mantenimiento de lo habitual oa la transformación a través de la diversidad.

Palabras clave:
alteridad; producción de subjetividad; procesos de urbanización; aislamiento; territorios existenciales

Perdidos no Bronx

- Sherman, eu tenho certeza de que aquele é o retorno para Manhattan.

- Tem razão, queridinha, mas não tenho como chegar até lá agora.

- Para onde vai essa estrada?

- Para o Bronx

[...] A mala lúgubre de uma cidade descortinava-se diante dele, à luz amarelo-químico dos lampiões. Aqui e ali havia vestígios de entulho de obra. A terra parecia feita de concreto, só que descia nessa direção e subia naquela... as colinas do Bronx...reduzidas a asfalto, concreto e cinzas... num medonho crepúsculo amarelo. Teve que olhar duas vezes para se certificar de que ainda estava dirigindo por uma rua de Nova York.

[...] - O que é aquilo?

Bloqueando a estrada - não era um bicho... Bandas de rodagem... Era uma roda... Seu primeiro pensamento foi que uma roda se soltara de um carro na via expressa e rolara até a rampa. De repente o carro ficou completamente silencioso, o motor morrera. Verificou o freio para se certificar de que estava travado. Então abriu a porta.

- Que esta fazendo, Sherman?

- Vou empurrar aquilo para fora do caminho.

- Cuidado. E se vier um carro?

[...] Virou-se na direção do Mercedes. Dois vultos!... Dois rapazes - negros - na rampa, vindo por trás dele... Boston Celtics!... O mais próximo usava um blusão de basquetebol; prateado e com a palavra CELTICS no peito... Não estava a mais de quatro ou cinco passos de distância... um físico musculoso... a jaqueta estava aberta... uma camisa branca... um peito impressionante... rosto quadrado... queixo largo... uma boca rasgada... que expressão era aquela?... Caçador! Predador!... O rapaz encarou Sherman olho no olho... caminhava lentamente... O outro era alto, mas magricela, com um pescoço comprido, um rosto fino... delicados... os olhos muito abertos... assustado... Parecia aterrorizado... Usava um suéter muito largo... Estava a um ou dos passos atrás do outro...

- Eh! - disse o grandalhão - Precisa de ajuda?

Sherman ficou parado, segurando o pneu e encarando.

- Que aconteceu, cara? Precisa de ajuda?

[...] O grandalhão vinha na direção do carro. Segurava o pneu no alto. Maria disparou para a frente, rangindo os pneus, direto em cima dele. Ele mergulhou tirando o corpo fora... uma sombra... um tranco terrível... O pneu atingiu o pára-brisa e quicou sem quebrar o vidro... Os boches! Maria deu uma guinada para a esquerda para evitar bater nas latas... o magricela parado bem ali... a traseira do carro rabeou... toque! O magricela já não estava de pé...

[...]- Bem... só estou pensando alto - disse Sherman - Acho que devíamos comunicar. Dessa forma nos protegemos.

Maria expirou com força, como se faz quando se está chegando ao final da paciência e virou a cabeça.

- Bem, suponha que o sujeito esteja ferido.

Ela olhou para ele e riu baixinho.

- Francamente, não ligo a mínima.

- Mas suponha...

- Olhe, conseguimos sair de lá. Como conseguimos não faz diferença.

-Mas suponha...

- Suponha uma ova, Sherman. Aonde pretende ir para contar à policia? Que vai dizer?

- Não sei. Só vou contar o que aconteceu.

- Sherman, vou dizer a você o que aconteceu. Sou da Carolina do Sul e vou lhe dizer em inglês claro. Dois crioulos tentaram nos matar e fugimos. Dois crioulos tentaram nos matar na selva e fugimos da selva e ainda estamos respirando e é isso aí.

( WOLFE, 1988 WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. , p. 114-134)

Adentrar o desconhecido. Ver-se em um território onde não se encontram os caminhos e sinais habituais. Perceber-se levado ao movimento, à necessidade de ir, de desbravar, de criar uma rota ou então buscar as já existentes. Desterritorializar-se do familiar, permitindo-se habitar o território emergente junto à diferença. Tarefas necessárias quando a realidade que conhecemos se mostra fora de alcance ou sem força para produzir sentidos tangíveis (ROLNIK, 1989ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 1989.). O contato com o desconhecido implica uma ruptura por vezes desconcertante. Ao passo em que se exclui o familiar, aquilo que nos tem servido de base para a construção da realidade, o novo traz consigo os desafios de uma nova configuração e a angústia proveniente de seu incerto sucesso. Nesse jogo em que as matérias de expressão mais comumente territorializadas disputam terreno com a urgência de novos agenciamentos, parece ser mais confortável e seguro prender-se ao território habitual, do que se aventurar no caos do desconhecido. Como aponta Rolnik (1989ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 1989.), não se compreende a sua linguagem, não se compreende seu hábito. Seu funcionamento causa estranheza.

