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Avaliação, medida de valor, valor: três noções interligadas ao conceito de transvaloração em Nietzsche

Evaluation, measure of value, value: three notions linked to Nietzsche’s concept of transvaluation

RESUMO

O presente artigo busca não somente reconstruir as noções de “avaliação” (Werthschätzung) e “valor” (Werth) presentes nas obras de Nietzsche, mas pretende mostrar que ambas precisam ser pensadas à luz da noção de “medida de valor” (Werthmaass), haja vista que esta é imprescindível para a compreensão do conceito de transvaloração de todos os valores na filosofia nietzschiana.

Palavras-chave:
Nietzsche; avaliação; medida de valor; valor; transvaloração

ABSTRACT

This article seeks not only to reconstruct the notions of “evaluation” (Werthschätzung) and “value” (Werth) present in Nietzsche’s works, but also to show that both need to be thought of in the light of the notion of “measure of value” (Werthmaass), given that it is essential for understanding the concept of transvaluation of all values in Nietzschean philosophy.

Keywords:
Nietzsche; evaluation; measure of value; value; transvaluation

Introdução

É significativo que ao conceber o conceito de “transvaloraçãoRUBIRA, L. 2008. O amor fati em Nietzsche: condição necessária para a transvaloração? Polymátheia (UECE), IV (6): 227-236.NietzscheBENOIT, B. 2003. Le quatrième livre du Gai savoir et l’éternel retour. In: Nietzsche-Studien, n. 32. Berlin: Walter de Gruyter & Co, p. 01-28. registre em um de seus cadernos de notas do ano de 1884: “Filosofia do eterno retorno do mesmo: uma tentativa de transvaloraçãoRUBIRA, L. 2005. Uma introdução à transvaloração de todos os valores na obra de Nietzsche. Tempo da Ciência (UNIOESTE), 12 (24): 113-122. de todos os valores” (Nietzsche, Fragmentos póstumos, XI, 26(259) - Verão - Outono de 1884). Interligando neste primeiro momento o conceito de “transvaloração” à “filosofia do eterno retorno do mesmo”, já em 1886, quando o conceito surge pela primeira vez em uma obra publicada pelo filósofo, ele serve para indicar o modo como, do ponto de vista da fé, a tradição judaico-cristã encontrou, na “paradoxal fórmula ‘Deus na Cruz’”, as condições para realizar “uma transvaloração de todos os valores antigos” (Nietzsche, Para além de bem e mal, §46). Ora, se nos determos apenas nestes dois momentos em que Nietzsche torna operatório seu conceito, é possível compreender, de modo preliminar, que Umwerthung aller Werthe (aqui traduzido e decomposto como: trans/valoração/de todos os valores) contém a seguinte concepção: inverter-mudar-ir além/da avaliação determinante/de todos os valores. Embora já tenhamos mostrado em pesquisas anteriores que ao anunciar o “novo peso: o eterno retorno do mesmo”, o filósofo utiliza a palavra “peso” como sinônimo de “valor”, sendo que a tarefa central de seu pensamento consiste em substituir a antiga medida de valor (“Deus”) por uma nova medida de valor (a hipótese cosmológica do eterno retorno do mesmo)1 1 Neste sentido, ver RUBIRA, 2010, em particular os capítulos II e III. , gostaríamos, no presente texto, de reconstruir, ainda que de modo breve, três noções que estão interligadas ao conceito de transvaloração2 2 Sobre o significado do conceito e da tarefa da transvaloração no pensamento nietzschiano, ver GEN, 2016, p. 399-402. . Noções estas que vão sendo desenvolvidas e ganham refinamento conceitual ao longo de praticamente toda a produção filosófica de NietzscheDENAT, C.; WOTLING, P. 2013. Dictionnaire Nietzsche. Paris: Ellipses..

