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John Locke e a Identidade Pessoal: Um Impasse Relativo à Justiça

John Locke and personal identity: an impasse concerning justice

RESUMO

No capítulo Da Identidade e da Diversidade do Ensaio sobre o Entendimento Humano, Locke sustenta que a identidade pessoal depende da consciência e que é na identidade pessoal que a justiça se funda. Todavia, essa compreensão de justiça conduz a um impasse nos casos em que o réu alega não ter consciência do crime e, portanto, não se identificar como a pessoa que o realizou: se não é possível determinar que se trata da mesma pessoa, pode-se dizer que a punição seja justa? O presente artigo tem como objetivo (i) analisar esse impasse explicando (a) o arcabouço conceitual que o constitui e (b) seu desdobramento na troca de cartas entre Locke e Molyneux a fim de (ii) apresentar uma crítica à resposta de Locke. Em comparação com a bibliografia secundária, na qual uma objeção à resposta de Locke encontra-se bem assentada, a contribuição do presente artigo consiste em propor uma nova objeção, explorando a dualidade de perspectivas entre primeira e terceira pessoa, e em mostrar que, confrontado por Molyneux, Locke se evadiu de enfrentar o ponto conceitual necessário para fornecer uma resposta satisfatória ao impasse.

Palavras-Chave:
Locke; Molyneux; identidade pessoal; justiça

ABSTRACT

In the chapter Of Identity and Diversity of An Essay Concerning Human Understanding, Locke claims that justice is based on personal identity and that personal identity is based on consciousness. However, this view of justice leads to an impasse when the defendant alleges that he has no consciousness of the crime and, therefore, that he does not identify himself as the person who committed the crime: if it is not possible to determine that he is the one who committed the crime, can we say that the punishment is just? This article seeks (i) to analyse the impasse exploring (a) its conceptual framework and (b) its development in the letters Molyneux and Locke exchanged in order (ii) to elaborate a criticism of Locke’s answer to it. Compared to the secondary bibliography, in which one objection to Locke’s answer is well established, the originality of this article consists in elaborating a new objection based on the distinction between the first and third person perspectives and in showing that, when questioned by Molyneux, Locke failed to discuss the conceptual issue necessary to give an adequate answer to the impasse.

Keywords:
Locke; Molyneux; personal identity; justice

Introdução

No capítulo Da Identidade e da Diversidade, acrescido ao Ensaio sobre o Entendimento Humano em sua segunda edição, datada de 1694, John Locke (1632-1704) delimita logo nas primeiras seções o problema que deseja discutir. Em contraste com a tradição, Locke não se detém no problema da individuação e se mostra interessado no problema da identidade diacrônica. De sua perspectiva, a pergunta acerca do que faz com que um ser se torne ele mesmo e distinto dos demais possui uma resposta simples: um ser se torna ele mesmo e distinto dos demais pelo mero fato de existir (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 330; E, II.xxvii.3).1 1 Segue-se aqui o sistema autor-data, mas indica-se também o livro, o capítulo e a seção do Ensaio sobre o Entendimento Humano, conforme o padrão nos estudos sobre Locke. Nas citações do capítulo Da Identidade e da Diversidade, utiliza-se a tradução publicada na Sképsis (Locke, 2015), mas dando-se a paginação da edição crítica elaborada por Nidditch (Locke, 2011). Já a pergunta acerca do que faz com que um ser, que é distinto dos demais, permaneça o mesmo ao longo do tempo não admite uma resposta tão direta. É impossível saber do que a identidade diacrônica depende sem antes definir o ser cuja permanência ao longo do tempo se almeja determinar (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 332, 348; E, II.xxvii.7, 29). Caso se deseje estabelecer o que faz com que uma pessoa permaneça a mesma ao longo do tempo, tem-se então formulado o que se convencionou chamar de problema da identidade pessoal.2 2 Para um excelente detalhamento dos problemas da individuação e da identidade pessoal, ver Thiel (1997, 1998a e 1998b).

Inegavelmente, boa parte da reflexão de Locke no capítulo Da Identidade e da Diversidade está voltada para esse problema e para alguns tópicos que lhe são correlatos. Entre esses tópicos, a justiça das punições é sem dúvida um dos mais importantes. Em termos gerais, a serem especificadas adiante, Locke considera que a identidade pessoal depende da consciência e que é na identidade pessoal que a justiça se funda. Todavia, essa compreensão de justiça conduz a um impasse nos casos em que o réu alega não ter consciência do crime e, portanto, não se identificar como a pessoa que o realizou.3 3 Na fortuna crítica, diferentes estudos apontam esse impasse, como Sheridan (2010, p. 75-76), Thiel (2011, p. 130-131), Jolley (2015, p. 105-107) e Kaufman (2016, p. 250-251). Para uma exposição do impasse na recepção imediata do capítulo Da Identidade e da Diversidade, ver Fox (1988, p. 60-65). Posto como uma questão, o impasse é o seguinte: se não é possível determinar que se trata da mesma pessoa, pode-se dizer que a punição seja justa?

O presente artigo tem como objetivo (i) analisar esse impasse explicando (a) o arcabouço conceitual que o constitui e (b) seu desdobramento na troca de cartas entre Locke e William Molyneux (1656-1698) a fim de (ii) apresentar uma crítica à resposta de Locke. Em comparação com a bibliografia secundária, na qual uma objeção à resposta de Locke encontra-se bem assentada,4 4 Das referências da nota anterior, veja-se, em particular, Thiel (2011, p. 130-131). a contribuição do presente artigo consiste em propor uma nova objeção, explorando a dualidade de perspectivas entre primeira e terceira pessoa, e em mostrar que, confrontado por Molyneux, Locke se evadiu de enfrentar o ponto conceitual necessário para fornecer uma resposta satisfatória ao impasse. Nas seções a seguir, cuja subdivisão almeja demarcar a abordagem do impasse tanto no capítulo Da Identidade e da Diversidade quanto na correspondência com Molyneux, parte-se de uma reconstrução do raciocínio de Locke, destacando-se inicialmente a distinção entre ser humano e pessoa e, em seguida, a proposição de que identidade pessoal depende da consciência.

1. Identidade Pessoal e Justiça

Ao tratar da identidade diacrônica, Locke inicia seu raciocínio voltando-se para os átomos e as massas de átomos. O que faz com que sejam os mesmos ao longo do tempo? Em ambos os casos, a identidade depende da preservação da composição material. Desde que ela não seja alterada, pode-se então dizer que um átomo ou uma massa de átomos se mantém idêntico. No que se refere aos organismos, não é mais a composição material que define a identidade e isso por uma razão evidente: os vegetais, animais e seres humanos se modificam ao longo do tempo (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 330; E, II.xxvii.3). No caso dos organismos, a identidade é constituída pela vida. Diz-se de um organismo que ele é o mesmo em razão da “mesma vida contínua transmitida a diferentes partículas de matéria, quando estão sucessivamente unidas a esse corpo vivo organizado” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 332-333; E, II.xxvii.8).