O texto acima destacado diz respeito a um trecho de obra literária, A Fogueira das Vaidades, do autor estadunidense Tom Wolfe (1988WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.). Ao longo da obra podemos acompanhar as transformações vividas pelo personagem Sherman McCoy, após a fatídica noite no Bronx e o acidente que acabou tirando a vida do jovem magricela Henry Lamb. Dentro da narrativa, o acidente tem um papel central, sendo a ligação de todos os personagens. Porém, para este trabalho, o trecho destacado, o contexto do acidente, constitui um disparador reflexivo, algo que permite analisar o contato com o desconhecido, uma vez que leva o leitor a acompanhar uma certa política de alteridade, seus contornos na vivência urbana e os efeitos daí decorrentes.

Na passagem do livro de Wolfe, a visita ao Bronx é algo que acontece por acidente. É possível notar que, durante o trajeto, o desconforto, o medo e a insegurança estavam presentes. Aquele era um local desconhecido, que em cada detalhe gritava a distância de realidades. É dentro deste contexto que ocorre o acidente e que o personagem de Sherman vê sua imagem rígida inicial se romper. Ao ser deslocado de seu território existencial usual, Sherman é movido a uma nova realidade. Conforme pontuam Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Acerca do ritornelo. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4, p. 115-170.), e também retomam Haesbaert e Bruce (2002HAESBAERT, Rogério; BRUCE, Glauco. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. GEOgraphia, v. 4, n. 7, p. 7-22, 2002. https://doi.org/10.22409/GEOgraphia 2002.v4i7.a13419
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), território existencial constitui-se como fruto de um agenciamento de matérias de expressão do desejo, um canal em que se desemboca toda uma pragmática histórica, estética e social. Assim, ao se deparar com uma realidade distinta da rotineira, esta não lhe dá direção, fazendo-o titubear e considerar muito rapidamente diferentes possibilidades, sempre vinculadas ao medo e ao estranhamento. Ao adentrar o Bronx e avistar as duas pessoas se aproximarem de seu carro, o Serman McCoy reflete se eles irão assaltá-lo, se serão gentis e sobre como responderia:

Era uma voz prestimosa. Me pondo no jeito! Uma mão no bolso da jaqueta. Mas parece sincero. É uma armação, seu idiota! Mas supunha que queria apenas ajudar? Que estão fazendo, nesta rampa? Não fizeram nada - não ameaçaram. Mas vão! Seja bonzinho. Está louco? Faça alguma coisa! Aja! Um som invadiu cabeça, o som de um jato de vapor. Segurou o pneu diante do peito. Agora! Zás! (WOLFE, 1988WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p.130)

Assim, ao articulamos as vivências do personagem Sherman McCoy com as teorias referentes à produção de subjetividade (DELEUZE, 1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330.; DELEUZE, GUATTARI, 1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Acerca do ritornelo. In: ______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v. 4, p. 115-170.; ROLNIK, 1989ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 1989., entre outros), buscamos refletir sobre o espaço urbano, suas configurações e articulações com os diferentes modos de ser e estar no mundo, bem como os elementos que esses modos agenciam coletivamente.

O Outro, sua presença e sua voz: uma leitura polifônica

Se é possível utilizar o trabalho de Wolfe como base para o desenvolvimento de nossas ideias, é porque este apresenta grande proximidade com realidades vivenciadas no contexto brasileiro de desigualdades sociais. Reconhecemos esta proximidade analisando os personagens, seus elementos, as formas como suas conexões se estabelecem e como elas compõem as paisagens psicossociais. É um movimento que visa ir além da simples leitura. É retornar, ler e reler, observando como os processos instituintes nos personagens tornam-se fecundos para análises dos processos de produção de subjetividade. Ultrapassar o limite do que foi escrito, fixando-se nos espaços formados pelo vão entre uma frase e outra, as entrelinhas. Realizando este movimento é possível perceber que Tom Wolfe não mergulhou em distintas realidades sociais e fez emergir seus tensionamentos pelo simples fato de introduzir em sua obra a questão de classes e a problemática referente às diferenças socioeconômicas. Mas sim por possibilitar em sua narrativa um ambiente onde elementos incessantemente se conectam e se desconectam, formando a cada movimento um novo território existencial, um novo agenciamento coletivo que confere contornos às possibilidades de ser e estar no mundo.