Avaliação (Werthschätzung)

A partir do período de Humano, demasiado humano, o desenvolvimento da noção de valor leva NietzscheD’IORIO, P. 1995. La linea e il circolo. Cosmologia e filosofia dell’eterno ritorno in Nietzsche. Genova: Pantograf, CNR. a conceber a avaliação (Werthschätzung) como a medição de valores ou a produção de valor. Por essa razão ele sustenta, em Aurora, que todas as nossas ações (Handlungen) remetem a avaliações e que todas as avaliações ou foram adotadas (o que é mais frequente) ou são próprias (caso mais raro), bem como define, em Assim falava Zaratustra, que, por permanentemente medir e produzir valores, o homem é aquele que avalia (der Schätzende). Noção que somente ganha em clareza quando articulada com as noções de valor (Werth) e medida de valor (Werthmaasse), NietzscheGEN - (Org.). 2016. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola (Coleção Sendas & Veredas). defende explicitamente na Genealogia da moral que o homem é o ser que mede valores (Werthe misst), que valora e mede (werthet und misst), sendo, por excelência, o animal avaliador (abschätzende Thier). Atividade que para o filósofo ocorre em sua maior parte numa esfera que não envolve diretamente a consciência, se inicialmente ele pensa a produção e medição de valores como resultante dos impulsos de prazer e desprazer, num segundo momento interpreta que cada avaliação deriva do perspectivismo da vontade de potência.

Ainda que já bem antes do Nascimento da tragédia exista o emprego dos termos Schätzung e Werthschätzung como sinônimos de avaliação/estimação/apreciação, a noção de avaliação ganha seu primeiro esboço no escrito inédito Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (1873) quando NietzscheLÖWITH, K. 1991. Nietzsches philosophie der ewigen Wiederkehr des Gleichen. 3a ed., Hamburgo: Felix Meiner Verlag, 1978. Nietzsche: Philosophie de L’éternel Retour du Même. Trad. Anne-Sophie Astrup. Paris: Calmann-Lévy. busca refletir sobre o valor da existência (Werth des Daseins). Do mesmo modo, em suas anotações do ano de 1875, ele entende que todo e qualquer juízo sobre o valor da vida (Werth des Lebens) não pode ser formulado no âmbito do conhecimento puro e que as avaliações provêm dos impulsos. Tais reflexões criam as condições para sua argumentação, na obra publicada em 1878, de que ninguém pode viver sem avaliar (ohne abzuschätzen). Desde então, se a interligação entre “vida” e “avaliação” torna-se uma constante em seu pensamento, é com o conceito de vontade de potência que NietzscheNIETZSCHE, F. 1967-78. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin/Munique: Walter de Gruyter & Co., 15 v. passa a conceber a avaliação como imanente a todo o âmbito cosmológico. Isso o leva a compreender, mais profundamente, que, se cada força e cada complexo de força produz avaliações para conservar e aumentar a sua potência, é das relações de domínio “moral” que surge o próprio fenômeno “vida”. Tema que embora complexo reforça a concepção do filósofo de que a vida mesma é decorrente da disputa de avaliações da vontade de potência, ele permite interpretar cada avaliação como sintoma de um determinado tipo de vida.

Noção nietzschiana que também pode ser traduzida como “avaliação de valor”, “apreciação de valor” ou “estimativa de valor”, no prefácio de 1886 ao Nascimento da tragédia, o filósofo conclui que em sua primeira obra o que lhe ocupava era “o valor da existência”. Considerando na mesma época que todas as suas obras consistem na inversão de avaliações habituais de valor e de hábitos estimados, no Crepúsculo dos ídolos ele inicia sua reflexão pela denúncia de que em todos os tempos os mais “sábios” sempre proferiram o juízo de que a vida não vale nada. Colocando-se numa via oposta ao pessimismo e ao niilismoARALDI, C. L. 2004. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ., embora enuncie que o valor da vida não pode ser avaliado (pois é resultado sempre de uma perspectiva), NietzscheNIETZSCHE, F. 1968. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe. Berlin/Munique: Walter de Gruyter & Co./DTV, 8 v. avalia os valores por meio da hipótese do eterno retorno do mesmo e do critério de aumento de potência. Algo delineado em diversos projetos da transvaloração de todos os valores e que já estava presente em Assim falava Zaratustra por meio da fórmula de avaliação que implica na afirmação daquilo que é necessário: “Era isso, a vida? Pois muito bem! Outra vez!”.3 3 Sobre a noção de “avaliação”, remeto o leitor as seguintes passagens das obras de Nietzsche: Considerações extemporâneas II, § 1; Humano, demasiado humano (volume 1), “Prefácio”, §6; Humano, demasiado humano (volume 2): Miscelânea de opiniões e sentenças, §1; Aurora, “Prefácio”, § 1; 104, 148, 534; A gaia ciência, §§ 19, 301, 345; Assim falava Zaratustra, “Dos mil e um alvos”, “Da visão e do enigma”; Para além de bem e mal, §§ 19, 191, 201, 210; Genealogia da moral, II §2; Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”, §1; “Moral como contranatureza, §5; Fragmentos póstumos 9[1] do verão de 1875; 4[36] de novembro de 1882/fevereiro de 1883; 26(414) do verão/outono de 1884; 40[61] de agosto/setembro de 1885; 1[30] do outono de 1885/primavera de 1886; 2[100] do verão de 1886; 7[45] do fim de 1886/primavera de 1887; 9[35] do outono de 1887; 11[73] de novembro de 1887/março de 1888.

