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A relação linguagem, pensamento e ação na microgênese das funções psíquicas superiores

Resumos

O objetivo deste artigo é demonstrar, de forma concreta, a mediação da fala na constituição das funções psíquicas superiores do sujeito, buscando articular autores da vertente histórico-cultural, como Vigotski,1 com a perspectiva metodológica de Heloisa Marinho, pesquisadora brasileira que centrou na linguagem sua contribuição pioneira no âmbito do desenvolvimento infantil. A metodologia utilizada fundamentou-se no estudo da relação oral-gráfica (MARINHO; WERNER, 1982), em amostra constituída por três mil crianças, foi realizada a análise microgenética-indiciária (WERNER, 1999, 2001) da atividade gráfica de menino de dois anos de idade cronológica, oriundo da creche UFF. Como resultado, foi possível ilustrar como, na vigência de processo de interação-interlocução adulto-criança e criança-crianças, ocorrem transformações qualitativas nas funções psíquicas (microgênese), nas quais a mediação, por meio dos signos da linguagem (mediação semiótica), reveste-se de papel fundante e constitutivo.

microgênese; desenvolvimento da linguagem; mediação semiótica; funções psíquicas superiores; Vigotski


Objective

to concretely illustrate the role of language mediation in the constitution of the subject’s higher mental functions, seeking to articulate authors of a cultural-historical background, such as Vygotsky, along with the methodological perspective of Heloisa Marinho, a Brazilian researcher who focused on language and was a pioneering contributor to the area of child development.

Methodology

based on the study of the relationship between the oral and graphic mode of communication (MARINHO; WERNER,1982) and using Werner’s (2012) observation script, a microgenetic analysis of graphic activity (WERNER,1999,2001) was conducted with a sample of 3000 children on a two-year-old boy from the university nursery.

Result

it was possible to illustrate the way in which, in the setting of adult-child and child-child interactions, qualitative transformations occur in psychological functions in which semiotic mediation has a foundational and constitutional role.

microgenesis; language development; semiotic mediation; higher mental functions; Vygotsky


Introdução

Importância da linguagem na constituição do sujeito

Devido a predominância da forma auditiva, articular a linguagem interior toma quase sempre esse feitio, pensamos falando. Embora na maioria das vezes as palavras pensadas não se exteriorizem em som, a enervação muscular esta na iminência de provocá-los. Quando no esforço de recordação a enervação intensifica-se, sem querer pensamos alto, isto é, o solilóquio em voz alta substitui o verbo anterior. Por meio dos sinais da linguagem, o indivíduo estimula-se a si mesmo e torna a experiência passada facilmente acessível no delinear [planejar] conduta futura. A linguagem possibilita a experiência mental, ensaio cômodo e rápido de atividade exteriorizada. Ao fazermos plano mental de transportar-nos de um lugar a outro, evocamos por meio de sinais a experiência para regular a conduta futura. A linguagem interior, lembrando vários meios de transporte, leva-nos a escolher de antemão o preferível poupando futuras hesitações. Graças ao poder de reviver o passado pela linguagem, a experiência anterior tornar-se utilizável para a conduta por vir. Diz Dewey que coisas e acontecimentos que tem nome são libertados de contingências locais e acidentais, podendo, independentes de determinado espaço ou tempo ser trazidos ao foco da atenção pelos signos da linguagem (MARINHO, 1935MARINHO, H. Da linguagem na formação do Eu. Comunicação lida perante a Primeira Conferência Inter-Americana de Higiene Mental. Rio de Janeiro, 1935., p. 4).

Heloisa Marinho, em 1935, ao retornar de sua formação em filosofia e psicologia na Universidade de Chicago – uma das instituições universitárias mais progressistas na sua época –, publicou o inédito artigo “Da linguagem na formação do Eu”, do qual faz parte a citação acima. Assim, busca-se enfatizar, a título de introdução, o tema que iremos tratar: o papel da mediação da linguagem na constituição das funções psíquicas superiores do sujeito.