Ao nos determos na obra de Wolfe (1988WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.), podemos observar que Sherman McCoy, antes de entrar no Bronx, compreendia-se como um homem ainda jovem, seguro de si, firme em sua aparência de responsável morador da Park Avenue e grande operador de obrigações em Wall Street. Serman se via como “Senhor do Universo”, tal qual sua autoconsciência se percebe e se enuncia na narrativa do livro. Uma pessoa para quem não havia limites, podendo ter tudo o que quisesse por direito, alguém que dentro de seu território, a Manhatan Branca, é inabalável.

A introdução de uma autoconsciência no personagem, nas partes do texto em que o leitor pode ver o que Sherman está pensando, é aquilo que cria uma ruptura no plano monológico da obra, possibilitando a criação de uma produção polifônica (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. ). Não é mais a voz do autor que ouvimos e sim a voz do personagem, dando espaço para acompanharmos seu campo de sensibilidades. Ele se apresenta enquanto consciência que percebe o mundo e permite que este o atinja, dando vazão e materialidade aos movimentos que não são visíveis. Há uma produção heterogênea entre personagem e os outros elementos que o circundam. Na produção polifônica, bem como na dialógica, tal qual a de Tom Wolfe (1988WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.), lança-se luz aos processos de produção dos modos de ser e estar no mundo, sendo mais relevante enaltecer o caminho do que se preocupar em apresentar um provável resultado do fim do percurso, pois “o que conta em um caminho, o que conta em uma linha é sempre o meio e não o início nem o fim. Sempre se está no meio do caminho, no meio de alguma coisa” (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998., p. 24).

Neste tipo de produção, o que se procura, tal qual na cartografia psicossocial (ROLNIK, 1989ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, 1989.), é acompanhar quais seriam os caminhos percorridos até se formar uma determinada composição de mundo, que ainda assim não será rígida e imutável. O percurso diz respeito a momentos, instantes que foram vividos, presenciados. Se há a necessidade do discurso de um presente e não de um ausente é porque aquele que vivencia o momento com ele dialoga.

O outro enquanto presença, sua voz enquanto ação e expressão no mundo (DELEUZE, 1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330.), é o que configura o campo de análise, de diálogo e de descrição. Podemos dizer que estes, presentes nas obras dialógicas e polifônicas, são recursos que nos permitem acompanhar os processos de tensionamento e rupturas de Sherman e, a partir daí, realizar reflexões gerais sobre a alteridade no contexto urbano contemporâneo. Não bastam apenas figuras estáticas de um outro, aquelas que em nada se fazem presentes. É preciso conversar com elas, “pois do contrário elas voltariam imediatamente para nós o seu aspecto objetificado; elas calam, fecham-se e imobilizam-se nas imagens objetificadas acabadas” (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. , p. 77-78)

Imagens composicionais do mundo são formadas a cada novo pouso no espaço terrestre. Onde o local em que habita a minha presença, assim como o local onde habita a presença de outrem, estão intimamente relacionados com a imagem que irei formar. Deleuze (1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330.), ao refletir sobre estas questões, pontua certas formas de como a presença de outrem age sobre a percepção que o sujeito tem do mundo.

E os objetos atrás de mim, sinto que eles se ligam e formam um mundo, precisamente porque visíveis e vistos por outrem. E esta profundidade para mim, segundo a qual os objetos se invadem ou mordem uns aos outros e se escondem uns atrás dos outros, eu a vivo também como sendo uma largura possível para outrem, largura em que se alinham e se pacificam (do ponto de vista de uma outra profundidade). Em suma, outrem assegura as margens e transições no mundo. Ele é a doçura das contiguidades e das semelhanças. Ele regula as transformações da forma e do fundo, as variações de profundidade (DELEUZE, 1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330., p. 315).

O que entra em cena, então, é não somente a desestabilização que o novo e o desconhecido proporcionam, como na cena de Sherman no Bronx, como a reação que ela dispara. Em um mundo individualizado, a capacidade de ser afetado por outrem parece progressivamente atrofiar-se.

Uma possibilidade de cartografar esses processos refere-se ao fato de que esta partilha de mundos possíveis se dá através das relações dialógicas (incluindo-se elementos não verbais), ou seja, através dos encontros e dos campos de afetação que se formam no território compartilhado. É pelo encontro com o outro e sua diferença que se busca dar inteligibilidade ao mundo. “Outrem é a existência do possível envolvido. A linguagem é a realidade do possível enquanto tal. O eu é o desenvolvimento, a explicação dos possíveis, seu processo de realização no atual” (DELEUZE, 1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330., p. 317). Pensar em um ‘eu’ que se descreve como um processo de realização engajado no instante em que se vive, é apresentar a sua inconclusibilidade. Um ‘eu’ que está a todo instante se atualizando a partir dos contatos estabelecidos: “‘Eu sou assim’, acabou tudo isso” (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998., p. 39).

