Resumo
Este texto é uma cartografia a partir de minhas experiências como docente de Psicologia e como trabalhadora da atenção e da gestão do Sistema Único de Saúde com os povos Kaiowá e Guarani da região de Dourados - Mato Grosso do Sul. As Ciências Humanas e Sociais e a Saúde Coletiva possuem acúmulos significativos sobre as inúmeras violências e as violações de direitos dos povos indígenas do Brasil. Mas uma pergunta continua sem resposta: até quando? A qualificação do Sistema Único de Saúde e o fortalecimento da saúde como direito de cidadania, em especial na construção de uma Saúde Indígena que respeite, de forma radical, os saberes e as práticas tradicionais, acarretam muitas desaprendizagens à Psicologia e aos demais trabalhadores do e pelo Sistema Único de Saúde. Dentre os inúmeros desafios e incertezas, é urgente reaprender a viver com os povos tradicionais e construir enfrentamentos coletivos às práticas biopolíticas de medicalização e aprisionamento da vida.
Palavras-chave:
saúde indígena; Sistema Único de Saúde; Psicologia Social
Abstract
This text is a cartography based on my experiences as a Psychology teacher and as a worker in the care and management of the Public Health System with the Kaiowá and Guarani peoples in the region of Dourados - Mato Grosso do Sul. The Human and Social Sciences and Public Health have significant accumulations of the countless types of violence and violations of the rights of indigenous peoples in Brazil. But one question remains unanswered: Until when? The qualification of the Public Health System and the strengthening of health as a right of citizenship, especially in the construction of an Indigenous Health that respects, in a radical way, traditional knowledge and practices, imply many unlearning of Psychology and other workers of the and by Public Health System. Among the countless challenges and uncertainties, it is urgent to relearn how to live with traditional peoples and build collective confrontations to biopolitical practices of medicalization and life imprisonment.
Keywords:
indigenous health; Public Health System; Social Psychology
Resumen
Este texto es una cartografía basada en mis experiencias como profesor de Psicología y como trabajador en la atención y gestión del Sistema Único de Salud con los pueblos Kaiowá y Guarani en la región de Dourados - Mato Grosso do Sul. Las Ciencias Humanas y Sociales y la Salud Pública tienen acumulaciones significativas de innumerables tipos de violencia y violaciones de los derechos de los pueblos indígenas en Brasil. Pero una pregunta sigue sin respuesta: ¿hasta cuándo? La calificación del Sistema Único de Salud y el fortalecimiento de la salud como derecho de ciudadanía, especialmente en la construcción de una Salud Indígena que respete, de manera radical, los saberes y prácticas tradicionales, implican muchos desaprendizajes de la Psicología y de otros trabajadores de la y por SUS. Entre los innumerables desafíos e incertidumbres, urge reaprender a convivir con los pueblos tradicionales y construir enfrentamientos colectivos a las prácticas biopolíticas de medicalización y encarcelamiento de la vida.
Palabras clave:
salud indígena; Sistema único de Salud; Psicología Social
[...]
ruas feitas todas de flores
(e um pouco de sangue)
isso é dourados
índio não entra no shopping
que branco não gosta
isso é dourados, dourados, dourados.
Ruspô (2016RUSPÔ. Dourados state of mind. Youtube, 14 set. 2016. 1 video (4min39s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VgE--RGRRiw . Acesso em: 30 ago. 2016.
https://www.youtube.com/watch?v=VgE--RGR... , online)
Considerações iniciais
Inspirada em “desaprender 8 horas por dia”, um fragmento da poesia de Manoel de Barros (2006BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2006., p. 9), apresento considerações1 1 As ideias que compõem este relato foram apresentadas para o debate no “III Seminário Psicologia e Povos Indígenas”, organizado pelo Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso do Sul (CRP/MS), em Campo Grande, em agosto de 2016. Meses depois, foram amadurecidas no “Seminário Internacional de Etnologia Guarani: Diálogos e Contribuições”, da Faculdade Intercultural Indígena e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). e questões sobre os desafios e as (des)aprendizagens em meu trabalho como uma profissional da Psicologia no encontro com os povos indígenas, especialmente as e os Kaiowá e Guarani da região de Dourados, Mato Grosso do Sul.
Utilizo as minhas experiências profissionais como docente de Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD); no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário da Grande Dourados, na ênfase em Saúde Indígena; e por diversos pontos da atenção e da gestão no Sistema Único de Saúde (SUS), com destaque para a atuação no Ministério da Saúde, como consultora da Política HumanizaSUS nas atividades em parceria com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Os inúmeros aprendizados com as e os colegas de trabalho, principalmente os trabalhadores da Saúde Indígena e os estudiosos da UFGD, implicados com os povos indígenas, compõem as considerações a seguir. Apresento, em diferentes estágios de amadurecimento, algumas ideias e análises retiradas de meu diário de campo.