Com este objetivo, buscou-se articular diferentes autores da perspectiva da psicologia histórico-cultural, principalmente na linha de Vigotski, com as pesquisas e a perspectiva metodológica de Heloisa Marinho, pesquisadora brasileira que centrou sua contribuição pioneira, no âmbito do desenvolvimento e da educação infantil, no estudo da linguagem da criança (MARINHO, 1955MARINHO, H. A linguagem na Idade Pré-escolar. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1955.).

Relação linguagem, pensamento e ação

Neste tópico, a fundamentação teórica elaborada por Werner (1997WERNER JR., J. Transtornos Hipercinéticos: contribuições do trabalho de Vygotsky para reavaliar o diagnóstico. 1997. 224 f. Tese (Doutorado)__Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 1997., p. 12-20) sobre a relação entre linguagem, pensamento e ação, pode ser útil para a compreensão da microgênese das funções psíquicas superiores, como será apresentada a seguir.

A constituição do sujeito não é um processo mecânico e linear de ação do meio sobre um indivíduo passivo, nem, ao contrário, decorre da ação isolada de um indivíduo ativo sobre o meio, mas envolve um “processo constitutivo recíproco de imersão na cultura e emergência simultânea da individualidade singular no contexto da prática social” (SMOLKA; GÓES; PINO, 1995SMOLKA, A. L.; GÓES, M. C. R.; PINO, A. The Constitution of the subject: a persistent question. In: WERTSCH, J. V.; DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. New York: Cambridge University Press, 1995. p. 165-184., p. 179).

A participação do outro na constituição do sujeito é fundante, à medida que a relação do sujeito com o mundo só é possível através da mediação de um outro sujeito: “o caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa” (VYGOTSKY, 1988VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1988., p. 33).

Uma das consequências dessa mediação está na relação entre pensamento e linguagem. Vigotski destaca como a apropriação da linguagem – sistema de signos linguísticos organizado culturalmente – implica uma transformação radical na constituição do pensamento e da consciência. O pensamento tipicamente humano é constituído pela linguagem, pois é a partir do momento em que a linguagem entra em cena, no curso do desenvolvimento, que o pensamento se torna verbal e a fala racional. O surgimento do pensamento verbal não acontece de forma mecânica. A internalização da linguagem e o desenvolvimento do pensamento verbal ocorrem através de longo processo de mudanças, que, por sua vez, alteram o modo de o sujeito operar a realidade.

Quanto ao caráter singular de compreensão e de síntese dos eventos constitutivos da comunicação e do pensamento, Vigotski (1987VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987., p. 5) comenta: “a verdadeira comunicação humana pressupõe uma atitude generalizante, que constitui um estágio avançado do desenvolvimento do significado da palavra”.

A conceitualização depende tanto dos significados das palavras quanto do sentido que elas assumem em dado contexto. Por essa razão, os sujeitos em interação podem não significar do mesmo modo, mesmo que as palavras da comunicação lhes sejam familiares.

O sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. O significado é apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa. Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes, altera o seu sentido [...]. Na fala interior [...] uma única palavra está tão saturada de sentido, que seriam necessárias muitas palavras para explicá-la na fala exterior (VYGOTSKY, 1987VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987., p. 125-126).

Ao abordar o papel da linguagem, Vigotski faz referência a várias funções ao longo de sua obra. Conforme comenta Wertsch (1988)WERTSCH, J. V. Vygotsky y la formación social de la mente. Barcelona: Paidós, 1988., suas discussões mostram uma categorização de funções em pares opostos (por exemplo: sinalizadora/ significativa; comunicativa/ intelectual; social/ individual; indicativa/ simbólica). Ainda que todas essas elaborações sejam indispensáveis para se entender essa visão semiótica do psiquismo, talvez seja mais produtivo, diante da diversidade de funções apontadas, considerá-las como instâncias indissociáveis de um mesmo processo semiótico e dialógico. Entretanto, cabe um destaque das interpretações sobre a função reguladora da linguagem, que permite a organização e o planejamento das ações.