Tendo enfatizado a dimensão corpórea dos organismos, os quais, vale insistir, mantêm-se os mesmos ao longo do tempo graças à vida, Locke então apresenta o que ele entende por pessoa:

Pessoa, penso eu, é um ser pensante inteligente que tem razão e reflexão e que pode considerar a si mesmo como si mesmo [it self as it self], a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares, o que é feito somente pela consciência, que é inseparável do pensamento e, como me parece, lhe é essencial: é impossível para qualquer um perceber sem perceber que percebe ( Locke, 2011 LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press . , p. 335; E, II.xxvii.9).

Ao definir o que é uma pessoa, Locke assume duas proposições: (i) pessoa é um ser ou coisa pensante capaz de se reconhecer como si mesmo em diferentes momentos e lugares; (ii) esse reconhecimento ou identificação se deve à consciência, que é tida como inseparável do pensamento e, ao que parece, lhe é essencial. À parte a herança cartesiana presente na noção de ser ou coisa pensante, a primeira proposição se caracteriza por apresentar a dimensão diacrônica que tanto interessa a Locke. A segunda proposição, por sua vez, explica o que torna possível a uma pessoa reconhecer-se como a mesma em momentos distintos. Aos olhos de Locke, esse reconhecimento se deve à consciência. Todavia, como exatamente a consciência constitui a identidade pessoal?

Um ser inteligente é o mesmo eu pessoal [same personal self] tanto quanto puder repetir a ideia de qualquer ação passada com a mesma consciência que teve dela originalmente e com a mesma consciência que tem de qualquer ação presente, pois é pela consciência que tem de seus pensamentos e ações presentes que ele é um eu para si mesmo agora [it is self to it self now] e, assim, será o mesmo eu [self] tanto quanto a mesma consciência puder se estender a ações passadas ou vindouras ( Locke, 2011 LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press . , p. 336; E, II.xxvii.10).

Ao que parece, o raciocínio de Locke se subdivide em duas vertentes. Em primeiro lugar, Locke considera que uma pessoa é um eu para si mesmo num dado momento graças à consciência de seus pensamentos e ações presentes, o que se deve à reflexividade intrínseca do pensamento, conforme apontado na definição de pessoa: já que toda operação mental está sempre acompanhada da consciência, qualquer pensamento ou ação necessariamente remete ao eu.5 5 Esse é o sentido da afirmação de que “é impossível para qualquer um perceber sem perceber que percebe” na definição de pessoa. Locke faz afirmações análogas noutras passagens do Ensaio sobre o Entendimento Humano, das quais a mais clara é a seguinte: “em todo ato de sentir, raciocinar ou pensar, estamos conscientes para nós mesmos [to our selves] de nosso próprio ser” (Locke, 2011, p. 619; E, IV.ix.3). Não surpreende, pois, que Locke considere, como Descartes, que a existência de si mesmo seja um conhecimento intuitivo: “se sei que eu duvido, tenho uma percepção tão certa da existência da coisa dubitativa quanto daquele pensamento que chamo de dúvida” (Locke, 2011, p. 618; E, IV.ix.3). Contudo, se esse é o modo pelo qual uma pessoa se torna um eu para si mesmo num dado momento, resta ainda saber como uma pessoa pode se identificar como a mesma em momentos distintos. Também nesse caso uma pessoa se entende como o mesmo eu graças à consciência. Nos termos de Locke, uma pessoa será a mesma tanto quanto sua consciência se estender para o passado ou para o futuro. Centrando-se no vetor presente-passado, Locke explica essa extensão da consciência dizendo que uma pessoa será em t 2 a mesma de t 1 se puder repetir (a rigor, rememorar) em t 2 , como sendo sua, uma ação realizada em t 1 . No que se refere ao vetor presente-futuro, a extensão da consciência ocorre porque, sendo capaz de sentir prazer e dor, uma pessoa está sempre preocupada ou interessada (concerned, no original) com o que pode lhe advir (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 341; E. II.xxvii.17).6 6 Para um detalhamento do modo como se dá essa extensão da consciência, o que tem sido debatido na fortuna crítica como teorias da apropriação, ver Mackie (2005), Winkler (1991), Yaffe (2007) e Boeker (2016). Para os problemas relativos à memória na extensão da consciência, ver Flew (1968) e Garrett (2003).

Em sua reflexão sobre a identidade pessoal, entretanto, Locke tende a se concentrar no vetor presente-passado, o que o leva a atribuir à consciência o sentido de “representação presente de uma ação passada” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 337; E, II.xxvii.13). Destacar esse ponto é muito importante porque permite, por um lado, constatar o papel da memória na identidade pessoal7 7 Em várias passagens, tem-se inclusive a impressão de que memória e consciência são tomadas como sinônimos (ver, por exemplo, Locke, 2011, p. 346; E, II.xxvii.25). e, por outro, perceber que o critério de identidade pessoal proposto por Locke é psicológico ou subjetivo.

A maneira talvez mais óbvia de compreender a natureza do critério proposto por Locke consiste em notar que uma pessoa permanece a mesma ao longo do tempo independentemente da substância a que estiver vinculada: se a “coisa consciente pensante” é feita de uma substância “espiritual ou material, simples ou composta, isso não importa” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 341; E, II.xxvii.17). Em franco contraste com a posição predominante entre seus contemporâneos, Locke considera que uma mesma substância não é condição nem suficiente nem necessária para a identidade pessoal, como demonstram as seções que compõem o núcleo metafísico do capítulo Da Identidade e da Diversidade (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 336-341; E, II.xxvii.11-15). O critério proposto por Locke é psicológico ou subjetivo, portanto, na medida em que é a consciência - e somente ela - que faz com que uma pessoa permaneça a mesma ao longo do tempo (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 343; E, II.xxvii.21).8 8 No que se refere à base ontológica da consciência, Locke acredita, no entanto, que “a opinião mais provável” é a de que a consciência “está vinculada e é a afecção de uma única substância imaterial individual” (Locke, 2011, p. 345; E, II.xxvii.25).

Entretanto, há outra maneira de compreender por que o critério proposto por Locke é psicológico ou subjetivo. Trata-se agora de notar que, como ninguém tem acesso à consciência de outrem, a identificação de uma pessoa como si mesma em dois momentos só pode ser feita por ela própria. Noutras palavras, se uma pessoa em t2 é a mesma de t1 apenas se puder rememorar em t2 , como sendo sua, uma ação realizada em t1 , é impossível para qualquer outra pessoa determinar se ela é efetivamente a mesma. Nenhum observador externo, inevitavelmente localizado na perspectiva de terceira pessoa, é capaz de saber quais são as representações que outra pessoa de fato possui. Isso significa, em suma, que todo o raciocínio de Locke sobre a identidade pessoal está radicalmente embasado na perspectiva da primeira pessoa.

No capítulo Da Identidade e da Diversidade, Locke não explora essa dualidade de perspectivas, salvo por uma passagem em que especula sobre a alma de um príncipe que, carregando a consciência, entra no corpo de um sapateiro logo depois de este ter sido abandonado por sua própria alma. Locke observa que a pessoa formada pela conjunção do corpo do sapateiro e da alma com a consciência do príncipe é sem dúvida o príncipe, já que a identidade pessoal é constituída pela consciência, mas, “para todo mundo”, essa conjunção continua a ser o sapateiro, pois o que todos percebem é apenas a continuidade do homem, inferindo dela a continuidade da pessoa. Por causa disso, conclui Locke, “ele seria o mesmo sapateiro para todos, exceto para si mesmo” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., 340; E, II.xxvii.15).