Medida de valor (Werthmaass)

A noção de medida de valor serve para NietzscheNIETZSCHE, F. 1987. Obras Incompletas. Col. Os Pensadores. Seleção de textos de Gerárd Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. Col. “Os Pensadores” . 4ª ed., São Paulo: Nova cultural. identificar o critério de avaliação dos valores de um indivíduo ou de um povo e, mais especificamente, indicar a diferença entre o valor dos valores cristão-niilistas e o valor dos valores trágico-dionisíacos. Termo que representa um aprimoramento da reflexão axiológica presente já em O andarilho e sua sombra, obra na qual define o homem como o que mede (Der Mensch als der Messende), ele permite compreender por que o pensamento do eterno retorno é apresentado em A gaia ciência enquanto o mais pesados dos pesos (Das grösste Schwergewicht).

É no período de elaboração de Aurora, no qual medita em profundidade sobre o bem e o mal, investigando os preconceitos morais, que NietzscheNIETZSCHE, F. 1992. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. chega à conclusão de que o indivíduo cujos impulsos são singulares possui também uma medida de valor singular (ein singuläres Werthmaaß). Nessa anotação de 1880 (posteriormente reelaborada e incluída no primeiro livro de A gaia ciência, §3), ele então destaca aquilo que caracteriza a natureza superior (Die höhere Natur): o fato de possuir sua própria medida de valor para avaliar (Schätzen) as coisas, posto que uma natureza superior não acredita na diversidade alheia de medidas/escalas/critérios (Maaßstäbe). Associada ao desenvolvimento de sua noção de valor, que em Aurora vincula as avaliações morais aos impulsos, sua concepção de medida de valor cria as condições para que a hipótese de repetição cíclica de todos os acontecimentos ganhe sentido em 1881 como o novo peso (Das neue Schwergewicht). Em outras palavras, é a partir do momento em que pensa o eterno retorno como uma nova medida de valor que torna-se possível ter um potente critério para realizar a mudança de todos os valores existentes até então.

Embora já nos quatro primeiros livros de A gaia ciência o filósofo opere com suas noções de valor e avaliação, é somente quando escreve o quinto livro em 1886 (período no qual intensifica a reflexão sobre os valores), que sua concepção de medida de valor ganha em clareza. Na seção 346, Nietzsche então critica o homem como medida de valor das coisas por sua pretensão de colocar permanentemente a existência nos pratos de sua balança (seine Wagschlen) e julgá-la sempre sem valor. Desfazendo a falsa separação homem-mundo por intermédio do conceito de vontade de potência, o filósofo então destrona o homem como “juiz do mundo”, posto que a medida de valor moral pela qual a humanidade media os valores era, não uma medida em si, mas o sintoma de um determinado tipo de vida que entrou em decadência. Do mesmo modo, na penúltima seção intitulada “A grande saúde”, observa que a questão principal que envolve a medida de valor é saber o quão leve (leicht) ou quão pesado (Schwer) somos, ou seja, o problema do nosso peso específico (spezifischen Schwere). Metáfora que reenvia ao pensamento do eterno retorno como a nova medida de valor, Nietzsche convida a afastar-nos da medida de valor do homem do presente, posto que ela representa um perigo para a humanidade. Não por acaso, então, o filósofo termina essa penúltima seção do quinto livro (§382) com a frase começa a tragédia (die Tragödie beginn), a mesma com a qual encerrara a penúltima seção do quarto livro de A gaia ciência (§ 342, Incipit tragoedia) ao indicar o seu Zaratustra (obra cujo núcleo é o pensamento do eterno retorno do mesmo).