O tom que gostaria para estas páginas é de conversa, incerteza e riqueza. Manoel de Barros (2001BARROS, Manoel. Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 19), novamente, auxilia-me: “meu fado é o de não saber quase tudo”. Nesta cartografia por experimentações, (des)aprendizagens e diálogos entre a Psicologia e a Saúde Indígena busco levar o pensamento a desbravar novas terras, inventar questões e fazer do pensar um ato político e não um “sonífero da prática” (PELBART, 1990PELBART, Peter Pal. Manicômio mental: a outra face da clausura. In: LANCETTI, Antônio (Org.). Saúde Loucura. São Paulo: Hucitec, 1990. n. 2, p. 131-138.). Almejo um ensaio que está longe de alguma suposta estreia ou de um ponto final. Ensaiar uma cartografia, a partir do pensamento foucaultiano, é uma “[...] experiência modificadora de si no jogo da verdade [...] um exercício de si, no pensamento” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. v. 2., p. 13).
Muitas são as (des)aprendizagens necessárias a mim mesma e, quiçá, aos profissionais da Psicologia e da Saúde para trabalhar com os povos indígenas deste país. É sempre necessário ressaltar que são 305 etnias reconhecidas pelo Estado, inúmeros povos em busca de reconhecimento, mais de 800 mil pessoas que falam 274 línguas, distribuídas em todos os Estados da federação (BRASIL, 2012BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Os indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: Disponível em: http://indigenas.ibge.gov.br/images/indigenas/estudos/indigena_censo2010.pdf . Acesso em: 10 mar. 2016.
http://indigenas.ibge.gov.br/images/indi...
). Cada povo é uma nação com organização própria, língua, valores, divindades, concepções de tempo, saúde, corpo, família, cuidado, dentre tantos outros aspectos que demarcam seus modos singulares de tocar a vida e de compreender para que ela serve.
Dos pontos da atenção e da gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) que trabalhei, destaco que estive no Ministério da Saúde, como consultora da Política HumanizaSUS, por quatro anos. Em várias atividades atuei em parceria com técnicos e gestores da SESAI/Brasília na construção de ações pela qualificação das práticas em saúde. Certa vez, o Secretário da SESAI, na época, o senhor Antonio Alves, disse que numa reunião das etnias brasileiras teria mais nações do que num encontro da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi ali que tive a dimensão dos desafios continentais da Saúde Indígena no SUS.
Uma questão que me faço e convém à Psicologia, bem como às demais áreas da Saúde: conhecemos/valorizamos a diversidade étnica e cultural que compõe este país? Sei/sabemos que a resposta é não. Então, cabe-me questionar: a que serve e a quem serve o meu - talvez o nosso - desconhecimento e a invisibilidade dos povos indígenas? Quais são os interesses em jogo para homogeneizar a vida?
“Não é fácil morar na faixa de gaza”
Dourados, de onde escrevo, tem uma das maiores populações indígenas do Brasil, são mais de 16 mil indígenas das etnias Kaiowá, Guarani e Terena em aproximadamente 3.600 hecatres. Os indígenas fazem parte do cotidiano da cidade, sendo impossível não enxergar as frequentes violações de direitos e o genocídio que marcaram as últimas décadas. Para a então vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat (2010DUPRAT, Deborah. “Dourados é talvez a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo”. Entrevista concedida por ocasião do XI Encontro Nacional da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) do Ministério Público Federal. 30 nov. 2010. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2010/11/31318/ . Acesso em: 10 set. 2011.
https://cimi.org.br/2010/11/31318/...
), “Dourados é talvez a maior tragédia conhecida na questão indígena em todo o mundo.”.
Os registros e o crescimento do suicídio, assim como o aumento das taxas de homicídios, de crianças de baixo peso, de indígenas cumprindo pena no sistema carcerário (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO [CIMI], 2011bCONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. As violências contra os povos indígenas em Mato Grosso do Sul e as resistências do Bem Viver por uma Terra Sem Males - dados de 2003-2010. Brasília, DF: CIMI, 2011b.), de assassinatos de líderes indígenas, com o sumiço de seus corpos nas disputas de terras, entre outros fatos, são constantes nas publicações (MEIHY, 1991MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Canto de Morte Kaiowá. São Paulo: Loyola, 1991.; PEREIRA, 2009PEREIRA, Levi Marques. Mobilidade e processos de territorialização entre os Kaiowá atuais. Revista Eletrônica História em Reflexão, v. 1, n. 1, p. 1-33, dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/490 . Acesso em: 22 set. 2021.
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; CIMI, 2011aCONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil - dados de 2011. Brasília, DF: CIMI, 2011a., 2013CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil - dados de 2013. Brasília, DF: CIMI, 2013., 2015CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Relatório Violência contra os Povos Indígenas No Brasil - dados de 2015. Brasília, DF: CIMI, 2015.), na mídia e nas redes sociais. O Estado de Mato Grosso do Sul ocupa o desonroso 1° lugar em assassinatos de indígenas no país (CIMI, 2013CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil - dados de 2013. Brasília, DF: CIMI, 2013.), uma realidade naturalizada e que conta com a conivência coletiva e com a omissão do poder público.