Noutras passagens do capítulo Da Identidade e da Diversidade, Locke reafirma a distinção entre ser humano e pessoa, mas em nenhuma volta a tocar na dualidade de perspectiva entre primeira e terceira pessoa. Em algumas delas, porém, Locke relaciona a distinção entre ser humano e pessoa à sua compreensão de justiça. Ao que parece, ele julga importante fazer essa relação a fim de deixar claro que na “identidade pessoal está fundado todo direito e justiça de recompensas e punições” (Locke, 2011, 341; E, II.xxvii.18). É esse o motivo, aliás, de Locke afirmar que o termo pessoa é “forense” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 346; E, II.xxvii.26): se uma pessoa em t2 é a mesma pessoa de t1 , ela é a responsável, em t2 , pelas ações da pessoa de t1 .

Essa concepção de justiça é sem dúvida bastante razoável, mas, dada a distinção entre ser humano e pessoa, ela tem uma implicação que gera estranhamento. Essa implicação diz respeito à possibilidade de um mesmo ser humano ser duas pessoas. Imagine-se inicialmente o seguinte exemplo:

Se o mesmo Sócrates desperto e dormindo não compartilham a mesma consciência, Sócrates desperto e dormindo não são a mesma pessoa, e punir Sócrates desperto pelo que Sócrates dormindo pensou, e do que Sócrates desperto nunca esteve consciente, não seria mais correto do que punir um gêmeo pelo que seu irmão fez, do que ele nada soube, porque suas aparências são tão semelhantes que não poderiam ser distinguidos; gêmeos desse tipo já foram vistos ( Locke, 2011 LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press . , p. 342; E, II.xxvii.19).

Ora, apesar de serem o mesmo homem, na medida em que partilham a mesma vida, Sócrates desperto e dormindo não são a mesma pessoa, já que suas consciências são incomunicáveis. Assim, responsabilizar um deles por uma ação feita pelo outro seria como punir ou recompensar um gêmeo por algo feito pelo seu irmão. Esse é um exemplo especulativo, não resta dúvida, mas a situação que ele ilustra não é de todo irreal. Em certa medida, como se verá a seguir, os casos da ebriedade e do sonambulismo lhe são análogos. Em linhas gerais, pode-se dizer que em todos esses casos está em jogo a perda irreversível de memória, perda que implica concluir que a pessoa em t2 não mais se identifica com a de t1 . Embora aparentemente estranha, essa conclusão decorre do critério de identidade pessoal proposto por Locke, que não hesita em assumi-la abertamente: “se for possível para o mesmo homem ter consciências distintas que não podem ser compartilhadas em diferentes tempos, sem dúvida o mesmo homem, em tempos diferentes, seria pessoas diferentes” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 342; E, II.xxvii.20).9 9 Como observa Ayers (1991, v. II, p. 221), a distinção entre ser humano e pessoa implica igualmente que na Ressurreição deverá haver um número muito maior de pessoas do que os seres humanos que elas foram. Locke não trata desse ponto, contudo. Como meio de endossar sua posição (e, quem sabe, de torná-la mais palatável), Locke aponta que “as leis humanas não punem o homem louco pelas ações do homem sensato, nem o homem sensato pelo que o homem louco fez, constituindo-os, pois, duas pessoas”. Locke aponta ainda que essa mesma compreensão se manifesta na linguagem comum em expressões como a de que “alguém não está em si [is not himself] ou está fora de si [besides himself]” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 342-343; E, II.xxvii.20).

Nesse mesmo sentido, convém então perceber que responsabilizar uma pessoa por ações que ela não reconhece como dela própria equivale, da perspectiva da primeira pessoa, a puni-la ou recompensá-la arbitrariamente:

Quaisquer ações passadas que ele não possa conciliar com ou associar a esse eu presente [present self] pela consciência, com elas não pode estar mais implicado do que se elas nunca tivessem sido feitas; de modo que receber prazer ou dor, isto é, recompensa ou punição, pela responsabilidade de uma dessas ações é a mesma coisa que ser feito feliz ou miserável no começo de sua existência sem ter mérito ou demérito algum. Com efeito, supondo que um homem seja punido agora pelo que fizera noutra vida, da qual não se poderia fazê-lo ter consciência, que diferença há entre essa punição e ter sido criado miserável? ( Locke, 2011 LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press . , p. 346-347; E, II.xxvii.26). 10 10 Note-se que a ênfase de Locke recai sobre a consciência, em t2 , de uma ação feita em t1 . Como observa Boeker (2014, p. 239), há ainda outra condição para que se possa falar em punição justa: a ação precisa ter sido voluntária e contrária à lei. No capítulo Da Identidade e da Diversidade, Locke não discute essa segunda condição, possivelmente por tomá-la como óbvia.

Se uma pessoa não se vê como autora de uma ação, é impossível que considere que a punição ou recompensa que recebe seja justa: ela se verá como miserável ou afortunada sem qualquer demérito ou mérito para tanto. Da perspectiva da primeira pessoa, tudo isso é bastante claro, dado o acesso de cada um à própria consciência. Da perspectiva da terceira pessoa, porém, já não é esse o caso: um observador externo jamais pode estar certo de que uma pessoa em t2 realmente tem a consciência de ter realizado uma determinação ação em t1 . No que se refere à justiça, isso gera um impasse: se um réu alega não ter consciência de um determinado crime, pode-se dizer que é justa a punição que ele recebe? Em situações como essas, pode-se realmente considerar que a punição se baseou na identidade pessoal?

2. Um Impasse Relativo à Justiça

Pouco depois de apresentar o exemplo de Sócrates desperto e dormindo e de fazer as considerações sobre o sensato e o louco, Locke discute outros dois casos: o do bêbado e o do sonâmbulo. Suponha-se uma ação cometida no estado de ebriedade ou sonambulismo. Suponha-se ainda que, num momento posterior, o bêbado ou o sonâmbulo recobre o senso, mas alegue não ter consciência do crime que lhe é imputado. A punição em casos como esses é justa? Há aqui um impasse: da perspectiva da primeira pessoa, se o réu verdadeiramente não reconhece uma determinada ação como sua, a punição seria injusta; da perspectiva da terceira pessoa, porém, dada a impossibilidade de determinar se a alegação de falta de consciência é verdadeira e, assim, se o réu realmente não se identifica com o autor da ação, é indecidível se a punição seria justa ou injusta. Portanto, se a identidade pessoal depende da consciência e se é na identidade pessoal que a justiça se funda, parece razoável concluir que não deveria haver punição. Locke considera, entretanto, que deve sim haver punição e que ela seria justa. Como, porém, justificar essa resposta ao impasse? Favorável à punição, Locke a justifica nos seguintes termos:

As leis humanas punem ambos com uma justiça apropriada à sua maneira de conhecer, porque, nesses casos, elas não podem distinguir certamente o que é real, o que é contrafação e, assim, a ignorância na ebriedade ou no sono não é aceita como desculpa. [Com efeito, embora a punição esteja vinculada à personalidade, e a personalidade à consciência, e o bêbado talvez não esteja consciente do que fez, ainda assim os tribunais humanos punem-no com justiça, porque o fato contra ele está provado, mas a falta de consciência não pode ser provada a favor dele.] Contudo, no Grande Dia, no qual os segredos de todos os corações haverão de ser postos à mostra, é razoável pensar que ninguém deverá ser obrigado a responder por aquilo de que nada sabe ( Locke, 2011 LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press . , p. 343-344; E, II.xxvii.22).