Antes de controlar o próprio comportamento, a criança começa a controlar o ambiente com a ajuda da fala. Isso produz relações com o ambiente, além de uma nova organização do próprio comportamento (VYGOTSKY ,1988VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1988., p. 27).

A “função reguladora da linguagem” (FRL) também está relacionada ao conceito de Vigotski de mediação semiótica e é um constructo que fornece elementos para subsidiar questões teóricas e metodológicas.

Como já foi dito, além de função comunicativa e constitutiva do sujeito, a linguagem tem outras importantes funções, como o planejamento e a organização da ação e a autorregulação do sujeito.

Em relação ao planejamento e à organização da ação e do pensamento tipicamente humano, pode-se observar em vários trabalhos de Vigotski, que ele considera o momento em que a ação prática e a fala – até então linhas de consideradas independentes – convergem, como “o […] mais significativo no curso do desenvolvimento intelectual, que origina formas especificamente humanas de inteligência prática e abstrata” (VYGOTSKY, 1987VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987., p. 24).

Seguindo nessa direção, a gênese da função planejadora da linguagem está no uso de signos pela criança: no início do seu processo de desenvolvimento, a criança usa diferentes formas de linguagem para comunicação afetiva: choro, balbucio, primeiras palavras, pequenas frases, gestos etc. Essa forma básica de comunicação é orientada para o outro e recebe deste outro um significado. Simultaneamente, a criança realiza a exploração de objetos que estão no seu campo visual (ergue a mão para pegar objetos, coloca-os na boca, toca um sino e procura a origem do som, encaixa e desencaixa cubos de diferentes tamanhos, rabisca etc.), sem necessidade do uso da fala. Gradualmente, entretanto, a fala começa a acompanhar a ação (por exemplo, para complementá-la), e, logo depois, participa ativamente do planejamento e da organização da ação (“eu vou desenhar uma casa”, “o vermelho eu pinto aqui”) e da solução de problemas (“eu vou subir na mesa para pegar a bala”).

[A linguagem inicialmente] segue a ação, sendo provocada e dominada pela atividade. Posteriormente, entretanto, quando a fala se desloca para o início da atividade, surge uma nova relação entre palavra e ação. Nesse instante a fala dirige, determina e domina o curso da ação; surge afunção planejadora da fala, além da função já existente da linguagem, de refletir o mundo exterior (VYGOTSKY, 1988VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1988., p. 29, grifo nosso).

Juntamente com a função planejadora e organizadora da linguagem, a criança passa a dominar a possibilidade de regular, com o uso da fala, a atividade visível de manipulação dos objetos, para solução de problemas. Aqui está a gênese da regulação do próprio comportamento: “[…] a fala, além de facilitar a efetiva manipulação dos objetos pela criança, controla, também, o comportamento da própria criança. […] [elas] adquirem a capacidade de ser tanto sujeito como objeto de seu próprio comportamento” (VYGOTSKY, 1988VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1988., p. 29, grifo nosso).

Para ressaltar a transição da função comunicativa da linguagem (social) para a função autorreguladora, Vigotski se apropria e transforma o conceito piagetiano de “fala egocêntrica”. Ao contrário de Piaget, que localiza a linguagem egocêntrica entre a linguagem individual e social, Vigotski a considera uma forma de transição da linguagem social (comunicativa) para individual (no sentido de autorregulação): ao mesmo tempo que tem a forma da fala dirigida ao outro (interpessoal) é dirigida para si mesmo (intrapessoal).

[…] a fala egocêntrica é um estágio na evolução da linguagem externa […], social, dialógica, para a linguagem interna […], que guardaria daquela certas propriedades linguísticas. A presença da fala egocêntrica reflete a emergência de uma nova função, autorreguladora, reflexiva, da linguagem […] (MORATO, 1996MORATO, M. E. Linguagem e cognição: as reflexões de L.S. Vygotsky sobre a ação reguladora da linguagem. São Paulo: Plexus, 1996., p. 98).