O panorama tem proporções de guerra, embora as baixas sejam somente de um lado: “Com uma taxa de homicídios de 100 por 100 mil pessoas, maior que a do Iraque, e quatro vezes maior do que a taxa nacional, o povo Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, enfrenta uma verdadeira guerra contra o agronegócio” (RANGEL, 2011RANGEL, Lucia Helena. Vulnerabilidade, racismo e genocídio. In: CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Relatório Violência contra os povos indígenas no Brasil - dados de 2011. Brasília: CIMI, 2011. p. 12-15., p. 14). Esses são alguns dos indicativos das péssimas condições de vida dessas pessoas e que sinalizam o compromisso político com o desenvolvimento econômico e com o agronegócio, em detrimento da vida de povos que aqui estão há bem mais de quinhentos anos.
A situação dos povos indígenas dessa região:
[...] é análoga àquela de um campo de refugiados. É como se fossem estrangeiros no seu próprio país. É como se os ‘brancos’ estivessem em guerra com os índios e a estes últimos só restasse a fina faixa de terra que separa a cerca de uma fazenda e a beira de uma rodovia (CIMI, 2011cCONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Carta de protesto: estudantes Guarani e Kaiowá dos cursos de Ciências Sociais e História, UEMS, unidade Amambai: Massacre de indígenas em acampamento na cidade de Amambai, Mato Grosso do Sul. 20 nov. 2011. 2011c. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2011/11/32920/ Acesso em: 18 set. 2016.
https://cimi.org.br/2011/11/32920/... ).
Em muitos momentos o cenário é desolador, como na música de Ruspô (2016RUSPÔ. Dourados state of mind. Youtube, 14 set. 2016. 1 video (4min39s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VgE--RGRRiw . Acesso em: 30 ago. 2016.
https://www.youtube.com/watch?v=VgE--RGR...
, online): “Não é fácil morar na Faixa de Gaza”. Neste território, conhecido pelo agronegócio, parece-me que a monocultura de grãos empobrece não somente o solo, mas há a produção de um deserto para as invenções e as expressões dos diferentes modos de ser/estar no mundo. Uma das muitas questões ainda sem resposta: até quando? (BECKER; OLIVEIRA; MARTINS, 2016BECKER, Simone; OLIVEIRA, Esmael Alves de; MARTINS, Catia Paranhos. “Onde fala a bala, cala a fala”: resistências às políticas da bancada da bala, do Boi e da Bíblia em MS. (Em)cena, 21 jun. 2016. Disponível em: Disponível em: https://encenasaudemental.com/post-destaque/onde-fala-a-bala-cala-a-fala-resistencias-as-politicas-da-bancada-da-bala-do-boi-e-da-biblia-em-ms/ Acesso em: 22 ago. 2016.
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).
Quero continuar a estranhar este - perverso - cenário. Estranhar o que é comum e não deveria ser é uma aprendizagem fundamental para mim e, quiçá, para nós. As questões a seguir estão no plural, porque são feitas por muitos de nós. Até quando vamos suportar/assistir à fome que amarela os cabelos das crianças indígenas e as mata de desnutrição e demais causas evitáveis? Até quando vamos acompanhar as notícias sobre a falta de água por semanas e até meses na Reserva Indígena de Dourados? Até quando a expectativa de vida será estimada em 45 anos para os indígenas de Dourados e de 75 anos para demais brasileiros? Até quando os estupros coletivos de mulheres indígenas e até de crianças? E as emboscadas das milícias, as balas que têm destinos certos nas áreas de retomada? Até quando este Estado será o campeão de morte de líderes indígenas e sem julgamento dos culpados? Até quando assistiremos ao baixo compromisso com as pessoas, com o meio ambiente e os privilégios ao agronegócio? Até quando teremos a pulverização de agrotóxicos por aviões que despejam os venenos, literalmente, nas aldeias?2 2 Crime debatido em audiência convocada pelo Ministério Público Federal (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2016). Até quando o comércio vai continuar se recusando a vender comida para os indígenas em várias cidades de Mato Grosso do Sul? Até quando os comentários racistas, tais como: “Índio é assim mesmo”, “tinha que ser índio”, “é preguiçoso, sujo e bêbado”, ou “um pé de soja ou uma cabeça de gado valem mais que um índio”, “índio bom é índio morto”, “índio rouba cachorro”, dentre tantos outros, serão naturais e corriqueiros?
Das Ciências Humanas e Sociais ao campo da Saúde Coletiva, não faltam acúmulos que caracterizam a situação de barbárie em que vivem estes muitos brasileiros, principalmente em Mato Grosso do Sul. Desde a virada do século XX ao XXI, Langdon (1999LANGDON, Esther Jean. Saúde e povos indígenas: os desafios na virada do século. 1999. Disponível em: Disponível em: http://biblioteca.funai.gov.br/media/pdf/Folheto55/FO-CX-55-3508-2006.PDF . Acesso em: 19 maio 2016. Não paginado.