Considerando-se em 1886, no prefácio de Aurora, como o filósofo no qual se consuma a auto-supressão da moral, Nietzsche emprega a noção de medida de valor em Para além de bem e mal, na Genealogia da Moral, e, mais frequentemente, nas anotações dos anos 1882 a 1888. Nelas, mostra que sua crítica aos valores é realizada a partir da certeza de uma nova medida de valor; verifica que a religião partiu de outra medida de valor e tomou o lugar daquela que havia na filosofia antiga; insiste nas falsas medidas de valores do homem moderno e declara guerra aos medíocres que impõem os seus valores com base na moral gregária; considera que são os tipos decadentes que colocam-se como medida de valor absoluto das coisas; trata o niilismoARALDI, C. L. 2004. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ. como o sintoma cuja unidade de ponto de vista é justamente a incerteza no que concerne à medida de valor para avaliar os valores e sua dependência da medida de valor moral; vê o hedonismo como a medida de valor das naturezas fatigadas; critica as medidas de valor eudaimonistas (eudämonistiche Werthmasse); deixa claro que é necessário fazer guerra contra a medida de valor cristã-niilista (das christlich-nihilistische Werthmaß). Reflexões que permitem compreender em profundidade tanto sua tarefa de transvaloraçãoRUBIRA, L. Transvaloração de todos os valores: uma introdução à temática nietzschiana. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 2000. quanto o motivo que o leva a insistir, em Ecce homo, sobre o perigo das medidas de valor atuais - algo que o filósofo faz justamente no capítulo em que trata de seu Zaratustra e que também é encerrado com a expressão: a tragédia começa (die Tragödie beginnt).4 4 A propósito da noção de “medida de valor”, consultar: A gaia ciência, §§3, 346, 380, 382; Para além de bem e mal, § 200, 259; A genealogia da moral, II § 2; Ecce homo, “Zaratustra”, § 2; Fragmentos póstumos 6(175) do outono de 1880; 11(141), (295) da primavera-verão de 1881; 4(261) de novembro de 1882/fevereiro de 1883; 9(44) de maio/junho de 1883; 35(43) de maio/julho de 1885; 36(16) de junho/julho de 1885; 7(8) do fim 1886/primavera de 1887; 9(60), 10(90) do outono de 1887; 10(157)3, do outubro de 1887; 11(12), (74), (99) de novembro de 1887/março de 1888; 12(1) começo de 1888; 14(5), (6), (24), (153) da primavera de 1888; 17(3) de maio/junho de 1888.

Valor (Werth)

Para Nietzsche o valor é medida de avaliação, sintoma de determinado tipo de vida. Noção que tem sua primeira aferição no período de Humano, demasiado humano, ela atinge sua precisão na Genealogia da moral. Reflexão que nessas duas fases utiliza o instrumental dos estudos de filologia e história, se inicialmente ele busca pensar o valor por meio da fisiologia, num segundo momento ele o aprofunda a partir da vontade de potência. Trata-se de um tema e de uma problemática que articula o conjunto de sua filosofia, tal como observa o próprio filósofo nos prefácios para cada uma de suas obras do ano de 1886 e no quinto livro de A gaia ciência.

É após a leitura crítica de O valor da vida, de DühringDÜHRING, E. 1865. Der Werth des Lebens. Eine philosophische Betrachtung von Dr. E. Dühring, Docent der Philosophie und Nationalökonomie an der Berliner Universität. Breslau: E. Trewendt., que Nietzsche começa a desenvolver sua própria reflexão axiológica. Já nas anotações do ano de 1875 ele considera que os juízos sobre o valor da vida (Das Urtheil über den Werth des Lebens) são sempre decorrentes de um movimento do ânimo (Gemüthsbewegung) que expressa ímpeto ou enfado de vida. Interligando a criação de valores ao âmbito do impulso (Trieb), em Humano, demasiado humano o filósofo não somente afasta-se da concepção de “valor em si”, mas pensa a produção e a medição dos valores como a atividade humana por excelência. Por essa razão, em O andarilho e sua sombra, ele define o homem como o que mede (Der Mensch als der Messende) com base na hipótese de que toda moralidade teve sua origem a partir do momento em que os homens primitivos descobriram a medida e o medir (Maass und das Messen), a balança e o pesar (Wage und das Wägen). Compreendendo, já nessa época, que a origem da moral é o resultado de um longo processo de relações comerciais nas quais o animal-homem acabou por internalizar os instrumentos de medida com que avaliava os bens de troca (exemplo disso é a importância do jus talionis na esfera jurídica e moral), Nietzsche passa a criar expressões como balança do juízo moral (Wage des moralischen Urtheils), balança do sentimento de valor (Wage des Werthgefühls) e, de modo contínuo, emprega a palavra peso (Gewicht) como sinônimo de valor. Para o filósofo, portanto, ao assimilar profundamente a história e o prudente jogo dos pratos da balança (Wagschalen), o homem permanentemente avalia os valores a partir de uma medida de avaliação, ou seja, de um peso/valor previamente criado ou integrado em seus pensamentos e sentimentos por meio do hábito/costume.