Os colchetes na citação indicam um acréscimo feito na errata da segunda edição do Ensaio sobre o Entendimento Humano. Ele é fruto da troca de cartas com Molyneux e pretende ser um detalhamento da frase que abre a passagem, frase na qual se fala em justiça apropriada ou adequada (em inglês, suitable) ao conhecimento que os juízes são capazes de obter.11 11 A troca de cartas entre Locke e Molyneux foi intelectualmente frutífera e, estendendo-se por anos, tratou de diferentes questões. Para uma síntese de seus vários aspectos teóricos, ver Boeker (2021a). Para uma visão mais ampla da amizade entre eles, ver Kelly (1979). Note-se que no acréscimo Locke afirma que a punição está “vinculada à personalidade e a personalidade à consciência”, endossando que a identidade pessoal depende da consciência e que é na identidade pessoal que a justiça se funda. Esses são dois pontos consolidados e nada representam de novo frente ao que já havia sido dito no capítulo Da Identidade e da Diversidade. O que há de relevante no acréscimo encontra-se nas linhas seguintes, que pretendem explicitar a justificativa para a punição nos dois casos em jogo. Qual é exatamente essa justificativa?

Locke sustenta que a punição se justifica porque “as leis humanas punem ambos com uma justiça apropriada à sua maneira de conhecer”. Ao contrário da justiça divina, que contará com o desvelamento dos segredos dos corações e, por isso, poderá determinar inequivocamente a autoria de qualquer ação, a justiça humana não dispõe dessa prerrogativa. Valendo-se de um modo limitado de conhecimento, a justiça humana tem então de tomar decisões sem certeza acerca da autoria.12 12 Para Weinberg (2016, p. 180), a limitação da justiça humana implica que, em casos como o da ebriedade, a sentença se baseia na probabilidade e, por isso, a punição seria justa. Outro modo de pensar a limitação da justiça humana foi proposto por Law (1769, p. 7), que supõe que o réu punido injustamente será compensado por Deus no Grande Dia. Como se pode notar, ambas as interpretações buscam solucionar o impasse relativo à justiça, mas recorrem a conceitos (probabilidade e compensação) que extrapolam a reflexão de Locke no capítulo Da Identidade e da Diversidade. Em termos mais precisos, os quais se encontram no acréscimo feito a partir da troca de cartas com Molyneux, Locke observa, referindo-se ao réu, que “o fato contra ele está provado, mas a falta de consciência não pode ser provada a favor dele”. Ao que parece, o cerne de seu argumento é que, não podendo o réu provar a falta de consciência, deve-se descartar essa alegação e considerar, reconhecendo-se os limites da justiça humana, que se trata da mesma pessoa.

Existem duas objeções ao argumento de Locke. Em primeiro lugar, como o réu poderia provar a falta de consciência, se ninguém mais tem acesso à sua consciência? Uma prova desse tipo exige o impossível: que os juízes, ocupando a perspectiva da terceira pessoa, pudessem assumir a perspectiva da primeira pessoa. Em segundo lugar, afirmar que o fato contra ele está provado - e que, consequentemente, a punição é justa - significa pressupor que ele é a mesma pessoa, o que é o ponto em questão. A rigor, a punição é realizada presumindo-se que, por ser o mesmo homem antes e depois, o bêbado e o sonâmbulo são também, cada um deles, a mesma pessoa. Sendo assim, dadas as concepções de justiça e de identidade pessoal formuladas por Locke, não há como justificar a punição no caso do bêbado e do sonâmbulo sem exigir algo exorbitante, que o réu prove a falta de consciência (primeira objeção), ou sem inferir a identidade pessoal com base na identidade humana (segunda objeção).13 13 Das duas objeções mencionadas na introdução do presente artigo, essa segunda é a que se encontra bem assentada na bibliografia secundária, como se vê em Thiel (2011, p. 131), Kaufman (2016, p. 251) e Jolley (2015, p. 106). Mesmo Boeker (2021b, p. 71-75), que inverte a resposta de Locke ao impasse, como se ele considerasse a punição injusta, assume que a punição em casos como o do bêbado só seria possível inferindo-se a identidade pessoal da humana ou de outra condição (que não a consciência) para a identidade pessoal. Tendo em vista a distinção entre ser humano e pessoa e a exigência de que a justiça se funde na identidade pessoal, é surpreende que Sheridan (2010, p. 76) considere que “esse exemplo [do bêbado] não representa um problema sério para Locke”. Embora não possa contar com a prerrogativa do desvelamento dos corações, quando a perspectiva da primeira pessoa estará acessível para a terceira pessoa, a justiça humana não está isenta de fundar-se na identidade pessoal e de assumir que a identidade pessoal depende da consciência.14 14 Note-se que, podendo contar com o desvelamento dos corações, o julgamento a ser feito na Ressurreição não enfrenta o impasse com que a justiça humana se depara. A concepção de identidade pessoal elaborada por Locke, portanto, revela-se compatível com o Cristianismo, ao menos quanto à questão da justiça no Juízo Final. Sobre o debate relativo à ressurreição dos corpos, ver Kaufman (2008), Forstrom (2010) e Simonutti (2019). Por conseguinte, pode-se então afirmar que a resposta de Locke ao impasse relativo à injustiça é insuficiente por associar a justiça à identidade humana (segunda objeção), mas também por exigir para a absolvição do réu uma prova que é impossível de ser fornecida (primeira objeção), como se vê com clareza a partir da dualidade de perspectivas entre primeira e terceira pessoa.

3. Locke e Molyneux

Antes de ser publicado na segunda edição do Ensaio sobre o Entendimento Humano, Locke enviou o capítulo Da Identidade e da Diversidade para seu amigo irlandês William Molyneux. Esse envio ocorreu em 23 de agosto de 1693, poucos meses depois de ter sido composto a partir de um pedido do próprio Molyneux (Locke, 1976-1989LOCKE, J. 1976-1989. The Correspondence of John Locke. E. S. de BEER (Ed.). Oxford, Clarendon Press. v. I-VIII., cartas 1609 e 1655, v. IV, p. 650, 722). Em carta de 23 de dezembro de 1693, Molyneux lhe encaminhou suas impressões após uma releitura do capítulo e, a despeito de sua ampla concordância, apontou um questionamento relativo à voluntariedade. Pouco detalhada na bibliografia secundária, essa correspondência (um total de quatro cartas, sendo duas de cada correspondente) é importante, como se verá a seguir, por demonstrar como Locke se evade de discutir o procedimento da justiça humana, precisamente o ponto necessário para esclarecer sua resposta ao impasse relativo à justiça.15 15 Sheridan (2010, p. 75-76), Thiel (2011, p. 130-131), Jolley (2015, p. 105-107) e Kaufman (2016, p. 250-251) não examinam a progressão do questionamento de Molyneux identificando passo a passo as objeções e respostas. Esses estudiosos se limitam a apontar que, na correspondência com Molyneux, Locke insistiu em sua posição original. Para uma tradução das quatro cartas para o português, ver Loque (2022).