Sherman dialoga com o seu mundo, captando signos e mensagens, apropriando-se de seus elementos para que possa se autoelucidar. Seu queixo, conforme podemos ver na obra de Wolfe, representa sua “hereditariedade brilhante”, como “filho do leão” (WOLFE, 1988WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 25). Juntando a isto sua altura e sua postura, possuía a imagem de um homem dominante. Em certa passagem do livro, o olhar do porteiro de seu prédio lhe agrada e o faz refletir sobre qual a imagem passa às pessoas que o circundam. Conclui que o porteiro olha para um representante da Park Avenue e da Wall Street, aquele que é capaz de manter uma imagem perfeita e pagar por um casaco de 1.800 dólares. Recorre aos ensinamentos do pai e conclui que o melhor a fazer é manter as aparências. É possível perceber que o personagem está em busca de um território existencial que agencie elementos que o coloquem como figura de destaque. No caso, em uma sociedade em que o acúmulo de capital é valorizado, a exposição de bens e estética associados à riqueza torna-se uma via positivada. A hereditariedade, as conquistas de recursos que sua família adquiriu, o montante que é capaz de operar na bolsa de valores, as viagens que pode fazer, os utensílios que pode comprar, os meios de transporte e lazer de que pode se valer, tudo isso é trazido como se pudesse indicar quem é Sherman McCoy, como se lhe permitisse dizer: “Este sou eu”. Assim como descrito por Ciampa (1989CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade. In: LANE, Silvia T. M; CODO, Wanderley (Org). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 58-75. , p. 65), ao afirmar que “a individualidade dada já pressupõe um processo anterior de representação que faz parte da constituição do indivíduo representado”, Sherman observa os regimes de visibilidade que socialmente ganham destaque, em detrimento de outros, e evoca toda uma bagagem representativa, pois sabe que esta irá fornecer uma imagem sua.

Pensar sobre um sujeito que tem o entendimento de si inseparável daquilo que o seu território lhe oferta é refletir sobre a produção de subjetividade, que é coletiva e territorial. Sherman pode se enunciar como Senhor do Universo, representante da Park Avenue ou pai exemplar, porém “seus enunciados nunca são senão signos de suas desterritorializações e reterritorializações” (LAPOUJADE, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. , p. 227). Toda uma geografia do modo de ser e estar no mundo está em jogo quando se busca analisar os seus enunciados, pois é dos trajetos que ela diz respeito, e principalmente dos agenciamentos possibilitados por este trajeto.

Ao enunciar, não se expressa apenas a fala de um ‘eu’. Pode se tentar colocar como portador da voz, no sentido de ser aquele que compreendeu a complexidade do mundo e agora o enuncia, mas o que se está se expressando é o trajeto, o “estar no meio”. Não apenas no meio do percurso, mas no meio de um coletivo que se agencia, estar “sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo exterior” (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998., p. 44). Todos aqueles mundos possíveis presentes, as multiplicidades individuais, os devires e afetos potencializados pelos acontecimentos, pelos encontros. Todos eles, através de um processo que diz respeito à conexão e desconexão, a encontrar e roubar o outro para si, à dupla-captura (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.), se agenciam e coletivamente se enunciam.

Porém, o enunciado é momentâneo e territorial, dizendo respeito à composição presente. Por este motivo não é possível pensar em um agenciamento coletivo de enunciação sem pensar em um agenciamento maquínico de corpos. Logo, “todo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre há uma” (LAPOUJADE, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. , p. 227).

Isolamento urbano cotidiano - fugir do horror que o Outro anuncia

Sherman, ao limitar seu mundo a Wall Street e Park Avenue, investe em um isolamento que o impede de sair de si, afastando os outros mundos possíveis e as virtualidades a eles relacionadas: “inscrevendo a possibilidade de um mundo espantoso quando ainda não estou espantado” (DELEUZE, 1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330., p. 319).