Já em A gaia ciência, a noção de valor torna-se operatória no pensamento de Nietzsche. Por essa razão, ele inicia o terceiro livro dessa obra tratando do desafio que está implicado na “morte de Deus” (visto que, até então, Deus teria sido o peso/valor maior de todas as avaliações), aponta metaforicamente para a gravidade da perda do valor maior pelo qual todos os valores eram medidos (§125), termina o mesmo livro defendendo que os pesos de todas as coisas precisam novamente ser avaliados (§269), insiste no quarto livro que tudo o que tem valor no mundo não o tem em si, mas que foi o homem quem conferiu valor a todas as coisas (§301) e conclui a obra de 1882 apresentando o mais pesado dos pesos (Das grösste Schwergewicht) - a maior medida de avaliação para todos os valores: o eterno retorno do mesmo (§341) - definido desde as anotações de 1881 como o novo peso (Das neue Schwergewicht). Compreende-se, assim, porque em Assim falava Zaratustra, o protagonista insiste na ideia de que nenhum povo pode viver sem avaliar e conferir valores às coisas, posto que o homem é aquele que avalia (der Schätzende). De outra parte, interligando já nessa obra a produção dos valores à vontade de potência, as tábuas de valores “bem e mal” são a expressão da medida de avaliação que cada povo necessita para conservar e aumentar a sua potência (cf. “Dos mil e um alvos”). Tais elementos tornam claras várias passagens de Zaratustra, tal como no momento em que ele alerta para o fato de que não se pode viver sem entrar em conflito/disputa (Streit) sobre peso, balança e pesadores (cf. “Dos seres sublimes”).

Mas é a partir de Para além de bem e mal que Nietzsche intensifica e aprimora sua reflexão axiológica. Trata-se do período em que ele chega à conclusão de que seu ponto de interrogação desde O nascimento da tragédia era a questão do valor da existência (Werth des Daseins); que o núcleo de cada uma de suas obras anteriores girava em torno da inversão de avaliações habituais de valor e de hábitos estimados; que, dentre os filósofos, ele é quem pela primeira vez buscou fazer uma crítica dos juízos morais de valor. Radicalizando sua noção de valor na Genealogia da moral, Nietzsche volta a insistir na ideia de que calcular, estabelecer preços, medir valores e inventar equivalentes ocupou de tal modo o homem primitivo que de certo modo acabou por constituir o próprio modo de pensar humano, sendo o homem o ser que mede valores, que valora e mede, o animal avaliador em si (“abschätzende Thier sich”). É quando, então, coloca em questão o valor da moral (o valor dos valores) por meio de uma investigação das condições em que o homem inventou para si os juízos de valor bom e mau (Werthurtheile gut und böse), perguntando se estes valores obstruíram ou favoreceram o desenvolvimento da humanidade, se representam a degeneração ou a vontade de vida. Do mesmo modo, nas anotações que faz a partir de setembro de 1887, ele define o niilismoARALDI, C. L. 2004. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ. como desvalorização dos valores supremos, compreende que o valor é o ponto de vista das condições-de-conservação-e-aumento (ou seja, que ele é produzido pela perspectiva/ótica da vontade de potência) e estabelece que o modo de medir objetivamente um valor é pelo aumento de potência.