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, online) destacava que os povos indígenas “[...] sofrem de uma situação sanitária que caracteriza os grupos pobres em geral: altas incidências de desnutrição, tuberculose, problemas de saúde bucal, parasitas, alcoolismo, alta mortalidade infantil, baixa expectativa de vida, etc.”
A situação sanitária descrita por Langdon (1999LANGDON, Esther Jean. Saúde e povos indígenas: os desafios na virada do século. 1999. Disponível em: Disponível em: http://biblioteca.funai.gov.br/media/pdf/Folheto55/FO-CX-55-3508-2006.PDF . Acesso em: 19 maio 2016. Não paginado.
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, 2014LANGDON, Esther Jean. Os diálogos da Antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 4, p. 1019-1029, 2014. https://doi.org/10.1590/1413-81232014194.22302013
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) em seus estudos é semelhante à vivenciada pelos povos daqui. Acrescento mais um ingrediente nessa já complexa problemática a partir de Viveiros de Castro (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2006INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Povos indígenas no Brasil [online], ago. 2006. Disponível em: Disponível em: https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf . Acesso em: 14 maio 2016.
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; SANSON, 2016SANSON, Cesar. Povos indígenas: os involuntários da pátria. Instituto Humanitas Unisinos [online], 25 abr. 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/554056-povos-indigenas-os-involuntarios-da-patria . Acesso em: 10 set. 2016.
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), a perspectiva de que os Kaiowá e Guarani não são pobres. Para enxergar isso é necessário muitas desaprendizagens.
O que é riqueza e pobreza para os povos daqui? Quem é índio em Dourados e no Brasil, quem não é? Viveiros de Castro (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2006INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Povos indígenas no Brasil [online], ago. 2006. Disponível em: Disponível em: https://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf . Acesso em: 14 maio 2016.
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; SANSON, 2016SANSON, Cesar. Povos indígenas: os involuntários da pátria. Instituto Humanitas Unisinos [online], 25 abr. 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/554056-povos-indigenas-os-involuntarios-da-patria . Acesso em: 10 set. 2016.
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) discute as estratégias insidiosas usadas pelo Estado que, alinhadas com o capital, tentam definir e transformar os índios em pobres. E como pobres só lhes restariam o lugar de consumidores, dentre as tantas mercadorias (in)dispensáveis, as do assistencialismo estatal. Penso que quando e enquanto os meus (talvez os nossos) olhos enxergam somente miséria, pobreza, falta e carência também contribuo para homogeneizar o cenário e a vida dessas pessoas.
A produção de saúde implica o enfrentamento coletivo dos aspectos já apontados acima, dentre tantos outros. Os desafios colocados ao SUS e, em especial, na gestão e na atenção à Saúde Indígena, são políticos e não técnicos, como defende o movimento sanitário brasileiro. Então, de qual política se trata?
Embora possa parecer que a sequência de barbáries e de violações de direitos não tenha fim, parece-me que o coro dos que sabem que é urgente (re)aprender a viver ganha novas vozes. Este é um enorme desafio para mim, para nós. É somente como muitos “nós” que poderemos inventar outra história para este país e também para a Psicologia. Penso que uma outra história, uma história menor, segundo Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997.), já está em produção nas experiências singulares e cotidianas na Saúde Indígena, como tenho o privilégio de acompanhar. E, para enxergar as riquezas no cotidiano, é preciso “dilatar o presente” (SANTOS, 2002SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p. 237-280, out. 2002. Disponível em: Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF . Acesso em: 10 jan. 2015.
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).
Uma outra história da Psicologia na luta pela saúde como direito e dimensão de cidadania de todos nós e de qualquer uma/um está em andamento. Nela, o fortalecimento da Saúde Indígena no SUS, na construção de uma Saúde Indígena que não se limita a ser indigenista e biomédica, é tecida por muitos trabalhadores do e pelo SUS. São sujeitos implicados em “[...] desfazer de aventais [jalecos e valores] brancos, a começar por aqueles invisíveis que carrega na cabeça, em sua linguagem e em maneiras de ser” (GUATTARI, 1990GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990., p. 11).
Das (des)aprendizagens, destaco a necessidade ético-política de questionar uma Psicologia que ainda se pauta pelo universal de homem, logo, branco, macho, heterossexual, morador da cidade, que tem conta no banco, que sonha em trocar de carro e comprar uma casa própria, cristão, escolarizado e consumidor da felicidade à venda no mercado. É necessário questionar saberes, instrumentos e técnicas que servem para naturalizar a cisão mente/corpo, que interioriza sentimentos e os descola da história, e fundados numa concepção de desenvolvimento humano prévio, padronizável e linear. A Psicologia que me interessa estudar, trabalhar e ensinar tem compromisso com a desconstrução da perspectiva colonizadora, etnocêntrica, elitista e individualizante que homogeneiza as pessoas e as vicissitudes do viver.