Na referida carta de 23 de dezembro de 1693, Molyneux apresentou um questionamento voltado especificamente para a vigésima segunda seção, aquela que trata da punição do bêbado e do sonâmbulo. Dizendo-se de acordo com a justificativa da punição no caso do sonâmbulo, Molyneux mostrou certo desacordo com a justificativa da punição no caso do bêbado, propondo acrescentar-lhe outro elemento.

Pois a ebriedade é ela própria um crime e, portanto, ninguém pode alegá-la como desculpa para outro crime. Na lei, vemos que matar um homem acidentalmente não é um crime capital. Entretanto, se estou cometendo um ato ilegal, como atirar numa corça num parque para roubá-la, e, por acidente, mato sem intenção um homem, esse é um crime capital porque o ato em que eu estava envolvido e que foi a ocasião do mal feito era em si mesmo ilegal e não pode ser alegado como desculpa. No caso do sonâmbulo sua resposta é verdadeira, completa e satisfatória, mas, no caso do ébrio, é um pouco insuficiente. O sonambulismo é um tipo de doença que não pode ser contida ou evitada pelo paciente, mas a ebriedade é um ato deliberado que um homem pode facilmente refrear e evitar ( Locke, 1976-1989 LOCKE, J. 1976-1989. The Correspondence of John Locke. E. S. de BEER (Ed.). Oxford, Clarendon Press. v. I-VIII. , carta 1685, v. IV, p. 767).

A justificativa da punição no caso do bêbado, pensa Molyneux, deve incluir o fato de a ebriedade ser um crime: um crime não pode ser utilizado como escusa de outro. Isso vale para a ebriedade, mas também para casos análogos, como o assassinato acidental quando se caça ilegalmente. Já o sonambulismo é diferente: por tratar-se de uma doença e, ao contrário da ebriedade e da caça ilegal, não poder ser evitada, ele não é em si mesmo um crime. Aos olhos de Molyneux, portanto, a punição no caso do bêbado e do sonâmbulo é justa, mas o caso do bêbado envolve um motivo suplementar que deveria ser acrescido à justificativa da punição.

Menos de um mês depois, em carta de 19 de janeiro de 1694, quando a segunda edição do Ensaio sobre o Entendimento Humano já se encontrava no prelo, Locke apresentou sua resposta ao questionamento de Molyneux. Locke não discorda da afirmação (óbvia, há de se convir) de que um crime não serve como desculpa de outro, mas observa que essa “razão comum” em nada se relaciona com a consciência e, além disso, compromete sua concepção de que a justiça se funda na identidade pessoal:

Tal como me lembro (não tenho o capítulo aqui comigo), estou mostrando que a punição está vinculada à personalidade e a personalidade à consciência: como então pode o bêbado ser punido pelo que fez, se disso não está consciente? Respondo que os tribunais humanos punem-no com justiça porque o fato contra ele está provado, mas a falta de consciência não pode ser provada a favor dele. Você pensa que isso não é suficiente e gostaria que eu acrescentasse a razão comum de que, sendo a ebriedade um crime, um crime não pode ser alegado como desculpa para outro. Essa razão, por melhor que seja, não pode, penso eu, ser usada por mim por não tocar no meu ponto, pois o que ela tem a ver com a consciência? Melhor dizendo, trata-se de um argumento contra mim, pois, se um homem pode ser punido por um crime que cometeu quando bêbado, do qual se admite que não esteja consciente, isso arruína minha hipótese ( Locke, 1976-1989 LOCKE, J. 1976-1989. The Correspondence of John Locke. E. S. de BEER (Ed.). Oxford, Clarendon Press. v. I-VIII. , carta 1693, v. IV, p. 785).

Locke aponta com clareza que a “razão comum” para a punição no caso do bêbado não tem relação alguma com a consciência e, mais importante ainda, que ela contradiz sua concepção de justiça, pois implicaria que a punição pode ocorrer mesmo se o réu não estiver consciente da ação. Locke assim reitera o vínculo entre justiça e identidade pessoal defendido no capítulo Da Identidade e da Diversidade. Algumas linhas adiante, contudo, Locke observa que “a ebriedade tem algo de peculiar em si quando ela destrói a consciência” e reconhece que sua afirmação da justiça da punição do bêbado é feita “sem mostrar até que ponto é razoável para a justiça humana punir um crime de um bêbado do qual se poderia supor que ele não esteja consciente”, pois isso o teria “engajado inutilmente num discurso muito longo e numa digressão impertinente”. A seus olhos, “investigar a razão com que a justiça humana tem de proceder em casos desse tipo” extrapolaria seu “objetivo” (Locke, 1976-1989LOCKE, J. 1976-1989. The Correspondence of John Locke. E. S. de BEER (Ed.). Oxford, Clarendon Press. v. I-VIII., carta 1693, v. IV, p. 785-786). Como se pode notar, a réplica a Molyneux envolve então duas partes: num primeiro momento, Locke rejeita o questionamento que lhe fora feito argumentando que ele abriria a possibilidade de punições sem que o réu tenha consciência do ato pelo qual responde; num segundo momento, Locke explica o motivo pelo qual não entrou em pormenores sobre a maneira como a justiça humana procede. Com relação a esse segundo momento, todavia, é importante ressaltar a admissão por Locke da razoabilidade de se punir alguém por um crime “do qual se poderia supor que ele não esteja consciente”. Não representaria isso uma violação de sua própria concepção de justiça? Ao enfatizar tanto o vínculo entre punição, personalidade e consciência quanto a limitação da justiça humana (passagem que haveria de ser incorporada ao Ensaio sobre o Entendimento Humano, como destacado acima), Locke parece não ter se dado conta da contradição entre, por um lado, a afirmação do referido vínculo e, por outro, a punição de alguém pela justiça humana por um crime “do qual se poderia supor que ele não esteja consciente”. A rigor, insistindo em sua posição original e recusando-se a esmiuçar o procedimento da justiça humana, Locke nada mais fez senão eximir-se de enfrentar o impasse relativo à justiça e, assim, esclarecer sua resposta a ele.

Em carta de 17 de fevereiro de 1694, Molyneux acusou o recebimento dessa resposta e revelou (sem maiores detalhes) ter ficado convencido, mas isso não o impediu de formular um novo questionamento:

Por que a falta de consciência não pode ser provada a favor do bêbado assim como a favor de um delirante? Uma é tão evidente, parece-me, quanto a outra; se a ebriedade pode ser uma contrafação, também o delírio pode sê-lo. Portanto, para mim, parece que a lei faz uma diferença nesses dois casos com base neste motivo: a ebriedade é normalmente ocasionada voluntária e premeditadamente ao passo que o delírio normalmente ocorre sem nosso consentimento ou é impossível de ser evitado ( Locke, 1976-1989 LOCKE, J. 1976-1989. The Correspondence of John Locke. E. S. de BEER (Ed.). Oxford, Clarendon Press. v. I-VIII. , carta 1712, v. V, p. 21).