Por fim é importante notar que entre 1886 e 1888, Nietzsche não somente busca realizar a crítica dos valores morais, fornecer elementos para uma história genética dos valores, apontar a necessidade da filosofia resolver o problema do valor e determinar a hierarquia dos valores, mas, preocupado com o avanço do niilismoARALDI, C. L. 2004. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ., ou seja, com a desvalorização dos valores supremos (a filosofia, a religião, a moral, a arte, etc.), lança-se na tarefa de uma transvaloração de todos os valores5 5 Sobre a noção de “valor” até aqui desenvolvida ver: O nascimento da tragédia, “Prefácio”, § 1; Humano, demasiado humano (volume 1), “Prefácio”, §1; § 31, 32, 34; Humano, demasiado humano (volume 2): o andarilho e sua sombra, § 21, 22, 33; Aurora, §148; A gaia ciência, “Prefácio”, § 2; §§ 269, 301, 341, 345; Assim falava Zaratustra, “Das três transmutações”, “Dos mil e um alvos”, “Dos seres sublimes”, “Dos três males”; A genealogia da moral, “Prefácio”, § 2, 3, 4, 5, 6, 7; I, §17; II, §8; III, §17; Crepúsculo dos ídolos, “Moral como contranatureza, § 5; “O problema de Sócrates”, § 1; O anticristo, § 26; Fragmentos póstumos 9[1] do verão de 1875; 11[141] da primavera/outono de 1881; 4[36] de novembro de 1882/fevereiro de 1883; 40[61] de agosto/setembro de 1885; 1[30] do outono de 1885/primavera de 1886; 5[70] do verão de 1886/outono de 1887]; 7[45] do fim de 1886/primavera de 1887; 9[35] do outono de 1887; 11[73] e [83] de novembro de 1887/março de 1888; 15[31] da primavera de 1888. .

Considerações finais

Explorar as noções de avaliação (Werthschätzung), medida de valor (Werthmaass) e valor (Werth) são importantes para uma maior compreensão do conceito de transvaloração de todos os valores no pensamento tardio de Nietzsche. Cabe aqui lembrar que, dentre os diversos intérpretes e comentadores de Nietzsche, ao tratar da noção de avaliação, Scarlett Marton pontuou: “A noção nietzschiana de avaliação (ou perspectiva avaliadora ou ainda apreciação de valor) está intimamente ligada à noção de valor. São as avaliações que dão origem aos valores e a eles conferem valor”6 6 MARTON, S. “Avaliação”. In: GEN, 2016, p. 129. ; do mesmo modo, a propósito da noção de valor ela escreveu: “Central no pensamento de Nietzsche, a noção de valor está presente ao longo de seu percurso”7 7 MARTON, S. “Valor”. In: GEN, 2016, p. 406. . A nosso ver, no entanto, a articulação entre as noções de avaliação e valor ganham em compreensão quando pensadas também à luz da noção de “medida de valor”. É somente esta última que permite entender os esforços do pensamento nietzschiano na direção de encontrar uma nova medida de valor para todos os valores (o pensamento do eterno retorno do mesmo), medida esta que pudesse ser capaz de substituir a antiga medida de valor (a fórmula “Deus na Cruz”) - que segundo Nietzsche teria conduzido à desvalorização de todos os valores, ao niilismoARALDI, C. L. 2004. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ.. E cabe sempre lembrar que é somente no final de agosto de 1888 que o filósofo abandona o projeto de escrever a obra intitulada “A vontade de potência” e passa a dedicar-se à tarefa que estaria no núcleo de seu pensamento, a saber: a transvaloração de todos os valores8 8 Para uma maior compreensão do momento em que Nietzsche toma para si a tarefa da transvaloração, ver RUBIRA, 2018, p. 135-154. .