O meu cotidiano é marcado por
[...] incontáveis vezes nos deparamos com nosso arsenal de teorias e técnicas psicológicas impotentes, diante da complexidade da compreensão de mundo das etnias com as quais trabalhamos. Nestes momentos, percebíamos que tínhamos muito mais a aprender com aquele usuário, família ou comunidade, do que desenvolver técnicas para dar conta do nosso desconhecimento. (FERNANDES; PARANHOS, 2017FERNANDES, Tanise Oliveira; PARANHOS, Catia. Encontros e desencontros do trabalho no Sistema Único de Saúde: uma cartografia sobre o ser/estar residente em saúde indígena. In: FERLA, Alcindo Antônio et al. (Org.). Residências e a Educação e Ensino da Saúde: tecnologias formativas e o desenvolvimento do trabalho. Porto Alegre: Rede Unida, 2017. p. 89-96., p. 91).
Além de suportar o não saber, tarefa árdua e dimensão inevitável do encontro com a diferença, e descartar os conhecimentos desnecessários, mais um importante aprendizado pode ser sintetizado com a narrativa de Cristina Tembé,3
3
Anotações pessoais do II Seminário de Saúde Mental Indígena de Mato Grosso do Sul e I Encontro Nacional Psicologia, Povos Indígenas e Direitos Humanos, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia e Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso do Sul, Dourados - MS, em julho de 2013.
do Pará. A liderança Tembé reforçou a importância política na garantia das comunidades indígenas nas discussões e nas decisões sobre as suas vidas, ao clamar por “nada sobre nós sem nós!”. Uma das pautas do movimento sanitário indigenista e movimento indígena é pela participação e construção de espaços de diálogo. É uma provocação ética que marca o compromisso radical no fazer saúde com as pessoas e não mais para elas (MARTINS, 2015MARTINS, Catia Paranhos. A política nacional de humanização na produção de inflexões no modelo hegemônico de cuidar e gerir no SUS: habitar um paradoxo. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Estadual Paulista, Assis, 2015. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/132141 . Acesso em: 19 maio 2016.
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).
Em meu cotidiano costumo ouvir que é necessário “dar voz as pessoas”. Eis aqui mais um deslocamento ético. Penso que não, que devemos escutá-las. Elas já estão no mundo falando ou mesmo em silêncio, como são, comumente, os Kaiowá e Guarani que encontrei no hospital. Ao escutar o que as pessoas contam e respeitar o seu silêncio, há uma brecha, um desvio com potência para questionar a naturalização da relação quem fala/quem escuta, colonizador/colonizado.
Parece-me urgente fomentar e inventar novas práticas pautadas no diálogo, na busca por enxergar o que importa para esses povos, por compreendê-los como sujeitos de suas vidas e respeitar os seus valores e saberes. Da saúde dos Kaiowá e Guarani, tenho o privilégio de aprender com eles e com os colegas sobre como as rezas, danças, cantos, raízes, mata e bichos são elementos fundamentais para o equilíbrio da vida coletiva. Aprendo sobre a importância da carne de caça, cuja energia do bicho é transferida para quem o come, para se ter saúde. Aprendi, com muito custo, que se compartilha muito com o olhar e não se olha nos olhos facilmente de quem não se é íntimo. Que é preciso habitar outro tempo para escutar os Kaiowá e Guarani e que minha pressa paulista não ajudava. Que a fala e o silêncio são estratégias de resistência de um povo tão acostumado com violações de direitos. Que eles e elas sabem onde, quando e com quem falar (SOUZA, 2016SOUZA, Adriele Freire de. Entre discursos e territorialidades: uma análise antropológica das práticas institucionais no Hospital Universitário da Grande Dourados - MS. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2016. Disponível em: Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=4329038 . Acesso em: 28 out. 2021.
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/p...
). Que a família comporta muitos parentes, é a “parentela”, e que o “fogo doméstico” tem uma função política (PEREIRA, 2009PEREIRA, Levi Marques. Mobilidade e processos de territorialização entre os Kaiowá atuais. Revista Eletrônica História em Reflexão, v. 1, n. 1, p. 1-33, dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/490 . Acesso em: 22 set. 2021.
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). Aprendi que é preciso esperar as divindades para que a criança ganhe seu nome e esteja protegida. Que não se deveria tirar o bebê de casa nos primeiros dias. Que cada mulher tem um canto para parir. Que a placenta do recém-nascido é preciosa e deveria ser devolvida para aos pais. Que o milho é sagrado e deve ser batizado. Que fui enfeitiçada pelos cantos e pelo som do mbaraka e da taquara (SERAGUZA, 2016)4
4
Anotações pessoais da contribuição de Lauriene Seraguza Olegário e Souza em atividade do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Faculdade de Ciências Humanas da UFGD, agosto de 2016.
, bem como meus inúmeros colegas de trabalho, estudo e pesquisa.