Ao formular seu novo questionamento, Molyneux recoloca a questão da voluntariedade, mas agora comparando a ebriedade à loucura. Seu intuito é mostrar que há a possibilidade de contrafação em ambos os casos e que, em última instância, a justiça decide pela punição com base no caráter voluntário da ebriedade. Molyneux aponta a dificuldade de se determinar a alegação de falta de consciência e, assim, retoma o que havia proposto para justificar a punição no caso do bêbado. Estranhamente, contudo, Molyneux nada diz sobre o caso do sonâmbulo, com cuja punição ele dissera estar de acordo, apesar de o sonambulismo ser afim à loucura e não à ebriedade.16 16 Partarroyo (2009, p. 152, n. 1) destaca essa incoerência de Molyneux. Seja como for, sua crítica agora consiste em explorar abertamente a indefinição acerca da falta de consciência e em sustentar que o critério para a punição no caso do bêbado acaba sendo a voluntariedade do ato realizado.

Em carta de 26 de maio de 1694, Locke voltou à carga e enviou sua nova resposta a Molyneux:

Concordo com você que, sendo a ebriedade um defeito voluntário, não se deve presumir a falta de consciência a favor do bêbado e que o delírio, sendo involuntário e uma desventura, não uma falta, dá direito à desculpa, que certamente é justa quando se trata realmente de um delírio. Tudo que compete à justiça humana é distinguir cuidadosamente o que é real do que é contrafação no caso ( Locke, 1976-1989 LOCKE, J. 1976-1989. The Correspondence of John Locke. E. S. de BEER (Ed.). Oxford, Clarendon Press. v. I-VIII. , carta 1744, v. V, p. 58).

Postos lado a lado os casos do bêbado e do louco, Locke foi levado a admitir que o caráter voluntário da ebriedade e o caráter involuntário da loucura representam sim uma diferença perante a justiça, já que apenas no segundo desses dois casos obtém-se o direto à escusa. Entretanto, essa concessão ao novo questionamento de Molyneux não fez Locke reconsiderar sua posição original. Embora haja uma diferença quanto à voluntariedade, é preciso de qualquer modo que a justiça humana avalie a alegação de falta de consciência no caso da loucura, dada a possibilidade de contrafação. Não há um direito automático à escusa. Em qualquer um dos casos, o da ebriedade ou o da loucura, o que determina a sentença é sempre a decisão dos juízes acerca da alegada falta de consciência. Para Locke, em síntese, apesar da pertinência da questão da voluntariedade, ela não altera o essencial: saber se o réu é a mesma pessoa que cometeu a ação. Como em sua carta anterior, todavia, Locke não entrou em pormenores acerca do modo pelo qual a justiça humana procede.

Na correspondência com Molyneux, portanto, Locke continua a sustentar que a justiça se funda na identidade pessoal, mas permanece sem explicar como poderia se dar a distinção por parte dos juízes entre o que é real e o que é contrafação nas alegações de falta de consciência.17 17 Helm (1981) também considera que, quanto ao essencial, Locke nada cede a Molyneux, mas se confunde acerca do papel da consciência. Como argumentam Allison e Jolley (1981), o que está em jogo não é propriamente a consciência da ação no momento em que é realizada, mas sua rememoração no momento em que se recobra o senso. Dessa perspectiva, considerando-se a distinção entre amnésia e ausência de consciência proposta por Hamou (2014), convém notar que o raciocínio de Locke pressupõe que, no momento da ação, o agente sabe o que está fazendo (ainda que depois venha a se esquecer do ato), o que é diferente dos casos em que, no momento da ação, o agente não sabe o que está fazendo (por alguma disfunção). Consequentemente, ao contrário do que Locke propõe, não há um paralelismo entre os casos do bêbado e do sonâmbulo, mas entre os casos do louco e do sonâmbulo. O raciocínio de Locke pressupõe que cabe ao réu provar a falta de consciência e que, na ausência dessa prova, é cabível puni-lo, tendo em vista a limitação da justiça humana. O problema é que uma prova como essa é impossível de ser fornecida, dada a dualidade de perspectivas entre primeira e terceira pessoa (primeira objeção). O que os juízes então de fato fazem é inferir a identidade pessoal a partir da identidade humana (segunda objeção). Como agora é possível perceber com clareza, a análise da correspondência com Molyneux traz um elemento adicional para a crítica que se pode fazer a Locke: defrontado por seu amigo, ele se esquivou de tratar do procedimento da justiça humana alegando que isso o teria “engajado inutilmente num discurso muito longo e numa digressão impertinente”. Ora, como poderia ser inútil e impertinente uma exposição que permitiria esclarecer sua resposta ao impasse relativo à justiça?

Considerações Finais

O critério de identidade pessoal proposto por Locke implica que uma pessoa é a mesma em momentos distintos apenas se, em t2 , ela é capaz de repetir ou rememorar, como sendo dela própria, uma ação realizada em t1 . Trata-se, como se viu, de um critério psicológico ou subjetivo para a identidade pessoal: numa primeira acepção, porque Locke não requer uma mesmidade de substância (seja imaterial, seja material) para que uma pessoa permaneça a mesma diacronicamente; numa segunda acepção, porque é impossível saber, da perspectiva da terceira pessoa, quais representações uma pessoa possui. Só ela própria, que obviamente se situa na perspectiva da primeira pessoa, pode dizer o que se encontra em sua consciência.

Essa dualidade de perspectivas possui uma implicação importante no que se refere à justiça, já que, segundo Locke, esta se funda na identidade pessoal: quando um réu alega não ter consciência de um crime, pode-se dizer que é justa a punição que ele recebe? Há aqui um impasse porque, da perspectiva da terceira pessoa, é impossível avaliar a veracidade da alegação de falta de consciência, de modo que, em casos como esse, era de se esperar que não houvesse punição. Aos olhos de Locke, todavia, é justa a punição em tais casos (exemplificados pela ebriedade e pelo sonambulismo). Locke argumenta que a punição é justa em conformidade com o que os tribunais humanos são capazes de conhecer.

Contudo, essa resposta para o impasse é insatisfatória. Duas objeções podem lhe ser levantadas. A primeira é que a exigência de que o réu prove a falta de consciência é exorbitante, pois só o réu tem acesso à sua própria consciência. Não existe prova alguma que permita a outra pessoa verificar se o que ele diz corresponde ao que se encontra em sua memória. A segunda é que, dada a incerteza sobre a alegação de falta de consciência, os juízes inferem a identidade pessoal a partir da identidade humana, o que contradiz a proposição de Locke de que a justiça se funda na identidade pessoal. Bem assentada na bibliografia secundária, essa segunda objeção aponta uma incoerência de Locke, mas não esgota a crítica que se pode fazer a ele. Tomando-se como base a dualidade de perspectivas entre primeira e terceira pessoa, como se buscou mostrar no presente artigo, é possível levantar outra objeção: nos casos como o do bêbado e do sonâmbulo, o parâmetro proposto para que o réu prove sua inocência é inatingível.