A “fala exterior” (função de comunicação) destina-se à interação do indivíduo com outros homens, enquanto a “fala interior” (função intelectual da linguagem) assume o papel de estruturar o pensamento. Dado o necessário entrelaçamento dessas funções, a relação entre o pensamento e a palavra só pode ser explicada, em toda a sua complexidade, através da compreensão da natureza psicológica da “fala interior”.

Ao internalizar a fala do outro, a criança adquire, então, modos de autorregulação e passa a orientar-se num novo plano consciente-volitivo: “O nível consciente-volitivo de regulação caracteriza-se pela participação ativa do sujeito na direção e execução de seu comportamento através de fins conscientemente estabelecidos” (REY, 1987REY, F. G. La categoria personalidade en la psicologia marxista. In: REY, F. G. Algumas cuestiones teóricas y metológicas sobre el estudio de la personalidad. Cuidad de La Habana: Pueblo y Educación, 1987. p. 1-21., p. 6).

Outro aspecto a ser considerado nesse processo é que a unidade básica dos signos presentes na fala está na sua “significação” afetivo-cognitiva. Portanto, a FRL, para emergir, depende de determinada carga afetiva presente na dinâmica dialógica.

Embora Vigotski tenha dado atenção especial ao processo de significação e à interação verbal, suas análises não chegam a uma consideração explícita da dinâmica do processo dialógico. Contudo, para expandir as teses semióticas por ele apresentadas, alguns autores contemporâneos têm buscado articulá-las às proposições de M. Bakhtin sobre a dialogia.

É no centro do movimento dialógico que indivíduos tornam-se sujeitos, configurados pelo outro, pela palavra (SMOLKA; GÓES; PINO, 1995SMOLKA, A. L.; GÓES, M. C. R.; PINO, A. The Constitution of the subject: a persistent question. In: WERTSCH, J. V.; DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. New York: Cambridge University Press, 1995. p. 165-184., p. 181).

As reflexões de Bakhtin contribuem para compreender o papel radical do outro na enunciação e na atividade mental do sujeito. “Não é a atividade mental do sujeito que organiza a [sua] expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que modela e determina sua orientação” (BAKHTIN, 1988BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1988., p. 112, grifo nosso).

Na relação dialógica, além do interlocutor, as condições sociais imediatas e o horizonte ideológico – (de) limitado por fronteiras sociais e temporais –, determinam as condições reais da expressão do sujeito e organizam a sua atividade mental.

Considerando ainda que nessa perspectiva não existe uma distinção qualitativa entre conteúdo (interior) e expressão (exterior) e que ambos têm uma mesma natureza semiótica, fica clara a importância do outro e da coletividade na formação da consciência individual.

Para Bakhtin (1988BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1988., p. 113), a palavra – enquanto signo e não mera materialização do som – orienta-se para o outro e pelo o outro: “toda palavra serve a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, à coletividade”.

Dessa forma, quanto mais organizada e significativa for a coletividade na qual o sujeito se orienta, e quanto mais ele se orienta para essa coletividade e para o outro, mais complexo será seu mundo interior e mais organizada e forte sua consciência e atividade mental – o que Bakhtin chama “atividade mental do nós”.

Em outro polo, encontra-se a “atividade mental do eu”, ou seja, quanto mais “voltado para si mesmo” o indivíduo estiver, mais perde o senso de alteridade (eu-você), e em consequência perde a clareza e consciência de si próprio – regredindo e aproximando-se da reação fisiológica do animal.

Quanto à significação da palavra, esse autor considera que na enunciação participam elementos verbais (palavra, som etc.) e não verbais (contexto, entoação etc.) e que a palavra permite muitos significados (“polissemia”), pois sua significação é inseparável da situação concreta em que se realiza. Ao mesmo tempo, estão presentes na fala não apenas a palavra do locutor, mas múltiplas vozes (“polifonia”) – oriundas do horizonte social, das experiências passadas e presentes do sujeito – que dialogam e ressignificam o discurso.