Ainda com a fala de Tembé reverberando em mim, penso que um aprendizado fundamental é respeitar as decisões das pessoas sobre se devem, como e até quando devem tratar algo que é considerado como doença pelo jogo biopolítico. Fui trabalhadora do Hospital Universitário de Dourados (HU-UFGD), de 2004 ao início de 2008, e foi ali que encontrei pela primeira vez os muitos usuários indígenas. Com a ajuda de Silvio Ortiz, Kaiowá, intérprete e enfermeiro, inicio os estudos que articulam Saúde, Psicologia e os Kaiowá e Guarani para dar conta de meu desconhecimento. Na época, estranhava o silêncio, as cabeças baixas e as respostas limitadas a “sim” ou “não”. Sofria com as recusas em continuar o tratamento e com as constantes “fugas” dos usuários indígenas e com os pais e as mães que levavam - sem aviso prévio - as crianças do hospital.
Hoje, anos depois, compreendo um pouco mais dos motivos de não quererem ir ao hospital ou de permanecer nele. Quando encontro um usuário com as roupas do hospital, andando pelas ruas de Dourados, suponho que está voltando para casa. Chego a suspirar. Penso que ali há uma linha de fuga, um modo produzido por aqueles que resistem às inúmeras estratégias de assujeitamentos da vida. Alguém que se utiliza, de forma singular, do serviço de saúde e da racionalidade biomédica e suas práticas de controle e cuidado. Ora entendo as estratégias e táticas de resistências desses povos, ora demoram ou escapam ao meu entendimento karai (não indígena).
Estou aprendendo que a terra não é sujeira (FERNANDES, 2015FERNANDES, Tanise Oliveira. Sobre encontros e desencontros do trabalho em saúde: um relato de experiência sobre o ser/estar residente em saúde indígena. 2015. Monografia (Aperfeiçoamento/Especialização em Residência Multiprofissional - Saúde Indígena)_Programa de Residência Multiprofissional em Saúde, Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2015.; TURDERA, 2016TURDERA, Graziela Britez. No meio do caminho da saúde indígena havia o cuidado do estado. Havia o cuidado do estado no meio do caminho?: reflexões genealógicas etnográficas sobre produções de saúde na cidade de Dourados, Mato Grosso do Sul. 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2016. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/2430 . Acesso em 28 out. 2021.
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; RODRIGUES, 2016RODRIGUES, Paula Aparecida dos Santos. Oguata Pyahu e a Residência Multiprofissional em Saúde Indígena: um novo caminhar no desafio de SUStentar. Rede Humaniza SUS, 25 mar. 2016. Disponível em: Disponível em: https://redehumanizasus.net/94268-oguata-pyahu-e-a-residencia-multiprofissional-em-saude-indigena-um-novo-caminhar-no-desafio-de-sustentar/ . Acesso em: 28 out. 2021.
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). Eis aqui uma enorme inversão para quem, como eu, veio da cidade grande, bem como foi formatada pelo discurso médico-higienista que marca a racionalidade moderna. Incluo, também, a força do agronegócio no jogo político-econômico. O setor se declara como o responsável pelo crescimento nacional, embora os ganhos sejam privados e os prejuízos divididos com toda a população. Essa força pode ser sintetizada pela campanha veiculada pela TV Globo em 2016: “Agro é tudo, agro é tech, agro é pop” (AGRONEGÓCIO..., 2016AGRONEGÓCIO é valorizado em campanha da TV Globo. G1 [online], 3 out 2016. Disponível em: Disponível em: http://glo.bo/2dO7BRA . Acesso em: 12 nov. 2016.
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), e, ironicamente, a miséria só cresce no estado que se intitula alimentar o país.
Se terra não é sujeira, como estou aprendendo, tampouco é para mercadoria para os povos daqui. A terra não é o meio para plantar, investir e ganhar dinheiro. A terra é um valor, é uma dimensão da vida fundamental para os Kaiowá e Guarani, é tekoha, o lugar de onde se é. Para Benites (2014BENITES, Eliel. Oguata Pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýikue. 2014. Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2014. Disponível em: Disponível em: https://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/13832-eleil-benites.pdf . Acesso em: 27 out. 2021.
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, p. 36), “Tekoha é imprescindível para nossa sobrevivência física e, de modo especial, também cultural, dado que tekoha significa espaço ou lugar (ha) possível para o modo de ser e de viver (teko). A mesma palavra aglutina dois conceitos fundamentais: vida (teko) e lugar (ha).”