Ao criticar Locke, Molyneux mostrou-se insatisfeito com a justificativa da punição no caso do bêbado, apontando a necessidade de se considerar que, sendo a ebriedade algo voluntário e, mais do que isso, um crime, ela não poderia servir como escusa. Para Locke, porém, admitir esse acréscimo proposto por Molyneux para justificar a punição do bêbado implicaria reconhecer que a punição pode prescindir da consciência. Como se vê, Locke relutou em incorporar a voluntariedade à justificativa para a punição, pois isso significaria que a punição pode ocorrer ainda que o réu não tenha consciência do crime. Ao mesmo tempo, porém, Locke admitiu a razoabilidade de se punir alguém por um crime “do qual se poderia supor que ele não esteja consciente”, contradição da qual parece não ter se dado conta. O devido esclarecimento de sua resposta ao impasse relativo à justiça requeria, portanto, um detalhamento do procedimento da justiça humana para elucidar essa contradição e, quem sabe, refutar as duas objeções, mas Locke se absteve de fazer esse detalhamento.

Em suma, ao justificar a punição em casos como o do bêbado e do sonâmbulo, Locke não fornece uma resposta satisfatória nem no capítulo Da Identidade e da Diversidade nem na troca de cartas com Molyneux. Não há nisso nenhuma surpresa, contudo. Considerando-se os conceitos por ele próprio formulados, notadamente a distinção entre ser humano e pessoa, o impasse relativo à justiça é insuperável.18 18 Agradeço ao Vinícius França Freitas pela leitura e pelos comentários a este artigo.