O processo de isolamento refere-se não só à ausência de contato, como também à antecipação de que esses contatos com outros, esses contatos com a diferença, seriam inseguros e perigosos, produzindo assim uma necessidade de segurança em relação a eles. Como podemos perceber no trabalho de Reginensi (2003)REGINENSE, Caterine. Rio de Janeiro: dois mundos em um só lugar. Abordagem da violência através da mobilidade quotidiana. Scripta Nova: Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, v. 7, n. 146, ago 2003. , em que problematiza os espaços residenciais cariocas e a sua relação com a mobilidade urbana, os condomínios fechados são um exemplo de isolamento como forma de fuga de outrem, que é capaz de desestabilizar o familiar, já que os serviços fornecidos e a segurança possibilitam a criação de uma barreira entre os seus moradores e o resto da cidade. Entende-se, portanto, que nestes ambientes tudo aquilo que se mostra incômodo ou espantoso pode ser eliminado, tornando o ambiente o mais agradável e homogêneo possível. Configura-se, desse modo, como uma possibilidade de garantir a familiaridade em um terreno de enorme diversidade, como são os grandes centros urbanos contemporâneos: “lembrando que a felicidade de todos dependia do esquecimento e da reificação daquilo que espanta, impregnando o cotidiano de tensão” (BAPTISTA, 2001BAPTISTA, Luis Antonio. Cidades, lugares, sujeitos: contribuições da literatura e da política. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Org). Teoria e educação no labirinto do caos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 194- 203. , p. 198)

Podemos pensar em outros ambientes que buscam eliminar a diferença produzindo atmosferas tão homogêneas e estáticas quanto possíveis, como é o caso dos shoppings centers. Baptista (2001BAPTISTA, Luis Antonio. Cidades, lugares, sujeitos: contribuições da literatura e da política. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Org). Teoria e educação no labirinto do caos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 194- 203. ) reflete sobre este exemplo, referindo-se a eles como possíveis naves espaciais que pousaram na terra, já que uma vez dentro deles é possível esquecer completamente o entorno que o abriga do lado de fora. “Ali, dia e noite, ventos, energia solar, cheiros discrepantes do exterior, geografias indicando o interno, lateralidades, o de fora, são substituídos pela estética do mercado, traçando uma espacialidade peculiar” (BAPTISTA, 2001BAPTISTA, Luis Antonio. Cidades, lugares, sujeitos: contribuições da literatura e da política. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Org). Teoria e educação no labirinto do caos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 194- 203. , p. 200). Não há espaço para a diferença ali, principalmente aquela que é capaz de arruinar a harmonia local. Com a valorização deste tipo de ambiente, a ocupação dos espaços públicos com o intuito de fazer deles territórios de partilha com o outro, onde se é possível ocupá-lo pelo desejo e deparar-se com o desejo do mundo possível alheio, torna-se pouco praticável. O que nos leva, de acordo com Baptista (2001BAPTISTA, Luis Antonio. Cidades, lugares, sujeitos: contribuições da literatura e da política. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (Org). Teoria e educação no labirinto do caos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 194- 203. , p. 199), ao apogeu do individualismo pragmático na contemporaneidade, onde as relações humanas são grotescamente coisificadas e solitárias.

Eliminar os campos de afetação no espaço público é eliminar a possibilidade de encontro com outrem e seu mundo possível, cerceando a alteridade e produzindo formas de relação mais individualizantes, que na verdade são formas de não-relação ou de relação-à-distância-segura, com pessoas cada vez mais ansiosas por seu isolamento. Estando isolado não é possível espantar-se e nem sair de si. Isto só irá acontecer quando o sujeito se propuser a circular e participar de uma nova cartografia, para além dos limites do muro de seu território usual. Foi desta forma que ocorreu com Sherman, depois de ultrapassar os limites do isolamento que o prendia em si, enquanto protegia-se do horror que existia do lado de fora de seu apartamento na Park Avenue.

Porém, de que forma a cena no Bronx proporciona mudanças nos enunciados de Sherman? É preciso reconhecer que há algo que ultrapassa os limites físicos das relações ali estabelecidas, algo que se apresenta sem ser nomeado. É aquilo que se infiltra, atravessando as relações: “uma linha de força, silenciosa e imperceptível, que passa a guiar a investigação. Ainda que difusa, e sem vir articulada em palavras e proposições precisas” (KASTRUP, PASSOS, 2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, maio/ago. 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
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, p. 276).

Primeiramente podemos refletir que, antes de mais nada, a cena no Bronx é um encontro. Encontro das diferenças, das multiplicidades, da Park Avenue com os rostos escuros, dos elegantes sapatos New & Lingwood com o casaco dos Celtics.

Todos os indivíduos estão na Natureza como sobre um plano de consistência cuja figura interna eles formam, variável a cada momento. Eles se afetam uns aos outros, à medida que a relação que constitui cada uma forma um grau de potência, um poder de ser afetado. Tudo é apenas encontro no universo, bom ou mau encontro (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998., p. 49).

Quais afetos e potências emergem no agenciamento maquínico formado pelos corpos que partilhavam o Bronx naquela noite? Nenhum dos corpos ali presentes chegou àquele local sem partir de um outro. Desta forma, ao ali se encontrarem, há uma partilha de mundos possíveis que se chocam, divergem-se. Sherman resgata a Park Avenue e os agenciamentos lá formados, pois são essas as relações que o constituem. São elas que irão conduzir de que forma ele será afetado pela nova composição. Uma potência emerge, a fuga, a “luta na Selva”. Ele sequer precisa responder à pergunta do jovem, conforme citação que abre este artigo: “Que aconteceu, cara? Precisa de ajuda?”. Conversa consigo mesmo e responde com ação: “ataca!”