Em resumo:

Bakhtin expande a noção de diálogo para abranger não apenas a interação verbal real, mas todo tipo e situação de “vozes” que estão em contato. Na verdade, “palavras são, inicialmente, as palavras dos outros, e antes de tudo, palavras maternas”. Gradualmente, essas “palavras alheias” mudam, dialogicamente, para tornar-se “palavras próprias alheias”, as quais entram no diálogo com outras palavras, outras vozes, e assim por diante. O movimento dialógico dinâmico resulta em processos de “monologização da consciência”, no qual, ao apropriar-se das palavras dos outros leva a esquecer a origem de suas próprias palavras (não no sentido individual, mas sócio-ideológico). Esse dialogismo é, dessa forma, profundamente polissêmico e sempre polifônico (SMOLKA; GÓES; PINO, 1995SMOLKA, A. L.; GÓES, M. C. R.; PINO, A. The Constitution of the subject: a persistent question. In: WERTSCH, J. V.; DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind. New York: Cambridge University Press, 1995. p. 165-184., p. 181).2

A perspectiva dialógica de Bakhtin possibilita caminhos importantes para a compreensão da constituição social do sujeito. O sujeito não pode ser considerado um organismo biológico abstrato, pois ele é fruto de um segundo nascimento – o social. O homem nasce numa classe, numa época; é mais que um corpo, do que um organismo vivo: é um ser ideológico, simbólico.

Marinho (1935MARINHO, H. Da linguagem na formação do Eu. Comunicação lida perante a Primeira Conferência Inter-Americana de Higiene Mental. Rio de Janeiro, 1935., p.13), nessa mesma linha, afirma que “ainda na originalidade, persiste no indivíduo a ambiência social, integrada à personalidade pela influência da linguagem na formação do Eu”. A participação do outro na formação do sujeito, portanto, é “considerada fundante”, primordial e constitutiva do pensamento e de suas diferentes manifestações.

Análise microgenética-indiciária da atividade oral-gráfica

Antecedentes

Em creches, escolas, abrigos e lares, foram realizadas e analisadas milhares de observações de crianças pequenas pelo Centro de Estudos da Criança (1938) do Instituto de Educação do Rio de Janeiro e pelo Instituto de Pesquisas Heloisa Marinho (1984), ambos fundados por Heloisa Marinho. Nas observações dessas crianças (de nove meses a sete anos de idade), é possível constatar o papel constitutivo da linguagem e da mediação de adultos e coetâneos significativos. Em uma dessas pesquisas, Marinho e Werner (1982)MARINHO, H.; WERNER JR., J. Aptidão para aprendizagem da leitura e da escrita. Rio de Janeiro: Instituto Bennett de Desenvolvimento da Criança, 1982., analisaram amostra constituída por três mil, crianças com idade entre quatro e sete anos, da cidade do Rio de Janeiro. Os pais das crianças representam variadas profissões e inserção em diferentes classes sociais. Os dados do grafismo e da linguagem oral das crianças foram analisados e classificados, sendo possível verificar a importância da relação oral-gráfica na constituição da cognição (aprendizagem da leitura e da escrita), da atenção e das demais funções psíquicas superiores.

Instrumento

A partir dos resultados obtidos nas pesquisas realizadas, foi elaborado um roteiro (Anexo 1; WERNER, 2012WERNER JR., J. O papel da linguagem na microgênese das funções psíquicas e sua aplicação no desenvolvimento e aprendizagem da criança. In: COMISSÃO DE VALORIZAÇÃO DA PRIMEIRA INFÂNCIA E CULTURA DA PAZ (Org.).Primeira infância: ideias e intervenções oportunas. Brasília: Senado Federal, 2012. p. 167-261.) que tem sido utilizado na análise da relação oral-gráfica visando a identificar a constituição do pensamento e de outras funções psíquicas superiores, a partir de ações partilhadas, em ocorrência (apo).