Referências

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  • 1
    Neste sentido, ver RUBIRA, 2010RUBIRA, L. 2010. Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores. São Paulo: Discurso Editorial/Editora Barcarolla., em particular os capítulos II e III.
  • 2
    Sobre o significado do conceito e da tarefa da transvaloração no pensamento nietzschiano, ver GEN, 2016GEN - (Org.). 2016. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola (Coleção Sendas & Veredas)., p. 399-402.
  • 3
    Sobre a noção de “avaliação”, remeto o leitor as seguintes passagens das obras de NietzscheWOTLING, P. 1995. Nietzsche et le problème de la civilisation. Paris: Presses Universitaires de France.: Considerações extemporâneas II, § 1; Humano, demasiado humano (volume 1), “Prefácio”, §6; Humano, demasiado humano (volume 2): Miscelânea de opiniões e sentenças, §1; Aurora, “Prefácio”, § 1; 104, 148, 534; A gaia ciência, §§ 19, 301, 345; Assim falava Zaratustra, “Dos mil e um alvos”, “Da visão e do enigma”; Para além de bem e mal, §§ 19, 191, 201, 210; Genealogia da moral, II §2; Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates”, §1; “Moral como contranatureza, §5; Fragmentos póstumos 9[1] do verão de 1875; 4[36] de novembro de 1882/fevereiro de 1883; 26(414) do verão/outono de 1884; 40[61] de agosto/setembro de 1885; 1[30] do outono de 1885/primavera de 1886; 2[100] do verão de 1886; 7[45] do fim de 1886/primavera de 1887; 9[35] do outono de 1887; 11[73] de novembro de 1887/março de 1888.
  • 4
    A propósito da noção de “medida de valor”, consultar: A gaia ciência, §§3, 346, 380, 382; Para além de bem e mal, § 200, 259; A genealogia da moral, II § 2; Ecce homo, “Zaratustra”, § 2; Fragmentos póstumos 6(175) do outono de 1880; 11(141), (295) da primavera-verão de 1881; 4(261) de novembro de 1882/fevereiro de 1883; 9(44) de maio/junho de 1883; 35(43) de maio/julho de 1885; 36(16) de junho/julho de 1885; 7(8) do fim 1886/primavera de 1887; 9(60), 10(90) do outono de 1887; 10(157)3, do outubro de 1887; 11(12), (74), (99) de novembro de 1887/março de 1888; 12(1) começo de 1888; 14(5), (6), (24), (153) da primavera de 1888; 17(3) de maio/junho de 1888.
  • 5
    Sobre a noção de “valor” até aqui desenvolvida ver: O nascimento da tragédia, “Prefácio”, § 1; Humano, demasiado humano (volume 1), “Prefácio”, §1; § 31, 32, 34; Humano, demasiado humano (volume 2): o andarilho e sua sombra, § 21, 22, 33; Aurora, §148; A gaia ciência, “Prefácio”, § 2; §§ 269, 301, 341, 345; Assim falava Zaratustra, “Das três transmutações”, “Dos mil e um alvos”, “Dos seres sublimes”, “Dos três males”; A genealogia da moral, “Prefácio”, § 2, 3, 4, 5, 6, 7; I, §17; II, §8; III, §17; Crepúsculo dos ídolos, “Moral como contranatureza, § 5; “O problema de Sócrates”, § 1; O anticristo, § 26; Fragmentos póstumos 9[1] do verão de 1875; 11[141] da primavera/outono de 1881; 4[36] de novembro de 1882/fevereiro de 1883; 40[61] de agosto/setembro de 1885; 1[30] do outono de 1885/primavera de 1886; 5[70] do verão de 1886/outono de 1887]; 7[45] do fim de 1886/primavera de 1887; 9[35] do outono de 1887; 11[73] e [83] de novembro de 1887/março de 1888; 15[31] da primavera de 1888.
  • 6
    MARTON, SMARTON, S. 1994. O eterno retorno do mesmo - tese cosmológica ou imperativo ético? In: C. TÜRCKE (Coord.). Nietzsche: uma provocação. Porto Alegre: Editora da Universidade.. “Avaliação”. In: GEN, 2016GEN - (Org.). 2016. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola (Coleção Sendas & Veredas)., p. 129.
  • 7
    MARTON, SMARTON, S. 1994. O eterno retorno do mesmo - tese cosmológica ou imperativo ético? In: C. TÜRCKE (Coord.). Nietzsche: uma provocação. Porto Alegre: Editora da Universidade.. “Valor”. In: GEN, 2016GEN - (Org.). 2016. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola (Coleção Sendas & Veredas)., p. 406.
  • 8
    Para uma maior compreensão do momento em que NietzscheWOTLING, P.2001. Le vocabulaire de Nietzsche. Paris: Ellipses Édition. toma para si a tarefa da transvaloração, ver RUBIRA, 2018RUBIRA, L. 2018. A tarefa da transvaloração: esclarecimentos a partir da correspondência de Nietzsche em 1888. Discurso - Departamento de Filosofia da FFLCH da USP, 48 (2): 135-154. , p. 135-154.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2022
  • Aceito
    16 Maio 2022
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