É um “instinto intuído”, algo que Kastrup e Passos (2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, maio/ago. 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
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) chamam de felt-meaning e que marca o acesso a um plano comum. Plano este que não diz respeito a um território marcado pela homogeneidade, mas que “opera comunicação entre singularidades heterogêneas, num plano que é pré-individual e coletivo” (KASTRUP; PASSOS, 2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, maio/ago. 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
, p. 265). Há transversalidades que interpelam as relações formadas por aquele encontro, e elas se fazem presentes convocando ações por parte dos sujeitos ali presentes. Sendo uma inserção ao plano comum, o encontro no Bronx foi capaz de promover a ampliação da subjetividade ao acessar e conectar diferentes singularidades.

A heterogeneidade vem como uma possibilidade de bloquear a generalidade rasa, barata, superficial, fundada na semelhança e na aparência gerada pela disseminação degenerada da homogeneidade. Algo que se aproxima dos duplos pontuados por Deleuze (1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330., p. 322), que só podem ser impedidos pela presença do outro e sua heterogeneidade. É o outro quem bloqueia a duplicidade, que impede que o homogêneo produza um entendimento superficial e generalista.

A ereção generalizada é a das superfícies, sua retificação, outrem desaparecido. Então os simulacros sobem e convertem-se em fantasmas, na superfície da ilha e no voo sobre o céu. Duplos sem semelhança e elementos sem constrangimento são os dois aspectos do fantasma (DELEUZE, 1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330., p. 325).

Daí a importância do heterogêneo, do outro com sua semiótica. É ele, com sua estrutura, sua presença e sua voz que irá dissolver o concreto e material do sujeito, lhe dando a possibilidade de se refazer, de alcançar uma nova percepção do mundo. O desmoronar do sujeito diz respeito também ao desmoronar do território, a uma desterritorialização. Ao entrar no Bronx, Sherman não apenas diz “olá” para uma nova terra, ele também se despede daquela a que estava habituado. Ela não irá mais existir, ao menos não como antes. “Alguma coisa desmoronou no mundo e todo um conjunto de coisas se desmorona convertendo-se em mim” (DELEUZE, 1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330., p. 320). O acesso ao plano comum segue dissolvendo a autoconsciência de Sherman até o momento em que este reconhece o seu limite último. Ao perceber que todo o seu ambiente se modificou, após ser acusado como culpado pelo acidente com o jovem magrizela Henry Lamb, o personagem Sherman declara:

Não sei explicar a sensação. Só sei lhe dizer que já morri, ou que o Sherman Mccoy da família McCoy, de Yale, da Park Avenue e de Wall Street morreu. O eu... não sei como explicar isso, mas se, Deus o livre, algo parecido um dia lhe acontecer, saberá o que quero dizer. O seu eu... são as outras pessoas, todas as pessoas a que está ligado, e são apenas um fio (WOLFE, 1988WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 734)

Todos aqueles elementos que antes serviam de suporte para que o personagem de Sherman criasse a sua imagem rígida perdem seu valor; seu significado é alterado. Aquela imagem está morta. O que o personagem tenta dizer ao seu advogado, na declaração acima, pode, de certa forma, ser articulado ao que Deleuze (1974DELEUZE, Gilles. Michel Tournier e o mundo sem outrem. In: ______. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 311-330., p. 320) expressa em: “Eu nada sou além dos meus objetos passados, precisamente aquele que outrem fez passar. Se outrem é um mundo possível, eu sou um mundo passado”. E isto porque não é possível passar pelo choque da emergência de uma nova visão de mundo sem ter o seu mundo modificado. Sherman se vê obrigado a se reconstruir, e esta não é uma tarefa fácil. Como “Senhor do Universo”, habitava seu território de uma maneira, agora não sabe de que maneira se apropriar dele. Na verdade, não se sabe nem se este território ainda existe. Sherman se torna um Homem sem Terra.