Metodologia

A metodologia da análise microgenética (indiciária) envolve série de usos e formas diferentes na sua aplicação, mas centra-se fundamentalmente nas relações intersubjetivas e requer a consideração do papel do outro na regulação do comportamento do sujeito [...] (WERNER, 1999WERNER JR., J. Análise Microgenética: Contribuição dos Trabalhos de Vigotski para o Diagnóstico em Psiquiatria Infantil / Mikrogenetishe Analyse: Vigotski Beitrag zur Diagnosefinddung auf dem Gebeit der Kinderpsychiatrie. Int. J. Prenatal and Perinatal Psychology and Medicine, Heidelberg, v. 11, n. 2, p. 157-171, 1999., p. 167).

Na análise microgenética-indiciária, segundo Werner (2001WERNER JR., J. Saúde & Educação: desenvolvimento e aprendizagem do aluno. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001., p. 17):

(i) desloca-se o eixo da avaliação do indivíduo para a avaliação de processos interativos [em ocorrência], focalizando, por exemplo, a relação professor-aluno e a interação dos alunos entre si (Vigotski);

(ii) enfatiza-se a dialogia – como propõe Bakhtin; e

(iii) valoriza-se as pistas, os indícios, os pequenos sinais - como forma de conhecer e revelar a realidade (Paradigma Indiciário / Ginzburg).

Resultado

De acordo com a metodologia preconizada, foi observada e analisada a atividade de grafismo e da relação oral-gráfica de um menino, de dois anos, de creche universitária (Quadro 1), ilustrando, concretamente, o papel significativo da “participação do outro” na transformação da significação da ação e do pensamento da criança.

Quadro 1
Amostra relação oral-gráfica menino, 2 anos, creche universitària. Grafismo livre

* Observação: em geral, deve-se evitar perguntar diretamente a criança o que ela desenhou, pois poderia indicar que ela não sabe desenhar. No caso, entretanto, como o objetivo inicial do menino não era de representação, ele não se inibiu com as intervenções dos adultos, e, ao contrário, ampliou sua percepção sobre a própria produção gráfica.

Análise ilustrativa

No exemplo acima, João (nos turnos 3 e 4), inicialmente, refere-se ao ato de desenhar, mas sem reconhecer ou lhe dar significado de representação alguma; a pergunta do observador, entretanto, faz com que o menino, após poucos segundos, transforme o significado do rabisco – sua ação sobre o papel, sem objetivo, inicial, de produzir qualquer representação gráfica – em uma provável cobra. A pergunta do observador, ao sugerir a João que seus rabiscos poderiam/ deveriam representar algo, imediatamente, ressignifica a ação de rabiscar e transforma, pela linguagem, o tipo de relação oral-gráfica (linguagem-pensamento-ação) apresentada pelo menino, ou seja, amplia sua cognição e permite iniciar a incorporação/ apropriação de nova forma (gráfica) de expressar o pensamento, o que, inclusive, vai constituir base para a futura aprendizagem da leitura e da escrita.

Nesse exemplo, a iminente incorporação de novas formas de pensamento, por meio da linguagem e da expectativa significadora do adulto, demonstram como o sujeito, no curso das ações partilhadas, se apropria do outro, sendo possível ilustrar como o diálogo e a mediação semiótica desempenham papel preponderante na microgênese das funções psíquicas superiores.

Conclusão

Foi possível observar que uma das consequências da mediação semiótica está no estabelecimento da relação entre pensamento, linguagem e ação na atividade de grafismo da criança.

A análise da relação oral-gráfica permitiu ilustrar o processo de microgênese social do sujeito, ou seja, o papel da mediação da linguagem na constituição das funções psíquicas superiores, particularmente, na formação do pensamento tipicamente humano.

O roteiro utilizado (Anexo 1 Anexo 1 Roteiro de observação do desenvolvimento psíquico. A relação oral-gráfica na constituição do pensamento / funções psíquicas superiores (WERNER, 2012) ) tem tido aplicações promissoras tanto na área da educação infantil como na área da saúde mental da criança.