Minhas experiências no e pelo SUS ao longo de um pouco mais de uma década fazem-me afirmar que “Saúde indígena é para as/os fortes”, é para quem se dispõe, dentre tantas desaprendizagens, questionar a racionalidade hegemônica marcada pelo individualismo, biologicismo, hospitalocêntrica e curativista que empobrece a experiência. É se colocar a tarefa de
[...] pensar e compreender um pouco mais sobre as influências do território nos processos de vida destes sujeitos, e como as dinâmicas de saúde e doença são influenciadas pela presença ou distanciamento do Tekoha. Percorrer estas realidades, sentir a resistência em suas diversas e distintas formas, nos inspiraram para continuar o encontro e o diálogo com estes povos, trazendo um pouco desta energia da luta e da resistência para a construção de nosso trabalho, compreendendo que saúde, terra e espiritualidade são dimensões indissociáveis na vida dos Guarani e Kaiowá (FERNANDES; PARANHOS, 2017FERNANDES, Tanise Oliveira; PARANHOS, Catia. Encontros e desencontros do trabalho no Sistema Único de Saúde: uma cartografia sobre o ser/estar residente em saúde indígena. In: FERLA, Alcindo Antônio et al. (Org.). Residências e a Educação e Ensino da Saúde: tecnologias formativas e o desenvolvimento do trabalho. Porto Alegre: Rede Unida, 2017. p. 89-96., p. 93).
Gostaria de marcar uma posição ainda em debate: Saúde Indígena é SUS e não problema da SESAI, ora problema da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ontem da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Questiono o “problema” que se repete quando se debate sobre os povos indígenas, quando gestores e trabalhadores do SUS se referem aos usuários indígenas. Os povos indígenas são brasileiros e, como tais, devem ter acesso com qualidade aos serviços da rede SUS e demais ações do Estado - dito - democrático.
Aqui, permito-me sinalizar mais algumas delicadezas - e que compõem uma cascata de dúvidas: como avançar no acesso à saúde com qualidade, sem adoecer e medicalizar a vida ainda mais? Como formar trabalhadores de saúde que respeitem as concepções de corpo, saúde e cuidado dos povos daqui? Como desconstruir a relação assimétrica entre trabalhador de saúde e usuário, entre saber científico e tradicional, entre brancos e não-brancos?
Os Kaiowá e Guarani, bem como as/os residentes/resistentes, ensinam-me que saúde é luta. São povos que resistem há mais de 500 anos e cuja história de colonização e escravidão em curso não conseguiu anular as suas cosmologias. Já os estudantes e os muitos parceiros do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Indígena atualizam, a cada nova turma, que ser/estar residente no SUS é ser resistente. É construir, no cotidiano, resistências aos ditames que adoecem e enfraquecem a vida. É encontrar brechas para produzir cuidado, cidadania e outros modos de fazer saúde, outras saúdes até.
Aprendo, no cotidiano, que os Kaiowá e Guarani têm a meta de pacificar os não indígenas (karai). Até então eu os via somente como vítimas, mas passaram a desempenhar uma tarefa das mais árduas no mundo em que vivemos. Embora seja fundamental ressaltar o genocídio, dentre as inúmeras outras violações de direitos que compõem a história de colonização, tomá-los somente como vítimas é empobrecê-los. Trata-se de um movimento de mudança no olhar, em mim mesma, que nada sabia dos Kaiowá e Guarani quando cheguei aqui. Quiçá as riquezas sobre os modos de tocar a vida e lidar com as vicissitudes, sobre o ñande reko ou o teko porã (CIMI, 2011bCONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. As violências contra os povos indígenas em Mato Grosso do Sul e as resistências do Bem Viver por uma Terra Sem Males - dados de 2003-2010. Brasília, DF: CIMI, 2011b.), o bem viver Guarani na busca da Terra Sem Males, continue produzindo efeitos. E, ainda, que a potência micropolítica se intensifique na construção de um movimento coletivo que não tolera mais o atual estado de coisas.
Caminhar, desaprender, reaprender a viver...
Nessa cartografia sinalizei algumas considerações sobre o encontro entre a Psicologia, a Saúde Indígena e a vida dos Kaiowá e Guarani de Dourados e região. Algumas dimensões são incompreensíveis aos - meus e talvez aos nossos - olhos formatados pela racionalidade hegemônica, pela história universal e pela perspectiva etnocêntrica. “Não é fácil morar na faixa de Gaza”. Em Dourados as “ruas feitas todas de flores e um pouco de sangue” e “índios não entram no shopping, os brancos não gostam” (RUSPÔ, 2016RUSPÔ. Dourados state of mind. Youtube, 14 set. 2016. 1 video (4min39s). Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VgE--RGRRiw . Acesso em: 30 ago. 2016.
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, online).
Ao som de Ruspô, permito-me afirmar que não é fácil construir uma Saúde que caminha de mãos dadas com a democracia, lema do movimento sanitário desde 1970, como valor a ser compartilhado com todos/as nós. Esses foram os fatídicos anos de 2016 e 2017 e os acontecimentos políticos que culminaram no impeachment, sem a comprovação de crime, de Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita para a Presidência da República - e todos os desdobramentos seguintes envolvendo Congresso Nacional, Judiciário e a grande mídia apontaram para a fragilidade do Estado de Direto. Seria preciso defender o SUS, inclusive, do então Ministro da Saúde (COLLUCCI, 2016COLLUCCI, Claudia. Tamanho do SUS precisa ser revisto, diz novo ministro da Saúde. Folha de São Paulo [online], 17 maio 2016. [apenas para assinantes] em: [apenas para assinantes] em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/05/1771901-tamanho-do-sus-precisa-ser-revisto-diz-novo-ministro-da-saude.shtml . Acesso em: 25 out. 2019.