Para além da literatura: o movimento da terra e a produção de subjetividade

Discutir os modos de subjetivação em sua relação com os territórios existenciais remete a uma conceituação de subjetividade que refuta as dimensões individuais ou sociais, como se pudessem estar separadas. Mais do que uma instância psíquica, localizada internamente em alguém, ou um determinismo social hierárquico e rígido, analisam-se, aqui, processos de subjetivação que produzem sentido, ou seja, toda uma semiótica, sem estar centrados em agentes individuais ou grupais. Trata-se de processos “duplamente descentrados” (GUATTARI; ROLNIK, 2005GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes , 2005. , p. 40). Assim, tomando a discussão acima como pano de fundo, propõe-se um breve diálogo entre a proposição de Lapoujade (2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. ), sobre terra e fundamento, com a de Bakthin (2010), sobre obra polifônica e produção da autoconsciência nas obras literárias, não no intuito de realizar correlações, mas sim no de construir uma caixa de ferramentas teórico-metodológicas (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2008.) que promovam reflexão acerca da produção de subjetividade. Desse modo, retornando ao texto de Wolfe (1988WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.) e observando o personagem Sherman, observamos que a formação de sua autoconsciência não se dá de maneira abrupta. Sendo interesse do autor a construção de uma obra polifônica, ocorre a ampliação das margens do personagem para que sua constituição se dê em meio a nuances. Mas isto não significa a ausência de algo que confira alguma densidade mais contínua, que dê um contorno mais ou menos definido, mesmo que provisório, de quem é Sherman, algo próximo do que Lapoujade (2015)LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. denomina de fundamento. Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. ) reforça que, ao escolher o herói de sua obra e o dominante de sua representação, o autor já está preso à lógica interna do que escolheu. Há inúmeras formas de a autoconsciência se revelar, porém sempre tendo como base esta lógica. Será a partir deste ponto que irá se desenvolver o plano constituinte do personagem. Papel este que, de maneira reflexiva, pode ser relacionado ao do fundamento, pois é ele que fornece a terra, o solo, para que o modo de ser e estar no mundo possa se constituir (LAPOUJADE, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. ).

Seguindo as contribuições de Lapoujade (2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. ), torna-se importante notar que toda ação, toda existência na terra, traz uma pretensão, pois sempre que alguém se move, o faz em busca de algo. Ao se convocar o fundamento como forma de respaldo para determinada ação, está se convocando o direito a uma pretensão específica. O fundamento está, assim, atrelado ao direito, mais precisamente ao direito sobre a terra. Há aí uma função dupla desempenhada pelo fundamento: se ele é que fornece as direções para que o indivíduo possa se orientar dentro da terra que lhe forneceu, não o faz sem orientar as regras de permanência. Se há uma pretensão, há um movimento de julgamento, um movimento de algum tipo de discernimento, sendo preciso questionar que direito mantém esta pretensão válida dentro do território fornecido pelo fundamento.

Qual é, com efeito, o papel essencial do fundamento, enquanto operação da razão suficiente? Não é errado dizer que o fundamento confere uma base ou um solo, celeste ou terrestre, mas ele não pode conferir este solo sem levantar imediatamente o problema de sua atribuição, de sua decupagem ou de sua distribuição [...] O fundamento não confere uma terra ao fundamento sem determinar, simultaneamente, o princípio segundo o qual essa terra deve ser distribuída (LAPOUJADE, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. , p. 30).

O solo não é apenas fornecido, ele é distribuído. Há inúmeras multiplicidades habitando a mesma terra, sendo preciso controlar este caos de pretensões. Talvez não haja espaço para todas elas. Inicia-se um processo sempre contínuo de distribuição, de demarcação, regulamentando quem irá ocupar determinados territórios, quem tem direito a eles. Porém, assim como nos foi alertado, “julgar é a profissão de muita gente e não é uma boa profissão” (DELEUZE; PARNET, p. 8, 1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.), isto porque o papel do juiz acaba por se prender nas amarras de controle da máquina binária, o que é bom e o que é ruim, o que pode e o que não pode.

Ao questionar a pretensão de alguém em determinado território, ignoram-se todos os atravessamentos que são expressos através daquela pretensão. Analisa-se a situação de forma isolada, sem realmente se deixar afetar pelo mundo possível expresso por este alguém. O que se sente é que há sempre um movimento de controle e fuga, de domínio e de luta, enfim, de disputa. Aquelas multiplicidades que buscam o direito à determinada pretensão, logo, logo a determinado território, tentam combater o binarismo. Não aceitam se prender em seus achismos de justiça ou verdade, e permanecem reivindicando suas pretensões.