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  • 1
    Segue-se aqui o sistema autor-data, mas indica-se também o livro, o capítulo e a seção do Ensaio sobre o Entendimento Humano, conforme o padrão nos estudos sobre Locke. Nas citações do capítulo Da Identidade e da Diversidade, utiliza-se a tradução publicada na Sképsis (Locke, 2015LOCKE, J. 2015. Ensaio sobre o Entendimento Humano - Livro II.27: Da Identidade e da diversidade. Trad. F. F. LOQUE. Sképsis, 8(12): 169-188.), mas dando-se a paginação da edição crítica elaborada por Nidditch (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press .).
  • 2
    Para um excelente detalhamento dos problemas da individuação e da identidade pessoal, ver Thiel (1997THIEL, U. 1997. ‘Epistemologism’ and early modern debates on individuation and personal identity. British Journal for the History of Philosophy, 5(2): 353-372., 1998aTHIEL, U. 1998a. Individuation. In: D. Garber; M. Ayers (Ed.), The Cambridge history of seventeenth-century philosophy. Cambridge, Cambridge University Press. p. 212-262. e 1998bTHIEL, U. 1998b. Personal identity. In: D. Garber ; M. Ayers (Ed.), The Cambridge history of seventeenth-century philosophy. Cambridge, Cambridge University Press . p. 868-912.).
  • 3
    Na fortuna crítica, diferentes estudos apontam esse impasse, como Sheridan (2010SHERIDAN, P. 2010. Locke: a guide for the perplexed. New York, Continuum ., p. 75-76), Thiel (2011THIEL, U. 2011. The Early Modern Subject. Oxford, Oxford University Press ., p. 130-131), Jolley (2015JOLLEY, N. 2015. Locke’s touchy subjects. Oxford, Oxford University Press ., p. 105-107) e Kaufman (2016KAUFMAN, D. 2016. Locke’s theory of identity. In: M. Stuart (Ed.), A companion to Locke. Oxford, Blackwell. p. 236-259., p. 250-251). Para uma exposição do impasse na recepção imediata do capítulo Da Identidade e da Diversidade, ver Fox (1988FOX, C. 1988. Locke and the Scriblerians. Berkeley, University of California Press., p. 60-65).
  • 4
    Das referências da nota anterior, veja-se, em particular, Thiel (2011THIEL, U. 2011. The Early Modern Subject. Oxford, Oxford University Press ., p. 130-131).
  • 5
    Esse é o sentido da afirmação de que “é impossível para qualquer um perceber sem perceber que percebe” na definição de pessoa. Locke faz afirmações análogas noutras passagens do Ensaio sobre o Entendimento Humano, das quais a mais clara é a seguinte: “em todo ato de sentir, raciocinar ou pensar, estamos conscientes para nós mesmos [to our selves] de nosso próprio ser” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 619; E, IV.ix.3). Não surpreende, pois, que Locke considere, como Descartes, que a existência de si mesmo seja um conhecimento intuitivo: “se sei que eu duvido, tenho uma percepção tão certa da existência da coisa dubitativa quanto daquele pensamento que chamo de dúvida” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 618; E, IV.ix.3).
  • 6
    Para um detalhamento do modo como se dá essa extensão da consciência, o que tem sido debatido na fortuna crítica como teorias da apropriação, ver Mackie (2005MACKIE, J. L. 2005. [1976]. Problems from Locke. Oxford, Clarendon Press .), Winkler (1991WINKLER, K. 1991. Locke on personal identity. Journal of the History of Philosophy, 29(2): 201-226.), Yaffe (2007YAFFE, G. 2007. Locke on ideas of identity and diversity. In: L. Newman (Ed.), Cambridge The Companion to Locke’s “Essay Concerning Human Understanding”. Cambridge, Cambridge University Press . p. 192-230.) e Boeker (2016BOEKER, R. 2016. The role of appropriation in Locke’s account of persons and personal identity. Locke Studies, 16: 3-39.). Para os problemas relativos à memória na extensão da consciência, ver Flew (1968FLEW, A. 1968. [1951]. Locke and the problem of personal identity. In: C. B. Martin; D. M. Armstrong, Locke and Berkeley. London, Palgrave Macmillan. p. 155-178.) e Garrett (2003GARRETT, D. 2003. Locke on Personal Identity, Consciousness, and “Fatal Errors”. Philosophical Topics, 31: 95-125.).
  • 7
    Em várias passagens, tem-se inclusive a impressão de que memória e consciência são tomadas como sinônimos (ver, por exemplo, Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 346; E, II.xxvii.25).
  • 8
    No que se refere à base ontológica da consciência, Locke acredita, no entanto, que “a opinião mais provável” é a de que a consciência “está vinculada e é a afecção de uma única substância imaterial individual” (Locke, 2011LOCKE, J. 2011. An Essay Concerning Human Understanding. P. NIDDITCH (Ed.). Oxford, Clarendon Press ., p. 345; E, II.xxvii.25).
  • 9
    Como observa Ayers (1991AYERS, M. 1991. Locke. New York, Routledge. v. 1-2, v. II, p. 221), a distinção entre ser humano e pessoa implica igualmente que na Ressurreição deverá haver um número muito maior de pessoas do que os seres humanos que elas foram. Locke não trata desse ponto, contudo.
  • 10
    Note-se que a ênfase de Locke recai sobre a consciência, em t2 , de uma ação feita em t1 . Como observa Boeker (2014BOEKER, R. 2014. The Moral Dimension in Locke’s Account of Persons and Personal Identity. History of Philosophy Quarterly, 31(3): 229-247., p. 239), há ainda outra condição para que se possa falar em punição justa: a ação precisa ter sido voluntária e contrária à lei. No capítulo Da Identidade e da Diversidade, Locke não discute essa segunda condição, possivelmente por tomá-la como óbvia.
  • 11
    A troca de cartas entre Locke e Molyneux foi intelectualmente frutífera e, estendendo-se por anos, tratou de diferentes questões. Para uma síntese de seus vários aspectos teóricos, ver Boeker (2021aBOEKER, R. 2021a. Locke and William Molyneux. In: J. Gordon-Roth; S. Weinberg (Eds.), The Lockean Mind. London, Routledge. p. 15-21.). Para uma visão mais ampla da amizade entre eles, ver Kelly (1979KELLY, P. 1979. Locke and Molyneux: the anatomy of a friendship. Hermathena, 126: 38-54.).
  • 12
    Para Weinberg (2016WEINBERG, S. 2016. Consciousness in Locke. Oxford, Oxford University Press ., p. 180), a limitação da justiça humana implica que, em casos como o da ebriedade, a sentença se baseia na probabilidade e, por isso, a punição seria justa. Outro modo de pensar a limitação da justiça humana foi proposto por Law (1769LAW, E. 1769. A Defence of Mr. Locke’s Opinion concerning Personal Identity. Cambridge, J. Archdeacon printer of the University., p. 7), que supõe que o réu punido injustamente será compensado por Deus no Grande Dia. Como se pode notar, ambas as interpretações buscam solucionar o impasse relativo à justiça, mas recorrem a conceitos (probabilidade e compensação) que extrapolam a reflexão de Locke no capítulo Da Identidade e da Diversidade.
  • 13
    Das duas objeções mencionadas na introdução do presente artigo, essa segunda é a que se encontra bem assentada na bibliografia secundária, como se vê em Thiel (2011THIEL, U. 2011. The Early Modern Subject. Oxford, Oxford University Press ., p. 131), Kaufman (2016KAUFMAN, D. 2016. Locke’s theory of identity. In: M. Stuart (Ed.), A companion to Locke. Oxford, Blackwell. p. 236-259., p. 251) e Jolley (2015JOLLEY, N. 2015. Locke’s touchy subjects. Oxford, Oxford University Press ., p. 106). Mesmo Boeker (2021bBOEKER, R. 2021b. Locke on Persons and Personal Identity. Oxford, Oxford University Press., p. 71-75), que inverte a resposta de Locke ao impasse, como se ele considerasse a punição injusta, assume que a punição em casos como o do bêbado só seria possível inferindo-se a identidade pessoal da humana ou de outra condição (que não a consciência) para a identidade pessoal. Tendo em vista a distinção entre ser humano e pessoa e a exigência de que a justiça se funde na identidade pessoal, é surpreende que Sheridan (2010SHERIDAN, P. 2010. Locke: a guide for the perplexed. New York, Continuum ., p. 76) considere que “esse exemplo [do bêbado] não representa um problema sério para Locke”.
  • 14
    Note-se que, podendo contar com o desvelamento dos corações, o julgamento a ser feito na Ressurreição não enfrenta o impasse com que a justiça humana se depara. A concepção de identidade pessoal elaborada por Locke, portanto, revela-se compatível com o Cristianismo, ao menos quanto à questão da justiça no Juízo Final. Sobre o debate relativo à ressurreição dos corpos, ver Kaufman (2008KAUFMAN, D. 2008. The resurrection of the same body and the ontological status of organisms: what Locke should have (and could have) told Stillingfleet. In: P. Hoffman; D. Owen; G. Yaffe (Eds.), Contemporary Perspectives on Early Modern Philosophy. Ontario, Broadview Press, p. 191-214.), Forstrom (2010FORSTROM, K. J. S. 2010. John Locke and Personal Identity. New York, Continuum.) e Simonutti (2019SIMONUTTI, L. 2019. Locke’s Biblical Hermeneutics on Body Resurrection. In: L. Simonutti (Ed.), Locke on Biblical Hermeneutics. Cham, Springer. p. 55-74.).
  • 15
    Sheridan (2010SHERIDAN, P. 2010. Locke: a guide for the perplexed. New York, Continuum ., p. 75-76), Thiel (2011, p. 130-131), Jolley (2015JOLLEY, N. 2015. Locke’s touchy subjects. Oxford, Oxford University Press ., p. 105-107) e Kaufman (2016KAUFMAN, D. 2016. Locke’s theory of identity. In: M. Stuart (Ed.), A companion to Locke. Oxford, Blackwell. p. 236-259., p. 250-251) não examinam a progressão do questionamento de Molyneux identificando passo a passo as objeções e respostas. Esses estudiosos se limitam a apontar que, na correspondência com Molyneux, Locke insistiu em sua posição original. Para uma tradução das quatro cartas para o português, ver Loque (2022LOQUE, F. F. 2022. A correspondência entre Locke e Molyneux sobre identidade pessoal e justiça: tradução das cartas 1685, 1693, 1712 e 1744.Sképsis, 13(24): 107-116.).
  • 16
    Partarroyo (2009PARTARROYO, C. 2009. Correspondencia entre Locke y Molyneux acerca de la identidad personal y el derecho a castigar justamente a un ebrio que no es consciente de sus acciones. Ideas y Valores, 139: 145-159., p. 152, n. 1) destaca essa incoerência de Molyneux.
  • 17
    Helm (1981HELM, P. 1981. Did Locke capitulate to Molyneux? Journal of the History of Ideas, 42(4): 669-671.) também considera que, quanto ao essencial, Locke nada cede a Molyneux, mas se confunde acerca do papel da consciência. Como argumentam Allison e Jolley (1981ALLISON, H., JOLLEY, N. 1981. Locke’s Pyrrhic Victory. Journal of the History of Ideas, 42(4): 672-674.), o que está em jogo não é propriamente a consciência da ação no momento em que é realizada, mas sua rememoração no momento em que se recobra o senso. Dessa perspectiva, considerando-se a distinção entre amnésia e ausência de consciência proposta por Hamou (2014HAMOU, P. 2014. Mémoire et ‘Conscience continuée”: une lecture de Locke sur l’identité personelle. Philosophical enquiries: revue des philosophes anglophones, 3: 1-33.), convém notar que o raciocínio de Locke pressupõe que, no momento da ação, o agente sabe o que está fazendo (ainda que depois venha a se esquecer do ato), o que é diferente dos casos em que, no momento da ação, o agente não sabe o que está fazendo (por alguma disfunção). Consequentemente, ao contrário do que Locke propõe, não há um paralelismo entre os casos do bêbado e do sonâmbulo, mas entre os casos do louco e do sonâmbulo.
  • 18
    Agradeço ao Vinícius França Freitas pela leitura e pelos comentários a este artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2021
  • Aceito
    16 Mar 2022
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