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), cuja campanha para deputado foi financiada por um importante grupo da saúde suplementar (RAMOS, 2016RAMOS, Murilo. Maior doador de campanha do ministro da Saúde é sócio de gigantes de planos de saúde. Época [online]. 17 maio 2016. Disponível em: Disponível em: https://epoca.oglobo.globo.com/tempo/expresso/noticia/2016/05/maior-doador-de-campanha-do-ministro-da-saude-e-socio-de-gigante-de-planos-de-saude.html . Acesso em: 30 ago. 2019.
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) que se posicionou contrário aos princípios constitucionais. De fato, não é fácil morar no Brasil; aqui a Comissão Parlamentar de Inquérito que então investigava a Fundação Nacional do Índio e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, a CPI FUNAI - INCRA 2, foi comandada pela bancada ruralista, e o Relatório Final pediu a condenação de antropólogos, juristas e entidades, que lutavam pela dignidade dos povos indígenas, já que aqueles estariam “inventando” terras indígenas, trazendo índios do Paraguay e declarando-os brasileiros (PACHECO, 2017PACHECO, Tania. CPI Funai-Incra pede a condenação de “falsos índios”, antropólogos, entidades e procuradores da República. Combate Racismo Ambiental [online], 3 maio 2017. Disponível em: Disponível em: http://racismoambiental.net.br/2017/05/03/cpi-funai-incra-pede-a-condenacao-de-falsos-indios-antropologos-entidades-e-procuradores-da-republica/ . Acesso em: 18 set. 2020.
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).
Viver nesse cenário de barbárie e, de forma concomitante, encontrar pessoas com as suas riquezas e os seus diferentes modos de tocar a vida produziu uma intervenção em mim. Já consigo enxergar um pouco mais da distância, ou melhor, do abismo que há entre o modo de o Estado funcionar, bem como do Capital, e como se produz o bem viver, teko porã, e a importância da mobilidade, as andanças inerentes à vida e as riquezas do caminhar, o oguatá pyahu (BENITES, 2014BENITES, Eliel. Oguata Pyahu (uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da Aldeia Te’ýikue. 2014. Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2014. Disponível em: Disponível em: https://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/13832-eleil-benites.pdf . Acesso em: 27 out. 2021.
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; RODRIGUES, 2016RODRIGUES, Paula Aparecida dos Santos. Oguata Pyahu e a Residência Multiprofissional em Saúde Indígena: um novo caminhar no desafio de SUStentar. Rede Humaniza SUS, 25 mar. 2016. Disponível em: Disponível em: https://redehumanizasus.net/94268-oguata-pyahu-e-a-residencia-multiprofissional-em-saude-indigena-um-novo-caminhar-no-desafio-de-sustentar/ . Acesso em: 28 out. 2021.
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). Considero que a qualificação do SUS e o fortalecimento da saúde como direito de cidadania, em especial na construção de uma Saúde Indígena que respeite, de forma radical, os saberes e as práticas tradicionais, implicam muitas desaprendizagens à Psicologia e aos demais trabalhadores do e pelo SUS. Tarefa árdua e necessariamente coletiva a de “desaprender oito horas por dia”, na qual estou incluída. Dentre os inúmeros desafios e incertezas, uma convicção: é urgente reaprender a viver com os povos tradicionais e construir enfrentamentos às práticas biopolíticas de medicalização e assujeitamento da vida.
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» http://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/handle/prefix/2430
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1
As ideias que compõem este relato foram apresentadas para o debate no “III Seminário Psicologia e Povos Indígenas”, organizado pelo Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso do Sul (CRP/MS), em Campo Grande, em agosto de 2016. Meses depois, foram amadurecidas no “Seminário Internacional de Etnologia Guarani: Diálogos e Contribuições”, da Faculdade Intercultural Indígena e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
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2
Crime debatido em audiência convocada pelo Ministério Público Federal (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2016INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. MS debate pulverização aérea de agrotóxico nas aldeias da região. Terras indígenas no Brasil [online], 14 out. 2016. Disponível em: Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/noticia/170906 . Acesso em: 12 ago. 2020.
https://terrasindigenas.org.br/pt-br/not... ). -
3
Anotações pessoais do II Seminário de Saúde Mental Indígena de Mato Grosso do Sul e I Encontro Nacional Psicologia, Povos Indígenas e Direitos Humanos, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia e Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso do Sul, Dourados - MS, em julho de 2013.
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4
Anotações pessoais da contribuição de Lauriene Seraguza Olegário e Souza em atividade do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Faculdade de Ciências Humanas da UFGD, agosto de 2016.
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Os dados completos da autora encontram-se ao final do artigo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2021
Histórico
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Recebido
09 Maio 2017 -
Revisado
11 Abr 2021 -
Revisado
27 Set 2021 -
Aceito
27 Set 2021