Se nas histórias da vida real não existe o autor da história, será que não são todas as personagens que montam a história? Todos nós - eu, você, as pessoas com quem convivemos - somos as personagens de uma história que nós mesmos criamos, fazendo-nos autores e personagens ao mesmo tempo (CIAMPA, 1989CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade. In: LANE, Silvia T. M; CODO, Wanderley (Org). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 58-75. p. 60)

Não é um movimento tranquilo aquele que leva à atualização da subjetividade. Podemos definir tal movimento como aberrante, tal qual nos indica Lapoujade (2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. ). Segundo o autor, haverá resistência à transformação sempre que um movimento de tensionamento ganhar emergência. Lapoujade indica que, se há correntes de ar que querem nos levar para longe daqui, haverá na terra fornecida pelo fundamento uma disputa, buscando que não saiamos do lugar. De um lado há o fundamento que pauta e é pautado por pretensões que se mantiveram presentes ao longo de um período de tempo e, de outro, há aqueles que disputam o território apresentando novas pretensões, novas lógicas que tensionam o fundamento até seu ponto de ruptura. Assim, não é uma tarefa fácil suportar a agonia trazida pelo desfundamento. Por isso, nem todos estão dispostos a enfrentá-lo. Lapoujade (2015)LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. pontua que é possível realizar uma divisão na qual, de um lado, estão aqueles que desistem de questionar o princípio de razão suficiente, correndo o risco de alcançar o sem-fundo, e de outro estão aqueles que mantêm o questionamento até o fim.

Questionar o princípio de razão suficiente significa inevitavelmente criar uma abertura para o sem-fundo, momento de ruptura em que não há mais base, nem solo (LAPOUJADE, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. ). Sendo difícil suportar as consequências de tamanho desmanche do que lhe é familiar, inicia-se um processo de fechamento, de obstacularização do novo. E para isto é necessário evitar ao máximo pretensões que afrontem o princípio de razão suficiente. Não é este o alerta que o amigo de Sherman, Rawlie Thorpe, dá à Sherman? - “É preciso se isolar, se isolar, se isolar” (WOLFE, 1988WOLFE, Tom. A fogueira das vaidades. Tradução de Lia Alverga-Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 1988., p. 82). Sendo a intenção garantir seu território, não corra o risco de abrir-se para o sem-fundo e assim ser levado a se desterritorializar, afaste-se.

O processo de desterritorialização é um “processo natural da terra” (LAPOUJADE, 2015LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1, 2015. ); não há como fugir. Mas a sede por garantir o direito à terra faz com que os indivíduos não reconheçam isto e, assim como Sherman, resistam: cada um deve ficar com a parte da terra que lhe foi concedida, não ultrapasse os limites.

Conclusão

A análise do processo de ruptura sofrido pelo personagem Sherman McCoy e o desdobramento deste processo em seus enunciados nos colocam diante de uma viagem por diferentes paisagens, provenientes tanto da literatura como do cotidiano. Paisagens estas que possuem características comuns, como a tendência ao individualismo, ausência do trânsito pela diferença e a disputa que acirra os elementos díspares da alteridade.

Entendendo a produção de subjetividade como um agenciamento sempre coletivo, a realidade de cada território nos leva ao encontro de subjetividades produzidas, muitas vezes, em um ambiente que busca a homogeneidade, não havendo espaço para o diferente, para o estranho, para aquilo que nos desloca e promove rupturas. Uma vez que o encontro com a diferença, potencializado pela presença e pela voz de outrem, possibilita a reflexão, modificação e emergência de uma nova paisagem psicossocial, ao nos depararmos com contextos de valorização do isolamento, vamos de encontro a subjetividades que reatualizam imagens cada vez mais objetificadas, tanto de si mesmo quanto do outro. O que implica diretamente a insensibilidade para se afetar com outrem.

Este processo, em que a alteridade se dá pela acentuação daquilo que distancia um grupo do outro, acaba por encontrar ressonância nos elementos do fundamento que fornecem base somente para um território existencial habitual, rotineiro e familiar, não havendo circulação que permita ao sujeito compreender os limites da expansão da vida, quando cerceada por território demasiadamente demarcado e não poroso - tudo o que é diferente é entendido como ameaça. Ganha força a austeridade para com o outro e perde-se a aspereza da alteridade (GUATTARI, 1995GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1995.).

Nesse sentido, torna-se importante refletir sobre os processos de produção de subjetividade, que têm ganhado terreno nos grandes centros urbanos, para que, além das individualizações e isolamentos, também possamos lançar luz às multiplicidades que não se conformam com os limites presentes e produzem novas formas de relação, em que a diversidade encontra possibilidade de se manifestar. Desterritorializar-se se faz necessário, pois a alteridade e seus efeitos não cessam de provocar rearranjos de campos de força, nos convocando a ocupar novos espaços, novas posições frente ao mundo, com outras margens e horizontes.

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Editoras responsáveis pelo processo de avaliação:

Ana Claudia Lima Monteiro e Cláudia Castanheira de Figueiredo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2017
  • Revisado
    06 Mar 2023
  • Revisado
    17 Abr 2023
  • Aceito
    17 Abr 2023
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