Considerações finais

Partindo da tese geral, segundo a qual “o sujeito se constitui nas relações sociais por meio da linguagem”, os aspectos aqui destacados apresentam inúmeras possibilidades de articulações produtivas, no sentido de se desdobrar as contribuições de Marinho com outros autores vinculados à perspectiva histórico-cultural.

No campo das ações educativas voltadas para a criança, destaca-se, por exemplo, a importância metodológica da construção (mediada) da relação oral-gráfica, considerada como a “pré-história”, não só da aprendizagem da leitura e da escrita, mas de “todas” as funções psíquicas superiores (ver item V do roteiro mencionado). A expressão da criança, registrada no desenho e na linguagem oral, apresenta riqueza de ideias superior a qualquer iniciação formal precoce da leitura e da escrita (como cartilhas e exercícios psicomotores), devendo a educação infantil organizar seu currículo em função do objetivo principal de ampliar, com diversidade de vivências, a linguagem e o pensamento da criança.

Anexo 1 Roteiro de observação do desenvolvimento psíquico. A relação oral-gráfica na constituição do pensamento / funções psíquicas superiores (WERNER, 2012)

Referências

  • BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1988.
  • MARINHO, H. Da linguagem na formação do Eu Comunicação lida perante a Primeira Conferência Inter-Americana de Higiene Mental. Rio de Janeiro, 1935.
  • MARINHO, H. A linguagem na Idade Pré-escolar Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1955.
  • MARINHO, H.; WERNER JR., J. Aptidão para aprendizagem da leitura e da escrita Rio de Janeiro: Instituto Bennett de Desenvolvimento da Criança, 1982.
  • MORATO, M. E. Linguagem e cognição: as reflexões de L.S. Vygotsky sobre a ação reguladora da linguagem. São Paulo: Plexus, 1996.
  • REY, F. G. La categoria personalidade en la psicologia marxista. In: REY, F. G. Algumas cuestiones teóricas y metológicas sobre el estudio de la personalidad Cuidad de La Habana: Pueblo y Educación, 1987. p. 1-21.
  • SMOLKA, A. L.; GÓES, M. C. R.; PINO, A. The Constitution of the subject: a persistent question. In: WERTSCH, J. V.; DEL RIO, P.; ALVAREZ, A. (Org.). Sociocultural studies of mind New York: Cambridge University Press, 1995. p. 165-184.
  • VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem São Paulo: Martins Fontes, 1987.
  • VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente São Paulo: Martins Fontes, 1988.
  • WERNER JR., J. Transtornos Hipercinéticos: contribuições do trabalho de Vygotsky para reavaliar o diagnóstico. 1997. 224 f. Tese (Doutorado)__Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 1997.
  • WERNER JR., J. Análise Microgenética: Contribuição dos Trabalhos de Vigotski para o Diagnóstico em Psiquiatria Infantil / Mikrogenetishe Analyse: Vigotski Beitrag zur Diagnosefinddung auf dem Gebeit der Kinderpsychiatrie. Int. J. Prenatal and Perinatal Psychology and Medicine, Heidelberg, v. 11, n. 2, p. 157-171, 1999.
  • WERNER JR., J. Saúde & Educação: desenvolvimento e aprendizagem do aluno. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001.
  • WERNER JR., J. O papel da linguagem na microgênese das funções psíquicas e sua aplicação no desenvolvimento e aprendizagem da criança. In: COMISSÃO DE VALORIZAÇÃO DA PRIMEIRA INFÂNCIA E CULTURA DA PAZ (Org.).Primeira infância: ideias e intervenções oportunas. Brasília: Senado Federal, 2012. p. 167-261.
  • WERTSCH, J. V. Vygotsky y la formación social de la mente Barcelona: Paidós, 1988.
  • 1
    Será usado, neste texto, as grafias Vigotski (em Português) e Vygotsky (em Inglês), como é mais usado, e na bibliografia de referência).
  • 2
    Original em inglês.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2013
  • Aceito
    29 Out 2014
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